Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
500/21.9GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ADITAMENTO DE FACTOS
ATIPICIDADE DA ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARADA A NULIDADE
Legislação Nacional: ARTS. 358º E 359º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I- O regime da alteração dos factos previsto nos artigos 358.º e 359.º, do Código de Processo está reservado para os casos em que a matéria da acusação qua tal se prefigure, em si mesmo, como um crime, em que as imperfeições/omissões não colidem com a própria ação típica (objetiva e subjetiva)
II- Se a acusação não descreve os elementos típicos do crime, o problema não se reconduz ao plano das alterações substanciais, mas à atipicidade da conduta descrita.
Decisão Texto Integral: ***

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I. RELATÓRIO

1. Em 9 de outubro de 2023, a Senhora Juiz, do Juízo Local Criminal de Viseu (juiz 2) decidiu julgar procedente a acusação, por provada, e em consequência:

a)  Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de violência doméstica previsto e punido no artigo 152.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2, alínea a) e do Código Penal e de um crime de violência doméstica previsto e punido no artigo 152.º, n.º 1, alíneas d) e e) n.º 2, alínea a), do Código Penal, respectivamente, nas penas de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão e 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

b) Operar o cúmulo jurídico das penas de prisão parcelares e condenar o arguido na pena única de 3 (três) anos de prisão.

c) Suspender na sua execução por igual período de tempo, a pena única de 3 (três) anos de prisão subordinada às seguintes obrigações e regras de conduta:

- Proibição de contactar as vítimas BB e CC, por qualquer meio e de se aproximar da residência e local de trabalho/estabelecimento de ensino destas;

- Frequência de programas especiais destinados ao controlo da violência, especialmente direccionados para o concreto problema da violência doméstica, em horário e locais a articular com a D.G.R.S.P. e sob acompanhamento desta entidade;

- Dever de entregar à vítima CC, durante o período da suspensão, a quantia de 1.500,00€, fazendo prova disso nos autos.

d) Condenar o arguido AA a pagar às vítimas BB e CC indemnização fixada, respectivamente, em €1.000,00 (mil euros) e em €1.500,00 (mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora contados da data de trânsito em julgado da presente sentença e vincendos, até integral pagamento, às taxas legais desde então em vigor;» 

2. Inconformado com a condenação, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo, nos seguintes termos:

«I –Na sentença recorrida foram dados como provados factos que não estão entre o manancial fáctico constante da acusação, sem que dessa alteração tenha sido dado conhecimento ao arguido para preparar a sua defesa.

II - Nos factos provados pontos 11. e 12. da sentença o Tribunal a quo deu como provado que:

“11. O arguido agiu sempre de forma livre e com o propósito concretizado de, de forma reiterada, atentar contra a saúde psíquica da sua esposa, atentando contra a sua honra e consideração, humilhando-a, fazendo-o na que foi a residência comum e na residência das vítimas.

12. O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde física e mental da sua filha e de a ofender na sua honra e consideração, bem conhecendo a sua especial vulnerabilidade adveniente não só da idade, mas também por força da dependência emocional da Menor relativamente a ele.”

III - Esta nova factualidade _ “atentar contra a saúde psíquica da sua esposa,” (…) “humilhando-a,” (…) “física e mental” e “por força da dependência emocional da Menor relativamente a ele.” -  não consta da acusação e, ainda assim, o Tribunal a quo assentou-a na factualidade provada, alicerçando nela a condenação do arguido, sem que tenha sido feita qualquer comunicação ao arguido, não constando das atas da audiência que o Tribunal a quo feito qualquer comunicação desta alteração ao arguido.

IV - Os factos novos que constam da sentença - “atentar contra a saúde psíquica da sua esposa,” (…) “humilhando-a,” (…) “física e mental” e “por força da dependência emocional da Menor relativamente a ele.” -  alteram substancialmente os factos descritos na acusação, pois modificam o concreto «pedaço de vida» que constitui o objeto do processo, dando-lhe uma outra imagem, transformam o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pôde preparar a sua defesa.

V - Em face de tais factos novos tornava-se necessário o cumprimento do artº 359º do CPP, pelo que, não tendo tal notificação tido lugar, importa, para a sentença, a nulidade do artº 379º, nº 1 b) do C. P. Penal.

Sem prescindir,

V - Ainda que se entenda como alteração não substancial, a mesma teria que ter sido comunicada ao arguido, atento o disposto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP.

VI – A condenação do arguido pelos novos factos sem cumprimento desta exigência, constitui a nulidade do artigo 379.º, n.º 1, alínea b) do CPP, pois a condenação ocorre fora do condicionalismo e exigências legais do artigo 358.º, n.º 1, do mesmo diploma.

(…)

3. O Ministério, em primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

4. No mesmo sentido, emitiu o Exmo. Procurador Geral Adjunto nesta Relação o douto parecer antecedente.

5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

6. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.

III.  A sentença recorrida

O Tribunal a quo fundamentou a matéria de facto, como segue:

«Factos Provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

1. O arguido AA e a ofendida BB casaram entre si a ../../2002, fixando residência na Rua ..., ....

2. De tal casamento nasceram dois filhos: DD, nascido a ../../2003 e CC, nascida a ../../2010.

3. O casamento foi dissolvido por divórcio decretado por decisão proferida pelo Conservatória do Registo Civil, a ../../2022, tendo a coabitação entre o casal terminado no final de janeiro de 2022.

4. Por despacho datado de 11 de setembro de 2020, proferido no âmbito do inquérito n.º 185/20...., foi aplicada ao arguido a suspensão provisória do processo por factos consubstanciadores do crime de violência doméstica perpetrado contra a aqui ofendida BB.

5. Após a aplicação da suspensão provisória do processo no âmbito do inquérito n.º 185/20...., a 11 de setembro de 2020, e até final de janeiro de 2022, por diversas vezes, no interior da residência comum do casal, na presença dos filhos do casal, o arguido apelidou a ofendida BB de “burra”, “estupida”, “parva”, “monte de merda”, “nojenta”, “chula”, e “porca” fazendo-o num número de vezes não concretamente apurado, mas com frequência, pelo menos, semanal.

6. Em algumas das mencionadas ocasiões, a filha CC chamou o arguido à atenção pelo comportamento adoptado para com a mãe.

7. Nessas ocasiões, o arguido dirigiu-se à sua filha CC e apelidou-a de “babosa,” “parva” e “estúpida”.

8. No dia 16 de agosto de 2021, no interior da residência comum do arguido e da vítima, na sequência de discussão relacionada com a repartição entre o arguido e a vítima BB das quantias despedidas com a alimentação do agregado familiar, o arguido apelidou a ofendida BB de “burra”, “parva”, “monte de merda”, “nojenta” e “estupida”.

9. Nessa sequência, a vítima CC chamou à atenção do arguido, dizendo-lhe que a mãe não era merecedora de tais palavras.

10. Acto contínuo, o arguido abeirou-se desta e apelidou-a de “babosa”, “estúpida” e “parva”, agarrando-a pelo braço, com força, e puxou-lhe os cabelos, o que lhe provocou dores.

11. O arguido agiu sempre de forma livre e com o propósito concretizado de, de forma reiterada, atentar contra a saúde psíquica da sua esposa, atentando contra a sua honra e consideração, humilhando-a, fazendo-o na que foi a residência comum e na residência das vítimas.

12. O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde física e mental da sua filha e de a ofender na sua honra e consideração, bem conhecendo a sua especial vulnerabilidade adveniente não só da idade, mas também por força da dependência emocional da Menor relativamente a ele.

13. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei penal.

(…)

III.QUESTÕES A DECIDIR

Sabido que objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, as questões a conhecer consistem em saber se:

1. O tribunal condenou o arguido por factos diversos dos contantes da acusação;

2.  O Tribunal errou no julgamento da matéria de facto;

3. O arguido praticou o crime de violência doméstica;

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Alteração dos factos constantes da acusação

1.1. Na sessão de julgamento do dia 9 de outubro de 2023, o Tribunal comunicou ao arguido a alteração não substancial, como segue:

«I. Após a aplicação da suspensão provisória do processo no âmbito do inquérito n.º 185/20...., a 11 de setembro de 2020, e até final de janeiro de 2022, por diversas vezes, no interior da residência comum do casal, na presença dos filhos do casal, o arguido apelidou a ofendida BB de “burra”, “estupida”, “parva”, “monte de merda”, “nojenta”, “chula”, e “porca” fazendo-o num número de vezes não concretamente apurado, mas com frequência, pelo menos, semanal.

II. No dia 16 de agosto de 2021, no interior da residência comum do arguido e da vítima, na sequência de discussão relacionada com a repartição entre o arguido e a vítima BB das quantias despedidas com a alimentação do agregado familiar, o arguido apelidou a ofendida BB de “burra”, “parva”, “monte de merda”, “nojenta” e “estupida”.» (sublinhado nosso).

Porque o arguido prescindiu do prazo para defesa, seguiu-se e bem a elaboração da sentença, em que julgou aquela factualidade como provada.

Na sentença, entendeu o Tribunal recorrido acrescentar aos factos n.ºs 9, 11 e 12, a matéria que a seguira se sublinha:

«9. Nessa sequência, a vítima CC chamou à atenção do arguido, dizendo-lhe que a mãe não era merecedora de tais palavras.

11. O arguido agiu sempre de forma livre e com o propósito concretizado de, de forma reiterada, atentar contra a saúde psíquica da sua esposa, atentando contra a sua honra e consideração, humilhando-a, fazendo-o na que foi a residência comum e na residência das vítimas.

12.O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde física e mental da sua filha e de a ofender na sua honra e consideração, bem conhecendo a sua especial vulnerabilidade adveniente não só da idade, mas também por força da dependência emocional da Menor relativamente a ele.».

As designações – dizendo-lhe que a mãe não era merecedora de tais palavras, atentar contra a saúde psíquica e física da sua esposa, humilhando-a, bem como conhecia a especial vulnerabilidade da filha, por força da dependência emocional da menor relativamente a ele – não constavam na acusação nem foi feita qualquer comunicação ao arguido, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 359.º e 358.º, do Código de Processo Penal.

Porque assim é, defende o Recorrente a nulidade da sentença por conhecimento de actos diversos do que os que constavam na acusação que comportam alteração substancial de factos.

1.2. Nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, uma sentença é nula se condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º. 

Tal decorre da estrutura acusatória do processo, do princípio do contraditório, bem como do direito de defesa[1]. O Tribunal está vinculado ao objecto do processo definido pela acusação, que, como decorre do artigo 283.º, n.º 3, alínea b) e d), do Código de Processo Penal, deve conter a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis.

Dito de outro modo, a acusação deve descrever a acção objectiva e subjetiva típica do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade criminal sem que se encontrem preenchidos todos os elementos que o constituam. 

E, se a acusação não contiver a exposição dos factos ou, contendo-a, não constituam crime, é, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alíneas b) e c) e do Código de Processo Penal, uma acusação manifestamente infundada, insusceptível de suprimento por parte do juiz de instrução ou de julgamento.

Tal imposição radica: (i) na necessidade de fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz, a quem está vedado alterar o quadro factual traçado na acusação, foras da excepções previstas nos artigos 303.º, 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal e (ii) na exigência do exercício do contraditório e de defesa.

Em última análise, o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cf. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da Constituição da República Portuguesas).

O disposto no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição.

Porque assim é, a acusação que não descreva cabalmente os factos constitutivos do crime deve ser objecto de rejeição por manifestamente infundada nos termos conjugados dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b) e artigo 311.º n.º 2, alínea a) e 3, alínea b) e d) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, nem mesmo com recurso ao mecanismo da alteração substancial dos factos previsto no artigo 359.º, do Código de Processo Penal.

Por alteração substancial dos factos entende-se a que «tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis». [artigo 1º, al. f), do Código de Processo Penal].

O conceito de alteração substancial dos factos é um conceito legal (normativo) dimensionado por dois factores: a modificação dos factos descritos na acusação ou pronúncia e que, dessa alteração, resulte um crime diferente ou agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Mas para tanto é necessário que os factos narrados preencham a tipicidade objectiva e subjectiva do crime imputado ao agente, isto é que a acusação seja materialmente fundada, ou seja, que contenha os factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou medida de segurança.

Dito de outro modo, a alteração substancial dos factos pressupõe uma «acusação substancialmente apta, (…) cujo objecto, se comprovado em julgamento, permita a condenação do agente pela prática daquele crime[2]».

Desta forma, para que se verifique a alteração substancial dos factos exige-se: (i) uma acusação materialmente fundada; (ii) a existência de factos novos que modifiquem a narrativa acusatória e (iii) que, dessa modificação resulte uma imputação de um crime diverso, no sentido de um crime baseado num facto diferente que excede os limites do objecto do processo.

Se a acusação não relata os factos estruturantes do crime e se este só se perfectibiliza com aditamento de novos factos, não se pode afirmar que deste aditamento resulta um crime diverso. Do que se trata é de transmutar uma conduta não punível em conduta punível, de imputar um crime novo. O vicio de que padece a acusação não é passível de ser colmatado/sanado com o regime da alteração substancial ou não substancial de factos.  

Como decidiu, o Acórdão desta Relação de 27 de abril de 2016[3]:

«Se (…) os factos constantes da acusação não integram sequer um crime, afastada está a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas.

Pressuposto necessário é que se verifiquem os elementos objectivos e subjectivos do tipo, essenciais à estrutura e conceito do crime. Se os factos exarados na acusação não constituem crime, torna-se impossível a imputação de crime diverso, porque então estaríamos perante a realidade da imputação de um crime “ex novo” e não diverso.

Aliás, o STJ, no Acórdão 1/2015, DR Iª Série de 27.1.2015, fixou jurisprudência no sentido de que a falta de descrição do elemento subjectivo não pode ser suprido em audiência por recurso ao artigo 358º do Código de Processo Penal, por maioria de razão não o poderá ser por recurso ao artigo 359º ainda que obtido o acordo a que se refere o seu nº 3.

O fundamento da não aplicabilidade de tais preceitos radica na mesma causa; a inexistência de imputação de factos que constituem crime que é pressuposto de qualquer tipo de alteração».

Nesta mesma linha, pronunciou-se o Acórdão desta Relação de Coimbra de 2 de dezembro de 2015[4]:

«O regime de alteração substancial dos factos pressupõe que a matéria descrita na acusação do Ministério Público, do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução contenha factos suficientes à afirmação do  crime, redundando aquela, para o que ora importa, na imputação de um crime diverso, ou seja, simplisticamente, da imputação, sustentada pelos factos descritos de um determinado crime, passa-se á imputação de um crime diverso, realidade insusceptível de ser confundida com aquela outra em que se converte uma não crime em crime.».       

Assim sendo, com o devido respeito que nos merece opinião contrária, o problema da acusação que não descreva os elementos típicos do crime, não pode reconduzir-se ao plano das alterações substanciais, mas à atipicidade da conduta descrita[5].

O regime da alteração dos factos previsto nos artigos 358.º e 359.º, do Código de Processo está reservado para os casos em que a matéria da acusação qua tal se prefigure, em si mesmo, como um crime, em que as imperfeições/omissões não colidem com a própria acção típica (objectiva e subjectiva) [6].

Dito isto:

1.3. O arguido vem acusado de dois crimes de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, do Código Penal.

Estatui este preceito:

«1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.».

É elemento do tipo objectivo a inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns.

Os maus tratos físicos incluem, assim, do lado objectivo, todas as acções que, normalmente, preenchem o tipo de crime de ofensas à integridade física, as que atinjam directamente o corpo ou a saúde do ofendido.

Os maus tratos psicológicos, por seu turno, abrangem, entre outras acções e no que ao caso interessam, os insultos (injúrias), as críticas ultrajantes, destrutivas e as ameaças.

O crime de violência doméstica pode abranger uma única acção ou omissão ou, ainda, uma pluralidade de condutas, que isoladamente consideradas, podem não assumir relevância criminal ou preencher outros tipos de crimes menos graves, mas traduzem, no contexto de uma relação especial de intimidade entre vitima e agressor, um comportamento padrão incompatível com a dignidade da vitima.

Pressuposto é que, a imagem global do facto (modo de execução, os sentimentos manifestados, os fins ou motivos que o determinaram e lesões e sequelas para a vitima) consubstancie um mau trato físico ou psicológico.

Importa, ainda reter, que a violência doméstica compreende o todo das acções praticadas pelo agente contra a vítima (típicas ou não) - não se reduzindo apenas à simples soma destas acções – aptas a afectar, de forma significativa, a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por esta via, a sua dignidade.

Do lado subjectivo, exige-se o dolo, o conhecimento e vontade de realização do tipo legal de crime, em qualquer das suas formas (directo, necessário ou eventual).

O arguido vem acusado pela prática dos seguintes factos:

«O arguido e a ofendida BB contraíram casamento em ../../2002, fixando residência na Rua ..., ....

De tal casamento nasceram DD, a ../../2003 e CC, a ../../2010.

O casamento foi dissolvido por divórcio a ../../2022, tendo a coabitação entre o casal terminado no final de janeiro de 2022.

Por despacho datado de 11 de setembro de 2020, proferido no âmbito do inquérito n.º 185/20...., foi aplicada ao arguido a suspensão provisória do processo pela prática do crime de violência doméstica perpetrado contra a aqui ofendida BB.

Após a aplicação da suspensão provisória do processo no âmbito do inquérito n.º 185/20.... e até final de janeiro de 2022, por diversas vezes, no interior da residência comum e, em algumas ocasiões, na presença dos filhos menores, o arguido apelidou a ofendida EE, parva, monte de merda, nojenta e chula.

Em algumas das mencionadas ocasiões, a filha CC chamou o arguido à atenção pelo comportamento adotado para com a mãe.

Ato contínuo, nessas ocasiões, o arguido dirigiu-se a esta e apelidou de babosa, parva e estúpida e desferiu-lhe puxões de cabelo e palmadas no corpo, o que lhe causou dores.

No dia 16 de agosto de 2021, no interior da residência comum, na sequência de discussão, o arguido apelidou a ofendida EE, parva, monte de merda e nojenta.

Nessa sequência, a ofendida CC chamou à atenção do arguido.

Ato contínuo, o arguido abeirou-se desta e apelidou-a de babosa, estúpida e parva e agarrou-lhe o braço com força e puxou-lhe os cabelos, o que lhe provocou dores.

No dia 22 de agosto de 2021, na sequência de discussão, o arguido retirou à ofendida BB o cartão bancário da conta conjunta, obstaculizando a que esta adquirisse roupa e material escolar para os filhos.

O arguido agiu de forma livre e com o propósito concretizado único e reiterado de ofender a honra e consideração da sua esposa e de a privar de aceder ou fruir de recursos económicos comuns.

O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de molestar o corpo e saúde da sua filha e de a ofender na sua honra e consideração, bem conhecendo a sua especial vulnerabilidade adveniente da idade e da circunstância de ser sua dependente.

O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei penal».

Esta matéria não é, em abstracto, susceptível de integrar os crimes de violência doméstica de que vinha causado: o primeiro na pessoa da ex-mulher, BB -  previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2, alínea a) e n.º 4 e 5 do Código Penal, - e, outro, na pessoa da filha, CC - previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e e) n.º 2, alínea a) e n.º 4, 5 e 6 do Código Penal.

Desde logo, porque as referências “após a aplicação da suspensão provisória do processo no âmbito do inquérito n.º 185/20.... até final de janeiro de 2022” e “no interior da residência, sem data de inicio e duração da suspensão provisória, sem distinção dos actos que foram praticados, antes, durante e depois da referida suspensão, são abstractas e indefinidas, não se conseguindo quantificar, nem perceber em que circunstâncias o arguido,  na presença dos filhos menores, apelidou a ofendida EE, parva, monte de merda, nojenta e chula.

Por outro lado, não se concretizam nem diferenciam os actos que foram praticados em frente dos dois filhos menores, já que o DD atingiu a maioridade em outubro de 2021.

Igual indefinição e abstração se verifica nas designações “em algumas das mencionadas ocasiões”, a filha CC “chamou o arguido à atenção pelo comportamento adotado para com a mãe”; “ato contínuo”, nessas ocasiões, o arguido dirigiu-se a esta e apelidou de babosa, parva e estúpida e desferiu-lhe puxões de cabelo e palmadas no corpo o que lhe causou dores.

Nenhuma menção é feita a que ato contínuo ou ocasião se reporta o momento em que a filha CC terá chamado à atenção do pai pelo comportamento adoptado para com a mãe, em que consistiu este comportamento e de que modo o arguido foi chamado à atenção pela filha, sendo certo que esta matéria é replicada por duas vezes na acusação.  

Verifica-se, assim, uma total omissão das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que as discussões ocorreram, na sequência das quais, o arguido apelidou a ex-mulher e a filha com os epítetos constantes da acusação, bem como a que acto contínuo se reporta o 7.º parágrafo da acusação, pelo que não podem ser considerados, valendo para todos os efeitos, como se não constassem no elenco dos factos da acusação.

Restam, pois, os factos que terão acontecido nos dias 16 e 22 de agosto, dois episódios resultantes de discussões entre o casal.

Um primeiro, em arguido apelida a ex-mulher de “burra, parva, monte de merda e nojenta”, com intenção de ofender a honra e consideração da sua esposa e um segundo em que o arguido retirou o cartão bancário à ofendida da conta conjunta, obstaculizando a que esta adquirisse roupa e material escolar para os filhos.

Esta factualidade, nua e crua, desprovida de qualquer outro contexto atinge a honra e consideração da ofendida, indica que, por via de uma discussão (cujo teor se desconhece) o arguido retirou à ofendida o cartão bancário da conta conjunta, impedindo-a de utilizar o referido cartão, mas, não consubstancia em abstracto, o conceito de mau trato psíquico exigido para o crime de violência doméstica. 

O mesmo se digna no que concerne a CC. A acusação limita-se a referenciar uma discussão entre BB e o arguido, no âmbito da qual, a filha do ex-casal chamou à atenção do arguido, tendo este apelidado aquela de babosa, estúpida e parva e agarrou-lhe o braço com força e puxou-lhe os cabelos que provocou dores. Trata-se de episódio isolado, sem que se consiga retirar da imagem global do facto, a caraterística dos maus tratos físicos e psicológicos. 

O mesmo é dizer que a acusação não narra factos aptos a integrar a tipicidade objectiva e subjectiva dos dois crimes de violência doméstica de que vem acusado: o previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2, alínea a) e n.º 4 e 5 e o previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e e) n.º 2, alínea a) e n.º 4, 5 e 6, ambos do Código Penal.

A acusação padece, assim, de falta de narração da acção típica (objectiva e subjectiva) dos crimes que imputa ao agente, sendo, por isso, insusceptível de fundamentar a condenação do arguido numa pena ou medida de segurança pela prática daqueles mesmos crimes.

Vale dizer que o Ministério Público submeteu o arguido a julgamento imputando-lhe uma conduta atípica e não punível pelo crime de violência doméstica, não sendo legal e processualmente admissível ao juiz transformar aquela mesma conduta (reitere-se, atípica e não punível), através da alteração, substituição ou aditamento de novos factos, numa conduta típica e punível por aquele mesmo crime, em patente violação do princípio constitucional do acusatório[7].

Nesta situação, apenas restava à primeira instância absolver o arguido dos crimes de violência doméstica e apreciar a matéria de facto descrita na acusação à luz da qualificação jurídica que dela possa advir, com respeito pelo imperativo do artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.

Mas ainda que assim não se entenda, sempre a alteração de facto relativamente ao crime de violência doméstica seria substancial, obrigando à observância do regime previsto no artigo 359.º, do Código de Processo Penal, o que não sucedeu. 

O Tribunal a quo, ao suprir a omissão, no libelo acusatório, dos elementos típicos dos crimes de violência doméstica, com o aditamento de nova matéria de facto (os que comunicou e não comunicou ao arguido), condenou o arguido por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal, cometendo a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma.

Assiste, pois, razão ao Recorrente.

2. Esta decisão prejudica o conhecimento das demais.

 V. DECISÃO 

Por todo o exposto, acordam os Juízes da Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, declarando a nulidade de sentença nos termos assinalados supra e, em consequência, determinam a sua substituição por outra que supra a apontada nulidade.

Sem custas.

Coimbra, 24 de abril de 2024

Relatores: Alcina da Costa Ribeiro

1.º Adjunto: José Eduardo Martins

2.º Adjunto: João Novais  

 


[1] Artigo 32º, nº 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa
[2] Alberto Mira, Alteração substancial, não substancial e da qualificação jurídica na fase de julgamento, no tribunal de primeira instância e no tribunal da relação, Estudos em Comemoração dos 100 anos do Tribunal da Relação de Coimbra, p. 368.     
[3] Processo n.º 42/13.6TARSD.C1, Relatora: Desembargadora Pilar Oliveira, www.dgsi.pt
 
[4] Processo n.º 24/14.0T9FND.C1, Relatora: Desembargadora: Maria José Nogueira, disponível em www.dgsi.pt  
[5] Cf. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, DR 18, Série I, de 27 de janeiro de 2015 e Acórdão desta Relação de 2 de dezembro de 2015, em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão desta Relação de 2 de dezembro de 2015, citado.
[7]  Neste sentido, decidiu o Acórdão desta Relação de 13 de Janeiro de 2016 - Relator: Desembargador Alberto Mira, em www.dgsi.pt