Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
589/20.8PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA COIMBRA
Descritores: MANIFESTO LAPSO
PRINCÍPIO DE CONFIANÇA
EXERCÍCIO DO DIREITO DE QUEIXA
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 249.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 246.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – Tal como a falta de assinatura do juiz que elabora a sentença não invalida a decisão proferida, a omissão da assinatura do auto de notícia do agente que, nesse auto, declara pretender procedimento criminal pelas injúrias e ameaças sofridas não retira validade à queixa apresentada.
II – A afirmação feita pelo agente, quando foi ouvido nos autos antes de decorridos 6 meses sobre os factos, de que pretendia procedimento criminal basta para que se considere validamente exercido o direito de queixa que, aliás, não tem que ser exercido no auto inicial, nem está sujeito a formalidades especiais, conforme refere o artigo 246.º, n.º 1 do C.P.P.
III – Tendo todo o processo prosseguido no pressuposto de que a queixa era válida, vir o tribunal, depois do julgamento, considerar não haver queixa por o auto de notícia não estar assinado, omissão que foi atempadamente suprida, viola o princípio da confiança que deve nortear toda a atividade judiciária.
Decisão Texto Integral: *

            Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I.

            … foi decidido, além do mais, absolver a arguida … da prática em autoria material e na forma consumada de um crime de injúria agravada (na pessoa de AA …) p.p. artigo 26º, 1ª parte, 181º, nº 1 e 184º por referência ao artigo 132º, nº 2 alínea l) todos do Código Penal.


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            O Ministério Público inconformado com a absolvição da arguida interpôs recurso, o qual concluiu do seguinte modo (transcrição):

2º  O agente da PSP … não exerceu o direito de queixa no auto de notícia, mas exerceu este direito em momento posterior dos autos.

3º  O crime de injúria agravada imputado à arguida reveste a natureza de crime semipúblico, pelo que a legitimidade do MP para a prossecução da acção penal dependente da apresentação de queixa ou participação pelo titular desse direito.

4º  O direito de queixa do referido agente da PSP extinguiu-se no dia 02/02/2021.

5º  O agente … foi inquirido no decurso do inquérito no dia 24/09/2020, tendo, nesta data, declarado pretender procedimento criminal, contra a arguida, pela prática do crime de injúria agravada.

6º  O exercício do direito de queixa não obedece a formalismos especiais nem tem de ser expresso.

7º  Existiu a necessária queixa, pelo que o MP tinha legitimidade para a prossecução da acção penal quando deduziu acusação contra a arguida.

8º  Os factos dados como provados n.os 1 a 5, 7, 13, 20 e 21 preenchem os elementos objectivo e subjectivo do crime de injúria agravada.


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                                                                       *

            II.

            … a única questão a decidir é a de saber se se deve considerar validamente apresentada queixa pelo agente da GNR AA e, consequentemente, se deve a arguida ser condenada por mais um crime de injúria agravada.


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            É a seguinte a decisão recorrida …
  1.1. Saneamento
Questão prévia:

Da análise dos autos, resulta que, a fls. 2 dos mesmos, consta um auto de notícia nele surgindo, como autuante, o agente da PSP BB ….

… Nele se afirma a vontade quer pelo agente autuante, quer pelo agente AA …, de que seja instaurado procedimento criminal relativamente à arguida, pelos factos ali descritos.

Nesse conspecto, desse auto consta o seguinte: “O agente AA pelas injúrias e ameaças deseja procedimento criminal.”
Mostra-se todavia tal auto assinado apenas e só pelo agente autuante BB

Os factos vertidos em tal auto de notícia, foram considerados na acusação oportunamente deduzida pelo MP. E com base neles, foi imputado à arguida, para além do mais a comissão, em autoria material, de 2 [ dois ] crime de injúria agravada, correspondendo na lógica seguida pelo MP, a comissão de um tipo de crime relativamente a cada um dos dois agentes nos factos constantes do auto de noticia identificados.


Assim recortado o quadro legal que surge como pano de fundo, se assinala que o crime

de injúria agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 181.º , 132.º n.º 2, alínea l), 184.º e 188.º n.º 1 alínea a), todos do Código Penal, estando em causa, como o está, agente de autoridade, depende de queixa.

A queixa é um pressuposto processual, [pressuposto positivo da punição ], “cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser” .

O princípio da oficialidade do Ministério Público condiciona a sua legitimidade de atuação à apresentação prévia de queixa nos denominados crimes semipúblicos e nos crimes particulares.

Tal não sucedendo, falta a condição de procedibilidade …
1.2. Saneamento

2. Fundamentação de facto
 2.1 Factos provados


Da culpabilidade:


1. No dia 02 de Agosto de 2020, cerca das 12h15, os agentes da PSP … dirigiram-se à Rua …, por terem recebido notícia de que tinha sido perpetrado um crime de furto naquele local.
2.   Aí chegados, os agentes da PSP visualizaram … e a arguida …
3. Porque os mesmos correspondiam à descrição que tinha sido realizada dos autores do furto denunciado e eram suspeitos da prática do mesmo, os agentes da PSP abordaram … e solicitaram a identificação de ambos.
4. Como a arguida informou os agentes de que não dispunha da sua identificação consigo e pretendeu abandonar o local, os agentes da PSP solicitaram a comparência no local de uma patrulha policial e impediram que a arguida abandonasse o local antes da referida patrulha chegar.
5. Nesta sequência, a arguida dirigiu aos referidos agentes da PSP a seguinte expressão: “Vocês são uns filhos da puta”.

13. Os agentes … eram agentes da PSP, agentes da força pública, encontrando-se no exercício das suas funções e, ao agirem como agiram, praticavam actos próprios da sua missão, o que a arguida bem sabia.


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            Apreciação do recurso.

            Conforme resulta de fls 4 dos autos foi elaborado um “auto de notícia por detenção” da arguida, subscrito por BB …, do qual consta, além do mais, que: “pelas injúrias, ameaças e ferimentos recebidos, desejo procedimento criminal contra a …. O Agente AA, pelas injúrias e ameaças deseja procedimento criminal.”

            Este auto encontra-se apenas assinado pelo agente que o elaborou, BB.

            O processo prosseguiu tendo sido inquiridos em 10/09/2020 e 24/09/2020, ambos os agentes referidos na queixa, tendo, no final do respetivo depoimento, ficado a constar no depoimento assinado pelo agente BB …: “deseja procedimento criminal contra a arguida … pelas injúrias e ofensa à integridade física de que foi alvo e no depoimento assinado pelo agente AA … “o depoente informa que pretende procedimento criminal contra a arguida … pelos crimes de injúria e ameaça”.

            Posteriormente, foi deduzida acusação contra a arguida, em que foram identificados como ofendidos ambos os queixosos e veio, após julgamento, a ser proferida a decisão recorrida que considerou, em síntese, que, uma vez que a queixa apresentada não se mostrava assinada pelo agente AA …, faltava a condição de procedibilidade relativamente à prática pela arguida de um dos crimes de injúria agravada.

            Portanto, entendeu o tribunal a quo que pelo facto de o auto de fls 4 não se encontrar assinado por ambos os queixosos, … não pode considerar-se validamente exercido o direito da queixa por parte do agente AA ….

            Ora, não há dúvida que, da conjugação dos artigos 181º, 132º, nº 2, alínea l), 184º e 188º alínea a) do Código Penal o crime de injúria agravada, que justificou o procedimento criminal pelos factos constantes do auto de notícia, tem natureza semipública e, portanto, dependia de queixa do agente de autoridade injuriado, neste caso, o ofendido AA …, que não assinou o auto.

            …

            A questão, contudo, não tem a solução que o tribunal de primeira instância encontrou por duas razões: a primeira é que é manifesto que a falta de assinatura do auto de notícia por parte do agente AA … decorre de manifesto lapso; a segunda é porque a fls. 67 se encontra, de forma inequívoca, expressa a vontade de que tivesse lugar procedimento contra a arguida, manifestada atempadamente (isto é, no prazo de 6 meses) pelo agente AA ….

            No que respeita ao manifesto lapso, impõe-se dizer que um lapso é corrigível a todo o tempo (artigo 249º do Código Civil). E, tal como se faltar a assinatura do juiz que elabora uma sentença, a omissão pode ser suprida posteriormente, em nada retirando valor à sentença, também a falta de assinatura do auto - de que ninguém se apercebeu até ao julgamento -  onde é afirmada a vontade de ambos os agentes de que contra a arguida fosse instaurado procedimento criminal “pelos crimes de injúria e ameaça”, não pode justificar a decisão formal que conclui pela inexistência de queixa.

            …

            Ora, a partir do auto elaborado a fls. 4, todo o processo prosseguiu no pressuposto de que ambos os agentes pretendiam que contra a arguida fosse instaurado procedimento criminal, apesar de se encontrar apenas assinado por um dos agentes.

            As afirmações que constavam do auto vieram a ser reiteradas pelos agentes durante o processo e antes de decorridos 6 meses sobre os factos.

Vir agora o tribunal a quo após o julgamento levantar a questão que, manifestamente, se traduziu numa omissão, oportuna e atempadamente suprida, como se de uma questão de fundo e incontornável se tratasse, põe em causa o princípio da confiança que deve nortear toda a atividade judiciária.

            O princípio de confiança (fundamentalíssimo na ordem jurídica) há-de traduzir-se num “poder confiar” no sistema judicial, como condição básica de toda a convivência pacífica e de cooperação entre os operadores judiciários.

            Como ensina João Batista Machado in Obra Dispersa Volume II, 487: toda a conduta, todo o agir ou interagir comunicativo, além de carrear uma pretensão de verdade ou de autenticidade (…) desperta nos outros expetativas quanto à futura conduta do agente. Se assim é na vida em geral, muito mais o é no mundo do direito.

Ora, se o lapso foi corrigido no momento em que foi inquirido o agente … na sequência do que foi deduzida a acusação, que veio a ser recebida, tendo sido realizado julgamento sem que o tribunal referisse qualquer questão prévia ou incidental suscetível de obstar à apreciação de mérito (artigo 338º do CPP), viola a pretensão de verdade e de autenticidade que deve nortear todo o agir de qualquer operador judiciário, a consideração de que tal omissão no auto inicial é impeditiva do exercício do direito pretendido fazer valer com a apresentação da queixa.

Acresce que a afirmação de fls 67 por parte do agente AA … de que pretendia procedimento criminal contra a arguida, basta para que se considere validamente exercido o direito de queixa, que, aliás, não tinha que ser exercido obrigatoriamente no auto inicial, nem está sujeito a formalidades especiais (artigo 246º, nº 1 do CPP). De facto, como ensina Figueiredo Dias in Direito Penal Português - As consequências Jurídicas do Crime, Ed Notícias, página 675 a queixa pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar a procedimento criminal por um certo facto (…) tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam corretamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar a procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo susbtrato fático que descreve ou menciona.

Ora, quando ouvido durante o inquérito, o agente … referiu de forma expressa e inequívoca o seu desejo de que a arguida fosse sujeita a procedimento criminal pelos factos imputados, assim ratificando a afirmação feita pelo seu colega no auto de denúncia de que também ele (…) desejava procedimento criminal. …

Tanto basta para que o recurso deva, pois, obter provimento.

Uma vez que a sentença recorrida, não obstante a consideração previamente feita que levou à absolvição da arguida nos termos sobreditos, fez constar na matéria de facto toda a factualidade inerente ao crime de injúria de que foi vítima o agente AA …, não há que alterar a matéria de facto, restando apenas aplicar-lhe o direito, sendo certo que não há dúvida de que a arguida praticou um crime de injúria agravada p.p. artigos 181º, 184 e 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal - não se impondo tecer considerações adicionais relativamente aos elementos objetivo e subjetivo exigidos pelo tipo legal para além do referido na sentença recorrida - pelo qual tem de ser condenada.

            …

            Isto é, concluindo este Tribunal da Relação pela necessária condenação da arguida, impõe-se agora tirar as consequências jurídicas daí decorrentes v.g. proceder à escolha e determinação da medida concreta da pena.

            Não há, neste momento, que repetir as considerações feitas pelo tribunal a quo a propósito das normas matriciais para escolha e fixação da medida da pena (artigo 40º, 70º e 71º, do Código Penal) uma vez que são corretas relativamente à condenação pelo crime de que foi alvo o agente BB ….

 …

Assim, também por este crime à arguida deve ser imposta a pena de 4 meses de prisão.

A condenação por mais um crime implica a reformulação do cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º do Código Penal,  …

É que nos termos do artigo 77º, nº 1 do Código Penal, aplicável aos autos ex vi artigo 78º, nº 1 do mesmo código, na medida da pena (única) são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Ora a personalidade evidenciada pelos factos, aliada à consideração de que, pouco tempo depois, veio a arguida a ser condenada por um crime de roubo, não deixa dúvidas de que a arguida, não obstante a sua juventude, revela uma personalidade a carecer de correção.

           Isto é, não só a gravidade dos factos é significativa como a personalidade evidenciada pela arguida é reveladora de incorreta formação pessoal e de insensibilidade, que não aconselham a que lhe seja imposta uma pena de tal forma insignificante que desvirtue o efeito dissuador que a punição deve ter para cada condenado.

Ora, ambas as penas parcelares relativas aos crimes de injúria foram fixadas em 4 meses.

Assim, quer pelas razões de prevenção especial que se fazem sentir, quer pelas razões de prevenção geral, não se afigura conveniente fixar a pena única no limite mínimo, caso que poderia ser equacionado se a arguida demonstrasse já uma atitude de clara rejeição face aos comportamentos da sua vida passada e de empenhamento sério na mudança para o futuro, o que não se mostra evidente.

           Tanto basta para que, embora respeitando o sentir do juiz de primeira instância na fixação da pena resultante do cúmulo jurídico, se entenda dever a pena única ser fixada em 2 anos e 2 meses de prisão, a qual será suspensa por igual período nos termos e com os fundamentos decididos em primeira instância.

III.

DECISÃO.

Em face do exposto decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente:

- Declara-se que foi validamente exercido o direito de queixa por parte do ofendido … e reconhece-se legitimidade ao Ministério Público para o exercício da ação penal;

- Revoga-se a sentença recorrida na parte em que absolveu a arguida pela prática de um crime de injúria agravada p.p. artigo 181º, 132º, nº 2, alínea l), 184º e 188º, nº 1, alínea a) do CP por que vinha acusada na pessoa de AA … e condena-se a arguida … pela prática desse crime na pena de 4 meses de prisão.

- Reformula-se o cúmulo jurídico efetuado e condena-se a arguida … na pena única de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Em tudo o mais se mantém o decidido em primeira instância.

Sem custas.

Notifique.

                                               Coimbra, 8 de novembro de 2023


Maria Teresa Coimbra

Capitolina Fernandes Rosa

Helena Lamas