Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
103/23.3T8VLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
SUSPEIÇÃO E DESTITUIÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
PRÁTICA DE ATOS NO DECURSO DO INCIDENTE
INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE VILA NOVA DE FOZ CÔA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º, N.º 1, DA LEI N.º 22/2013, DE 26-02 (ESTATUTO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL), 129.º, AL.ª AL. B), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 55.º DO CIRE
Sumário: O administrador de insolvência pode intervir nos autos de insolvência na pendência do incidente de suspeição e destituição contra si deduzido.
Decisão Texto Integral:

Relator: Arlindo Oliveira
1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves
2.ª Adjunta: Maria João Areias

            Processo n.º 103/23.3T8VLF.C1 – Apelação

            Comarca da Guarda, Vila Nova de Foz Côa, Juízo de Competência Genérica

            Acordam no Tribunal da Relação ...

AA e mulher, BB, já identificados nos autos, vieram apresentar-se à insolvência.

Que veio a ser decretada por sentença, já transitada, proferida em 31 de Maio de 2023, junta de fl.s 116 a 119 v.º.

Na mesma e no que ao presente recurso interessa, foi nomeado Administrador da Insolvência, o Dr. CC, já, também, identificado nos autos.

Conforme requerimento de fl.s 170 a 178, entrado em juízo no dia 12 de Julho de 2023, os insolventes vieram deduzir incidente de suspeição e destituição do Administrador Judicial, para o que alegaram diversa factualidade que, no seu entender, constitui fundamento para a destituição do mesmo.

Por requerimento de fl.s 199/200, entrado em juízo no dia 24 de Julho de 2023, vieram os insolventes requerer fosse declarado que o Administrador de Insolvência não pode praticar quaisquer actos no processo, até que fosse julgada a suspeição, com base no disposto nos artigos 122, n.º 2; 123.º, 125.º e 129.º, al. b), todos do CPC.

Conclusos os autos à M.ma Juiz, foi proferido o despacho de fl.s 201 (aqui recorrido), que se passa a reproduzir:

“Ref. 2232102 de 2023/07/24 do p.e.: Considerando que o incidente suscitado contra o Exmo Administrador Judicial não se mostra ainda apreciado e decidido, inexiste fundamento legal para adiar a diligencia designada para o dia de hoje, pelo que, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido.

No que concerne à tomada de declarações à insolvente por meio de videoconferência, autoriza-se o requerido, desde que se verifique existir disponibilidade no Tribunal da sua área de residência.

Notifique e diligencie, a secção, no sentido de verificar a disponibilidade do Tribunal e informe a insolvente em conformidade, lavrando-se cota no processo do resultado de tal diligencia.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a insolvente, BB, recurso, esse, que veio a ser admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos – (cf. decisão proferida na Reclamação apensa), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

A A Recorrente no dia 12.07.2023 deu entrada nos autos de incidente de suspeição e destituição do Administrador Judicial, com a Referª 2226168.

B No sobredito requerimento e, em consequência do incidente suscitado, requereu-se, entre outras coisas, que a diligência aprazada para o dia 24/07/2023 fosse dada sem efeito, uma vez tal Administrador de Insolvência não poder praticar atos, sob pena de violar a lei.

C No entanto, o Tribunal a quo indeferiu, através do Despacho ora recorrido (de 24.07.2023, com a Referª n.º 30551510), o requerido pela Insolvente, sendo o seguinte

o seu teor: “Considerando que o incidente suscitado contra o Ex. Mo Administrador Judicial não se mostra ainda apreciado e decidido, inexiste fundamento legal para adiar a diligência designada para o dia de hoje, pelo que, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido“

D O teor de tal Despacho, que sequer está fundamentado, salvo o devido respeito, viola flagrantemente a lei e o fim teleológico de incidente de suspeição e destituição de Administrador Judicial, que é o de, enquanto o incidente não for decido, não poder o “suspeito” praticar actos no processo, seja Juiz, Procurador ou funcionário judicial.

Senão vejamos,

E O administrador de insolvência participa no desempenho da atividade judicial de composição dos interesses dos credores e do insolvente no âmbito de um processo judicial, sendo nomeado pelo juiz do processo (art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26-02), razão pela qual, durante o período em que desempenhar tais funções deve ser considerado, para efeitos penais, funcionário, abrangido pela al. c) do n.º 1 do art. 386.º do CP.

F Como funcionário, aliás o próprio considera-se como tal (Cfr. requerimento apresentado no dia 13.07.2023 com a referência 2226697), desempenha uma função pública jurisdicional – alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal –, tendo, por isso, para efeitos penais, a qualidade de funcionário – Cfr. Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 12.10.2016; Acórdão do STJ de 10.01.2023.

G Logo, aplicam-se ao A. I. as normas legais dos artigos 122, n.º 2, 123º, 125º, mas particularmente o disposto na alínea b) do artigo 129º, todos do Código do Processo Civil.

H Ora, o n.º 2 do artigo 129º do CPC determina que “enquanto não for julgada a suspeição, o funcionário não pode intervir no processo”.

I Pelo que, o despacho recorrido violou o principio de igualdade de armas – o A. I. tem tido um comportamento parcial, persecutório da Recorente, tudo como melhor se encontra descrito no incidente de suspeição e destituição - disposto no artigo 129º, n.º 2 e 122, n.º 2, 123º e 125º, todos do CPC, aplicável ex vi artigo 17º do CIRE - e artigo 4º e 56º deste ultimo código.

Termos em que se deve dar provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e proferido um outro que determine que “enquanto não for julgado o incidente suspeição e destituição do o A. I., não poder (este) intervir no processo.

JUSTIÇA.

Contra-alegando, o Administrador da Insolvência, pugna pela manutenção da decisão recorrida, aderindo aos fundamentos na mesma exarados, designadamente que inexiste fundamento legal para o pretendido pela recorrente.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de averiguar se o Administrador de Insolvência não pode ter qualquer intervenção nos autos, enquanto não estiver decidido o incidente de suspeição e destituição deduzido contra aquele.

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório que antecede.

Se o Administrador de Insolvência não pode ter qualquer intervenção nos autos, enquanto não estiver decidido o incidente de suspeição e destituição deduzido contra aquele.

 No que a esta questão respeita, como decorre do relatório que antecede, alega a recorrente que actuando o administrador da insolvência na veste de funcionário, deduzido incidente de suspeição e destituição do mesmo, o administrador não pode ter qualquer intervenção nos autos, até estar decidido o referido incidente, apelando ao disposto no artigo 129, al. b), do CPC.

No despacho em recurso, considerou-se inexistir fundamento legal para tal e consequentemente, entendeu-se que o administrador da insolvência poderia continuar a praticar os actos que lhe estão legalmente atribuídos.

Dispõe o artigo 4.º, n.º 1, da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro (Estatuto do Administrador Judicial) que “Os administradores judiciais estão sujeitos aos impedimentos e suspeições aplicáveis aos juízes”.

No presente recurso, convém notar, não está em causa apreciar se se verificam ou não, fundamentos para a suspeição ou destituição do administrador, mas apenas e tão só aquilatar se o mesmo, enquanto não estiver decidido este incidente, não pode praticar actos no processo; isto é, se a dedução do referido incidente influencia a marcha do processo, impedindo que o administrador continue a desempenhar as funções que a lei lhe atribui.

O referido Estatuto (artigo 4.º, n.º 1), equipara, para este efeito, os administradores judiciais aos juízes, pelo que a solução para a questão que ora nos é colocada, tem de se encontrar nas disposições que regem as suspeições dos juízes (artigos 119.º a 126.º, do CPC), designadamente o que se dispõe no artigo 125.º.

De acordo com este preceito e tendo em vista obviar a que as partes possam extrair efeitos da dedução abusiva do incidente (cf. Código GPS, Vol. I, 2.ª Edição, Almedina, a pág. 159), a tramitação processual não para, apenas se determinando que passa a intervir o juiz substituto, sem que possa ser proferido despacho saneador ou a decisão final, enquanto não estiver julgada a suspeição.

Ora, no que se refere ao administrador judicial inexiste a figura do administrador substituto e aquele incumbe exercer as funções que estão previstas no artigo 55.º, do CIRE, em que não se inclui a competência para proferir qualquer decisão de índole judicial, pelo que não se verifica uma analogia de situações entre a suspeição deduzida contra um juiz e contra o administrador judicial.

E se no caso do primeiro, porque tem o poder de decisão da questão carreada para os autos, está prevista a participação do juiz substituto, cuja nomeação está regulada no artigo 86.º, da LOSJ, no caso dos administradores judiciais já assim não sucede, pelo que, na ausência de norma expressa que o determine, não fica o mesmo impedido de continuar a exercer as suas funções até que se decida o incidente.

De resto, para fundamentar o seu pedido, a recorrente apela ao disposto no artigo 129.º, al. b), do CPC, só que este preceito apenas se aplica à suspeição oposta aos funcionários da secretaria (cf. seu artigo 127.º), categoria em que não cabe o administrador judicial e em que a lei (citado artigo 4.º, n.º 1) equipara às suspeições deduzidas contra o juiz.

Assim, não é aplicável à situação sub judice o disposto no artigo 129.º, al. b), do CPC.

Igualmente não é enquadrável na situação em apreço o decidido no Acórdão da Relação de Lisboa citado pela recorrente na conclusão F, atento a que o enquadramento que ali se faz para atribuir a qualidade de funcionário ao administrador judicial, tem que ver com a questão da verificação dos elementos típicos exigidos para a prática de um crime de peculato, o que nada tem que ver com a qualidade de funcionário para efeitos da marcha do processo na sequência da dedução de um incidente de suspeição (relativamente ao Acórdão do STJ que ali, igualmente, cita, não o encontrámos na base de dados do Itij).

Sem esquecer, reitera-se, que o artigo 129.º, do CPC, se aplica aos casos de suspeição oposta aos funcionários da secretaria, o que, manifestamente, não é o caso.

Concluindo, inexistem fundamentos legais para que se determine que o administrador da insolvência fique impedido de continuar a intervir nos autos, até que esteja decidido o incidente de suspeição contra si deduzido (que ainda não o foi, cf. 2.ª parte do despacho de fl.s 367), o que acarreta a manutenção da decisão recorrida.

Consequentemente, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 05 de Março de 2024.