Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
17705/23.0YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
OBRIGAÇÕES EMERGENTES DE TRANSAÇÕES COMERCIAIS
COMPLEXIDADE DA CAUSA
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, ALÍNEA B), 10.º E 13.º DO DLEI N.º 62/2013, DE 10-05
Sumário: A complexidade da causa não constitui um critério normativo que impeça o recurso ao procedimento de injunção destinado a exigir o cumprimento de obrigações emergentes de transacções comerciais, previstas no Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
  Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.
 
A... LDA., instaurou procedimento de injunção contra B..., LDA.,  pedindo, com base no contrato de empreitada melhor descrito no requerimento inicial [1], que a requerida seja condenada a pagar à requerente a quantia de 23.012,52 €, a título de capital, acrescida de juros de mora no montante de 1.233,83 €.                                         
                                                                       ***
 A requerida deduziu oposição, impugnando parte da factualidade alegada no requerimento inicial e sustentando que as obras objecto da empreitada supra mencionada apresentavam defeitos e não foram concluídas no prazo que se encontrava previsto, o que determinou a resolução do respectivo contrato.   
  Em reconvenção, com base no incumprimento atrás mencionado e em sobrecustos decorrentes da necessidade de concluir os trabalhos não executados e de corrigir os defeitos existentes, peticionou que a requerente seja condenada a indemnizar a requerida pelos danos emergentes e lucros cessantes sofridos por esta, a liquidar posteriormente em incidente de liquidação[2] . 
  
                                                                                                               ***   
   A requerente apresentou resposta, concluindo no sentido da improcedência das excepções invocadas pela requerida, bem como do pedido reconvencional.
                                                                                                                                                           ***

  Em 6/12/2023, foi proferido despacho [3] a absolver a absolver a ré da instância, com o seguinte teor:
   “A autora A... Lda., com sede no Parque Industrial ... , Lote ...5, 2ª Fase – C..., ... ... apresentou requerimento de injunção contra a ré B..., Lda, com sede na Rua ... – ..., ... ....   
 Para tanto, alegou que o crédito reclamado emerge do contrato de empreitada celebrado entre autora e ré, que os serviços contratados foram efetivamente realizados pela autora, totalizaram a quantia de €23.012,52, que o preço devido pela efetivação dos mesmos é devido e está vencido, estando devidamente faturado, faturas que foram enviadas à ré nas datas da emissão, porém, apesar de interpelada para o pagamento, até hoje, a ré não pagou, encontrando-se em dívida o referido montante de €23.012,52, à qual deverão acrescer os juros legais e as despesas de cobrança.
Na oposição deduzida, a ré impugnou a factualidade e alegou o incumprimento contratual. 
  Cumpre apreciar e decidir. 
  A injunção traduz-se num mecanismo marcado pela simplicidade e celeridade, vocacionado para a cobrança simples de dívidas, de molde a aliviar os Tribunais da massificação decorrente de um exponencial aumento de ações de pequena cobrança de dívidas. 
  Foi confrontado com a necessidade de melhorar um sistema que estava a permitir uma instrumentalização do poder soberano dos tribunais, transformando-os em agências de cobranças de dívidas, que o legislador criou o procedimento da injunção.  
  Na verdade, tendo em vista proporcionar ao credor uma forma célere e simplificada de obtenção de um título executivo, o Dec.-Lei nº 404/93, de 10.12, instituiu a injunção, providência destinada a conferir força executiva ao requerimento de efectivação do cumprimento de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do tribunal da 1ª instância. 
A forma do requerimento e a subsequente tramitação, no caso de oposição, eram decalcadas do regime do processo sumaríssimo.
   O Dec.-Lei nº 269/98, de 01.9, revogou o Dec.-Lei nº 404/93 e alargou o regime da injunção às obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal da 1ª instância.
 No âmbito da luta contra os atrasos de pagamento em transações comerciais, e transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29.6, o Dec.-Lei nº 32/2003, de 17.02, alargou a aplicação do regime da injunção às situações de atraso de pagamento em transações comerciais, para o efeito definidas como transacões entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, que deem origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração.
    Tal faculdade é admitida independentemente do valor da dívida.
  O Dec.-Lei n.º 107/2005, de 01.7, alargou a aplicabilidade do regime da injunção às obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação.                            
O Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.8, reduziu para € 15 000,00 o valor até ao qual é admissível a aplicabilidade do regime de injunção às obrigações pecuniárias emergentes de contratos.
 O Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10.5, que revogou o Dec.-Lei n.º 32/2003, reduziu para metade do valor da alçada da Relação o valor acima do qual a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção tendo em vista o pagamento em transações comerciais determinam a posterior aplicação do processo comum, sendo também aquele o valor até ao qual serão aplicáveis, nas ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (cfr. art.º 10.º, n.ºs 2 e 4 do Dec.-Lei n.º 62/2013).                                                                  
Nas palavras do douto Acórdão da Relação de Lisboa de 21/04/2016, disponível em “www.dgsi.pt “o processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade….”
  Da análise da concreta dos autos, resulta claro não estarmos, sem mais, perante o mero ou simples (in)cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente do contrato de empreitada descrito.
Efectivamente, o litígio reporta-se a uma discussão complexa relativa à apreciação dos trabalhos realizados em vários contratos de subempreitada, existência de atrasos e danos sofridos pela ré, não se mostrando possível apreciar, a título processual, o requerimento inicial sem igualmente analisar o vertido na oposição. Urge ponderar e apreciar acerca da relação contratual existente, donde emana um complexo de direitos e deveres para ambas as partes, divergindo estas quanto à existência e amplitude do imputado mútuo (in)cumprimento.
 Pelo que, a controvérsia em equação nos presentes autos está longe do processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade.
 Decorre assim do exposto que estamos perante uma situação em que não se mostram reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a utilização da injunção, o que impede o tribunal de conhecer do mérito da causa.
  Importa assim rejeitar a utilização do procedimento injuntivo já que, o mesmo não é o meio adequado a apreciar o contrato de empreitada celebrado entre a autora e a ré.
Esta situação configura como bem refere, entre outros o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/05/2014, disponível, in, www.dgsi.pt, “uma excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do n.º 2 do art.º 576º (e art.º 577º), do CPC de 2013, e não de erro na forma de processo, ainda que, nesta segunda perspectiva, possa conduzir a idêntico resultado processual.                                          
Na verdade, tal excepção dilatória inominada, afectando o conhecimento e o prosseguimento da acção especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização (as condições de natureza substantiva que a lei impõe para que seja decretada a injunção), não permite qualquer adequação processual ou convite a um aperfeiçoamento; caso contrário, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção.
A transmutação do procedimento de injunção, por via de oposição que seja deduzida, em acção declarativa de condenação - acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato -, não legitima a utilização indevida daquele, derivada da falta de pressupostos que o possibilitariam”.           
Julga-se pois verificada uma excepção dilatória inominada pelo uso indevido deste tipo de procedimento, a qual determina a nulidade de todo o processo, configurando excepção dilatória que determina a absolvição da instância da requerida – cfr. artigos 576º, n º2 e 577º, al. b), ambos do CPC.
                                                                                       
Por fim, é neste momento que deve ser objeto de conhecimento a referida excepção dilatória – cfr. artigos 3º, 1 e 17º do Dl 269/98, de 1/9. 
  Pelo exposto e decidindo, julgando procedente a excepção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção, absolvo a ré da instância.”                                                                                                                        
***     
Não se conformando com a decisão proferida, a autora interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:                                                                                                                                                                             (…).
***

A ré contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:                                                                                                                                                                          (…).
                                                                                                                                                                                                                     ***
Questão objecto do recurso: adequação do procedimento de injunção ao litígio configurado por autora e ré nos respectivos articulados.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             ***                                                                                                        
II – FUNDAMENTOS
  Com relevância para a apreciação do presente recurso, importa levar em linha de conta a tramitação processual que vem descrita no antecedente relatório, quer no que diz respeito às peças processuais apresentadas pelas partes, quer no que se refere ao despacho ora impugnado.
                                                                       ***
 Enquadramento jurídico.                                                           

Como é geralmente sabido, o procedimento que está na origem dos autos em apreço encontra-se regulado no DL n.º 269/98, de 1 de Setembro, estabelecendo-se no art. 7º do anexo a este diploma que “Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.”. 
  A referência que é feita ao DL nº32/2003, de 17/2, perdeu, na sequência da evolução legislativa posterior, a sua razão de ser, uma vez que este diploma, à excepção de duas normas, veio a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio.                                                                                                
No art. 13º deste último decreto-lei prescreve-se o seguinte: 
1 - É revogado o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 107/2005, de 1 de julho e pela Lei n.º 3/2010, de 27 de abril, com exceção dos artigos 6.º e 8.º, mantendo-se em vigor no que respeita aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma.
 2 - As remissões legais ou contratuais para preceitos do Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, consideram-se efetuadas para as correspondentes disposições do presente diploma, relativamente aos contratos a que o mesmo é aplicável nos termos do artigo seguinte.”. 
De acordo com o disposto no art. 3º, alínea b), do DL nº62/2013, considera-se “«Transação comercial», uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração;”.
   Por sua vez, no art. 10º do mesmo diploma legal (sob a epígrafe “procedimentos especiais”) são estabelecidas as seguintes regras relativamente ao procedimento em análise:
    “1 - O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida. 
  2 - Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum. 
3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.  
 4 - As ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação.”.
Sendo este o quadro normativo que rege o procedimento de injunção, pode desde já adiantar-se que o legislador não estabeleceu qualquer regra que limite ou impeça o recurso ao mesmo com base no critério que o Tribunal a quo adoptou, ou seja, o da maior ou menor complexidade do litígio. 
Recorde-se que a tramitação das acções em apreço é essencialmente regulada pelo art. 10º do DL nº62/2013, o qual estabelece como princípio estruturante o valor da causa.
A possibilidade, que a lei consagra, de aperfeiçoamento dos articulados e a tramitação sob a forma de processo comum, nos casos em que o valor do pedido é superior a metade da alçada da Relação, são elementos que afastam o entendimento que a 1ª instância adoptou, entendimento, aliás, que, para além de não ter sustentáculo nas disposições legais a que fizemos referência, se reveste de uma manifesta carga da subjectividade, pois deixaria ao critério do Tribunal a escolha entre processos “complexos ou de elevada complexidade” e “simples ou  de reduzida complexidade”.
 No sentido que defendemos, podemos citar, a título meramente exemplificativo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 14/3/2023 [4], cujo sumário, de forma certeira e objectiva, contém o seguinte conjunto de observações:                                                                                                                                        
I. A autora podia recorrer ao procedimento de injunção porquanto a dívida emerge de transação comercial entre duas empresas (contrato de empreitada celebrado entre duas sociedades, sendo uma nas vestes de empreiteira e outra nas de dona da obra; o contrato de empreitada é uma modalidade do contrato de prestação de serviços ex vi Artigo 1155º do Código Civil), independentemente do valor da dívida (cf. Artigo 10º, nº1, do Decreto-lei nº 62/2013, de 10.5).  
 II. Carece de fundamento a não admissão da utilização da injunção e do procedimento que lhe subjaz, decorrente da apresentação de oposição, a contratos que suscitem questões de resolução mais complexas (exceção dilatória inominada), designadamente porque:                                   
 i.A aferição de uma exceção dilatória inominada como a delimitada na decisão recorrida, ou de uma situação de erro na forma de processo não pode fazer-se por via do preenchimento de um conceito indeterminado de complexidade da causa;                                 
ii.No que respeita ao regime instituído pelo DL 269/98, de 1.9, o procedimento de injunção foi pensado para permitir a obtenção de um título executivo por parte do credor de obrigações pecuniárias, de forma simples e célere, em situações em que estariam em causa baixos montantes, o que efetivamente apontava para a sua adequação a causas simples, mas tal conclusão não se impõe relativamente aos litígios abrangidos pelo campo de aplicação do DL 62/2013, na medida em que a experiência demonstra que as causas de maior valor tendem a revestir-se de maior complexidade, e que o legislador não podia ignorar tal tendência quando concebeu e aprovou o mencionado diploma; 
 iii.O mecanismo da adequação formal consagrado no art. 547.º, fornece as ferramentas necessárias à adequação da tramitação da causa a uma maior complexidade do litígio;                                                                                 
  iv.O convite ao aperfeiçoamento do requerimento de injunção, e o posterior exercício do direito ao contraditório, eventualmente conjugados com as adaptações do processado tidas por convenientes, no tocante à forma dos articulados, ao momento da apresentação de provas, às provas admissíveis, e ao limite do número de testemunhas,  obviarão a todas as dificuldades decorrentes de um eventual incremento da complexidade da causa, permitindo o prosseguimento da mesma sem prejuízo das garantias de defesa da requerida.”
                                                                                                     
Procedendo o recurso, deverá ser revogado de despacho que determinou a absolvição da instância, com os efeitos daí resultantes.
           
***
III – DECISÃO.
 
  Pelo exposto, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
Custas pela apelada.
                                                                                                                                                                          Coimbra, 23 de Abril de 2024

(assinado digitalmente)


Luís Manuel de Carvalho Ricardo     

  (relator)       

António Fernando Marques da silva

(1º adjunto)

Maria Teresa Albuquerque

(2ª adjunta)



[1] Foi indicado que se tratava de uma obrigação emergente de transação comercial, nos termos do DL n.º 62/2013, de 10 de Maio.
[2] É ainda peticionado o pagamento da importância de 1.412,40 €, correspondente a um crédito, na titularidade da reconvinte, que a reconvinda reconheceu no requerimento inicial, e invocada a compensação de créditos, esta última sem concretização de qualquer valor.
[3] Precedido de audição das partes.
[4] Aresto que se encontra disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/85a1dd95cd4e4aee8025897b0032dea7?OpenDocument&Highlight=0,injun%C3%A7%C3%A3o,transa%C3%A7%C3%A3o.