Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4367/22.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: TERRENOS EM LEITOS OU MARGENS DE ÁGUAS MARÍTIMAS
PROPRIEDADE PRIVADA
RECONHECIMENTO SIMPLIFICADO
PRESSUPOSTOS
ILISÃO DA PRESUNÇÃO DE DOMÍNIO PÚBLICO
PROVA DOCUMENTAL
DISPENSA DA AUDIÊNCIA PRÉVIA
CONHECIMENTO DO MÉRITO NO DESPACHO SANEADOR
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 84.º, N.º 1, AL.ªS A) E F), DA CONSTITUIÇÃO, 11.º, N.ºS 1, 2 E 5, 15.º, N.ºS 1 A 5, DA LEI N.º 54/2005, DE 15-11, 1.º E 3.º DO DECRETO-LEI N.º 38 382, DE 7 DE AGOSTO DE 1951, 2.º, AL.ª O), DO DECRETO-LEI N.º 555/99, DE 16-12, E 595.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Os pressupostos do reconhecimento simplificado da propriedade privada sobre terrenos localizados nos leitos ou nas margens de águas marítimos – e, portanto, da ilisão da presunção de domínio público sobre as margens das águas costeiras – são três:
1. A sua integração em zona urbana consolidada, tal como é definida no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, i.e., em zona caracterizada por uma densidade de ocupação que permita identificar uma malha ou estrutura urbana já definida, onde existam infraestruturas essenciais e onde se encontram definidos os alinhamentos dos planos marginais por edificações em continuidade;

2. A sua localização fora da zona de risco de erosão ou de invasão das águas do mar;

3. A ocupação por uma construção anterior ao ano de 1951.

II – A prova documental apenas é exigível para a demonstração do facto da anterioridade da construção relativamente ao ano de 1951, destinando-se a suprir a inexistência de licenciamento municipal, do acto administrativo autorizativo da construção, podendo os demais pressupostos ser demonstrados por recurso a qualquer outra prova, designadamente, a prova pericial.

III – O documento autêntico apenas prova plenamente os factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções;

IV – O conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos, relevantes segundo o único ou os vários enquadramentos jurídicos do objecto da acção.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral: Relator: Henrique Antunes
Adjuntos: Pires Robalo
António Fernando Silva

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

A..., SA, propôs, no Juízo Central Cível de Leiria, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, contra o Estado Português, acção declarativa, de simples apreciação positiva, com processo comum, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade privada relativo ao prédio urbano com área de 1020 m2 descrito na Conservatória de Registo Predial de Peniche, sob o n.º ...03, com a área de 1020 m2, na Marginal Norte, Freguesias de Peniche com as características, dimensão e localização do mesmo, nos termos da alínea da alínea c) do n.º 5 do art. 15º da Lei 54/2005, de 15 de novembro, porquanto o prédio encontra-se na propriedade de particulares desde data anterior a 1951 e integrado em zona urbana consolidada como tal definida no RJUE.

Fundamentou esta pretensão no facto de o imóvel se localizar próximo da Praia da Gamboa, Peniche, não se encontrando parcialmente no domínio hídrico, mas antes, na sua totalidade, em zona urbana consolidada, estando sob propriedade particular desde data anterior a 1951.

O Ministério Público – agindo em nome próprio – defendeu-se, na contestação, por impugnação, afirmando, designadamente, que embora a autora tenha alegado que o terreno se situa em zona urbana consolidada, não demonstra que o mesmo esteja fora da zona de erosão ou risco de invasão do mar, sendo que ao invés do que aquela alega, o prédio está parcialmente inserido na margem das águas do mar, localizando-se dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar, estipulada pelo Programa da Orla Costeira Alcobaça-Cabo Espichel (POC – ACE) pelo que, nessa medida, a acção, por falta de um dos requisitos legais, deve improceder.

Por despacho de 30 de Janeiro de 2023, o Sr. Juiz de Direito considerou desnecessária a realização da audiência prévia, até para evitar deslocações desnecessárias, dispensando-se a realização da mesma para efeitos do disposto no art.º 593.º, n.º 1, do CPC, a não ser que alguma das partes, no prazo de 10 dias invoquem algum motivo atendível para a sua realização. Notificadas electronicamente deste despacho no dia 31 de Janeiro de 2023, as partes nada disseram nem o impugnaram.

O mesmo Magistrado, por despacho de 7 de Julho de 2023, depois de observar que através de uma análise meramente perfunctória, consideramos ser provável conhecer imediatamente do mérito da causa, considerando, sinteticamente, a falta de requisitos exigidos para a invocada pretensão da Autora, previstos no art. 15.º, n.º 5, al. c), da Lei n.º 54/2005, de 15/11, entre outros motivos, que o prédio se encontre “fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar”, e para evitar decisões surpresa, convidou as partes para, querendo e no prazo de 10 dias, exercerem o contraditório alegando o que tiverem por conveniente – cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC.

O Ministério Público declarou que não se opõe a que seja proferida, desde já, decisão de mérito, face aos elementos documentais juntos aos autos e parecer da Agência Portuguesa do Ambiente sobre a falta de requisitos da parcela de terreno em discussão, para ser reconhecido como propriedade privada, conforme se havia, aliás, alegado na contestação; a autora afirmou que invocou e demonstrou a verificação dos requisitos para aplicação da alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que, aliás, o imóvel sub judice nem se encontra parcialmente em domínio hídrico, facto expressamente invocado no art.º 9.º da petição inicial e que entende que não está verificada a falta de requisitos exigidos para a sua pretensão, antes pelo contrário, pelo que deverá o presente processo prosseguir para a fase de instrução, designadamente, para a produção da prova pericial requerida.

No despacho saneador, proferido no dia 25 de Setembro de 2023, o Sr. Juiz de Direito depois de considerar desnecessária a realização de audiência prévia, adequando-se formalmente o processo, uma vez que foi cumprido o contraditório tendo sido dada a oportunidade das partes se pronunciarem relativamente à possibilidade de conhecimento do mérito da causa, o que fizeram apresentando a esse propósito as suas alegações por escrito – cfr. art. 547.º, do CPC, e julgar possível julgar imediatamente o mérito da causa, considerando que os factos relevantes não dependem de prova testemunhal nem pericial, mas dependem apenas de prova documental,  com fundamento em que a Autora não provou que o prédio não se localiza dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar, antes pelo contrário, a Ré logrou desde já provar que o prédio se localiza dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar/faixas de salvaguarda estipulada pelo Programa da Orla Costeira de Alcobaça - Cabo Espichel (POC-ACE), por isso, desnecessário se torna proceder à análise dos demais pressupostos exigidos – julgou a acção improcedente e – embora o contestante seja o Ministério Público, agindo em nome próprio - absolveu o Estado do pedido.

É esta decisão que a autora impugna no recurso – no qual pede a sua revogação – tendo extraído da sua alegação estas conclusões – exemplares pelo seu número e pela sua concisão:

1.ª – O Saneador-Sentença é nulo por omissão de um ato e formalidade que a lei prescreve nos termos do artigo 195.º do CPC, porquanto não estão verificados os requisitos para a prolação do Saneador-Sentença, encontrando se assim violada alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA, afigurando-se necessária a produção de prova testemunhal com influência para a decisão da causa, o estado do processo, logicamente, não admitiria a prolação de tal decisão. V. Supra n.ºs 1 a 22;

2.ª – A douta sentença recorrida enferma ainda de manifesto erro de julgamento, pois na aplicação da alínea c) n.º 5 do sobredito artigo 15.º, deve ter em consideração a ratio legis da norma, acautelar a ação/efeito comum do mar decorrente da ondulação e marés na costa e não propriamente à aludida subida do nível do mar em decorrência de alterações climáticas através de uma análise caso a caso tendo assim violado, além do mais, o disposto no art.º 15.º da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, no art.º 9.º do Código Civil e nos art.ºs. 61.º e 62.º da CRP. - V. Supra n.ºs 23 a 34.

Na resposta, o Ministério Público concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.

2. Matéria de facto.

O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto, nestes termos:

2.1. Factos provados.

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o n.º ...03, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...11.º, o prédio urbano sito na Estrada Nacional, Freguesias de Peniche (Ajuda), com a área de 1020m2, confronta a Norte com a praia de Peniche de Cima, a Sul com a Estrada Nacional, a Nascente e Poente com caminhos e mostra-se aí inscrito a favor da Autora através do AP. ...65 de 2015/08/21.

2. De acordo com a Agência Portuguesa do Ambiente as parcelas da propriedade da ora Autora encontram-se inseridas “parcialmente em domínio hídrico”.

3. O prédio da Autora localiza-se na Avenida ... em Peniche.

4. A ora Autora, sociedade A..., Lda., adquiriu a propriedade do prédio urbano melhor identificado supra na data de 30 de julho de 2015.

5. Por escritura pública de redução de capital, celebrada a 30.07.2015, o Fundo Especial de Investimento Imobiliário ...” transferiu, à ora autora, sociedade A..., Lda., a propriedade sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...77.

6. O Fundo Especial de Investimento Imobiliário ...” havia adquirido à ora Autora, por escritura pública de compra e venda de 21 de setembro de 2009, o imóvel acima descrito (vd. Doc. 7, adiante junto).

7. Tendo a referida aquisição sido registada na Conservatória do Registo Predial de Peniche no dia 22 de setembro de 2009.

8. A Autora fora proprietária do imóvel ora em causa, pela primeira vez, através da escritura de compra e venda datada de 20 de novembro de 1996, na qual a “B..., Limitada” transferiu a propriedade do imóvel em questão à A..., Lda.

9. Tendo a referida aquisição sido registada na Conservatória do Registo Predial de Peniche no dia 10 de dezembro de 1996.

10. Da inscrição G-2 constante da Certidão de Registo Predial resulta que a “B..., Limitada” adquiriu em 1990 através de venda judicial, resultante da apreensão em processo de falência da “C.... Limitada”, dois prédios um dos imóveis que posteriormente foram anexados, dando origem a apenas uma descrição predial, em concreto à descrição n.º ...03 pertencente à Conservatória do Registo Predial de Peniche.

11. A referida aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial de Peniche no dia 30 de Julho de 1990.

12. A sociedade “C..., Lda.” havia adquirido, por usucapião, através de escritura pública de justificação outorgada a 14.01.1980, os seguintes imóveis:

“a) Fábrica de Conservas de Peixe de rés-do-chão, com doze divisões, com a superfície coberta de três mil setecentos e cinquenta e três metros quadrados, logradouro com a área de mil e quinhentos metros quadrados e anexo para arrecadação com a superfície coberta de duzentos e vinte e oito metros quadrados sito na Estrada Nacional, freguesia da Ajuda, da vila e concelho de Peniche, que confornta a norte com Estrada Nacional; sul com areal de Peniche de Cima; nascente com Rua ... e do poente com a rua, inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo ...93 (…)

b) Casa com um andar, uma divisão e vãos, com área coberta de setecentos e oitenta metros quadrados, sito na Estrada Nacional, freguesia de Ajuda, da vila e concelho de Peniche, que confronta do norte com Peniche de Cima, sul com Estrada Nacional, nascente e poente com caminho, inscrita na matriz predial urbana respetiva sob o artigo número trezentos e noventa e seis (…)”.

13. Na supra mencionada escritura é ainda referido que “Nenhum dos referidos prédios se encontra descrito na Conservatória de Registo Predial de Peniche, conforme foi provado com certidão expedida em janeiro corrente.”

14. O imóvel inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo ...96, aquando da sua inscrição na Conservatória do Registo Predial de Peniche deu origem à descrição n.º ...03.

15. Acrescendo ainda que “a referida firma C..., Limitada, possui os referidos prédios há mais de trinta anos”.

16. O prédio objeto da presente ação encontra-se parcialmente inserido na margem das águas do mar, como segue:


Legenda:

Linha vermelha: Linha limite do leito

Linha amarela: Linha limite da margem

Retângulo azul: Localização do prédio

17. O prédio localiza-se dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar/faixas de salvaguarda estipulada pelo Programa da Orla Costeira de Alcobaça - Cabo Espichel 11 de abril, como segue:


2.2. Factos não provados:

1. O prédio da Autora não se encontra parcialmente em domínio hídrico.

2. O prédio da Autora não se localiza dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar.

2.3. Motivação.

O Sr. Juiz de Direito adiantou, para justificar o julgamento referido em 2.1. e 2.2., designadamente esta motivação:

A localização física do prédio em causa, incluindo relativos à inserção de tal prédio na margem das águas do mar e em zona de risco de erosão ou de invasão do mar, resultou da informação e documentos juntos pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), sugestivamente assinalada nas imagens juntas aos autos pela APA e também pela própria Autora. Os factos não provados resultaram da circunstância de não ter sido produzida prova sobre os mesmos nesse sentido e ainda por ter sido produzida prova precisamente em sentido contrário.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação do perímetro objectivo do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º n.ºs 2, 1ª parte, 3 a 5 do CPC).

A decisão impugnada é constituída pelo despacho saneador, no qual se declarou dispensada a realização da audiência prévia, e que considerando que os factos necessários para resolução do litígio já estão adquiridos para o processo, não carecendo, por isso, de ulterior instrução ou actividade probatória, logo julgou a acção improcedente com fundamento em que a apelante não provou que o prédio não se localiza dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar, antes pelo contrário, a Ré logrou desde já provar que o prédio se localiza dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar/faixas de salvaguarda estipulada pelo Programa da Orla Costeira de Alcobaça - Cabo Espichel (POC-ACE).

Evidentemente, a apelante discorda deste julgamento e faz assentar essa discordância, em três fundamentos diferenciados: na nulidade da decisão por a dispensa da realização da audiência prévia constituir uma decisão surpresa, por esta audiência ter sido dispensada em violação da lei de processo, por o estado do processo não permitir o conhecimento imediato, de mérito, do seu objecto, e por um erro na subsunção, i.e., no juízo de integração ou inclusão dos factos apurados na previsão aplicável ao caso concreto.

Maneira que, considerando os parâmetros da competência decisória ou funcional desta Relação delimitados pelo modo apontado – maxime as conclusões com que a apelante rematou a sua alegação do recurso e que delimitam o seu objecto - as questões concretas controversas são as de saber se a decisão impugnada, no segmento em que julgou dispensada a realização da audiência prévia se encontra ferida com o desvalor da nulidade substancial e se ao julgar dispensada a realização dessa audiência violou a lei de processo, se o estado da causa permite antecipar para o despacho saneador o conhecimento do seu mérito e, finalmente, se aquela mesma decisão violou a lei substantiva, i.e., a norma que permite o proferimento de uma decisão de procedência ou de improcedência.

3.2. Nulidade substancial da decisão impugnada e violação da lei de processo.

Um dos fundamentos da impugnação radica na circunstância de a decisão impugnada constituir uma decisão-surpresa, no segmento em que declarou dispensada a realização da audiência prévia – e não, decerto, no tocante à antecipação do conhecimento do mérito da causa para o despacho saneador, dado que, no tocante a essa antecipação, ambas as partes foram, por despacho prévio à decisão recorrida, adequadamente advertidas dessa eventualidade.

Aquela alegação resolve-se, segundo certo entendimento do problema, na arguição da nulidade da decisão recorrida (art.ºs 236.º e 295.º do Código Civil). É verdade que a apelante não qualificou como tal a patologia processual que invocou. Mas não se julga necessário que o fizesse. Não pode razoavelmente atribuir-se ao legislador o pensamento de impor à arguição de nulidade uma fórmula sacramental e imprescindível: o que importava e importa é a substância e não a forma. Por outras palavras, o que se torna necessário é que a parte exprima a vontade de reagir contra certa infracção processual, contanto que seja suficiente para manifestar a vontade de protestar contra determinada nulidade, i.e., contra determinada infracção que se cometeu. Portanto, quando se assaca a uma decisão judicial a natureza de decisão-surpresa, outra coisa não se faz, de harmonia com certa perspectiva, que arguir a nulidade substancial, por um excesso de pronúncia, dessa mesma decisão (art.º 615.º, n.º 1, d) 2.ª parte, do CPC).

A sentença é nula quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, portanto, quando esteja viciada por excesso de pronúncia (art.º 615.º. n.º 1, d), 2ª parte, do CPC). Por força deste corolário do princípio da disponibilidade objectiva, verifica-se um tal excesso, por exemplo, sempre que o juiz utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou absolve num pedido não formulado.

Este desvalor da decisão radica, segundo a apelante, nesta precisa circunstância: a de constituir no segmento em que dispensou a realização da audiência prévia, uma decisão-surpresa.

 Entre os princípios instrumentais do processo civil, i.e., aqueles que procuram optimizar os resultados do processo, conta-se, seguramente, o princípio da cooperação intersubjectiva, de harmonia com o qual, as partes e o tribunal devem colaborar entre si na resolução do conflito de interesses subjacente ao processo (art.º 7.º nº 1 do CPC).

O tribunal está, portanto, vinculado a um dever de colaboração com as partes, dever que se desdobra, entre outros, no dever de consulta[1]: o tribunal tem o dever de consultar as partes sempre que pretenda conhecer de matéria de facto ou de direito sobre a qual aquelas não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (art.º 3.º, nº 3, do CPC). É o que sucede, por exemplo, quando o tribunal enquadra juridicamente a situação de forma diferente daquela que é perspectivada pelas partes ou quando, na audiência prévia, pretendendo o juiz conhecer de alguma excepção dilatória ou do mérito da causa, não faculta às partes a discussão, de facto e de direito, relativas à matéria da excepção ou do fundo da causa (art.º 591.º, n.º 1, b), do CPC)

Este dever – que se mantém durante toda a tramitação da causa - tem uma finalidade evidente: evitar as chamadas decisões-surpresa, i.e., as decisões, ainda que sobre matéria de conhecimento oficioso, sem a sua prévia discussão pelas partes.

Uma decisão dessa natureza afecta um valor particularmente relevante da decisão judicial - o da previsibilidade: a decisão do tribunal deve corresponder aquilo que é alegado e discutido durante o processo, não devendo as partes ser – desagradavelmente – surpreendidas com uma decisão que, embora baseada numa matéria de conhecimento oficioso, aprecia uma questão que nenhuma das partes alegou ou discutiu.   

É objeto de controvérsia saber se a violação do dever de consulta, na vertente considerada, se resolve numa nulidade processual ou antes numa nulidade, por excesso de pronúncia, da sentença, ela mesma (art.ºs 195 e 615.º, n.º 1, d), do CPC)[2]. Todavia, no caso do recurso, é desinteressante discutir este aspeto do regime da violação do dever de consulta. É que não há razão para que se fale em decisão-surpresa.

A audiência prévia – que é uma sessão de depoimentos e alegações orais, que se destina a preparar, além do mais, o despacho saneador – tem, entre outras funções primárias, a de facultar às partes a discussão de facto e de direito, designadamente quando o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa (art.º 591.º, n.º 1, b), do CPC).

No caso, o Sr. Juiz de Direito, depois de alertar as partes para a possibilidade de conhecer, logo no despacho saneador do mérito da causa, facultou-lhes a discussão, de facto e de direito, por escrito. E tendo assegurado, por escrito, essa discussão, segue-se, como corolário lógico irrecusável, que essa discussão não teria lugar oralmente, na audiência prévia e, portanto, que não convocaria, para assegurar essa finalidade primária, aquela audiência.

Realmente, nos termos gerais, há que considerar a regra de que, na sentença e, em geral, em qualquer acto decisório, se consideram resolvidas todas as questões sobre que recair decisão expressa, como as que, dados os termos da causa, constituírem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente proferido. Dito doutro modo: além do julgamento expresso há que aceitar o julgamento implícito, às questões que constituírem consequência necessária do julgamento explícito[3].

Ora, a decisão do Sr. Juiz de Direito, por tencionar conhecer imediatamente no despacho saneador do mérito da causa, de garantir às partes, a discussão por escrito, de facto e de direito, por escrito, pressupõe necessariamente que aquele Magistrado decidiu – bem ou mal, não interessa para o caso – que não realizaria a audiência prévia para facultar às partes aquela discussão, nessa audiência. Efectivamente, por detrás da decisão de facultar às partes a discussão escrita dos aspectos fácticos e jurídicos do objecto do processo, com a finalidade de logo conhecer, no despacho saneador do seu mérito, está a decisão implícita de não realizar a audiência prévia, dado que esta teria por finalidade uma função que já se mostrava preenchida.

Considerado o problema a esta luz, a apelante não pode, fundadamente, queixar-se de ter sido surpreendida com a decisão de dispensa, por desnecessidade, da realização da audiência prévia.

De resto – mas não de somenos – deve entender-se que a questão da não realização da audiência prévia se deve ter por irrepetivelmente decidida, em momento muito anterior ao do proferimento da decisão impugnada no recurso. Realmente, por despacho de 30 de Janeiro de 2023, o Sr. Juiz de Direito declarou dispensada, ainda que condicionalmente, a realização daquela audiência, decisão que não foi objecto de qualquer impugnação e, por isso, transitou em julgado, pelo que por força do caso julgado, ainda que puramente formal, que se formou sobre aquela decisão, ficou definitiva e irrepetivelmente decidido, neste processo, que a audiência prévia se não realizaria (art.ºs 620.º e 628.º do CPC). Quer dizer: a decisão impugnada, por desatenção manifesta, dispensou a realização da audiência prévia – que já se mostrava dispensada.

Enfim, julga-se que, no caso, a dispensa da realização dessa audiência sempre se deveria ter, face à lei de processo, por admissível.

Sempre que o juiz tencione conhecer, imediatamente, no todo em parte, do objecto do processo, a realização da audiência prévia é obrigatória e, portanto, não pode ser dispensada (art.º 591.º, n.º 1, b), do CPC). Simplesmente, há que conjugar esta regra de realização injuntiva da audiência prévia com os poderes de gestão processual que a lei reconhece ao juiz e, bem assim, com o princípio da economia processual.
O dever de gestão processual, no aspecto substancial, concretiza-se no dever de condução do processo que recai sobre o juiz, dever que é justificado pela necessidade de o juiz providenciar pelo andamento célere do processo, fim para obtenção do qual, lhe incumbe promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção ou do incidente e recusar o que for impertinente ou meramente dilatório, cabendo-lhe, assim, um poder de direcção do processo e um poder de correcção do processo (art.º 6.º, n.º 1, do CPC). O dever de gestão processual, e o seu fundamento material, há-de, realmente, permitir ao juiz a quebra, desde que justificada, da rigidez do processo, adequando-o, em cada momento processual, à sua finalidade última: a obtenção célere de uma decisão fundada no direito.
  Por sua vez, o princípio da economia processual diz-nos, no plano institucional, que o processo não deve implicar custos desnecessários e desproporcionais à prossecução da sua finalidade e que os meios disponíveis devem ser utilizados de molde a optimizar o fim do processo, evitando a perda de tempo e custos escusáveis, e, num plano individual – no plano de cada acto processual – que é proibido praticar actos inúteis, que se não devem praticar actos tanto objectiva como subjetivamente inúteis ou supérfluos num processo pendente (art.º 130.º do CPC).
Assim, se o juiz assegurar, por modo processual diverso, as funções primárias que a audiência prévia cumpre – v.g., a de facultar às partes, a discussão dos aspectos de facto e de direito da causa, com vista à antecipação do conhecimento do seu mérito logo no despacho saneador – deve reconhecer-se-lhe o poder-dever de julgar dispensada a realização da audiência prévia. Dispensa que, além de permitir um andamento mais ágil do processo, é conforme com o princípio da economia de meios processuais, dado que evita às partes – e, actualmente, mesmo ao juiz - v.g. as despesas com deslocações e perdas de tempo e ao tribunal o dispêndio, escusado de actividade jurisdicional, cara e escassa, que a realização da audiência prévia necessariamente implica.
Julga-se que é esse o caso do recurso. Desde que às partes foi assegurada, por escrito – e, portanto, de forma até mais ponderada ou reflectida - a discussão de facto e de direito, a realização da audiência prévia, para proceder à discussão oral daqueles aspectos da causa, resolver-se-ia num acto escusado, desnecessário ou inútil. Summo rigore, nem sequer se torna necessário recorrer aqui aos poderes de gestão processual do juiz. A lei de processo admite a dispensa da audiência prévia, designadamente quando o juiz deve proferir despacho saneador e uma das funções possíveis e eventual é conhecer do mérito da causa, desde que o seu estado o permita (art.ºs 593.º. n.º 1, e 595.º. n.º 1, b), do CPC). Se tiver havido dispensa da audiência prévia, há, evidente e necessariamente, que assegurar a audiência prévia das partes, como, aliás, sucedeu no caso (art.º 3.º, n.º 3, do CPC). A solução está, pois, toda disposta na lei.
Vistas as coisas a esta luz, não pode, em boa verdade, dizer-se que a decisão de dispensa da audiência prévia, violou a lei processual e, portanto, que cometeu uma nulidade processual. Aliás, é equivocado falar aqui de uma nulidade processual, dado que há uma decisão que determina a omissão de um acto devido. O que haveria era uma decisão ilegal, por isso que o meio adequado de reagir contra ela é o recurso e não o meio próprio de arguição das nulidades processuais - a reclamação – e o que discute no recurso daquela decisão é se é legal ou ilegal, não a verificação de uma nulidade de processo (art.º 196.º, 2.ª parte, do CPC). Por último, se a controvérsia consistisse na comissão ou não de uma nulidade, em tal caso, o recurso sem sequer seria admissível – por falta de competência funcional do tribunal ad quem – dado que tal nulidade não contende com os princípios da igualdade e do contraditório, com a aquisição processual de factos nem com a admissibilidade de meios probatórios (art.º 630.º, n.º 2, do CPC).

Não há, assim, a mínimo fundamento, quer para imputar à sentença impugnada o desvalor da nulidade substancial - seja qual for o entendimento que se tenha por preferível no tocante à consequência jurídica que se deve associar ao proferimento de uma decisão-surpresa – quer para concluir pela violação da lei de processo, quer pela comissão de uma qualquer nulidade.

Problema inteiramente diferente é, claro está, o de saber se o estado da causa – logo no plano de facto - permitia, ou possibilitava o conhecimento imediato do seu objeto no despacho saneador.

A resposta a esta questão reclama o exame dos pressupostos da antecipação do conhecimento do objeto da causa para o despacho saneador.

3.3. Pressupostos da antecipação para o despacho saneador da apreciação do mérito da causa.

O despacho saneador tem, entre outras, por função, apreciar tanto os aspectos jurídico-processuais da acção como o mérito desta (art.º 595.º, n.º 1, do CPC). No contexto das funções atribuídas ao despacho saneador, a apreciação daqueles aspectos constitui a sua finalidade primária e o seu conteúdo essencial, enquanto o conhecimento do mérito é uma finalidade meramente eventual.

O despacho saneador destina-se, antes de mais, a verificar a admissibilidade da apreciação do mérito e a regularidade do processo (art.º 595.º, n.º 1, a) do CPC). De resto, é de toda a vantagem em que o controlo dessa admissibilidade não seja relegada para uma fase adiantada da acção e é ela que justifica a atribuição daquela função de saneamento a tal despacho. No plano das funções atribuídas ao despacho saneador, a apreciação daqueles aspectos constitui o seu conteúdo essencial, enquanto o conhecimento do mérito é uma finalidade eventual: o despacho saneador visa fundamentalmente evitar a que se atinja a fase da sentença sem qualquer controlo sobre a admissibilidade da apreciação do mérito da causa e que, por isso, se possa frustrar a função essencial dessa sentença.

Na verdade, a apreciação do mérito da acção e o proferimento da decisão sobre a sua procedência ou improcedência é realizada, em regra, na sentença final (art.º 607.º do CPC). Mas em certas condições, essa apreciação pode ser antecipada para o despacho saneador: o tribunal pode conhecer do mérito da acção nesse despacho sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido, de algum dos pedidos cumulados, do pedido reconvencional ou ainda da procedência de alguma excepção peremptória (art.º 595.º, n.º 1, b), do CPC). Caso isso suceda, o despacho saneador fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença e dele cabe, naturalmente, recurso de apelação (art.º 595.º. n.º 3, 2ª parte, e 644, n.º 1, do CPC).

Portanto, o conhecimento imediato do mérito só se realiza – mas deve realizar-se - no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento; caso contrário, i.e., se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final. É curial que a decisão jurisdicional seja pronta; mas é igualmente conveniente que seja conscienciosa e justa.

Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador se a questão puder ser decidida nesse momento, i.e., se o processo o permitir, sem necessidade de mais provas (art.º 595, nº 1, b), do CPC). Quando isso ocorre, não há necessidade que o processo atravesse a fase complicada, morosa, pesada e dispendiosa da instrução e da audiência discussão e julgamento. A esta luz, o conhecimento do mérito da acção, logo naquele despacho, não é desconforme nem com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva nem com o direito ao processo equitativo.

Às partes é constitucionalmente garantido que o direito de atuar em juízo deve efectivar-se através de um processo equitativo, entendido como um processo justo, logo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais (art.º 20.º. n.º 4, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Simplesmente, o princípio da equitatividade, não impede uma conformação do processo que autorize o proferimento de uma decisão de mérito, em momento processual anterior ao da sentença final, logo que se se mostrem reunidos os pressupostos de facto e de direito que permitam uma decisão conscienciosa sobre esse mesmo mérito. Inversamente, só a admissibilidade desse conhecimento antecipado é harmonizável com uma outra dimensão do processo equitativo: o direito à obtenção de uma decisão, conforme com o Direito, em prazo razoável, i.e., a uma decisão judicial sem dilações indevidas (art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa). Para que há-de prosseguir o processo, se não há factos sobre os quais possa incidir a prova ou se há já factos que devam considerar-se assentes que excluem, de harmonia com a lei substantiva aplicável, uma decisão de procedência ou que a impõem?

Não é razoável que, em nome do direito à prova, i.e., à apresentação de provas destinadas a provar os factos alegados em juízo, como dimensão ineliminável do direito ao processo justo ou equitativo, se prossiga num processo para demonstrar factos que, mesmo a provarem-se, não garantem à parte a procedência do direito que pela acção pretende fazer valer e declarar ou de uma qualquer excepção oposta pelo demandado a esse direito. Mas isto só é assim, evidentemente, no caso de a apreciação do mérito da acção não demandar a produção de mais provas e, portanto, poder, com inteira justificação, ser antecipada para o despacho saneador.

Na espécie vertente, o despacho saneador, por entender que o processo continha já todos os elementos indispensáveis ao conhecimento do objecto da acção logo a julgou improcedente.

Crê-se que esta atitude do despacho saneador não é, no caso, correcta.

3.4. Concretização.

De harmonia com a Constituição da República, pertencem ao domínio público, entre outros bens, as águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos (art.º 84.º, n.º 1, a)). Trata-se, patentemente, de uma disposição que assenta na convicção de que as águas, pela sua importância e afectação públicas, devem estar fora do comércio jurídico privado, sendo, consequentemente, inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis.

Realmente, o domínio público hídrico, na medida em que se encontre funcionalmente ligado à circulação de bens, pessoas e ideias, respeita a coisas tidas por vitais para a comunidade, ou seja, dotadas de um grau de utilidade pública primordial, circunstância que explica a integração dominial de que são objecto na generalidade dos ordenamentos jurídicos. Nos termos da Constituição, o conjunto de coisas públicas integra ainda outros bens como tal classificados pela lei, do que decorre que há bens declarados dominiais pelo texto constitucional, declaração que não pode ser revogada pela lei ordinária, pelo que estes bens são dominiais por natureza – e bens que são dominais por assim serem declarados pela lei, cuja dominialidade está, assim, na disponibilidade do legislador infraconstitucional: são os bens dominiais por determinação legal (art.º 84.º, n.º f)).

As margens de águas públicas não integram, à luz da Constituição, o domínio público por natureza. A sua classificação legal como bens dominiais surgiu com o Decreto Régio de 31 de Dezembro de 1864, que incluiu no domínio público imprescritível, designadamente, os portos de mar e praias e os rios navegáveis e flutuáveis, com as suas margens. A atribuição do carácter dominiais às praias implicou tão somente a incorporação no domínio público dos terrenos marginais que já pertenciam ao domínio privado do Estado, pelo que a lei não teve em vista reduzir de um golpe à propriedade pública todos os terrenos das praias, incluindo os que estivessem na propriedade privada dos particulares.

Ainda diacronicamente – e não justificando a economia do recurso recuar mais atrás – interessa observar que a definição dos limites e a regulação do regime dos terrenos públicos conexos com o domínio público hídrico foi levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, ordenado pelo propósito – como se pode ler no seu preâmbulo - de actualizar e unificar o regime jurídico dos terrenos incluídos no que se convencionou chamar domínio público hídrico, face a uma legislação muito antiquada e muito dispersa, que constituía uma verdadeira manta de retalhos. Este diploma considerou que integravam o domínio público do Estado os leitos e as margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, e que o leito das águas do mar e demais águas sujeitas à influência das marés é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais, sendo esta linha definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no caso do mar, e que, sendo a margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, esta tinha a largura de 50 metros, embora quando tivesse a natureza de praia em extensão superior a 50 metros, a margem estender-se-ia até onde o terreno apresentasse tal natureza (art.ºs 2.º, n.º 2, 3.º, n.ºs 1, 2 e 5, e 5 n.º 1).

Em nome da segurança jurídica e de protecção da confiança dos cidadãos era, contudo possível aos particulares obter o reconhecimento da existência de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens, localizadas dentro daqueles limites, desde que demonstrassem, documentalmente, que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou comum, ou que estivessem na posse de particulares, ou ainda que tivesse sido objecto de um acto de desafectação, antes de 31 de Dezembro de 1864 (art.º 8.º). O reconhecimento da existência de propriedade privada era feito através do meio procedimental regulado no art.º 10.º.

Em 2005, no contexto da transposição da Directiva n.º 2000/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, entendeu-se ser preferível aprovar autonomamente uma nova lei sobre a titularidade dos recursos hídricos, clarificando e estabilizando o regime vigente num diploma coerente, apesar de se reconhecer que o Decreto-Lei n.º 498/71, de 5 de Novembro, então em vigor, era um diploma de elevada qualidade técnica, não se pretendendo introduzir modificações profundas no regime actual. Foi, assim, aprovada a Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que manteve a presunção de domínio público sobre as margens das águas costeiras, entendendo-se por margem das águas do mar, uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas com a largura de 50 metros, ou quando tiver a natureza de praia, em extensão superior até onde o terreno apresentar tal natureza (art.º 11.º n.ºs 1, 2 e 5). Como se manteve também a possibilidade de os particulares demonstrarem – agora em acção específica, proposta nos tribunais comuns - que são proprietários dos terrenos situados nessas margens, pelos modos seguintes:

- Provando documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo objecto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864;

- Na falta de documentos susceptíveis de comprovar essa propriedade, provando que antes daquela data, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa;

- Provando, no caso de os documentos anteriores a 1864, se terem tornado ilegíveis ou terem sido destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente, ocorrido na conservatória ou registo competente, que antes de Dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas, caso em que os terrenos se presumem particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiro (art.º 15.º n.ºs 1 a 4, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro).

O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens de águas do mar, pode ainda ser obtido, sem sujeição ao regime da probatio diabolica referido, designadamente, no tocante a terrenos integrados em zona urbana consolidada, fora do risco de erosão ou invasão do mar, e que se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado (art.º 15.º, n.º 5, c), da Lei n.º 54/2015, de 15 de Novembro). A localização do marco temporal no ano de 1951, compreende-se dado que foi nesse ano que foi publicado o Regulamento Geral das Edificações Urbanas que trouxe consigo a exigência de licenciamento municipal das construções, pelo que apenas no tocante às construções anteriores a 1951 é que se podem suscitar dúvidas quanto à titularidade das parcelas de terreno ocupadas com essas construções e, portanto, de apenas no tocante a estas se justificar o pedido reconhecimento da sua apropriação privada (art.º 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de Agosto de 1951).

Admite-se, assim, a propriedade privada sobre margens de águas públicas, sem prejuízo de se entender que, na falta de comprovação daquele direito real, o relevo dos terrenos para o interesse público, importa, necessariamente a sua dominialidade, portanto, a assunção da conveniência de uma afectação e destino públicos e, logo, a sua recondução á propriedade de entes públicos. Este regime orienta-se, assim, pela finalidade de assegurar um equilíbrio entre o princípio do respeito pelos direitos adquiridos dos particulares e a conveniência de que as margens de águas públicas, por condicionarem a sua utilização, integram o domínio público, ou seja, estejam sujeitas a um regime especial de direito público, caracterizado por um reforço das medidas de protecção das coisas que o integram.

Os pressupostos do reconhecimento simplificado da propriedade privada sobre terrenos localizados nos leitos ou nas margens de águas marítimos – e, portanto, da ilisão da presunção de domínio público sobre as margens das águas costeiras - são, assim, três:

                - A sua integração em zona urbana consolidada, tal como é definida no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, i.e., em zona caracterizada por uma densidade de ocupação que permita identificar uma malha ou estrutura urbana já definida, onde existam infraestruturas essenciais e onde se encontram definidos os alinhamentos dos planos marginais por edificações em continuidade (art.º 2.º, o), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na sua redacção actual);

                - A sua localização fora da zona de risco de erosão ou de invasão das águas do mar;

                - A ocupação por uma construção anterior ao ano de 1951.

                Esta simplificação do regime, desde logo no plano probatório, do reconhecimento da apropriação privada de parcelas de leito ou de margens de águas do mar, compreende-se: trata-se de espaços urbanos consolidados, não sujeitos aos riscos de erosão e de invasão pelo mar e relativamente às quais se justifica a tutela da confiança do particular assente na sua ocupação por uma construção anterior a 1951, cujo controlo pela administração não feito por, nessa data, não ser exigível.

                O sentido de qualquer decisão depende dos factos fornecidos pelo processo, com consideração do princípio da aquisição processual e da análise do cumprimento do ónus da prova (art.ºs 346.º, 2.ª parte, do Código Civil, e 414.º do CPC). Se todos os factos que conduzem à aplicação de uma norma jurídica estiverem adquiridos para o processo, o tribunal pode proferir uma decisão favorável à parte onerada com a prova, decisão que pode ser de mérito; se isso não se verificar, o tribunal profere uma decisão contra a parte onerada com a prova, decisão que pode também ser absolutória ou condenatória quanto ao mérito.

                A decisão do Sr. Juiz de Direito de se julgar habilitado a decidir, logo no despacho saneador, do mérito do pedido, assentou, patentemente, nestes dois pressupostos: o de que a – única - prova admissível dos factos a que é subsumível a causa petendi invocada pela apelante é a documental; o de que a prova produzida, desta espécie, é insusceptível de ser destruída por qualquer outra. Cremos que qualquer destes pressupostos não são exactos.

                No tocante à previsão da apontada norma, deve entender-se que a prova documental apenas é exigível para a demonstração do facto da anterioridade da construção relativamente ao ano de 1951, destinando-se a suprir a inexistência de licenciamento municipal, do acto administrativo autorizativo da construção[4]. A prova, designadamente que a parcela se localiza fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, essa, pode ser feita por recurso a qualquer meio de prova admissível, diverso da prova documental.  Depois, o documento para prova da anterioridade da construção relativamente ao ano de 1951 é aqui, nitidamente, exigido pela lei ad probationem e, portanto, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (art.ºs 345.º, n.º 2 e 364.º. n.º 2, do Código Civil).

Nestas condições, a afirmação contida na sentença impugnada, de que os factos relevantes não dependem de prova testemunhal nem pericial, mas dependem apenas de prova documental, não é, pois, correcta: a demonstração do facto – negativo - da não integração do terreno na margem marítima pública e, logo, também, em zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar pode ser feito por qualquer meio de prova admissível nos termos gerais.

Na lógica de que a prova de todos os factos de que depende o reconhecimento, no caso considerado, da apropriação privada de terrenos localizados nas margens do mar, só documentalmente pode fazer-se, a decisão impugnada concluiu que a Autora não provou que o prédio não se localiza dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar, antes pelo contrário, a Ré (sic) logrou desde já provar que o prédio se localiza dentro da zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar/faixas de salvaguarda estipulada pelo Programa da Orla Costeira de Alcobaça - Cabo Espichel (POC-ACE). Patentemente, como linearmente decorre da fundamentação adiantada pelo Sr. Juiz de Direito para justificar o sentido do julgamento da matéria de facto, a fonte da prova para julgar não provado que o prédio não se localiza em zona de risco de erosão ou de invasão pelo mar e para julgar provado o facto inverso ou contrário, é constituída pela informação e documentos juntos pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), sugestivamente assinalada nas imagens juntas aos autos pela APA e também pela própria Autora – documentos que, de resto, surgem reproduzidos nos pontos 16 e 17 dos factos julgados provados.

Mas a verdade é que tais documentos – apesar da sua natureza de documentos autênticos, dado que foram produzidos por oficial público, considerada a natureza de instituto público, integrado na administração indirecta do Estado, da Agência Portuguesa do Ambiente, IP, – estão longe de fazer prova plena de qualquer daqueles factos ou de impedir que a prova desses mesmos factos seja feita por outros meios de prova (art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 56/2012, de 12 de Março).

Este ponto merece ser examinado de forma detida.

                A força probatória do documento consiste no valor ou na fé que, como meio de prova a lei lhe confere. Esse valor pode referir-se do documento em si mesmo; ao seu conteúdo. No primeiro caso, têm-se em vista a força probatória formal do documento, a sua autenticidade ou genuinidade; no segundo, a sua força probatória material.

                A força probatória formal do documento diz, desde logo, respeito, à proveniência dele, à pessoa de que emana. No tocante à proveniência do documento, estabelece a nossa lei substantiva civil fundamental uma presunção de autenticidade: desde que o documento se mostre subscrito pelo autor, com assinatura reconhecida notarialmente ou com o selo do respectivo serviço, presume-se que provêm da autoridade ou oficial público a quem é atribuído (artº 370 nºs 1 e 2 do Código Civil).

                À economia do recurso interessa, porém, a força probatória material do documento, quer dizer, a força probatória dele quanto às declarações ou narrações de que é continente.

                Em primeiro lugar, o documento autêntico faz prova pela dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (artº 371.º, n.º 1, 1ª parte, do Código Civil). Todavia, os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do juiz (art.º 371.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil).

                Assim, por exemplo, quando o notário afirma no documento que o leu em voz alta perante os outorgantes, que lhes explicou o seu conteúdo e os direitos que adquiriam e as obrigações que contraíam, tal afirmação há-de ter-se por verdadeira; tem de admitir-se como certo que o notário praticou o acto que, no instrumento, diz ter praticado: a fé pública de que goza o documentador garante a veracidade desse facto.

                Depois, o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (art.º 371.º nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Este ponto – que é, de resto, o mais delicado da eficácia probatória do documento autêntico – deve ser entendido com habilidade. O documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram[5].

                Se o documento prova plenamente os factos atestados que se passaram na presença do documentador, v.g., as declarações, já não prova de pleno a sinceridade desses factos ou a sua validade ou eficácia jurídicas, pois de uma coisa e de outra não pode aperceber-se a entidade documentadora. Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele.

                Assim, por exemplo, se numa escritura pública de compra e venda, o vendedor declara ao notário que já recebeu o preço, aquele documento só faz prova plena de que aquele outorgante fez aquela declaração negocial; não prova, porém, que tal afirmação corresponde à verdade[6].

                A força probatória do documento autêntico, com o limite enunciado, só pode ser ilidida com base na sua falsidade (art.º 372.º, n.º 1, do Código Civil).

Há falsidade quando a falta de veracidade respeita a facto que, por força do documento, se considera plenamente provado, i.e., quando nele se atesta como tendo sido praticado pelo documentador acto que, na realidade, o não foi – falsidade material - ou quando a entidade documentadora atesta ter percepcionado qualquer facto que, na verdade, se não verificou – falsidade ideológica ou intelectual (art.º 372.º, n.º 2 do CPC)[7]. Convém, em enfim, ter presente que a arguição de falsidade pode visar todo o documento ou somente uma parte dele. A falsidade do documento pode, na verdade, ser apenas parcial e, portanto, a conclusão de que em parte é falso só inutiliza a parte do documento a que a falsidade se refere; quanto ao resto, subsiste a força probatória dele.

De outro aspecto, a prova testemunhal – e por extensão de regime, a prova por declarações de parte – está excluída nas seguintes situações: contra ou em substituição do conteúdo de documento autêntico, excepto no caso de haver um documento que constitua um princípio de prova e a prova testemunhal a completar esse começo de prova ou de a prova ser realizada por terceiros (art.º 394.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil); contra meio de prova com força probatória plena, i.e., para prova do facto contrário  de facto plenamente provado por documento ou por outro meio de prova (art.º 393.º, n.º 2, do Código Civil); contra documento exigido pela lei ad probationem ou ad substanciam (art.º 393.º, n.º 3, do CPC). Não assim quanto à prova pericial, se o facto documentado puder, evidentemente, ser provado por recurso a esse meio de prova (art.º 388.º do Código Civil).

Pois bem: na informação prestada pela Agência Portuguesa do Ambiente, IP – adquirida para o processo e que contém no Anexo I as figuras reproduzidas nos pontos 16 e 17 da matéria de facto julgada provada na sentença impugnada -  o seu autor salienta, expressamente, que as linhas que se apresentam na figura do anexo I -  as linhas limite do leito e das margens das águas do mar -  foram estimadas com base na informação geográfica disponível e nos critérios técnicos aprovados pela Portaria 204/2016, de 25 de julho, o que não inviabiliza a sua definição por procedimento próprio de delimitação do domínio público hídrico (no caso, componente domínio público marítimo) nos termos fixados no artigo 17.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, na sua atual redação, Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de outubro, e, ainda, Portaria n.º 931/2010, de 20 de setembro. Quer dizer: a definição dos limites do leito e das margens das águas do mar não resultam de percepção directa do documentador – mas de uma simples estimativa sua – e esse mesmo documentador reconhece que a definição precisa de qualquer desses limites melhor se obtém pelo procedimento de delimitação do domínio hídrico público, podendo, assim, aquela estimativa ser objecto de correcção através deste último procedimento. Portanto, aqueles documentos não fazem prova plena do facto documentado – os limites do leito e das margens do mar – que impeça o recurso para a sua prova da prova testemunhal e da prova por declarações de parte e, em qualquer caso, da prova pericial, para demonstrar – como alega a apelante – que o seu imóvel não se encontra parcialmente em domínio hídrico inserindo-se na sua totalidade em zona urbana consolidada, e que a zona próxima ao mar, junto ao Armazém, não é objeto de erosão e de invasão das águas do mar.

Estas considerações mostram a existência de factos controvertidos e, portanto, carecidos de prova, absolutamente essenciais, i.e., com indiscutível relevância para a decisão da causa, segundo a única solução plausível da questão de direito, i.e., segundo o único enquadramentos jurídicos do objecto da acção.

Consequentemente, o processo não possibilitava o conhecimento imediato do mérito do pedido, logo no despacho saneador, dado que não estão – correctamente - adquiridos para o processo todos os factos necessários para a resolução do litígio que, por isso, carecem de ulterior instrução ou actividade probatória. E se os elementos fornecidos pelo processo não justificavam essa antecipação é meramente consequencial a revogação desse despacho e a sua substituição por outra decisão que ordene o prosseguimento da causa de modo a que o julgamento do mérito seja feito na sua sede normal: a sentença final.

Expostos todos os argumentos, afirma-se em síntese apertada que:

(…).

O Ministério Público sucumbe no recurso. Não deverá, porém, suportar as respectivas custas, visto que, no caso, actua em nome próprio e, por isso, está delas isento (art.º 4.º, n.º 1, a), do RC Processuais).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão impugnada, no segmento em conheceu do mérito da causa, e determina-se a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento da instância, com o proferimento do despacho de identificação do objecto do litígio e de enunciação dos temas da prova.

Não há lugar a tributação.                                                                                            

                                                                                                                              2024.02.20


[1] João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, págs.97 e 98.
[2] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 26 e 27, Miguel Teixeira de Sousa, https://blogspot.com/search?q=Decisão+surpresa e João de Castro Mendes, Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, cit., pág. 102.
[3] Ac. do STJ de 19.12.2023 (100/14).
[4] Ac. da RP de 17.06.2019 (240/17).
[5] Vaz Serra, RLJ Ano 111, pág. 302.
[6] Ac. do STJ de 18.06.69, BMJ n.º 189, pág. 246.
[7] Ac. da RE de 19.01.95, BMJ n.º 443, pág. 467.