Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
546/23.2T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
RATEIO FINAL
VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 230.º, N.º 1, ALÍNEA D), E 232.º, N.º 2, ALÍNEA B), DO CIRE
Sumário:
I – O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final não determina a extinção da instância dos processos (ou incidente) de verificação de créditos quando tenha sido requerida e liminarmente admitida a exoneração do passivo restante.

II – Ainda que essa conclusão não encontre apoio expresso na alínea b) do n.º 2 do art.º 233.º do CIRE, ela resulta, no entanto, das disposições legais que regulam a exoneração do passivo restante onde se pressupõe – e exige – a existência de uma sentença de verificação de créditos como forma de determinar/apurar os credores – e respectivos créditos – que poderão beneficiar do rendimento entregue pelo devedor ao fiduciário durante o período da cessão, conforme previsto no art.º 241.º, n.º 1, alínea d), do CIRE.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 546/23.2T8ACB-A.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Leiria - Alcobaça - Juízo Comércio - Juiz 1

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

1.º Adjunto: Maria João Areias

2.º Adjunto: Arlindo Oliveira

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Nos autos de insolvência referentes a AA – cuja insolvência foi declarada por sentença de 06/03/2023 – o Sr. Administrador da Insolvência apresentou o seu relatório onde concluiu pela insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas e restantes dívidas da massa, tendo em conta que o único bem existente correspondia ao valor de 6,32€ que a Insolvente teria a receber no âmbito de um processo de execução.

Propôs, por isso, o encerramento do processo.

O Sr. Administrador apresentou também a lista de créditos reconhecidos.

Por despacho de 26/05/2023, foi determinado o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente, nos termos do disposto nos artigos 230.º, n.º 1, alínea d), e 232.º, n.º 2 do CIRE, declarando-se cessados os efeitos decorrentes da insolvência.

Em 21/06/2023, foi proferido despacho inicial referente à exoneração do passivo restante que havia sido requerida pela Insolvente, determinando-se que, durante os três anos subsequentes, a Insolvente ficaria sujeita às obrigações ali enunciadas e, designadamente, à obrigação de ceder ao Fiduciário o rendimento disponível que viesse a auferir, nos termos ali mencionados.

Posteriormente, em face do encerramento do processo de insolvência, determinou-se, por decisão proferida em 26/06/2023, a extinção do incidente de verificação de créditos por inutilidade superveniente da lide nos termos do disposto no art.º 233.º, n.º 2, al. b) do CIRE.

Discordando dessa decisão, a credora Banco 1..., S.A., veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

 A) O apenso de verificação e graduação de créditos não pode ser extinto por inutilidade superveniente da lide apesar se ter sido extinto o processo principal por insuficiência de bens.

B) A insolvente trata-se de uma pessoa singular.

C) A insolvente requereu a exoneração do passivo restante.

D) O pedido foi deferido pelo Tribunal a quo.

E) Durante 3 anos a insolvente deve entregar ao fiduciário os valores excedentes ao valor fixado como rendimento indisponível.

F) O fiduciário deverá efetuar os pagamentos aos credores em conformidade com a sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos autos.

G) Sem que exista sentença de verificação e graduação não podem ser feitos pagamentos aos credores.

H) Pelo que deverá ser revogada a decisão proferida e ser proferida sentença de graduação e verificação de créditos em conformidade com o exposto.

Nestes termos e nos demais de direito deverá ser concedido provimento ao recurso interposto pela Apelante, substituindo-se a decisão recorrida por outra que ordene o prosseguimento dos autos para verificação e graduação dos créditos reclamados no processo.

Não houve resposta ao recurso.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se, por efeito do encerramento do processo de insolvência, deve (ou não) ser extinta a instância no incidente de verificação de créditos quando, como acontece no caso dos autos, tenha sido requerida e liminarmente admitida a exoneração do passivo restante


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III.

Conforme se referiu supra, a decisão recorrida declarou extinta a instância no incidente de verificação e graduação de créditos por força do encerramento do processo de insolvência e ao abrigo do disposto no art.º 233.º, n.º 2, al. b) do CIRE.

Resulta efectivamente da norma citada que o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina “A extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição e separação de bens já liquidados que se encontrem pendentes, exceto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140.º, ou se o encerramento decorrer da aprovação do plano de insolvência, caso em que prosseguem até final os recursos interpostos dessa sentença e as ações cujos autores ou a devedora assim o requeiram, no prazo de 30 dias”.

Conforme resulta da sua leitura, a norma em questão estabelece, no que toca aos processos de verificação de créditos, uma regra com duas excepções.

A regra consiste na extinção da instância desses processos sempre que o processo de insolvência seja encerrado antes do rateio final.

Essa regra não se aplica (não ocorrendo, portanto, a extinção da instância) em duas situações:

i) no caso de já ter sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no art.º 140.º;

ii)  no caso de o encerramento do processo de insolvência decorrer de aprovação do plano de insolvência.

No caso em análise, não se verifica nenhuma das referidas excepções; o encerramento do processo – antes do rateio final – não resultou da aprovação de qualquer plano de insolvência (o encerramento foi declarado com fundamento na insuficiência da massa insolvente) e, à data, ainda não havia sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos.

Consequentemente, não se verificando nenhuma das duas excepções previstas na lei, a situação dos autos cairia sob a alçada da regra ali instituída, com a consequente extinção da instância dos processos de verificação e créditos.

Sustenta, no entanto, a Apelante – e é essa a única questão suscitada no recurso – que a instância também não pode ser extinta (devendo ser proferida a sentença de verificação de créditos) quando, como acontece no caso dos autos, tenha sido requerida e liminarmente admitida a exoneração do passivo restante. Existiria, portanto, uma terceira excepção à regra consagrada na disposição legal acima citada, ainda que tal excepção não seja expressamente prevista na lei.

A posição sustentada pela Apelante encontra apoio no Acórdão desta Relação proferido em 12/07/2022[1] – citado nas alegações – em cujo sumário se lê o seguinte:

I – O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final não determina a extinção da instância incidental de verificação dos créditos quando, como sucedeu no caso, for concedida liminarmente ao devedor a exoneração do passivo restante.

II – Nesse caso, apesar do encerramento daquele processo por insuficiência de bens da massa insolvente, o incidente de verificação e graduação dos créditos deve prosseguir, não ocorrendo inutilidade superveniente desta lide incidental”.

Tal Acórdão foi subscrito pela aqui Relatora (na qualidade de 1.ª Adjunta) e pela aqui 1.ª Adjunta (na qualidade de 2.ª Adjunta) e não encontramos razões para alterar o que aí se decidiu.

Com efeito, ainda que essa situação não seja expressamente referida na lei como excepção à regra de que o encerramento do processo de insolvência determina a extinção da instância nos processos de verificação de créditos, a verdade é que a sentença de verificação de créditos é um acto relevante (e essencial) para efeitos de exoneração do passivo restante.

Vejamos.

Uma das obrigações que é imposta ao devedor com vista a beneficiar da exoneração do passivo restante é a obrigação de ceder ao fiduciário o rendimento disponível que aufira nos três anos subsequentes ao encerramento do processo (cfr. art.º 239.º, n.º 2) e o rendimento que, nessas circunstâncias, venha a ser cedido ao fiduciário – e que não seja necessário para pagamento das custas e das despesas e remuneração do administrador da insolvência e do fiduciário – é distribuído pelos credores da insolvência (cfr. art.º 241.º). Sucede que, como determina a alínea d) do n.º 1 do citado art.º 241.º, essa distribuição pelos credores apenas pode beneficiar (como é natural) aqueles cujos créditos se mostrem verificados e graduados por sentença, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, em conformidade, aliás, com aquilo que também já resultaria do art.º 173.º onde se determina que o pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado.

Significa isso, portanto, que a concretização de um dos efeitos da exoneração do passivo restante – a afectação do rendimento cedido à fidúcia ao pagamento dos credores – pressupõe necessariamente que seja proferida sentença de verificação e graduação de créditos; sem ela, não será possível distribuir aquele rendimento pelos credores em conformidade com o que se prescreve na lei.

Mas, sendo assim, e sendo certo que o processo/incidente de verificação de créditos é o meio adequado – o único previsto no CIRE – para verificar e graduar os créditos que podem ser pagos no âmbito do processo de insolvência, não será coerente admitir a extinção dos processos de verificação de créditos por efeito do encerramento do processo de insolvência quando foi pedida e liminarmente admitida a exoneração do passivo restante, uma vez que a extinção daqueles processos implicará que não seja proferida sentença de verificação e graduação de créditos quando é certo que esta sentença (pelo menos a de verificação) será absolutamente necessária para efeitos de repartição pelos credores do rendimento que, eventualmente, venha a ser cedido à fidúcia.

Impõe-se, portanto, concluir, nessas circunstâncias, que, tendo sido requerida e liminarmente admitida a exoneração do passivo restante, o encerramento do processo de insolvência não poderá determinar a extinção da instância dos processos de verificação de créditos. Ainda que essa conclusão não encontre apoio na alínea b) do n.º 2 do citado art.º 233.º (uma vez que a situação em causa não é aí mencionada como excepção à regra – ali instituída – de que o encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina a extinção da instância dos processos de verificação de créditos e de restituição), ela resulta, no entanto, das disposições legais que regulam a exoneração do passivo restante e que pressupõem claramente a existência de uma sentença de verificação de créditos. Assim e porque o local que a lei define para a prolação dessa sentença é o processo (incidente) de verificação de créditos, tal não poderá deixar de significar que, na situação descrita, não pode ser extinta a instância desse processo, devendo o mesmo prosseguir para o efeito de ser proferida a sentença em causa.

Em face de tudo o exposto, procede o recurso com a consequente revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento da instância do processo (incidente) de verificação de créditos


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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IV.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento da instância do incidente de verificação de créditos.
Custas a cargo da Massa Insolvente.
Notifique.

                              Coimbra,(...)

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                   (Maria João Areias)

                                                    (Arlindo Oliveira)



[1] Proferido no processo n.º 2259/21.0T8ACB-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.