Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
469/20.7PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: CONVITE À CORRECÇÃO DAS CONCLUSÕES DOS RECURSOS
RECURSO INTERCALAR QUE SOBE A FINAL
RECURSO DA SENTENÇA
REJEIÇÃO DO RECURSO DA SENTENÇA
NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO INTERCALAR
GRAVAÇÃO SEM CONHECIMENTO DO VISADO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: REJEITADO O RECURSO DE UM ARGUIDO, NÃO CONHECIDO O RECURSO INTERCALAR DESTE ARGUIDO E NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO OUTRO ARGUIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 407.º, N.º 3, 412.º, N.º 1, E 417.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – Quando haja deficiências no cumprimento do disposto no artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., há lugar a convite para o suprimento das tais deficiências, sob pena de rejeição do recurso.

II – Se o recorrente corrige as conclusões de um recurso intercalar, que deve subir, ser instruído e julgado conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa, mas não corrige as conclusões deste último, o recurso da sentença terá que ser rejeitado.

III – Sendo o recurso da sentença rejeitado, fica sem efeito o recurso intercalar, porque deixa de haver recurso da decisão final com o qual devia ser julgado.

IV – A gravação de palavras ou imagens sem o consentimento do visado não é ilícita quando se destine a realizar um interesse legítimo e relevante que, de outra forma, dificilmente seria realizado.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral:
Relator: João Abrunhosa
1.ª Adjunta: Capitolina Rosa
2.ª Adjunta: Cândida Martinho
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, por acórdão de 02/06/2023, foram os Arg.[1] AA … e BB …  absolvidos e condenados …


*

No decurso da audiência de discussão e julgamento, em 07/03/2023, foram, para além doutros, produzidos os seguintes requerimentos e despachos:

“... Em seguida, a Mm.ª Juiz de Direito proferiu o seguinte:

DESPACHO

O requerido[2] pela defesa do arguido BB vai indeferido pelas seguintes razões que agora se passa a esclarecer:

a) O requerimento apresentado é manifestamente extemporâneo. Na verdade, as traduções apresentadas foram-no em fase de inquérito, atos aos quais o arguido assistiu e esteve presente, tendo estado em toda a fase do inquérito representado por advogado;

b) As questões suscitadas não configuram qualquer nulidade uma vez que as nulidades são típicas e estão devidamente anunciadas nos artigos 119º e 120º, do C.P.P., …

e) Por outro lado, entendo que considerando que a tradução resulta de documento que se encontra certificado por uma tradutora que está devidamente registada e é reconhecida e tendo prestado compromisso de honra, apenas poderá ser colocada em causa mediante pedido a efetuar e que teria que ser tempestivo e não nesta fase processual, …

f) No caso concreto, nada disso foi solicitado, apenas foram apresentadas folhas de dicionário, que foram traduzidas ou cujo o significado foi dado por pessoa cuja identidade se desconhece e que foram aqui transcritos;

h) … não assiste razão ao arguido pelo que, consequentemente, indefere-se aquilo que vem requerido e no mais, no que diz respeito à elaboração de nova tradução, o Tribunal entende que a mesma não se justifica, já que a tradução efetuada está devidamente certificada no processo, nunca foi colocada em causa em momento anterior e considera-se não subsistirem quaisquer razões para que seja substituída a Intérprete que se encontra presente em audiência de julgamento, uma vez que a mesma prestou compromisso de honra e se houver alguma suspeita quanto à capacidade da mesma exercer as suas funções, terá de ser pedida a sua substituição devidamente justificada, a que acresce a circunstância de estarem presentes os arguidos em audiência de julgamento e não concordando com a tradução ou interpretação que é efetuada nesta diligência deverão nos termos da lei suscitar, de imediato, essa desconformidade;


*

Logo, todos os presentes foram devidamente notificados e pela Ilustre Defensora do Arguido BB …, foi requerido o seguinte:

Vem o arguido BB … reagir ao despacho agora proferido …, porquanto … pretendeu provar a desconformidade da tradução contida de fls. 175 a 215 dos presente autos, com o teor dos respetivos áudios, prova esta que reveste toda a pertinência e oportunidade, por relevante, necessária e indispensável à descoberta da verdade e boa decisão da causa, …

Em seguida, a Mm. ª Juiz de Direito deu a palavra aos restantes advogados presentes que disseram nada terem a requerer, ao que foi proferido o seguinte:

DESPACHO

Quanto à 1ª parte do que vem requerido, o requerimento apresentado não se inclui nos pressupostos previstos no art.º 340º, do C.P.P.

Efetivamente o art.º 340º, do C.P.P., abre a porta à apresentação de meios de prova que o Tribunal considere que são úteis à descoberta da verdade material e não serve para renovar prova que foi produzida em sede de inquérito.

Neste momento, em audiência de julgamento não é o momento processual adequado para reagir, nem pode agora vir suscitar-se o art.º 340º, para se entender que o Tribunal deveria ter admitido e seguido a interpretação constante de umas folhas de dicionário, pelo que entendo que quanto a isto não está em causa o art.º 340º, do C.P.P., razão pela qual se indefere.

Relativamente à nulidade, não subsiste qualquer nulidade, conforme já foi referido. O despacho que agora o arguido pretende vir referir, é um despacho proferido na sessão anterior de julgamento, o qual versa sobre um requerimento que respeita à tradução apresentada em sede de inquérito.

….


*

Logo, todos os presentes foram devidamente notificados e pela Mm.ª Juiz de Direito foi dada a palavra à Ilustre Defensora do Arguido BB …, que requereu o seguinte:

Por se afigurar relevante, necessário e indispensável para a boa decisão da causa e para a descoberta da verdade material, vem o arguido … requerer a V.Exa., que se digne a admitir a junção de documento ao abrigo do disposto no art.º 340º, nº, 164º, 165º, nº 1, 2 e 3, todos do C.P.P., emitido pela Dr.ª …, tradutora e professora de profissão, formada em ensino português, pela Universidade de Coimbra, aqui na qualidade de perita interprete, pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência pública, na matéria em causa, respeitante a análise e peritagem à tradução das gravações telefónicas feitas pela Exma. Sr.ª … e juntas aos presentes autos de fls. 175 a 215.

Mais requer a V. Exa. que se digne a determinar, por se revelar de interesse para a descoberta da verdade, que a técnica e tradutora, …, seja convocada a prestar esclarecimentos adicionais e/ou complementares, presencialmente ou por videoconferência, …

Em seguida a Mm. ª Juiz de Direito deu a palavra aos restantes Advogados que disseram nada terem a requerer, ao que foi proferido o seguinte:

DESPACHO

…, vem reafirmar-se a extemporaneidade do que vem requerido, em 1º lugar, …

Em 2º lugar, não está previsto nas previsões contidas no art.º 340º, do C.P.P., pelo que não existe qualquer razão para que seja legalmente de admitir o que vem requerido.

Em 3º lugar, nos termos do disposto no art.º 152º, nº 1, do C.P.P., a perícia é realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado, ou quando tal não seja possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes da lista de peritos existentes em cada comarca, ou na sua falta de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e reconhecida competência na matéria em causa.

No caso concreto, a perícia não foi ordenada pelo Tribunal. As provas periciais podem ser requeridas pelas partes, mas são sempre ordenadas pelo Tribunal, a nomeação de perito ou interprete é efetuada exclusivamente pelo Tribunal, pelo que o que vem requerido pela parte não tem justificativo, nem cabimento legal, razão pela qual, uma vez que não estão reunidos os respetivos pressupostos legais, se indefere.

Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, tendo a Ilustre Defensora do arguido BB … reagido ao despacho no seguinte sentido:

…, requer-se que se digne a determinar nova perícia aos autos e respetivas traduções juntas pela Sr.ª Tradutora … - art.º 158º, nº 1, alínea b), do C.P.P.

Após, a Mm.ª Juiz de Direito proferiu o seguinte:

DESPACHO

A questão está decidida, …


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Não se conformando, o Arg. AA …, interpôs recurso da sentença que o condenou, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:

D) O arguido AA negou a prática destes factos, …

E) A única testemunha da acusação particular … no seu depoimento não imputou ao arguido …qualquer comportamento susceptível de consubstanciar a prática de um crime de injúrias.

H) E com base nas gravações que a assistente efetuou de conversas mantidas em família.

I) Conversas em causa que eram sempre mantidas em língua russa.

J) Quanto ao teor das expressões gravadas e que foram traduzidas, o arguido …, tentou em sede de audiência de julgamento (e posteriormente em sede de recurso que se encontra pendente), colocar em causa, a fidedignidade das traduções efetuadas e que se encontram juntas aos autos.

K) Por seu lado, o aqui recorrente em sede de contestação, colocou em causa a legalidade de tais gravações, …

Q) A razão de ser do presente recurso prende-se essencialmente, não só com a existência e a forma como a gravações foram efectuadas, mas com o facto de se ter considerado como meio de prova válido as gravações juntas e traduzidas nos presentes autos (fls. 174 e ss.), quando relativamente às mesmas se encontra pendente um recurso …

R) E só no caso de ser admitida a apresentação de uma outra tradução (efectuada por uma outra tradutora credenciada) das gravações efectuadas é que teremos a certeza se o arguido … terá preenchido os elementos objetivo e subjetivo do tipo de crime de injúria de que foi acusado e condenado.


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Também inconformado, o Arg. BB …, interpôs recurso do referido despacho, com os fundamentos constantes da respectiva motivação, com as seguintes conclusões.

Interpôs, ainda, recurso da sentença que o condenou, com os fundamentos constantes da respectiva motivação, com as seguintes conclusões.


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A Exm.ª Magistrada do MP[3]  respondeu aos recursos, …

….[4]


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Neste tribunal, o Exm.º Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer, …

*

[5]


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Questão prévia:

Em 16/10/2023, o relator deste acórdão proferiu despacho com, para além do mais, o seguinte teor:

“... No caso vertente, as motivações dos recursos do Arg. BB …, contêm dezenas de conclusões (87, o recurso da sentença, e 45, o recurso intercalar), que praticamente reproduzem os respectivos corpos, contendo, estas últimas, citações de doutrina e jurisprudência.

Donde se conclui que não existem verdadeiras conclusões das motivações desses recursos (entendidas como proposições sintéticas, claras e precisas que emanam da enunciação dos fundamentos dos recursos).

Consideramos que isso corresponde a manifesta deficiência no cumprimento do disposto no art. 412º/1 do CPP, pelo que há lugar a convite ao suprimento de tais deficiências, sob pena de rejeição dos recursos (...).

Nestes termos, notifique o Recorrente supra referido para, querendo, no prazo de 10 dias, apresentar as conclusões das suas motivações dos recursos, nos termos supra referidos, sob pena de rejeição dos mesmos. ...”

Em resposta a este convite, veio este Arg. juntar novas conclusões do recurso intercalar, mas não o fez quanto ao recurso da sentença em crise.

Uma vez que não corrigiu as conclusões do recurso da sentença, terá o mesmo que ser rejeitado, nos termos do art.º 417º/3 do CPP.

Nos termos do art.º 407º/3 do CPP, “Quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem e são instruídos e julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa.”.

Assim, porque o recurso da sentença é rejeitado, fica sem efeito o recurso intercalar, porque deixa de haver recurso da decisão final com o qual devia ser julgado.


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Isto posto, é pacífica a jurisprudência do STJ[6] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[7], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões e tendo em conta as questões de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a decidir no recurso do Arg. AA … são as seguintes:

I – Validade das gravações efectuadas pela Assistente;

II – Impugnação da tradução das referidas gravações;

III - Impugnação da matéria de facto.


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Cumpre decidir.

I – Entende o Recorrente … que as gravações efectuadas pela Assistente, constituem prova ilegal, porque não autorizada pelos Arg..

Mas, a gravação de palavras ou imagens sem o consentimento do visado, não é ilícita quando se destine a realizar um interesse legítimo e relevante que, de outra forma, dificilmente seria realizado.

É o caso de crimes cometidos em casas particulares, como o presente, sem outras testemunhas, dos quais muito dificilmente se obteria prova, não fora a gravação.

Quanto a esta questão, porque se trata de uma argumentação exaustiva, com aplicação directa ao presente caso e com a qual concordamos inteiramente, passamos a citar o acórdão da RL de 23/05/2023[8]:

“... Em tese, as proibições de prova representam meios processuais de imposição da tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito. Nesta perspectiva, as proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais», (cfr. Costa Andrade in "Sobre as proibições de prova em processo penal", Coimbra Editora, 1992, p. 83).

Reflexo deste entendimento, encontra-se plasmado no artigo 126° do Código de Processo Penal, sob a epígrafe "métodos proibidos de prova", que refere, no seu n° 3, que "ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular".

Seguindo muito de perto a jurisprudência do Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, diremos que, sendo o processo penal «direito constitucional aplicado», "ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126.°/ 3 do CPP indica o dever dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que, excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam restrições aos direitos fundamentais. É o caso de normativos como os já acima referidos arts. 187. CPP ou 6.° da Lei 5/2002, em concretização ainda do respeito pelos direitos fundamentais contemplados nos arts. 26.° e 34.° da CRP".

Continua dizendo: "No que respeita, por seu lado, a provas obtidas por particulares o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal como tutela do referido direito fundamental à privacidade. Bem ilustrativo desta linha de concretização legislativa se revela o normativo inserto no art. 167.° do CPP ao fazer depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude penal" (cfr. Acórdão do Tribunal de Lisboa de 28.05.2009, Proc. n° 10210/2008-9, disponível nas bases de dados da dgsi).

Aqui chegados, cumpre verificar se estamos ou não perante um crime de gravações ilícitas.

Assim, refere o n° 1 do artigo 199° do Código Penal que incorre na prática de um crime quem, sem consentimento, "gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas" ou "utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas".

Na senda de Costa Andrade, "o art. 199.º contém duas incriminações autónomas - a saber: gravações e fotografias ilícitas - preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis". E entre as diferenças que é possível encontrar nas duas incriminações em referência, destaca o Senhor Professor, desde logo, que a gravação da palavra é ilícita logo que obtida "sem consentimento", enquanto a fotografia só será ilícita quando produzida "contra a vontade", o que traduz uma redução significativa da dimensão da tutela penal do direito à imagem relativamente à dimensão conferida à tutela penal do direito à palavra, diferenciação que deve ser compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa (para maiores desenvolvimentos, cfr. Costa Andrade in "Comentário Conimbricense do Código Penal", em anotação ao artigo 199).

Mas voltemos ao caso...

A vítima B procedeu a gravações de uma conversa que o arguido teve consigo, sem que tivesse obtido da parte deste o necessário e prévio consentimento. Encontram-se, por isso, preenchidos os elementos do tipo legal (artigo 199° do Código Penal).

Diríamos, portanto, numa análise mais superficial, que a gravação é ilícita e que, consequentemente, não poderá servir de meio de prova (nem tão pouco as transcrições da gravação, por dela decorrerem). Todavia, como bem chama a atenção o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, "ao estabelecer-se, no art. 167.° do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo.

(...) Importa, porém, não perder de vista a possibilidade de verificação de alguma causa de justificação da ilicitude ou mesmo da culpa configuráveis no caso. Tal como salientado por Costa Andrade (Comentário cit.), a razão para algumas controvérsias suscitadas em torno da justificação nos crimes de gravações e fotografias ilícitas radicam sobretudo na necessidade de aplicar velhas causas de justificação (historicamente vinculadas a factos como homicídio, ofensas corporais, dano, etc.) novas expressões de comportamento penalmente relevante», concluindo mais adiante que não há razão nenhuma para não se aplicar a figura da legítima defesa, por exemplo, à gravação da palavra no crime de extorsão, não cabendo o argumento que por vezes costuma contrapor-se da falta de verificação de pressupostos como a actualidade da agressão ou a idoneidade e necessidade do meio".

Idêntica jurisprudência, resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, onde se considerou que "as imagens recolhidas pela assistente só não poderão ser valoradas como meio de prova se a sua obtenção constituir um ilícito criminal, por isso, importa apurar se a conduta da assistente integra um ilícito criminal". E acrescenta: "tem sido entendimento da jurisprudência que não constitui a obtenção de imagens, mesmo sem o consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento (como p. ex. estado de necessidade, legitima defesa) ou quando enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos, ou hajam ocorrido publicamente" (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.06.2011, Proc. n° 2499/08.8TAPTM.E1. No mesmo sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.06.2012, Proc. n° 914/07.7TDLSB.L1-9, os dois disponíveis nas bases de dados da dgsi).

No caso em apreço, as gravações áudios reportam-se a discussões que o arguido teve com a vítima, aos berros, por vezes na presença do filho menor, onde a insultou, ameaçou e atormentou.

Resulta do teor das mesmas que o arguido se encontrava muito alterado e perturbado, o que é revelador de uma personalidade violenta e impulsiva. Não se coibiu de atormentar a sua ex-companheira, mesmo na presença do filho menor, diminuindo-a enquanto ser humano.

A vítima explicou em audiência de julgamento que sente medo do arguido e que as gravações foram a forma que encontrou de explicar o que se estava a passar, pois achava que ninguém iria acreditar em si ou até conseguir explicar por palavras suas o que se estava a passar com o arguido.

Encontramos um arguido descontrolado e uma vítima submissa, que fala baixo e pede desculpa (mesmo quando não tem de o fazer).

De facto, analisado o teor das gravações e aquilo que a vítima relatou em audiência de julgamento, concluímos que esta se socorreu de um meio necessário para fazer face a um perigo actual e iminente (injúrias e ameaças do arguido).

A situação de perigo não foi criada pela vítima, como resulta das gravações.

Há, ainda, uma manifesta superioridade dos seus interesses em detrimento dos interesses do arguido. Na verdade, ponderados os interesses e os bens jurídicos em confronto (dignidade da pessoa humana vs direito à palavra), fácil é de concluir que o direito do arguido à palavra terá que ceder perante o direito da vítima, hierarquicamente superior e que merece, desta forma, preferência e outra tutela legal.

Em suma, o Tribunal conclui que a vítima B, ao ter gravado conversas que o arguido teve consigo, actuou, pelo menos, em Estado de Necessidade (artigo 34° do Código Penal), não sendo, desta forma, ilícito o facto por si praticado.

E ao não ter praticado um facto ilícito, a gravação pode e deve valer como meio (legítimo) de prova, nos termos do disposto no artigo 167° do Código de Processo Penal.

Termos em que, de harmonia com o disposto nos artigos 167° do Código de Processo Penal e 34° e 199° do Código Penal, declaro válidas as gravações das conversações entre o arguido e a vítima B.» ...”[9].

É, justamente, o que se passa no presente caso, em que a Assistente confirmou em audiência as circunstâncias em que efectuou as gravações e o seu teor.

Concluímos, pois, pela validade probatória das gravações em causa.


*

II – …[10], …

*

III - …[11], [12].

[13].

[14].

[15].

[16]

[17].


*****

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, decidimos:

a) Rejeitar o recurso da sentença do Arg. BB …;

b) Não conhecer do recurso intercalar do Arg. BB …;

c) Julgar não provido o recurso Arg. AA …


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Notifique.

D.N..


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(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).

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[1] Arguido/a/s.
[2] O requerimento, feito na audiência de 06/01/2023, tem o seguinte teor (nota nossa):
“... O arguido CC foi notificado da acusação sem o acompanhamento da tradução constante nos presentes autos de fls 175 a 215 havendo na altura da contestação sido confrontado apenas com os atributos e imprupérios constantes da acusação. No decurso do tempo bem se sabendo que havia uma tradução nos autos impensavél foi questioná-la de que modo fosse, …
Espanto não foi do arguido, que sublinha confiou plenamente na tradução, quando efetivamente se depara que os termos utilizados em língua russa nos áudios em apreço não correspondem de todo à interpretação dada pela ilustre intérprete. …
Em face de todo o exposto, constatou-se que da tradução efetivamente junta aos autos constam termos na língua portuguesa cujo significante não coincide com o áudio em língua russa, constam palavras que não foram tidas no áudio, mas que constam do texto em português e constam até frases que foram ditas no áudio na língua russa mas que não tiverem tradução no texto para português.
Que passo a concretizar, …

[3] Ministério Público.
[4]
[5]
[6] Supremo Tribunal de Justiça.
[7]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. …. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) …; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] …
[8] Relatado por Jorge Gonçalves, no proc. 924/20.9PBCSC.L1, in www.dgsi.pt.
[9] No mesmo sentido, para além da já referida, veja-se a seguinte jurisprudência:
- acórdão da RE de 28/06/2011, relatado por José Maria Martins Simão, no proc. 2499/08.8TAPTM, in www.dgsi.pt, …
-  acórdão do STJ de 28/09/2011, relatado por Santos Cabral, no proc. 22/09.6YGLSB.S2, in www.dgsi.pt, …
- acórdão da RG de 19/10/2015, relatado por Luís Coimbra, no proc. 1348/13.0PBBRG.G1, in www.dgsi.pt, …
- acórdão da RP de 27/01/2016, relatado por Maria dos Prazeres Silva, no proc. 1548/12.0TDPRT.P1, in www.dgsi.pt, …
[10]
[11]

[12]
[13]

[14]

[15]
[16]
[17]