Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA CATARINA GONÇALVES | ||
Descritores: | FORMULÁRIO ELETRÓNICO PARA INDICAÇÃO DE TESTEMUNHAS NÃO PREENCHIMENTO PELA PARTE NÃO ADMISSÃO DA PROVA TESTEMUNHAL INCONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 11/07/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 7.º, N.º 4, DA PORTARIA N.º 280/2013, DE 26-08, 8.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL E 20.º DA CONSTITUIÇÃO | ||
Sumário: | I – Em conformidade com o previsto e determinado no n.º 4 do art.º 7.º da Portaria n.º 280/2013 de 26/08, se o formulário não se encontrar preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas e se a parte persistir nessa omissão depois de notificada, nos termos previstos na citada disposição legal, para a corrigir, não pode ser considerada a indicação de prova testemunhal que apenas foi feita no ficheiro anexo a esse formulário. II – A norma em questão não padece de inconstitucionalidade por violação do art.º 20.º da CRP, sendo certo que a sua aplicação não interfere, de forma arbitrária, excessiva e desproporcionada, com o direito da parte de apresentar prova testemunhal. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: | Apelação nº 864/20.1T8FIG-A.C1 Tribunal recorrido: Comarca de Coimbra - F.Foz - JL Cível - Juiz 2 Relatora: Maria Catarina Gonçalves 1.º Adjunto: Paulo Correia 2.º Adjunto: Arlindo Oliveira
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Nos autos de inventário a que se procede para partilha da herança de AA, o cabeça de casal, BB, apresentou a relação de bens onde, em relação a uma verba que havia sido legada, por testamento, a CC, aludiu à nulidade desse legado.
Na sequência da sua citação, o referido legatário veio apresentar requerimentos em 03/05/2022 e 10/06/2022, pugnando pela validade do legado. Em tais requerimentos, o referido legatário indicou prova testemunhal, sem que tivesse, no entanto, preenchido os formulários por via dos quais esses requerimentos foram apresentados na parte referente à identificação das testemunhas.
Em face dessa omissão e em conformidade com o determinado pelo art.º 7.º, n.º 4, da Portaria nº 280/2013 de 26/08, a secretaria notificou o referido interessado/legatário – em 12/05/2023 – para preencher aqueles formulários no prazo de dez dias, sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial.
O referido interessado/legatário nada fez no prazo assinalado.
Na sequência desse facto, foi proferido despacho – em 14/06/2023 – com o seguinte teor: “Não tendo o interessado legatário preenchido o formulário relativamente às testemunhas, considera-se não indicada prova testemunhal (cfr. art. 7º, nº 4 da Portaria nº 280/2013 de 26.08)”.
CC (legatário) veio interpor recurso desse despacho, formulando as seguintes conclusões: I - Mesmo que nada se faça constar em formulário, o rol que conste, como ao caso, da Resposta do Legatário e tenha sido do conhecimento dos restantes interessados é suficiente para que não se verifique qualquer violação do estatuto da igualdade substancial das partes (art. 4 CPC). II - Lei adjectiva não pode fazer derrocar lei substantiva, mormente, como indicado, a estatuída e consagrada pela CRP (art. 4º CRP V art. 7/4 da Portaria 280/2013). III - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. IV - O Estatuído no art. 7/4 da Portaria 280/2013, norma invocada e que fundamenta o douto despacho de que se recorre, revela-se, também aqui, excessiva e desproporcional, porquanto prejudica o direito à acção por parte do Legatário, ora Recorrente. V - O tribunal a quo deveria ter admitido a prova testemunhal apresentada aquando da apresentação da Resposta do ora Recorrente e a contida nos requerimentos posteriores. VI - O douto despacho sob recurso, viola, no entender do recorrente, as normas dos artigos 195 CPC, regras gerais sobre a nulidade dos actos, os arts. 4º e 20º CRP (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e artigo 7/4 da Portaria 280/2013, por deficiente interpretação e aplicação dos respectivos normativos, pois deveriam ter sido interpretados e aplicados no sentido que se propôs nas conclusões precedentes. Conclui pedindo que o despacho em questão seja revogado e substituído por decisão que julgue a prova testemunhal apresentada como válida e admitida.
Não houve resposta ao recurso. ///// II. Questão a apreciar: Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se deve (ou não) ser considerada a indicação de prova testemunhal feita em determinado requerimento quando o formulário por via do qual foi apresentado não se encontra preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas (conforme imposto pela Portaria n.º 280/2013 de 26/08) e a parte não procede a tal preenchimento na sequência da notificação prevista no n.º 4 do art.º 7.º da referida Portaria. ///// III. A questão suscitada no presente recurso prende-se com a Portaria n.º 280/2013 de 26/08 – que regula a tramitação electrónica dos processos judiciais – e, mais concretamente, com o n.º 4 do art.º 7.º desse diploma que dispõe nos seguintes termos: “Nos casos em que o formulário não se encontre preenchido na parte relativa à identificação das testemunhas e demais informação referente a estas, constando tais elementos dos ficheiros anexos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, a secretaria procede à notificação da parte para preencher, no prazo de 10 dias, o respetivo formulário, sob pena de se considerar apenas o conteúdo do formulário inicial”. Tal normativo vem na sequência do art.º 6.º, n.º 1, onde se dispõe que a apresentação de peças processuais é efectuada através do preenchimento de formulários disponibilizados no endereço electrónico referido no artigo 5.º e na sequência do disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 7.º onde se dispõe que “Quando existam campos no formulário para a inserção de informação específica, essa informação deve ser indicada no campo respetivo, não podendo ser apresentada unicamente nos ficheiros anexos” e que “Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos”. O n.º 4 desse art.º 7.º – em causa no presente recurso – constitui, portanto, um mecanismo que visa assegurar o respeito pelas anteriores disposições, dando, no entanto, à parte a possibilidade de, na sequência da notificação aí prevista e no prazo nela determinado, corrigir a desconformidade existente quando ela se reporta à identificação das testemunhas e outra informação relevante às mesmas. Com efeito, resultando do n.º 1 do referido art.º 7.º que a informação referente à identificação das testemunhas não pode constar apenas dos ficheiros anexos, tendo que constar, obrigatoriamente, do formulário, no campo destinado à inserção dessa informação, o que resulta do n.º 4 é que o incumprimento dessa norma não determina, de forma automática, a desconsideração do rol de testemunhas que tenha sido apresentado no ficheiro anexo (como resultaria do n.º 2), devendo a parte ser notificada para corrigir aquela desconformidade; se, não obstante essa notificação, a omissão ou desconformidade em causa não for corrigida no prazo aí referido, apenas se considera o conteúdo do formulário inicial.
No caso dos autos, o interessado (agora Apelante) apresentou dois requerimentos onde indicou prova testemunhal sem que tivesse, no entanto, preenchido os formulários, por via dos quais apresentou esses requerimentos, na parte referente à identificação das testemunhas. Perante essa situação e em obediência ao disposto no n.º 4 da citada disposição legal, a secretaria notificou o interessado nos termos ali mencionados, ou seja, para preencher aqueles formulários no prazo de dez dias, mais indicando a sanção que resultaria dessa falta de preenchimento (nesse caso, apenas seria considerado o conteúdo do formulário inicial do qual não constavam – como se disse – quaisquer testemunhas). No entanto, o referido interessado – que já antes havia incumprido o disposto na lei ao ter omitido aquela informação no formulário – persistiu nesse incumprimento após a notificação que lhe foi efectuada, apesar de advertido das respectivas consequências. Nessas circunstâncias, o despacho recorrido – que considerou não indicada qualquer prova testemunhal por falta de preenchimento do formulário relativamente às testemunhas – limitou-se a cumprir e a aplicar o disposto na citada disposição legal, já que era essa a consequência que ali se previa para o caso de o interessado não corrigir o vício na sequência da notificação que, para tal, lhe foi efectuada. O despacho recorrido está, portanto, em conformidade com a lei.
Apesar de dizer que o despacho recorrido fez uma interpretação errada do citado art.º 7.º, n.º 4, o Apelante não diz qual seria, no seu entender, a interpretação correcta e a verdade é que, na nossa perspectiva, a norma citada não consente outra interpretação que não seja aquela que lhe foi dada pelo despacho recorrido. Com efeito, se ali se diz expressamente que, na situação descrita, apenas se considera o conteúdo do formulário inicial, tal não poderá deixar de significar que, não constando do formulário qualquer prova testemunhal, essa prova não se poderá ter como indicada/apresentada. Nem se perceberia, aliás, qual a utilidade da notificação ali prevista se, em qualquer caso – e ainda, portanto, que a parte nada fizesse na sequência dessa notificação –, sempre devesse ser atendida a indicação da prova testemunhal feita no ficheiro anexo.
E de nada adianta apelar – como faz o Apelante – ao disposto no art.º 195.º do CPC e às regras gerais sobre a nulidade dos actos, para o efeito de dizer que, nos termos das referidas disposições/regras, a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (o que, no caso, não aconteceria), uma vez que é a própria lei a determinar, de modo expresso, que a falta de correcção da omissão constante do formulário, na sequência da notificação para o efeito efectuada, implica que apenas se considere o formulário e que, como tal, se desconsidere a indicação das testemunhas que foi feita no ficheiro anexo.
Diz ainda o Apelante que a norma em questão é excessiva e desproporcional, na medida em que prejudica o seu direito à acção. O Apelante segue, nesta parte, o que se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 27/01/2022[1], onde se admitiu o rol de testemunhas apresentado na petição inicial (apesar de o formulário não fazer menção a tais testemunhas) com o argumento de que a norma constante do referido art.º 7.º, n.º 4, é excessiva e desproporcional por prejudicar o direito de acção por parte do autor. Todavia, sendo certo – como se referiu – que a norma em questão não consente outra interpretação que não seja a de que, na situação descrita, não se considera indicada/apresentada qualquer prova testemunhal, parece certo que a admissão da prova testemunhal apresentada no ficheiro anexo (mas omitida no formulário) corresponderia a fazer “letra morta” da norma em questão (art.º 7.º, n.º 4, da referida Portaria) e traduzia uma verdadeira recusa de aplicação de uma norma instituída pelo legislador. Ora, salvo o devido respeito, não cabe ao julgador fazer juízos acerca da justeza e adequação das normas que é chamado a aplicar e muito menos lhe será permitido sobrepor-se ao legislador e recusar a aplicação de normas pelo facto de as considerar injustas, excessivas ou desproporcionadas, como resulta, aliás, do disposto no n.º 2 do art.º 8.º do CC, onde expressamente se determina que “O dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”. Nessas circunstâncias, a aplicação da norma em questão apenas poderia ser recusada se ela fosse inconstitucional, ou seja, se estivesse em desconformidade com a Constituição da República, o que, de algum modo, parece ser invocado pelo Apelante quando alude à violação do seu direito à acção e ao art.º 20.º da CRP. Mas também pensamos não ser o caso.
O direito – consagrado na referida norma constitucional – de acesso ao direito e aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva pressupõe, como ali se determina, que a todos seja assegurado esse acesso para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Podendo ser caracterizado como “…um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando‑se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras»”[2], o direito em questão envolve o direito de acção, o direito de defesa, o direito a um processo justo e equitativo, onde também se inclui, naturalmente, o direito à apresentação das provas que se entendam relevantes para demonstração dos direitos e dos factos em que se baseia a acção e/ou a defesa. É certo, no entanto, que esse direito de acesso aos tribunais – constitucionalmente garantido – não significa um direito de aceder aos tribunais (designadamente um direito de apresentar provas) em qualquer circunstância e sem submissão a quaisquer regras ou limitações e, portanto, não significa que o legislador ordinário não possa regular os pressupostos de que depende esse acesso, os prazos a observar e as regras/restrições a que está submetido, desde que essa regulação/disciplina e as restrições impostas não sejam arbitrárias, onerosas e excessivas ao ponto de dificultarem, de forma arbitrária e desproporcionada, o exercício dos direitos, criando, na prática, uma situação de impossibilidade de acesso aos tribunais para exercício e defesa dos direitos[3]. Ora, não vislumbramos como se possa entender que a norma em causa dificulta, de forma arbitrária e desproporcionada, o exercício do direito de apresentar/indicar prova testemunhal, quando é certo que a sua aplicação pressupõe a prévia e expressa notificação da parte para corrigir a omissão anteriormente praticada, de modo que a prova indicada no ficheiro anexo apenas será desconsiderada se o formulário não contiver as informações relevantes nessa matéria e se a parte persistir nessa omissão depois de expressamente notificada para a corrigir. Entendemos, portanto, em face do exposto, que não ocorre qualquer violação do direito de acesso aos tribunais. O Apelante teve efectivamente a oportunidade de indicar a prova testemunhal; podia tê-lo feito inicialmente com observância das formalidades que a lei exigia (com indicação dos elementos necessários no formulário) e podia tê-lo feito quando para tal foi expressamente notificado e, perante a persistência da sua omissão (apesar de para ela ter sido advertido e apesar de lhe ter sido dada a oportunidade de a corrigir), não há nenhuma razão para entender que a desconsideração da prova testemunhal constante do ficheiro anexo é uma solução/sanção arbitrária ou desproporcionada. Entendemos, portanto, que a norma em causa não é inconstitucional, não existindo, por isso, qualquer fundamento para recusar a sua aplicação.
Em face do exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida. ****** SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção): (…). ///// IV.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves) (Paulo Correia) (Arlindo Oliveira) [1] Proferido no processo n.º 28044/20.9T8LSB-A.L1-8, disponível em http://www.dgsi.pt. [2] Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 86/88 e 934/96 de 13/04/1988 e 10/07/1996, respectivamente, disponíveis em https://www.tribunalconstitucional.pt. [3] Sobre esta matéria, podem ver-se o Acórdão do STJ de 13/05/2014 (processo n.º 16842/04.5TJPRT.P1.S1) e o Acórdão da Relação do Porto de 22/04/2013 (processo n.º 16842/04.5TJPRT.P1), ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt. |