Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
349/21.9T8CNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: BALDIOS
REUNIÕES DE COMPARTES COM A VESTE FORMAL DE ACTAS DA ASSEMBLEIA DE COMPARTES
DELIBERAÇÕES DA ASSEMBLEIA DE COMPARTES
LEGITIMIDADE PASSIVA
CONSELHO DIRECTIVO
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30.º E 619.º, 1, DO CPC
ARTIGOS 1.º, 2.º, A), B) E C); 3.º, 4.º, 1; 6.º, 3, 4 E 9; 7.º; 10.º; 17.º, 1 E 2; 21.º, 1 E 2; 24.º, 1 E 2; 25.º, 1; 26.º; 28.º, 1; 29.º, 1; 30.º, 1; 32.º, 1 E 2 E 54.º DA LEI 75/2017, DE 17/8
Sumário: 1. Constituindo o processo uma sequência de atos dirigida à obtenção da decisão de mérito, a legitimidade passiva exprime a posição que o Réu deve ter para que possa contradizer o pedido - afere-se pela titularidade do interesse direto em contradizer, exprimido pela desvantagem jurídica (prejuízo) que lhe advirá da procedência da ação.
2. Se a relação material controvertida configurada na petição inicial se identifica com a ocorrência de reuniões em que participaram compartes que deliberaram nos termos exarados em atas com a veste formal de atas de Assembleias de Compartes, pretensamente viciadas - num contexto de disputa eleitoral interna entre membros de uma mesma comunidade local, segmentada em duas fações -, tratando-se, assim, de deliberações do próprio universo de compartes reunidos em Assembleia, é desta, e não dos compartes autonomamente considerados, o interesse em contradizer.
3. A legitimidade passiva para a ação pertence ao universo dos compartes, representado em juízo pelo Conselho Diretivo, por estarem em crise deliberações da Assembleia (cf. art.ºs 30º do CPC e 24º e seguintes da Lei n.º 75/2017, de 17.8).
Decisão Texto Integral:        *

           

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

           

            I. Em 09.11.2021, Conselho Diretivo dos Baldios dos Lugares de ..., AA, BB, CC e DD - os “AA. singulares, enquanto Compartes recenseados e votantes nas Assembleias de Compartes dos ditos Baldios de ...” - intentaram a presente ação declarativa comum contra EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV, WW, XX, YY, ZZ e AAA, pedindo, “com respeito a uma reunião ocorrida em 10.10.2021, pelas 9.30 horas, no lugar de ..., FREGUESIA ..., concelho ... (...), cujos participantes arvoraram a mesma em suposta assembleia de compartes dos Baldios de ...”, que a dita “reunião”, “a convocatória para a mesma”, “a respetiva ata” e “as deliberações nela tomadas e todos os atos daquela emanados e a ela sequenciais (nomeadamente: a eleição na mesma de uma mesa da assembleia com os respetivos titulares, a admissão de novos compartes, a aprovação de novo caderno de compartes, a aprovação de regulamento eleitoral e o regulamento assim aprovado, a marcação e a convocatória de uma nova assembleia de compartes para eleição dos órgãos dos baldios – a ter lugar a 14.11.2021, entre as 09,00h e as 13,00h, no mesmo local”, sejam dados “por impugnados, inexistentes, írritos e sem qualquer valor jurídico para esses pretendidos efeitos e, como tal, inexistentes, ou nulos, ou anuláveis, ou de toda a maneira, contrários à lei e ineficazes quanto aos compartes dos mesmos baldios”.

            Após explanação caraterizada ou identificada como “histórico” (subdividida em “histórico da criação da Assembleia de Compartes”; “histórico da propositura e tramitação de um longo, complexo e demorado processo judicial” e “histórico dos atos societários, e outros, prévios à tal reunião”) e que integrou 164 artigos da petição inicial (p. i.) (46 páginas), fundamentaram os AA. o pedido nos seguintes pretensos vícios adjetivos ligados à mencionada “reunião” de 10.10.2021[1]: ausência de convocatória efetuada nos termos do art.º 26º, n.º 1, da Lei dos Baldios (art.ºs 186º a 194º da p. i.); inobservância, na sessão, da putativa ordem de trabalhos (art.ºs 195º a 201º da p. i.); marcação da data da eleição sem prévia organização e atualização do caderno de recenseamento de Compartes (pelo Conselho Diretivo) e admissão de Compartes sem competência e em violação do disposto no art.º 7º, n.º 6 da Lei dos Baldios (art.ºs 202º a 212º da p. i.); duplicação, sem fundamento válido, da Assembleia de Compartes e da respetiva Mesa (art.ºs 213º a 215º da p. i.); marcação e convocatória da Assembleia de Compartes de 14.11.2021, sem prévio pedido ao Presidente da Mesa da Assembleia de Compartes (art.ºs 216º a 225º da p. i.); aprovação de novo regulamento eleitoral, sem estar na ordem de trabalhos e sem revogação do que fora aprovado por deliberação de 06.6.2021 (art.ºs 226º a 229º da p. i.) e falta de leitura e de aprovação da ata (art.ºs 230º a 236º da p. i.).

            Por requerimento de 24.11.2021, os AA. ampliaram o pedido (visando, designadamente, a declaração de nulidade das deliberações tomadas na reunião de compartes que decorreu no dia 14.11.2021, de cuja convocatória já haviam peticionado a declaração de nulidade no primeiro pedido) e suscitaram a intervenção principal (provocada) de BBB, CCC, DDD, BBB, EEE, FFF e GGG.

            Os Réus FF, II, LL, SS e UU - referindo a sua qualidade de “compartes, devidamente recenseados, com os nomes constantes no Caderno de Recenseamento de Compartes dos Baldios dos Lugares de ..., aprovados para os referidos baldios em reunião de Assembleia de Compartes de 06.6.2021 (...), em que os AA. nesta ação estiveram também presentes[2] - contestaram a ação, por exceção e impugnação, invocando, nomeadamente, a incompetência material, a ineptidão da p. i., a falta de interesse em agir, a ilegitimidade passiva dos Réus e a ilegitimidade ativa do Conselho Diretivo [afirmando, quanto a esta última exceção dilatória, que “tal como os AA. configuram a presente ação, é inquestionável que as deliberações foram tomadas pelos órgãos dos baldios e não pelos compartes em nome individual” e que “sendo o Conselho Diretivo atualmente eleito um órgão colegial tem necessariamente de estar em juízo; é a vontade do Conselho Diretivo e da Assembleia de Compartes e não a vontade de cada um dos compartes individuais que estiveram presentes na votação deliberativa que tem efeitos legais no universo dos baldios; as deliberações são dos órgãos e não de cada um dos compartes, pelo que a legitimidade passiva deve ser dos órgãos dos baldios e não dos compartes individuais; nas reuniões de 10.10.2021 e 14.11.2021 os compartes reuniram-se em assembleia e aí tomaram e aprovaram deliberações, resultando na eleição de novos e atuais órgãos sociais”]. Concluíram pela procedência da matéria de exceção ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da ação, porquanto, além do mais, foi validamente convocada e marcada a reunião da Assembleia de Compartes de 10.10.2021, constituída validamente a Assembleia e a respetiva Mesa e aprovado o Regulamento Eleitoral pela Assembleia de Compartes (por unanimidade); eventuais deliberações e decisões a tomar pelos órgãos dos baldios, legitimamente eleitos a 14.11.2021, não colidem e não podem ser antagónicas com quaisquer outras, já que os antigos órgãos deliberativos e executivos dos baldios deixaram de produzir deliberações ou tomar decisões, valendo tão somente as dos atuais órgãos eleitos que tomaram posse no dia 14.11.2021 perante a Presidente em Exercício da Mesa da Assembleia, assinando e sendo empossados todos os eleitos na lista única que se apresentou a sufrágio e que obteve 66 votos favoráveis num universo de compartes votantes de 68.

            AA. e Réus apresentaram novos articulados, reafirmando as suas posições e pedindo a condenação da parte contrária por litigância de má fé (fls. 459 verso, 506 verso e 546).

            Por despacho de 05.6.2022 admitiu-se a ampliação do pedido[3] e a intervenção principal.

            Por saneador-sentença de 10.01.2023, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo julgou improcedentes as exceções de incompetência material do Tribunal e de ineptidão da p. i.[4], e verificada a exceção de ilegitimidade passiva, absolvendo os réus e chamados da instância.[5]
Inconformados, os AA. apelaram formulando as seguintes conclusões:

            A) Ao abrigo do disposto no n. º 1 do art.º 421º do Código de Processo Civil (CPC), que consagra o valor extraprocessual da prova produzida no procedimento cautelar noutra ação, é admissível aos Compartes/Autores/Recorrentes/Apelantes valerem-se, na presente alegação – como fazem –, de transcrições das gravações de depoimentos de testemunhas e de partes, tais como produzidos, e registados no sistema informático Citius, na audiência de prova contraditória a que houve lugar, entre as mesmas partes, no procedimento cautelar que corre por apenso a esta presente ação declarativa de processo comum, que àquele é principal.

                B) O despacho-saneador-sentença recorrido demonstra labor, primor na escrita, espírito de síntese e clareza de exposição, padecendo, no entanto, a decisão de um prejuízo, em que se confunde mérito com forma, o qual ditou um erro de julgamento, que os Apelantes reputam de clamoroso, sendo que esse pré-julgamento do demérito dos próprios fundamentos da ação, de acordo com o critério de julgamento adotado, perpassa por toda a sentença recorrida, apesar de a mesma se qualificar como apenas de forma e não de mérito.

                C) Como o Tribunal a quo reconhece, os Autores configuram a ação a incidir sobre reuniões de pessoas e não em verdadeiras Assembleias de Compartes, as quais consideram inexistentes por falta de convocatórias válidas para as mesmas, por haver outros órgãos – os verdadeiros – em funções, e etc., ou seja, por não ter existido uma válida “transmissão de testemunho”, ou uma tradição ou trato sucessivo institucional, para os ditos “novos órgãos”, como detalhadamente explicam e fundamentam em factos concretos, e é essa configuração que os Autores conferem à ação, a que releva para aferir, neste caso, da ocorrência de interesse dos Réus, todos eles singulares, como parte legítima, em contradizer o que contra eles é pedido e a eles imputado – e não aos novos órgãos, os quais, na ótica dos mesmos Autores, e como estes alegaram e tentam demonstrar, inexistem.

                D) Ressalta de toda a sentença que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo de todo não apreciou a p. i. da presente ação e que, em reação à densidade da lide, reputada de desnecessária e imputada aos Autores, tentou o Julgador reduzir o processo a uma fórmula simples.

                E) Segundo a decisão recorrida, o âmago da lide consiste tão só numa mera impugnação de deliberações sociais emanadas de órgãos de gestão dos baldios, mas tal não corresponde à realidade dos factos, tais como alegados e descritos, ou seja, com a versão da realidade carreada para os autos pelos Autores, a qual tem outro, mais denso, enquadramento, densidade que o Tribunal no entanto reconhece, com respeito ao âmago da questão da legitimidade, no seguinte trecho: «Destes (considerações de natureza conclusiva ou de direito, assim como … juízos de valor ou … opiniões pessoais), por não terem carácter factual, não poderão ser colhidos quaisquer subsídios no exercício hermenêutico que há-de necessariamente presidir à identificação dos titulares do interesse em demandar e contradizer quando, como é o caso, a complexidade da matéria não os permite discernir sem dificuldade» (p. 18)».

                F) Contrariando a complexidade da lide conclui-se na decisão recorrida, que: «Da análise ora empreendida à PI, nas suas múltiplas asserções, é de concluir que, reduzida à sua essência, a relação material que subjaz à presente demanda se reconduz à disputa, entre compartes, pelos órgãos dos baldios dos Lugares de .... A polarização manifesta-se em termos muito simples: os compartes eleitos, e aqueles que os apoiam, preferem que se não realizem eleições até que o processo n.º 90/12.... esteja definitivamente decidido; o 5º réu e os compartes que o apoiam, demandam a realização de eleições, tendo, para tanto, agendado um ato eleitoral para o dia 14/11/2021, do qual, como sobressai da primeira ampliação do pedido, vieram a sair vencedores» (p. 29).

                G) Esta simplificação é artificiosa, reducionista e não apreende o cerne do que se discute e do que cumpre decidir na presente lide, nem tão-pouco tem em conta que os Réus não podem demonstrar uma válida transmissão de testemunho, a seu favor, a partir de órgãos cuja existência e válida constituição eles próprios negam em outra lide judicial com esta conexa e ainda não definitivamente julgada.

                H) A sentença, ao decidir pela ilegitimidade passiva dos Réus, pessoas singulares, padece de um vício que a enforma que consiste numa petição de princípio, e uma vez que pressupõe, como um dado adquirido, a existência/validade/eficácia/oponibilidade, relativamente ao universo dos Compartes, das reuniões mantidas entre os Réus em 10.10.2021, 14.11.2021 e 26.6.2022, pretendidas sindicar por meio da presente ação, interpretando-as como regulares atos da vida societária dos Baldios, que não são, pelo modo como os Autores configuraram a ação.

                I) Face à ilegitimidade passiva dos Réus pessoas singulares que organizaram essas reuniões e nelas participaram, tal como contemplada na decisão recorrida, considera-se que do lado passivo deveriam estar os órgãos pelos mesmos Réus criados e postos a funcionar por meio dessas reuniões, e assim se sanando a reunião, dita assembleia de compartes eleitoral, datada de 14.11.2021, de onde saíram os putativos novos órgãos, tudo sem audição e exame contraditória das provas da lide, mas apenas pela leitura das peças processuais e pelo menos de alguns dos documentos que as acompanharam.

                J) Ocorre uma contradição, intrínseca à decisão pelo modo como foi tomada, e uma vez que na sentença se validam as putativas eleições realizadas pelos Réus sem audiência contraditória das provas que haviam sido indicadas pelos Autores para demostrar que as reuniões foram juridicamente inexistentes para os fins pretendidos pelos mesmos Réus, e apesar de se considerarem os Apelantes, os “atuais membros” (dos Órgãos dos Compartes).

                K) Mesmo na ótica dos Réus, os órgãos emanados das reuniões dos Réus não seriam órgãos criados ex novo, posto que a sua existência e legitimidade (em sentido corrente da palavra) teria sempre de fundar-se numa válida “transmissão do testemunho”, tradição ou trato sucessivo institucional, a partir dos “atuais membros”, os aqui Apelantes, os quais continuam a ser os titulares dos órgãos em funções, como o Tribunal a quo reconhece.

                L) “Transmissão de testemunho”, ou tradição institucional, ou trato sucessivo institucional que não ocorreu, pelo modo como os Réus procederam, o que inclusivamente resulta da própria prova documental e por confissão já constante dos autos, pelo que as reuniões dos Réus não foram verdadeiras assembleias de compartes e não há novos órgãos de gestão dos baldios validamente constituídos pelos Réus.

                M) Mas que, a subsistirem dúvidas, sempre haveria de admitir-se aos Autores que tal demonstrassem em audiência contraditória de julgamento, em que fosse produzida toda a prova testemunhal e por depoimentos requerida, e em que fossem devidamente cotejadas todas as provas indicadas por ambas as partes, para, no final, então, decidir-se, em consciência e com conhecimento de causa, in totum, sobre o objeto do litígio.

                N) Os Réus são um conjunto de pessoas individuais a quererem manter o poder de facto ilícito que mantêm sobre o baldio, tentando tomar o controle dos órgãos validamente eleitos, por meio de eleições juridicamente inexistentes, inválidas, fraudulentas e inoponíveis aos Compartes, pelo que, não havendo órgãos constituídos, eles não existem e menos ainda deliberam.

                O) Alegação que na ótica dos Apelantes, resultou confirmada, demonstrada e reforçada, em audiência contraditória – e não apenas com efeitos meramente perfunctórios – sem qualquer contraprova, no julgamento do procedimento cautelar, e a que o Tribunal da Relação de Coimbra foi já patentemente sensível, nos autos do respetivo apenso, por meio de decisão singular proferida que anulou a decisão de 1ª instância.

                P) A decisão recorrida é também incoerente por se não dizer quem deva então estar do lado ativo.

                Q) Apesar de se desconsiderar a p. i., citam-se na sentença recorrida abundantes trechos da mesma, e dos documentos que a acompanharam, a fundamentar o decisório, havendo trechos que, apesar de expressamente se declarar não terem qualquer relevo para a decisão da causa, logo após se declara o contrário, considerando-se a mesma matéria, como tendo “o mérito de demonstrar” factos que foram afinal fundamentais para a formação da convicção do Mm.º Julgador; ou seja: apreciam-se questões de mérito, para no final se proferir uma decisão de forma.

                R) Como se diz na fundamentação da sentença (p. 31), in fine da parte que se agora passa a transcrever”: «…a relação material controvertida, tal como configurada pelos autores, reconduz-se à ocorrência de reuniões que aqueles consideram inválidas, em que participaram compartes que deliberaram nos termos exarados em atas com a veste formal de atas da Assembleia de Compartes. Se são ou não, esse é o quod erat demonstrandum, e contende já com o mérito da causa», considerando-se que avaliar se as reuniões dos Réus são ou não verdadeiras assembleias de compartes diz já respeito ao mérito da causa, mas depois diz-se e decide-se o contrário, ou seja, decide-se que as reuniões foram assembleias de compartes legítimas, e que delas saíram validamente novos órgãos eleitos, contra os quais haveria a ação de ter sido proposta, ocorrendo outrossim flagrante contradição e incongruência na invocação e transcrição das conclusões do acórdão da Relação do Porto de 10.11.2020, em que se assinala Jurisprudência antes favorável aos aqui Autores, que se condensa na seguinte asserção: – «sendo missão do poder judicial administrar a Justiça em nome do Povo (n.º 1 do art.° 202° da Constituição da República Portuguesa), aquele esforço interpretativo deve ser feito no sentido de procurar, na maximização do possível, dirimir materialmente os conflitos que lhe são colocados, evitando decisões de natureza formal».

                S) Os Réus são, pois, parte legítima, nos termos do disposto no art.º 30 º do CPC.

                T) Ocorrem porém nos autos os necessários pressupostos para que seja proferida decisão de mérito, mas apenas em sentido favorável aos Autores, atenta determinada matéria confessada pelos Réus nos articulados.

                U) Sendo verdade que os Autores, com respeito à reunião de 10.10.2021, preparatória das subsequentes, elencaram certos vícios procedimentais (graves) de que a mesma reunião padeceu, todavia, a causa de pedir e o pedido, sujeito a duas ampliações, não se subsume exclusivamente a tal.

                V) A verificada necessidade de a ação ser longa, densa e minuciosa, decorreu da circunstância de apenas ser possível compreender a verdadeira dimensão das ilegalidades, que se visam arguir, praticadas pelos Réus na reunião que dizem ter realizado em 10.10.2021, assim como nos atos preparatórios e convocatórios da mesma, assim como das reuniões de 14.11.2021 e 26.6.2022, que daquela derivam, descendo a algum pormenor, das seguintes realidades, entre outras, as quais o Tribunal a quo considerou despiciendas para a decisão a proferir, mas que o não são:

                - Do histórico da criação da Assembleia de Compartes dos Baldios de ..., FREGUESIA ..., concelho ...;

                - Do histórico da propositura e tramitação de um outro longo, complexo e demorado processo judicial, que ainda não terminou a ação ordinária n. º 90/12...., a aguardar julgamento no STJ.

                - Do histórico dos atos societários, e outros, prévios à reunião de 10.10.2021, praticados pelos Órgãos de Gestão dos Baldios, ou contra estes.

                W) Quatro dos Réus, os mentores e dirigentes dos demais, são os membros da Direção de uma entidade denominada Associação Cultural, Recreativa e para o Desenvolvimento dos Três Lugares de ..., Ré/Chamada como Ré, a par da Ré primitiva, A..., S. A., sociedade anónima com sede na Subestação do Parque Eólico de ..., na FREGUESIA ..., concelho ..., com o número de identificação de pessoa coletiva ..., doravante apenas A..., na ação ordinária n. º 90/12.....

                X) A Associação Cultural apossou-se do Baldio dos Autores em 2006/2007 e deu a melhor parte dele em arrendamento à A..., que, de má fé, com recurso inclusivamente a plantas topográficas manipuladas – cf. Parecer Técnico agora junto (“doc”. n. º 1 da presente alegação) – aí construiu e vem mantendo desde então, em seu proveito, um parque eólico, bem sabendo ambas as entidades que se tratava de um baldio, que apenas podia achar-se na posse e sob a gestão dos órgãos competentes, a Assembleia de Compartes e o Conselho Diretivo aqui Autor.

                Y) Na 1ª instância e no Tribunal da Relação de Coimbra foram proferidas decisões de demolição do parque eólico e de devolução do baldio aos Compartes, com pagamento de indemnizações, estando o caso ainda pendente de recurso, no STJ.

                Z) A Associação Cultural, sempre negou, ab initio, a válida existência dos órgãos representativos dos Baldios de ..., quando esta ocorreu, no ano de 2012, o que deu a conhecer desde o primeiro momento em que interveio na ação declarativa n. º 90/2012, continuando os dirigentes da Associação Cultural e Réus, nessa ação a negar, até à atualidade, a válida existência dos órgãos dos Baldios, como se extrai do que a mesma Associação invoca na sua alegação recursiva para o STJ, apresentada na Relação de Coimbra a 27.10.2021, de cuja Associação o Réu II é hoje, como desde o início, Presidente da Direção, o mesmo se aplicando a todos os demais membros da Direção da Associação, e Réus nesta ação.

                AA) A Duplicidade de comportamento, a insídia e o dolo dos Réus em toda esta situação, alegada pelos Autores, está no próprio âmago da presente ação, mas foi ignorada na sentença recorrida, tendo o Tribunal a quo considerado apenas como um normal exercício de Democracia a arrojada tentativa de subverter a legalidade nos Baldios, passando a respetiva gestão para o adversário que se apossou ilicitamente dos mesmos baldios, e que quer manter essa posse sem olhar a meios.

                BB) Na sentença, produzida pela Senhora Juiz então titular o Juízo de Competência Genérica de Cinfães, no procedimento cautelar apenso a estes autos, foi reconhecida a conduta dos Réus como contrária ao Direito, nomeadamente se assinalando o seguinte trecho, muito relevante (p. 19 da sentença proferida no procedimento cautelar): «Prosseguindo, tendo por presente a força atribuída ao contexto primeiramente oriundo do proc. n.º 90/12...., é certo que, a final, a consequência factual tal como descrita pelos Requerentes se afigura lógica, evidente e conforme às regras da experiência comum. / Estando a história dos terrenos baldios envolta em artifícios é, de facto e como reputado em sede de alegações, «brilhante», a estratégia de criação de novos órgãos sociais por parte dos envolvidos nas mesmas condutas que vieram a ser censuradas judicialmente, representando a sua existência um evidente e notório perigo».

                CC) Muito ao de leve, o mesmo também se reconhece na sentença recorrida e ora em apreço, ao considerar-se “lídimo” o “fito estratégico dos Autores”, ou seja: visar «acautelar o efeito útil das decisões judiciais que ali tenham sido e venham ainda a ser proferidas» (“ali” = «processo n.º 90/12....» (p. 30).

                DD) São patentes a subserviência da Associação e dos seus dirigentes à A... e aos interesses desta, e o contributo daquela para o embuste gizado para apossamento ilícito do baldio dos Compartes/Apelantes, que se verifica pelo menos desde 2006, ano da assinatura do contrato entre ambas, e até à presente data, sendo que tal cumplicidade/duplicidade entre as duas entidades, de que resultou a ilícita tomada de posse/o esbulho do baldio dos Compartes e aqui Apelantes, foi exaustivamente assinalada no Parecer de Jurisconsulto que agora se novamente juntou – “doc”. n. º 2 da presente alegação.

                EE) Em vista das decisões judiciais que lhes estavam sendo adversas, A... e Associação, entre si mancomunadas, congeminaram um segundo plano malicioso e doloso, destinado a garantir a continuação do seu domínio sobre o Baldio dos Compartes/Apelantes, que está na base da presente ação e do procedimento cautelar que lhe corre por apenso, e que vem a ser os dirigentes da Associação Cultural tomarem o controle dos órgãos eleitos dos legítimos utentes e administradores dos Baldios de ....

                FF) A presente ação, no fundo, radica na necessidade de garantir o efeito útil daquela demanda e das decisões judiciais a que a mesma conduziu, e de concretizar as efetivas demolição do Parque Eólico e a efetiva devolução e restituição da posse do Baldio aos seus Compartes, no seu statu quo prévio à intervenção ilícita de A..., e uma vez que não foi possível, infelizmente, alcançar durante a longa lide, uma alternativa consensual entre as partes litigantes que assegurasse a reposição da Legalidade e do essencial dos direitos dos Compartes.

                GG) A estratégia dos Réus de tomada de controle dos órgãos dos baldios não se esgota num momento, e apenas se compreende quando se analisa detalhadamente a evolução dos eventos que precedeu e conduziu às três reuniões impugnadas, a abranger duas Assembleias de Compartes legítimas, a de 06.6.2021 e a de 31.10.2021.

                HH) Os Autores enquadram o modo como correu Assembleia de Compartes de 06.6.2021, que os Réus fizeram por manipular e que em boa parte o conseguiram, como muito tumultuoso, a qual foi prenhe de atos de violência verbal, chegando a ameaçar a violência física, como fazendo parte do plano dos mesmos Réus para se apossarem ilicitamente dos Baldios por meio de eleições fraudulentas, sendo que, a título de mero exemplo, fizeram passar e aprovar nessa reunião, mediante violência verbal e atos impositivos e com uma votação em que não se respeitaram regras democráticas, um caderno de recenseamento de Compartes em que faltavam muitos nomes, para preparar, num segundo momento, um ato eleitoral manipulado.

                II) Na sentença recorrida não se negam o decurso dos acontecimentos e os documentos que o explicam. Pelo contrário, a eles se faz por diversas vezes expressa menção todavia, declarada e propositadamente “ignorou-se o histórico” para fundamentar a decisão a tomar, pelo que não foi possível apreender o cerne da atuação dolosa e maliciosa dos Réus em geral, e em especial dos seus dirigentes, os também membros da Direção da Associação, em detrimento da Lei e da Justiça.

                JJ) Querer tomar o domínio numa instituição cuja existência jurídica se nega, apenas com o intuito de manter o poder de facto e a posse pessoais sobre um terreno baldio, e assim “fintar” decisões judiciais já proferidas, configura claramente dolo, encontra-se até preenchido o tipo legal de crime, continuado, de usurpação de coisa imóvel – cf. n. º 1 do artigo 215 º do Código Penal, ou de outros crimes, posto que se assinalam os artifícios fraudulentos e a astúcia típicos da burla, de que se curará, em tempo, na instância própria.

                KK) Atenta a matéria já demonstrada nos autos, por documentos e por confissão dos Réus – ou, a não entender-se assim, determinando-se ainda a produção em audiência contraditória, da prova requerida pelos Autores – com respeito à reunião dos mesmos Réus, ocorrida em 10.10.2021, pelas 09,30 horas, no lugar de ..., FREGUESIA ..., concelho ..., junto à antiga Escola Primária aí sita, cujos participantes arvoraram a mesma em suposta assembleia de Compartes dos Baldios de ..., deverão as instâncias judiciais julgar a convocatória para a mesma; a respetiva ata; as deliberações nela tomadas e todos os atos daquela emanados e a ela sequenciais: nomeadamente a eleição na mesma de uma mesa da assembleia com os respetivos titulares; a admissão de novos compartes; a aprovação de novo caderno de compartes; a aprovação de regulamento eleitoral e o regulamento assim aprovado; a marcação e a convocatória de uma nova assembleia de compartes para eleição dos órgãos dos baldios – a ter lugar a 14.11.2021, entre as 09,00h e as 13,00h, no mesmo local; por impugnados, inexistentes, írritos e sem qualquer valor jurídico para esses pretendidos efeitos e, como tal, inexistentes, ou nulos, ou anuláveis, ou de toda a maneira contrários à lei e ineficazes quanto aos Compartes dos mesmos baldios; nomeadamente pela verificação subsidiária, como se invocou, das seguintes desconformidades com a Lei:

                - Ausência de convocatória efetuada nos termos do disposto do n. º 1 do artigo 26º da Lei dos Baldios e de outros preceitos aplicáveis.

                - Inobservância, na sessão, da putativa ordem de trabalhos.

                - Marcação da data da eleição sem prévia organização e atualização (pelo Conselho Diretivo, a quem compete), total e abrangente, do caderno de recenseamento de compartes; admissão de novos Compartes sem competência para tal (e sem prévia pronúncia do Conselho Diretivo legítimo e eleito, ante o qual foram apresentados pedidos formulados por vários postulantes, em número muito superior ao contemplado); admissão de novos compartes cujos requerimentos não continham qualquer fundamentação; tudo em violação, entre outros preceitos, do disposto no n. º 6 do art.º 7º da Lei dos Baldios.

                - Duplicação, sem qualquer fundamento válido, da assembleia de compartes e da mesa da assembleia, com criação alternativa de nova assembleia e de nova mesa, quando havia outra assembleia já marcada e uma mesa legítima, legalmente eleita, com violação dos artigos 21 º e 22 º da Lei dos Baldios, entre outros preceitos.

                - Marcação e convocatória de uma segunda assembleia de compartes (a assembleia dita eleitoral de 14.11.2021), em violação do disposto no n. º 4 do artigo 26 º da Lei dos Baldios, sem prévio pedido efetuado à pessoa do Presidente da Mesa da Assembleia de Compartes eleito e em funções para que realizasse ele próprio a convocatória.

                - Aprovação de um novo regulamento eleitoral, sem tal estar na ordem de trabalhos, para mais sem previamente revogar o que fora aprovado na Assembleia de Compartes de 06.6.2021.

                - Falta de leitura e de aprovação da ata, em violação, entre outros preceitos, do artigo 19º da Lei dos Baldios.

                LL) Atenta a matéria já demonstrada nos autos, por documentos e por confissão dos Réus – ou, a não entender-se assim, determinando-se ainda a produção em audiência contraditória, da demais prova requerida pelos Autores – com respeito à reunião dos mesmos Réus ocorrida em 14.11.2021, entre as 09,00h e as 13,00h, que teve lugar na antiga Escola Primária de ..., FREGUESIA ... e concelho ..., pretendida e arvorada pelos mesmos Réus (na pelos Autores também impugnada reunião prévia e preparatória) como assembleia de compartes para eleição dos órgãos dos Baldios de ..., e realizada com aparências de tal, não obstante as múltiplas ilegalidades de que padeceu a sua marcação, convocatória e realização –, dar a mesma reunião; a respetiva ata; as deliberações nela tomadas e todos os atos daquela emanados e a ela sequenciais: nomeadamente a realizada (ainda que fictícia) eleição dos órgãos dos baldios: mesa da assembleia, conselho diretivo e comissão de fiscalização, dito conselho fiscal, por impugnados, inexistentes, írritos e sem qualquer valor jurídico para esses pretendidos efeitos e, como tal, inexistentes, ou nulos, ou anuláveis, ou de toda a maneira contrários à lei e ineficazes quanto aos Compartes dos mesmos Baldios de ...; dar todas as deliberações e decisões que entretanto tiverem já sido ou vierem a ser tomadas pelos referidos órgãos dos baldios: mesa da assembleia, conselho diretivo e comissão de fiscalização, por impugnadas, inexistentes, írritas e sem qualquer valor jurídico para todos os efeitos e, como tal, inexistentes, ou nulas, ou anuláveis, ou de toda a maneira contrárias à lei e ineficazes quanto aos Compartes dos mesmos Baldios de ... e em representação dos mesmos.

                MM) Atenta a matéria já demonstrada nos autos, por documentos e por confissão dos Réus – ou, a não entender-se assim, determinando-se ainda a produção em audiência contraditória, da prova requerida pelos Autores – com respeito à reunião dos mesmos Réus ocorrida em 26.6.2022, entre as 09,30h e as 10,30h, que teve lugar na antiga Escola Primária de ..., FREGUESIA ... e concelho ..., pretendida e arvorada pelos réus como assembleia de compartes dos Baldios de ..., e realizada com aparências de tal – não obstante as múltiplas ilegalidades, já suscitadas nestes autos, de que padeceram as reuniões anteriores, datadas de 10.10.2021 e 14.11.2021, que a esta deram origem, deverão as instâncias judiciais, para além de tudo o mais peticionado na presente ação, ab initio e por efeito da primeira ampliação suscitada e determinada, dar a mesma reunião, a sua marcação, a sua convocatória a sua realização, a respetiva ata; a deliberação nela tomada e todos os atos que da mesma sessão tiverem emanado ou vierem a emanar e a ela forem sequenciais, por impugnados, inexistentes, írritos e sem qualquer valor jurídico para todos e quaisquer efeitos pretendidos pelos réus e, como tal, inexistentes, ou nulos, ou anuláveis, ou de toda a maneira contrários à lei e ineficazes quanto aos compartes dos mesmos Baldios de ... e em representação dos mesmos, tudo como invocado em articulado superveniente e segunda ampliação do pedido.

                NN) No tocante à Assembleia de Compartes – legítima – de 31.10.2021, cuja dinâmica consta da ata respetiva – cf. doc. 37 da p. i., e relativamente à qual nada se alude na sentença recorrida –, deverá a mesma contemplar-se e tomar-se em consideração na decisão a proferir, porquanto, e como se determinou já na decisão singular proferida na Relação de Coimbra, transitada em julgado, e que anulou a decisão proferida em 1ª instância que havia indeferido as requeridas providências cautelares, no âmbito do procedimento apenso a estes autos, considerar que a factualidade a ela atinente “tem interesse no julgamento da boa ou má fé das partes em todo o processo local”.

                OO) Atento tudo o exposto, a causa do pedido e o pedido não se circunscrevem, na presente ação, aos vícios procedimentais invocados e elencados de que padeceram as reuniões sindicadas.

                PP) Do início até final da ação se descreveu o comportamento insidioso, sedicioso, malicioso e doloso dos Réus, que, enquanto membros/dirigentes da Associação Cultural, e em comunhão de interesses e de propósitos com A..., ambas entidades inimigas dos Compartes, urdiram um plano para se manterem na posse de facto e de direito do Baldio dos Compartes, tratando-se de um ardil que configura um vício de grandes proporções e intensidade, que permanentemente e ab initio subjaz a todos os vícios procedimentais detetados nos descritos comportamento e atividade dos Réus, e ao abrigo do qual estes se movem, sendo a atitude dos Réus manifestamente dolosa.

                QQ) Perpassa essa invocação por toda a p. i., relativa ao ardil usado pelos Réus, que inquina tudo o que estes tocaram, e, como se disse acima, e aqui se reitera, o Tribunal reconheceu esse ardil, no julgamento em 1ª instância, do procedimento cautelar, mais concretamente na p. 19 do decisório, acima transcrito, assim como na sentença recorrida, ainda que de modo mais ténue, se contempla, ao considerar-se, como expressamente se fez, lídimo o fito estratégico dos Autores, obviamente assim se considerando correta a leitura que estes fizeram da realidade descrita, a tal propósito.

                RR) Devendo as instâncias judiciais tudo conhecer, interpretar, enquadrar e qualificar juridicamente, de acordo com o princípio Jura novit Curia, que traduz um poder-dever que o Juiz tem de conhecer a norma jurídica e de a aplicar por sua própria autoridade, no caso em apreço tanto mais assim se impondo, quanto o pedido original e as duas ampliações ao mesmo, tais como apresentados e admitidos, com caso julgado formal, conferem uma grande abrangência e amplitude, aí se elencando alguns concretos vícios, mas usando-se quanto a estes a palavra “nomeadamente”, com o sentido corrente de “principalmente”, não se excluindo, antes se prevendo e contemplando, portanto quaisquer outros que se enquadrem na factualidade invocada.

                SS) De acordo com o mesmo princípio, e para além do mais invocado, devem as instâncias judiciais conhecer e determinar, a impedir o sentido decisório tomado, uma desconsideração da personalidade jurídica dos Baldios nas reuniões efetuadas pelos Réus e sindicadas pelos Autores, desconsideração essa da pessoa coletiva ocorrida nas reuniões dos Réus que sai a reforçar a legitimidade passiva dos mesmos Réus singulares para os termos da presente ação, devendo a respeito aplicar as seguintes conclusões de Acórdão do STJ, de 07.11.2017, acima citado: «1. O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de proteção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros. 2. Assim, quando exista uma utilização da personalidade coletiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve atuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam».

                TT) Também o vício invocado no pedido “duplicação, sem qualquer fundamento válido, de assembleia de comparte e de mesa da assembleia, com criação alternativa de nova assembleia e de nova mesa, quando havia outra assembleia já marcada e uma mesa legítima, legalmente eleita, com violação dos artigos 21º e 22º da lei dos baldios, entre outros preceitos”, abrange no seu seio, pela sua generalidade e abrangência, todos os motivos e o móbil último, doloso, patentes na atividade dos Réus que a tal duplicação conduziram e que esta revela e traduz.

                UU) O vício confessadamente ocorrido de não ter sido pedida a convocatória da denominada pelos Réus assembleia eleitoral ao Presidente eleito da Mesa da Assembleia, é de per si suficiente para o Tribunal ad quem julgar procedente a ação e condenar os Réus no pedido.

                VV) Eventualmente completado pelo facto de os Réus também confessadamente não terem afixado editais convocatórios para as suas reuniões na aldeia do Peso, uma das três com direito ao Baldio, nem terem feito avisos nas missas para as mesmas, tudo como era uso dos Compartes.

                WW) Ou quando assim se não entenda, deverão os autos prosseguir para julgamento em 1ª instância, devendo em qualquer dos casos, e de todo o modo, ser desde já julgadas as partes legítimas e todas as exceções improcedentes.

                XX) A presente ação e o processo 90/2012, estão intimamente ligados, como ficou demonstrado, e também considerando que uma eventual improcedência da presente ação poderia seriamente fazer perigar os efeitos úteis daquela longa e inclemente peleja que se vem travando, em prol da Justiça, há mais de dez anos, por todos os motivos deve a presente ação proceder, por ser de Direito e a bem da Justiça.

                YY) Quanto à legitimidade passiva, só ficcionando a veracidade do que alegam os Réus nos articulados e a validade formal e material das suas reuniões – no que se não concede – se pode concluir – como ficou a constar do despacho-saneador-sentença – que «a legitimidade passiva para a presente ação pertence ao universo dos compartes, necessariamente representado em juízo pelo Conselho Diretivo, por estarem em crise deliberações da Assembleia» (p. 34), e assim “se proibindo” o Conselho Diretivo de estar do lado ativo, intentando uma ação judicial destinada a zelar para que não surtam efeito maquinações para substituir, ilegalmente, os órgãos em funções.

                ZZ) Revela uma total distorção da factualidade e alheamento das circunstâncias que caracterizam o litígio, sufragar, como se declara na sentença recorrida (p. 31) que «para que a relação material configurada pelos autores pudesse ser compreendida nos moldes em que preconizam ao defender a legitimidade passiva dos réus e chamados, teriam de alegar a ocorrência de reuniões totalmente desligadas do contexto comunitário dos baldios, em que não se pudesse deslindar a menor relação entre os seus intervenientes e o universo de compartes». Se tal ocorresse, faleceria um outro pressuposto processual, o interesse em agir. O Conselho Diretivo em funções e Autor nestes autos tem precisamente interesse em agir e legitimidade no caso vertente, porquanto os Réus se arvoraram, ilicitamente, como os novos titulares dos poderes de gestão sobre o baldio. É bem patente neste trecho o vício de que enferma, in totum, a sentença: petição de princípio.

                AAA) Com efeito, a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da ação possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e à posição que as partes têm na relação jurídica material controvertida.

                BBB) Por conseguinte, importa analisar qual é a posição relativa das partes face ao litígio tal como foi apresentado (antes de qualquer juízo de mérito), sendo que, no caso em apreço, a legitimidade ativa pressupõe um interesse direto em demandar face ao objeto da lide como foi delineado pelos Autores, logo o interesse (antagónico) em contradizer recai sobre os sujeitos, pretensos Compartes, mas membros-dirigentes da Associação Cultural, a quem são imputados determinados atos referidos na petição (como convocatórias e reuniões, tais como a ocorrida em 10.10.2021 e as que ulteriormente se lhe seguiram, nos dias 14.11.2021 e 26.6.2022), cuja inexistência jurídica e invalidade como assembleias de compartes são invocadas e pedidas sindicar, em suma são postas em causa, pelos Autores, o que impõe o apreço de basta prova indicada, que, segundo o que alegaram, faz com que não estejamos perante legítimas assembleias de compartes, salvo entendendo-se que existem já alguns factos demonstrados por documentos e/ou confessados, suscetíveis de permitir, neste momento processual, que seja julgada a ação procedente.

                CCC) Na realidade, tudo se passa num contexto diretamente relacionado com os Baldios e com o interesse de terceiros (aqui encabeçados pelos Réus, na dupla qualidade de pretensos Compartes e membros efetivos e ativos da Associação Cultural) relativamente à posse do baldio e à participação num alegado, mas ilícito e doloso procedimento de constituição de novos órgãos, sendo que a reunião havida no dia 10.10.2021, tal como as que lhe sucederam – e foram visadas nas subsequentes ampliações do pedido – configuram formas ínvias de alcançar o controlo do Conselho Diretivo e, do mesmo passo poder influir no efeito útil das decisões judiciais favoráveis já prolatadas aos aqui Autores na ação ordinária n.º 90/2012, a qual actividade ilícita, culposa e dolosa dos Réus, que cumpre atalhar, visa assegurar que a posse sobre o baldio não seja devolvida aos Compartes.

                DDD) Saber se a atividade levada a cabo pelos Réus efetivamente serviu tais fins, integra já o mérito, mas é, desde logo, inquestionável o seu interesse em contradizer, ou seja, apurar quem assume, substancialmente, as funções de legítimos representantes do universo de compartes é já questão conexa com a procedência ou improcedência da ação.

                EEE) Anote-se ainda que o entendimento, sustentado pelo Tribunal a quo, de que o universo de compartes, representado em juízo pelo Conselho Diretivo, devia estar do lado passivo em vez do lado ativo, afronta os direitos constitucionalmente garantidos ao vedar, na prática, o direito à tutela judicial efetiva, por parte dos aqui Autores, para além conduzir a um “beco sem saída” relativamente à definição dos sujeitos da lide.

                FFF) A sufragar-se o entendimento do Tribunal a quo – no que se não concede – esse “beco sem saída”, ou “nó-cego”, correspondente a uma impossibilidade de concretização processual dos direitos em causa, verificar-se-ia assim nesta lide como em todas as outras semelhantes um intolerável impasse, em que ficaria paralisada a possibilidade de órgãos legítimos de qualquer entidade reagirem contra simulacros de eleições fraudulentas destinadas a subverter o poder, em prossecução de interesses obscuros.

                GGG) Se, na perspetiva do Tribunal a quo, o Autor – Conselho Diretivo, que, nos termos da Lei, representa o universo dos Compartes em juízo [como se define, e bem – cf. sentença (p. 13 ): «Conclui-se, assim e linearmente, que a representação em juízo da comunidade local estabelecida em Assembleia de compartes é assegurada pelo Conselho Diretivo, que, atua em seu nome interesse»] – deve assumir a posição de Réu, quem deverá então figurar do lado ativo em defesa dos interesses do universo de Compartes de ..., cuja violação foi alegada na p. i.?

                HHH) Na sentença recorrida, em vez de facilitar o acesso à justiça, perante a dificuldade e a complexidade da situação fáctica controvertida, o Julgador eximiu-se de decidir de mérito, extinguindo-se a instância através de uma decisão dita de absolvição do réu da instância, mas a qual tem todos os efeitos de uma “absolvição do pedido”. Do modo como Tribunal a quo coloca a questão da legitimidade nesta ação, não há qualquer hipótese de a mesma voltar a ser intentada com o conteúdo que tem, e até porque não faz sentido o Conselho Diretivo que se considera legítimo e em funções, demandar o Conselho Diretivo-Sombra.

                III) Um Conselho Diretivo, que representa o universo dos Compartes em juízo, não pode sindicar a atividade e os comportamentos de pessoas que se lhe pretendem substituir de modo ilícito e culposo? Obviamente que isto se não pode aceitar: Summum Ius, summa iniuria!

                JJJ) Por todos os motivos apontados, e pelo mais que houver de ser suprido, de facto e de Direito, pelo venerando Tribunal ad quem, não pode (não deve) manter-se, por nenhum modo, o sentido da decisão proferida e sob apreço.

                KKK) Relativamente a uma eventual falta de capacidade judiciária do Conselho Diretivo enquanto Autor nestes autos, atento o conteúdo das deliberações ao abrigo das quais o fez e considerando a íntima ligação da presente ação com a ação 90/2012, pretendendo acautelar-se em ambas que a posse sobre um baldio seja restituída aos órgãos dos Compartes, eleitos a quem legalmente pertence, é salvo o devido respeito evidente que os poderes do Conselho Diretivo para intentar a presente ação principal e o procedimento cautelar que lhe corre por apenso, poderes que o mesmo conferiu a advogado, encontram-se ao abrigo e ratificados pelas deliberações de 2012, porquanto se enquadram na mesma defesa, tão intransigente como necessária, da posse do Baldio contra os mesmos intrusos: A..., Associação Cultural e os Dirigentes, os Membros e os colaboradores desta, em suma, contra os Réus, pelo que deverá revogar-se a decisão a respeito tomada na sentença recorrida, substituindo-se por outra que faça improceder a exceção a respeito invocada pelos Réus.
Os Réus responderam à alegação concluindo pela improcedência do recurso.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente, da (i)legitimidade dos demandados.          


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que consta do relatório que antecede e o seguinte:

            a) Relativamente à problemática que ditou a absolvição dos Réus da instância (ilegitimidade passiva), refere-se na decisão sob censura, nomeadamente:

            «(...) argumentam os réus que a configuração da ação não deixa dúvidas de que os autores visam a anulação de deliberações de órgãos dos baldios e não dos compartes individualmente considerados, o que os leva a concluir que inexiste uma relação material controvertida entre autores e réus, não sendo estes partes legítimas face aos pedidos formulados, mas sim o Conselho Diretivo.

                Responderam os autores, retorquindo que elegeram como réus precisamente os sujeitos que ficam diretamente prejudicados pelo pedido originário e sequentes ampliações, já que as reuniões que mantiveram não foram verdadeiras assembleias de compartes, pelo que delas não nasceram órgãos de gestão dos baldios. Donde, não poderiam ser estes órgãos parte legítima em lugar das pessoas singulares que os praticaram, já que só os réus, enquanto pessoas singulares, têm interesse em contradizer.

                Cumpre decidir:

                A legitimidade ad causam - enquanto pressuposto processual - é aferida (...), do lado passivo, pelo prejuízo que dessa procedência advenha (assim se aferindo o interesse direto em (...) contradizer), sendo que, em caso de dúvida, dever-se-á considerar partes legítimas os sujeitos da relação controvertida, tal como configurada pelo autor na PI (tudo, cf. art.º 30º CPC).

            (...)

            Tendo por referência a reunião ocorrida no dia 10.10.2021, “cujos participantes arvoram a mesma em suposta Assembleia de Compartes”, e em que participaram os 23 réus, pedem[6] que: / i. a reunião; / ii. a convocatória para a mesma; / iii. a respetiva ata; / iv. as deliberações nela tomadas; / v. todos os atos daquela emanados e a ela sequenciais, nomeadamente: a. a eleição na mesma de uma mesa da assembleia com os respetivos titulares; b. a admissão de novos compartes; c. a aprovação de novo caderno de compartes; d. a aprovação de regulamento eleitoral e o regulamento assim aprovado; e. a marcação e a convocatória de uma nova assembleia de compartes para eleição dos órgãos dos baldios – a ter lugar a 14.11.2021, entre as 09,00h e as 13,00h, no mesmo local.

            sejam dados por impugnados, inexistentes, írritos e sem qualquer valor jurídico para esses pretendidos efeitos e, como tal, inexistentes, ou nulos, ou anuláveis, ou de toda a maneira, contrários à lei e ineficazes quanto aos compartes dos mesmos baldios.

                No próprio pedido, os autores indicam os fundamentos da sua pretensão, elencando os vícios procedimentais de que que consideram estar eivada a reunião: / i. Ausência de convocatória; / ii. Inobservância da putativa ordem de trabalhos; / iii. Marcação da data da eleição sem prévia organização e atualização do caderno de recenseamento de Compartes (pelo Conselho Diretivo) e admissão de Compartes sem competência e em violação do disposto no art.º 7º, n.º 6 da LB; / iv. Duplicação, sem fundamento válido, da Assembleia e da respetiva Mesa; / v. Marcação e convocatória da Assembleia de Compartes de 14/11/2021, sem prévio pedido ao Presidente da Mesa; / vi. Aprovação de novo regulamento eleitoral, sem que esse assunto constasse da ordem de trabalhos e sem revogação do que fora aprovado por deliberação de 06/06/2021; / vii. Falta de leitura e de aprovação da ata.

                Poder-se-á afirmar, estritamente com base no pedido formulado e nos pilares argumentativos que o sustentam, que assiste razão aos réus quando afirmam que os presentes autos constituem uma típica ação de impugnação de deliberações. No caso, incide sobre decisões do órgão deliberativo de baldios, mas que, v.g., igualmente poderia incidir sobre deliberações da assembleia de sócios de uma sociedade comercial, de associados numa associação, ou de condóminos no âmbito de um condomínio. É indistinta destas na sua aparente configuração, bastando ver que todos os vícios que consideram fulminar aquele ato são, na sua maioria, de natureza procedimental, ou seja, que afetam a ritologia que, na sua ótica, deveria ter sido observada.

                Não é o facto de os autores, cautelarmente, utilizarem o vocábulo “reunião” (e não “assembleia”) para se referirem ao conjunto de pessoas que naquele dia 10/10/2021 se juntaram, que tem o condão de alterar a materialidade da tutela jurídica que almejam e que é, justamente, a de que as deliberações ali tomadas não produzam efeitos, independentemente da concreta qualificação jurídica dos vícios de que possam eventualmente enfermar.

                Portanto, prima facie, impunha-se a conclusão linear de que do lado passivo da instância deveria figurar, apenas, o Conselho Diretivo dos baldios, enquanto representante em juízo da comunidade local erigida em Assembleia de Compartes (...), já que em causa está a potencial eliminação da ordem jurídica de deliberações desse órgão, enquanto colégio, e não dos concretos membros que então o compunham. O que levaria a concluir, como decorrência lógica, que o Conselho Diretivo não poderia ser autor nesta ação, já que, nos termos da lei, deverá representar em juízo a comunidade local, necessariamente corporizada no órgão do qual emanaram as deliberações em sindicância. Isto, sob pena de chegarmos à solução absurda de vermos a comunidade local a impugnar judicialmente as próprias deliberações.

            (...)

            Ressuma de toda a alegação dos autores que o centro nevrálgico do dissídio que vem dividindo os compartes dos baldios de ... se prende com a construção de um parque eólico numa parte dos terrenos comunitários, levada a cabo pela sociedade A..., S. A.. Esta edificação remonta ao ano de 2006/2007 - portanto, muito anterior à constituição dos órgãos dos baldios - e foi viabilizada pela “Associação Cultural, Recreativa e para o Desenvolvimento dos Três Lugares de ...” - de que era Presidente o aqui 5º réu II - que celebrou com a aludida sociedade um contrato de arrendamento para fins industriais com esse desiderato.

                O enquadramento empreendido na petição inicial é igualmente profuso no que tange à descrição da tramitação e da decisão do processo judicial que veio a ser instaurado pelos (então já formalmente) compartes AA (aqui 1º autor), HHH, III (ora 3ª autora) e DD (4ª autora), a que se juntou o autor Conselho Diretivo, e que visava, entre o mais, a restituição dos baldios ao status quo ante, por via da demolição de todas as obras neles realizadas pela sociedade, ali co-ré B..., S. A..

                Como flui do alegado pelos autores, essa ação corre termos sob n. º 90/12.... e conheceu decisão que lhes foi globalmente favorável, uma vez que “foi julgado ineficaz em relação aos Compartes o contrato celebrado entre a Associação e A... tendo o baldio por objeto, e saiu esta condenada a entregar o baldio aos Compartes no estado em que se antes achava, mormente a demolir o Parque Eólico que nele erigiu, e a indemnizar os Compartes em quantia a liquidar, pela ocupação do solo” (cf. art.º 29º da PI). (...)

            Traçado o quadro global da ação judicial que os autores consideram axial para a compreensão da presente demanda, resta agora verificar em que concretos termos elas se entrecruzam, sempre de acordo com a factualidade constante da petição inicial que, como se disse, é a única que releva para determinação da legitimidade das partes de que aqui se cuida.

                Nos artigos 36º e 37º da petição inicial, os autores afirmam que o 5º réu é o “principal mentor e dirigente de todos os outros Réus”, que «têm por confessado objetivo “tomar de assalto” o Conselho Diretivo aqui Primeiro Autor, assim como todos os órgãos dos Baldios democraticamente eleitos, e obviar, por ardilosos e capciosos meios, ao cumprimento da sentença de ... naquele outro processo, agora confirmada e reforçada pelo acima dito acórdão de Coimbra.». E, para concretizar esse alegado propósito, pretende o citado réu II imiscuir-se, por si e interpostas pessoas, na composição social do Conselho Diretivo, desse modo passando a assumir, na prática, a simultânea posição de autor/interveniente (controlando o Conselho Diretivo) e réu (enquanto membro da Associação) do processo 90/12..... Tudo – rematam os autores no art.º 39º do seu articulado para – “assegurar, em perpétuo conluio com a maquievélica A..., o resultado pretendido por ambas as entidades, de que tudo continue na mesma no “Reino da Dinamarca” – apesar da podridão que se nele assinalou nas decisões de dois tribunais –, o que se transfere do imaginário shakespeariano para a realidade atual como sendo o dito reino o Baldio de ... (...).”

            Portanto, e simplificando, a tese dos autores é a de que o 5º réu, sendo comparte, representa na verdade os interesses da sociedade comercial A..., S. A. e, acolitado pelos demais réus, pretende assumir o controlo do órgão que representa em juízo a comunidade local para, desse modo, impedir a produção de efeitos da decisão judicial proferida no processo 90/12..... À cabeça, a demolição do parque eólico.

            (...)

            Dizem os autores que está em causa nestes autos, tão-somente, obstar à pretensa “tomada de assalto” dos órgãos dos badios e garantir o “efeito útil da decisão judicial ali proferida” (cf. inter alia, art.º 5º da PI). Ou seja, na sua ótica, a reunião havida no dia 10/10/2021, tal como as que lhe sucederam – e foram visadas nas subsequentes ampliações do pedido – configura formas ínvias de alcançar o controlo do Conselho Diretivo e, do mesmo passo, de poder influir no desfecho daqueloutra ação judicial, ou do efeito útil das decisões ali já prolatadas.

            (...)

            Nos artigos 52º a 61º, os autores alegam que foi apresentado ao presidente da Mesa da Assembleia um pedido subscrito por 29 compartes, datado de 21/12/2020 e encabeçado pelo aqui 5º réu, solicitando a realização de uma Assembleia de Compartes com a seguinte ordem de trabalhos: (i) atualização do Caderno de Recenseamento de Compartes; (ii) elaboração e aprovação do Regulamento Eleitoral e (iii) marcação de data para eleições dos órgãos dos baldios. Essa assembleia viria a ser convocada para o dia 06/6/2021.

            Os autores dedicam os artigos 62º a 125º à descrição do desenrolar da Assembleia de Compartes de 06/6/2021. A exaustiva descrição das vicissitudes ocorridas do decurso desta Assembleia, além de crivada de matéria conclusiva e não factual, não tem qualquer relevo para a decisão da causa, na medida em que não está em crise a validade da mesma e das deliberações nela emanadas. Tem, no entanto, o mérito de demonstrar o quão divididos estão os compartes e extremadas estão as suas posições no que concerne à demolição ou manutenção do parque eólico, com evidente reflexo na forma como é encarada a possibilidade de realização de eleições por parte dos seus atuais membros antes do trânsito da decisão no processo em que essa questão está a ser (ou foi) discutida. Basta atentar na descrição do art.º 80º:

                - II, que até agora tem vindo a gerir o baldio como quer, não tendo legitimidade para tal, como vê que a A... vai perder em tribunal, quer ajudá-la a ganhar conquistando ele o Conselho Diretivo ao Senhor AA, e por isso veio pedir eleições. Está no seu direito, mas, com o devido respeito, não é a pessoa indicada para tal.

                - O Conselho Diretivo presidido pelo Senhor AA não está agarrado ao poder. Apenas não marcou eleições por estar a aguardar o desfecho do processo em tribunal. Queria terminar a luta que iniciou, e que ainda não está concluída. Antes de o Tribunal dar a última palavra, verdadeiramente nada há de importante para fazer ou decidir.

            (...)

            - (...) está convencido, que quando A... estiver em vias de ter de desmantelar mesmo o parque eólico, será recetiva a celebrar connosco um bom acordo, para evitar o enorme prejuízo que para si resultaria da demolição do Parque Eólico.

                Por último, nos artigos 126º a 164º, os autores narram a sucessão de eventos ocorridos entre a assembleia de 06/6/2021 e a “reunião” por si primeiramente impugnada, que teve lugar no dia 10/10/2021. (...) expressamente afirmando que “II, como sempre generosamente financiado por A... e já sonhando em ser Presidente do Conselho Diretivo, almejando a dupla qualidade de Réu e Autor na lide sem quartel que se trava há 9 anos nos tribunais com o fito de conseguir parar, atirando areia para a engrenagem, a máquina judicial que inexoravelmente compele A... a cumprir a Lei, demolindo o Parque eólico construído à falsa fé, colocou de imediato em andamento, a todo o vapor, a sua própria máquina, eleitoral.” (art.º 140º).

            (...)

            Admitem que o 5º réu requereu ao Presidente da Mesa da Assembleia a marcação da Assembleia eleitoral para o dia 12/9/2021, o que fez mediante carta registada, subscrita por 32 pessoas, remetida no dia 03/8/2021. Admitem, outrossim, que o Presidente da Mesa não convocou a Assembleia no prazo de 15 dias a contar da receção dessa missiva, pelo que poderiam os Compartes solicitantes proceder à sua marcação (cf. art.º 197º).

                Mais aduzem que, através de edital afixado no dia 02/9/2021, foi marcada Assembleia de Compartes para o dia 31/10/2021, sendo um dos pontos da ordem de trabalhos a requerida marcação da eleição dos respetivos órgãos. No entanto, esse ponto da ordem de trabalhos veio a ser removido, após “decisão informal” do Conselho Diretivo na sequência da prolação do aresto da Relação de Coimbra, “de comum acordo com a Mesa da Assembleia de Compartes”, passando a constar, como terceiro ponto, a “prestação de informações relativas à eleição dos órgãos dos baldios”, afixando-se editais em conformidade com essa alteração, no dia 14/10/2021. É este o contexto factual que, segundo o alegado pelos autores, precede a reunião de 10/10/2021, da qual dizem apenas ter tido conhecimento concreto no dia 27/10/2021, data em que tomaram contacto com a respetiva ata, a lista dos 23 Compartes presentes (os 23 réus), um regulamento eleitoral e uma convocatória para uma nova assembleia, a ter lugar no dia 14/11/2021, tudo afixado num café local.

                Já os vícios que inquinam essa reunião, encontram-se alegados nos artigos 186º e seguintes da PI. São eles, invocados numa lógica subsidiária:

            (...)

            c. Deliberação de marcação do dia 14/11/2021 para a realização de eleições (a única que, segundo afirmam os autores, poderia ter sido potestativamente convocada pelos solicitantes), tomada antes do decurso dos prazos legais para que o Conselho Diretivo pudesse decidir sobre as atualizações requeridas ao Caderno de Recenseamento de Compartes, que, na sua perspetiva, tinha como dies ad quem o 24/12/2021 (artigos 202º a 212º);

            (...)

            e. Deliberação de uma data concreta para realização de eleições (14/11/2021), o que configura, na prática, a marcação de uma segunda Assembleia sem prévio pedido ao Presidente da Mesa da Assembleia em exercício desde 2012, único validamente eleito (artigos 216º a 225º);

            (...)

            Da análise ora empreendida à PI, nas suas múltiplas asserções, é de concluir que, reduzida à sua essência, a relação material que subjaz à presente demanda se reconduz à disputa, entre compartes, pelos órgãos dos baldios dos Lugares de .... A polarização manifesta-se em termos muito simples: os compartes eleitos, e aqueles que os apoiam, preferem que se não realizem eleições até que o processo n.º 90/12.... esteja definitivamente decidido; o 5º réu e os compartes que o apoiam, demandam a realização de eleições, tendo, para tanto, agendado um acto eleitoral para o dia 14/11/2021, do qual, como sobressai da primeira ampliação do pedido, vieram a sair vencedores.

                Mas esta causa não é, nem pode ser, a repetição do processo n.º 90/12.... e, por muito que se vise acautelar o efeito útil das decisões judiciais que ali tenham sido e venham ainda a ser proferidas, não se poderá confundir - para efeitos de legitimidade processual - o fito estratégico da ação, e que é lídimo, com a configuração da relação material que lhe dá esteio.

                Tão-pouco se poderá sobrelevar o alegado móbil que terá presidido à deliberação de 10/10/2021 para efeitos caracterizadores da matriz do litígio, já que não se trata de realidades incompatíveis: o facto de os autores invocarem a subjacência de interesses nefastos e estranhos aos baldios não significa que as reuniões de compartes realizadas com tais fitos não possam configurar verdadeiras assembleias, ainda que fulminadas pelos vícios por si invocados. Ou seja, essa alegação, por si só, não faz com que a relação material controvertida seja recondutível à impugnação (lato sensu) de decisões informais de um conjunto de pessoas que se decidiram reunir e, de harmonia com esse raciocínio interpretativo, concluir que só os réus e os chamados, e não a comunidade local, teriam interesse em contradizer.

                Essas considerações não se inscrevem no âmago do litígio, que, como se viu, se resume a saber se a assembleia de 10/10/2021 (e, por via dela, as que se lhe seguiram e aqui foram igualmente objeto de impugnação) enferma dos vícios de que os autores entendem estar eivada. Vícios que, segundo a configuração da relação material controvertida tecida da PI, não decorrem do facto de a reunião ter sido formada por um conjunto individualizado de pessoas com vista a assumirem o controlo da estrutura orgânica dos baldios, mas sim de sete concretas invalidades que identificam (inclusivamente no pedido), à cabeça, o da falta de convocatória. Mas uma coisa é o vício e outra, com que se não confunde, é o órgão do qual promana a deliberação viciada.

                Sintetizando este primeiro ponto: a relação material controvertida, tal como configurada pelos autores, reconduz-se à ocorrência de reuniões que aqueles consideram inválidas, em que participaram compartes que deliberaram nos termos exarados em atas com a veste formal de atas da Assembleia de Compartes. Se são ou não, esse é o quod erat demonstrandum, e contende já com o mérito da causa.

                Para que a relação material configurada pelos autores pudesse ser compreendida nos moldes em que preconizam ao defender a legitimidade passiva dos réus e chamados, teriam de alegar a ocorrência de reuniões totalmente desligadas do contexto comunitário destes baldios, em que se não pudesse deslindar a menor relação entre os seus intervenientes e o universo dos compartes. Mas, como avulta da alegação dos autores, não é isso que sucede na situação em espécie.

                Em primeiro lugar, resulta da leitura da PI que tudo se passa num contexto típico de disputa eleitoral interna entre membros de uma mesma comunidade local, segmentada em duas fações com posicionamento distinto quanto à instalação do parque eólico, ou quanto ao valor a receber por tal instalação. Independentemente dos desígnios que possam ter presidido à realização da Assembleia de 10/10/2021, a alegação dos autores é exuberante na descrição de uma dinâmica relacional de cariz institucional, de relação de compartes com os seus órgãos eleitos, mormente com a Mesa da Assembleia, quer antes, quer depois da sua realização.

                Com efeito, segundo o iter argumentativo da PI, a Assembleia precedente, de 06/6/2021, já havia sido convocada a pedido dos compartes conotados com a manutenção do parque eólico, sendo um dos pontos da ordem de trabalhos a marcação de eleições. Nessa Assembleia - cuja validade, recorde-se, não é sindicada in casu – foi apontada (mas não deliberada) a data de 01/8/2021 para a Assembleia eleitoral, que acabou por não ser convocada pelo Presidente da Mesa. Três dias após essa data, os compartes que pretendem a realização de eleições recorreram ao mecanismo do agendamento potestativo, solicitando ao Presidente da Mesa a designação de data para o efeito. Mas ela não foi marcada no prazo legal, assim devolvendo o direito de a convocar aos compartes que subscreveram a missiva em questão (...). Essa Assembleia veio a realizar-se no 10/10/2021, mas, de acordo com os autores, sem precedência de convocatória. Nessa data, deliberou-se a realização de Assembleia eleitoral no dia 14/11/2021 e, como alegado pelos autores, a ata e os documentos anexos, incluindo os editais de convocatória dessoutra Assembleia, foram afixados, ainda que, na sua perspetiva, não nos termos legais e sem observância rigorosa dos costumes.

                Em síntese, atendendo à matéria de natureza factual constante da PI, a Assembleia de 10/10/2021 não surge como um “corpo estranho” à comunidade local, antes brotando do inter-relacionamento institucional entre os compartes e a Mesa da Assembleia. Se foi ou não convocada, ou se padece de outros vícios, como se disse, não bole[7] com a natureza da relação que se nos apresenta, ainda que, a provar-se, tenha necessariamente consequências legais.

                Em segundo lugar, os autores deixam claro que a iminência de eleições não interessava ao Conselho Diretivo em funções. Sobressai a consignação, no art.º 273º PI, do seguinte texto da ata da Assembleia de 31/10/2021, que reproduz afirmações do Distinto Mandatário dos autores, em representação do Conselho Diretivo: “(...) não é de todo conveniente que o Conselho Diretivo eleito e em funções seja posto em causa e, eventualmente, em clima de guerrilha, substituído pelos próprios Réus condenados no processo em que lutamos pelos nossos direitos, nesta fase crucial do processo e antes deste findo, havendo todo o interesse em que a equipe que iniciou o processo o acompanhe até ao final que está já próximo.”.

                Esta citação releva enquanto epítome da querela candente entre os compartes, que se prende, em termos orgânicos, com a disputa entre aqueles que pretendem e os que não pretendem a realização imediata de eleições. (...)

            Mister é concluir, em face do exposto, que a descrição da relação material constante da petição inicial se coaduna, exclusivamente, com a sujeição a escrutínio judicial de deliberações emanadas de um órgão colegial dos baldios, (...) pretensamente viciada, e não da impugnação de um conjunto de declarações de voto anódinas, emitidas por pessoas singulares (...).

            (...) O que o n.º 3 do art.º 30º do CPC diz é que os titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade são os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor. Se, à luz da configuração do autor, esses sujeitos não tiverem interesse em demandar ou em contradizer, são partes ilegítimas.

            (...)

            Em síntese:

            (...) em termos formais, está em crise a impugnação de uma Assembleia de Compartes, ocorrida em 10/10/2021 e, como decorrência lógica, das que ulteriormente se lhe seguiram, nos dias 14/11/2021 e 26/6/2022.

                Ora, as deliberações dos compartes, como de qualquer outro órgão colegial, são consideradas deliberações do próprio universo de membros que o compõem, elevados em Assembleia, pelo que é desta, e não dos compartes autonomamente considerados, o interesse em contradizer. O mesmo é dizer que, a legitimidade passiva para a presente ação pertence ao universo dos compartes, necessariamente representado em juízo pelo Conselho Diretivo, por estarem em crise deliberações da Assembleia. É àqueles que compete pugnar pela sua manutenção na ordem jurídica ou, pelo menos, manifestar judicialmente a sua posição quanto a tais atos.

                Logo, os réus e os chamados, não têm qualquer interesse em contradizer, já que a procedência do pedido não bole[8] com decisões suas, enquanto pessoas singulares, mas sim do com uma decisão colegial que faz de si parte ilegítima nestes autos.

                In casu, não poderá a ilegitimidade ser sanada por via da intervenção principal do universo de compartes, representados em juízo pelo Conselho Diretivo, na medida em que, por um lado, a posição ativa que assumiu na instância não pode ser transmutada numa posição passiva e, por outro, não está em causa a preterição de litisconsórcio entre os réus/chamados e o Conselho Diretivo, tratando-se, por isso, de ilegitimidade singular insuprível (cf. Ac. da RC de 06/12/2011-proc. 1223/10.0TBTMR.C1, dgsi).

            Nos casos de ilegitimidade ativa e/ou passiva impõe-se que o tribunal se abstenha de entrar na apreciação do mérito da relação jurídica controvertida delineada pelo autor na petição inicial e absolva o réu da instância.

                A ilegitimidade consubstancia uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, a conhecer até ao despacho saneador, caso o não tenha sido em momento anterior nos termos conjugados dos art.ºs 576º, 577º al. e), 578º e 595º, n.º 1 a), todos do CPC.            

            Verificada, importa a abstenção do conhecimento do pedido quanto à parte ilegítima, que deverá ser absolvida da instância, ex vi art.º 278º, n.º 1 b). (...)»

            b) Na reunião/assembleia de compartes realizada em 26.6.2022 foi deliberada a “manutenção e funcionamento do parque eólico instalado nos terrenos baldios de ..., designado por baldio do ...”.[9]

            2. Cumpre apreciar e decidir.

            O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer (art.º 30º, n.º 1 do CPC). O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha (n.º 2). Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (n.º 3).

            3. Estabelece a Lei n.º 75/2017, de 17.8 (que aprovou o regime aplicável aos baldios e aos demais meios de produção comunitários, revogando a Lei n.º 68/93, de 4.9 / “Lei dos Baldios”[10])[11], nomeadamente:

            - A presente lei estabelece o regime aplicável aos baldios e aos demais meios de produção comunitários possuídos e geridos por comunidades locais integrados no setor cooperativo e social dos meios de produção, referido na alínea b) do n.º 4 do artigo 82º da Constituição (art.º 1º).

            - Para efeitos da presente lei entende-se por: «Baldios», os terrenos com as suas partes e equipamentos integrantes, possuídos e geridos por comunidades locais; «Comparte», pessoa singular à qual é atribuída essa qualidade por força do disposto no artigo 7º; «Comunidade local», conjunto de compartes organizado nos termos da presente lei que possui e gere os baldios e outros meios de produção comunitários [art.º 2º, alíneas a), b) e c), sob a epígrafe “Definições”].

            - Os baldios constituem, em regra, logradouro comum dos compartes, designadamente para efeitos de apascentação de gados, de recolha de lenhas e de matos, de culturas e de caça, de produção elétrica e de todas as suas outras atuais e futuras potencialidades económicas, nos termos da lei e dos usos e costumes locais (art.º 3º, n.º 1). Mediante deliberação da assembleia de compartes, os baldios podem ainda constituir logradouro comum dos compartes para fins culturais e sociais de interesse para os habitantes do núcleo ou núcleos populacionais da sua área de residência (n.º 2). O uso, a posse, a fruição e a administração dos baldios faz-se de acordo com a presente lei, os usos e costumes locais e as deliberações dos órgãos competentes das comunidades locais, democraticamente eleitos (n.º 3).

            - As comunidades locais não têm personalidade jurídica, sem prejuízo de terem personalidade judiciária, serem titulares de direitos e deveres e de se poderem relacionar com todos os serviços públicos e entidades de direito público e privado para o exercício de todos os direitos reconhecidos às entidades privadas que exercerem atividades económicas que não sejam contrárias à sua natureza comunitária (art.º 4º, n.º 1, sob a epígrafe “Regime aplicável”).

            - Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação por terceiros por qualquer forma ou título, incluindo por usucapião (art.º 6º, n.º 3). Os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, por terceiros, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei (n.º 4). A declaração de nulidade pode ser requerida: a) Pelos órgãos da comunidade local ou por qualquer dos compartes; b) Pelo Ministério Público; c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio ou de parte dele; d) Pelos cessionários do baldio (n.º 9).

            - Compartes são os titulares dos baldios (art.º 7º, n.º 1). O universo dos compartes é integrado por cidadãos com residência na área onde se situam os correspondentes imóveis, no respeito pelos usos e costumes reconhecidos pelas comunidades locais, podendo também ser atribuída pela assembleia de compartes essa qualidade a cidadão não residente (n.º 2). Aos compartes é assegurada igualdade no exercício dos seus direitos, nomeadamente nas matérias de fruição dos baldios e de exercício dos direitos de gestão, devendo estas respeitar os usos e costumes locais, que, de forma sustentada, devem permitir o aproveitamento dos recursos, de acordo com as deliberações tomadas em assembleia de compartes (n.º 3). Os compartes que integram cada comunidade local devem constar de caderno de recenseamento, aprovado e tornado público pela assembleia de compartes, nos termos da presente lei (n.º 10).

            - Para o exercício dos atos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos correspondentes imóveis, os compartes organizam-se em assembleia de compartes, bem como em conselho diretivo e em comissão de fiscalização eleitos por aquela, com as competências previstas na presente lei (art.º 17º, n.º 1). Os membros da mesa da assembleia de compartes, bem como do conselho diretivo e da comissão de fiscalização, são eleitos pelo período fixado pela assembleia de compartes em regulamento, por o mínimo de um ano e o máximo de quatro anos, renováveis, e mantêm-se em exercício de funções até à sua substituição, entendendo-se que são eleitos por período de quatro anos se outro prazo não for fixado (n.º 2).

            - A assembleia de compartes é constituída por todos os compartes constantes do caderno de recenseamento aprovado e anualmente atualizado, onde consta o nome e a residência de cada comparte (art.º 21º, n.º 1). A mesa da assembleia de compartes dirige-a com respeito por princípios democráticos, assegurando o seu bom funcionamento e respeitando a ordem de trabalhos (n.º 2).

            - Compete à assembleia de compartes, nomeadamente: a) Eleger a respetiva mesa; b) Eleger o conselho diretivo e a comissão de fiscalização, podendo destituí-los, com fundamento em especificados atos ilegais, não respeitadores dos princípios democráticos, ou de gestão manifestamente sem diligência devida, sendo em qualquer caso assegurado o direito de audição prévia, sem prejuízo dos demais instrumentos legais de defesa; c) Deliberar até 31 de dezembro de cada ano sobre a proposta da relação de compartes e da sua atualização anual a apresentar pelo conselho diretivo; q) Deliberar o recurso a juízo pelo conselho diretivo para defesa de todos os direitos e interesses da comunidade local relativos aos correspondentes imóveis comunitários, bem como dos direitos da comunidade de compartes decorrentes dos atos de gestão dos imóveis comunitários; r) Ratificar os atos da sua competência reservada se o conselho diretivo os tiver praticado sem autorização com fundamento em urgência (art.º 24º, n.º 1). A eficácia das deliberações da assembleia de compartes relativas às matérias previstas nas alíneas f), g), m), n), q), r) e s) do número anterior depende de aprovação por maioria qualificada de dois terços dos membros presentes (n.º 2).

            - A assembleia de compartes reúne ordinariamente duas vezes por ano e extraordinariamente sempre que for convocada (art.º 25º, n.º 1).

            - A assembleia de compartes é convocada por editais afixados nos locais de estilo e por outro meio de publicitação usado localmente, podendo complementarmente ser convocada por carta não registada, comunicação eletrónica e por entrega pessoal da convocatória (art.º 26º, n.º 1). As reuniões da assembleia de compartes são convocadas pelo presidente da respetiva mesa, por decisão da mesa da assembleia de compartes, ou a solicitação escrita, dirigida ao presidente da mesa: a) Do conselho diretivo; b) Da comissão de fiscalização; c) Do mínimo de 5 /prct. dos respetivos compartes (n.º 3). Se a assembleia de compartes não for convocada no prazo de 15 dias a contar da receção do pedido previsto nas alíneas do número anterior, com a ordem de trabalhos proposta, podem os solicitantes convocá-la (n.º 4).

            - O conselho diretivo é composto, em número ímpar, por um mínimo de três e um máximo de cinco compartes, eleitos pela assembleia de compartes de entre os seus membros pelo sistema de lista completa (art.º 28º, n.º 1).

            - Compete ao conselho diretivo, designadamente: a) Dar cumprimento e execução às deliberações da assembleia de compartes; b) Elaborar a proposta da relação de compartes e a sua atualização anual a submeter à assembleia de compartes para que possa deliberar sobre ela até 31 de dezembro de cada ano; h) Em caso de urgência, recorrer a juízo e constituir mandatário para defesa de direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio ou baldios e submeter estes atos a ratificação da assembleia de compartes (art.º 29º, n.º 1). 

            - A comissão de fiscalização é constituída por três ou cinco compartes, eleitos pela assembleia de compartes de entre os seus membros, de preferência com conhecimentos de contabilidade (art.º 30º, n.º 1).

            - A mesa da assembleia de compartes e os restantes órgãos das comunidades locais são eleitos pelo sistema de lista fechada pelos compartes constantes no caderno de recenseamento (art.º 32º, n.º 1). A eleição pode decorrer em assembleia de compartes convocada para o efeito, ou por outro método previamente aprovado sob forma de regulamento em assembleia de compartes (n.º 2).

            - Cabe aos tribunais comuns territorialmente competentes conhecer dos litígios que, direta ou indiretamente, tenham por objeto terrenos baldios ou outros imóveis comunitários, designadamente os referentes ao domínio, à delimitação, à utilização, à ocupação ou apropriação, à cessão de exploração, bem como às deliberações, ações ou omissões dos seus órgãos, aos direitos e responsabilidades contratuais e extracontratuais, aos contratos celebrados com entidades públicas no âmbito da presente lei, bem como aos direitos que os órgãos das comunidades locais sobre estas disponham e que sejam diretamente decorrentes da presente lei (art.º 54º).

            4. Constituindo o processo uma sequência de atos dirigida à obtenção da decisão de mérito, a legitimidade exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o, havendo que aferir pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), isto é, pelo interesse direto em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, e pelo interesse direto em contradizer, exprimido pela desvantagem jurídica que advirá para o réu da sua perda (ou, considerado o caso julgado material formado pela absolvição do pedido, pela vantagem jurídica que dela resultará para o réu).[12]

            A legitimidade processual é um pressuposto processual e, portanto, uma condição de admissibilidade da ação; reporta-se à relação de interesse das partes com o objeto da ação; afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, na petição inicial – tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da ação possa advir para as partes face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e os fundamentos da ação, têm na relação jurídica litigiosa, tal como a apresenta o autor na petição inicial.

            Sendo o objeto inicial do processo constituído pelo pedido deduzido pelo autor e respetiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objeto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade da ambas as partes. Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular da alegada relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação.[13]

            5. Pesem embora as consideráveis transformações ocorridas na sociedade Portuguesa, principalmente, desde o início da segunda metade do séc. XX, continua inteiramente válida aquela que foi a doutrina mais autorizada e dominante do séc. XX em matéria de baldios, que os identificava como «uma fortuna de propriedade comunal» da «coletividade indivisível dos moradores vizinhos a quem está afeta a respetiva fruição»[14]; «propriedade comunal dos moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas»[15] ou, no dizer dos primeiros diplomas publicados após a revolução de Abril de 1974, «terreno insuscetível de apropriação individual, usufruído coletivamente por uma comunidade segundo o direito que lhe é conferido pelos usos e costumes e que a cada geração compete transmitir, sem perda de usufruto, às gerações que se lhe seguem»[16].

            6. Abandonada desde há várias décadas (porventura desde meados do séc. XX) a tradicional função económico-social dos baldios[17] [18] - que o art.º 1º do DL n.º 39/76, de 19.01, definia como “os terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas” -, passou depois a entender-se, numa nova “leitura” da realidade e no contexto das transformações operadas em Portugal na segunda metade do século XX, de algum modo acolhidas na Lei n.º 68/93, de 04.9, que a única forma (legal) de administração dos baldios era através dos órgãos democraticamente eleitos (art.º 11º, n.º 1) e que tal administração só poderia ser “devolvida” aos compartes (cf. os art.ºs 3º do DL n.º 39/76, de 19.01[19] e 11º, n.º 2 da Lei n.º 68/93, de 04.9[20]) se se organizassem para o exercício dos atos de representação, disposição e fiscalização, “através de uma assembleia de compartes, um conselho diretivo e uma comissão de fiscalização”.[21]

            7. Em matéria de baldios e ao longo dos séculos existiram sempre enormes abusos[22] e imensa polémica, hoje porventura de menor intensidade, ante uma talvez progressiva menor discrepância “law in books - law in action”, quiçá, em linha com o desaparecimento dos baldios enquanto “logradouros comuns dos povos”…

            8. É também relativamente pacífico o entendimento de que os baldios são terrenos que só podem ser usados ou fruídos, para satisfação de necessidades privadas, pelos indivíduos pertencentes a determinada comunidade local; pertencem aos próprios utentes ou compartes, em regime de propriedade coletiva (também denominada comunhão de mão comum e que existe quando a dois ou mais indivíduos pertença, em contitularidade, um direito único sobre um património global afetado  a certo fim).[23]

            9. Sublinha-se a (recorrente) discrepância, neste particular domínio social e jurídico, entre a “law in books” e a “law in action”, por estar sobretudo em causa “a necessidade de uma estreita relação a existir entre a lei (estadual) que se quer aplicar e as múltiplas situações e práticas jurídicas locais”, cujas especificidades nem sempre foram ou são adequadamente apreendidas pelo legislador, o que, naturalmente, se repercute em soluções ou arranjos práticos, não raras vezes, avessos à justiça, à razoabilidade e ao interesse geral.[24]

            10. Sobreleva, pois, a finalidade de dar aos terrenos ainda baldios a utilização adequada e possível face às circunstâncias e condicionalismos sociais e económicos do tempo presente, com uma adequada regulação da utilização dos “meios de produção” comunitários[25] tendo em vista o desenvolvimento harmonioso das regiões e uma justa e equitativa repartição da riqueza comunitária.[26]    

            11. O legislador optou por um progressivo alargamento do conceito/definição de “comparte”, suficientemente evidenciado na Lei n.º 68/93, de 04.9 (redação primitiva)[27] e que teve novo e redobrado “incremento” com as Leis n.ºs 72/2014, de 02.9 e 75/2017, de 17.8, conformando-se e ajustando-se, obviamente, às novas condições económicas e sociais.[28]

            Nestes últimos diplomas, antolha-se evidente um claro propósito de alheamento e distanciamento relativamente ao que constituiu a matriz e o significado originários do conceito, porquanto poderão agora “ser” compartes os assim “designados” pela Assembleia de Compartes (maxime, art.º 7º da Lei n.º 75/2017), ainda que verificada uma ínfima ou inexistente ligação ao correspondente logradouro comum

            12. A defesa dos direitos ou interesses legítimos da comunidade relativos ao correspondente baldio ou baldios tem sido cometida aos respetivos órgãos representativos e são ainda muitas as situações em que alguns particulares ousam reivindicar parcelas baldias, arrogando-se, por último, donos de imensas áreas até ao cume das montanhas, pretendendo assim beneficiar, abusiva e indevidamente, dos rendimentos propiciados pela exploração de energia eólica.[29]

            Neste contexto, importa enaltecer o empenho e o esforço daqueles que lutam pela defesa, preservação e manutenção deste património comum.[30]

            13. Dizia Manuel de Andrade que os baldios são hoje a mais importante classe de coisas comuns que existe entre nós, sendo até difícil encontrar qualquer outro exemplo de coisas deste género[31], entendimento que permanece atual.

            Na realidade dos baldios, ainda que nesta restrita ou específica aceção, potencialmente, surgem conflitos emergentes do uso, fruição e administração de recursos partilháveis e escassos, mas o conflito, a discussão e a polémica têm estado igualmente presentes aquando da definição dos sucessivos regimes jurídicos, a que não têm sido alheias contrastantes e antagónicas intenções políticas e ideológicas.[32]

            Perante os problemas e as dificuldades de sempre[33], importará, à luz do quadro jurídico atual e de uma adequada leitura da realidade - compreendendo e relevando as diferenças -, caminhar no sentido da preservação deste património ancestral, respeitando o ambiente (em particular, a floresta e a biodiversidade) e contribuindo para uma justa e equitativa distribuição da riqueza comunitária.

            14. Também neste domínio, caberá aos tribunais encontrar as soluções práticas exigidas pelo direito enquanto validade normativa, as respostas normativamente adequadas às circunstâncias do caso concreto e aos interesses em presença - a resposta concreta que melhor corresponda aos interesses da vida[34], pois “o objeto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objetivação cultural (…), mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo (…), o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o ´prius` problemático-intencional e metódico”.[35]

            15. Desde a legislação de 1976 (DL n.º 39/79, de 19.01) que a gestão dos terrenos baldios deverá fazer-se em moldes democráticos (gestão democrática dos baldios, direta e autónoma), através de órgãos constituídos pelos próprios compartes, máxime, a partir do momento em que reunissem em assembleia e procedessem à eleição de um conselho diretivo (cf., sobretudo, o art.º 6º do referido DL).

            Estamos perante estrutura(s) organizada(s) da comunidade dinâmica e mutável dos compartes[36],  relevando o princípio da igualdade dos compartes na posse e na gestão comunitárias dos baldios (art.º 7º, n.º 3, da Lei n.º 75/2017, de 17.8).

            16. A prossecução da plena autonomização dos baldios envolve o reconhecimento de poderes de autorregulação a vários e relevantes níveis da vida democrática (nomeadamente, regulamento interno, disciplinar ou outros respeitantes à comunidade e logo que se enquadre nas competências da assembleia de compartes).

            Para o exercício de atos de representação, disposição, gestão e fiscalização, os compartes organizar-se-ão em assembleia de compartes, conselho diretivo e comissão de fiscalização, órgãos estes a serem eleitos democraticamente, tendo os mandatos a duração que a assembleia de compartes vier a fixar, sendo o prazo supletivo de 4 anos (cf. art.º 17º da Lei n.º 75/2017).[37]

            17. A situação em análise não é isenta de dificuldades.

            Sabemos que a polémica e os abusos nunca se desligaram do mundo dos baldios.

            No presente caso, de dominância adjetiva, esta Relação verificou e analisou tudo quanto se expende nos autos.

            Porém - como não poderá deixar de ser -, irá atender ao concreto objeto da lide configurado na p. i., às posições e ao interesse das partes e à concreta (e única) questão (adjetiva) decidida em 1ª instância, a reapreciar, naturalmente, atentos os normativos pertinentes e a correspondente realidade pretérita e atual.

            18. Numa perspetiva global, dir-se-á, ainda, que a solução, quer para as questões de índole adjetiva (a dilucidar neste recurso) quer para a problemática substantiva (e dos interesses), será necessariamente ditada pela Lei, conjugada com a particular e dinâmica realidade (e vicissitudes) da Assembleia de Compartes dos Baldios em questão.

            E não será porventura excessivo dizer que o que seja definitivamente decidido nas ações judiciais (em curso), se, por um lado, obriga os seus destinatários (art.º 619º, n.º 1, do CPC), por outro lado, não poderá entorpecer o que, respeitando o interesse comum, constitua posição maioritária e validamente expressa dos Compartes dos Baldios.

            Ademais, qualquer eventual “desvio do fim a que os baldios se destinam, qual seja a sua colocação ao serviço das comunidades respetivas[38], continua a encontrar na Lei adequada resposta ou solução (veja-se, por exemplo, o estatuído no art.º 6º da Lei n.º 75/2017 e, nomeadamente, os factos 40. a 45. e 60. dados como provados no processo 90/12.... e as consequências nele extraídas / fls. 129 e seguinte).

            19. Ante a descrita perspetiva das coisas, fica afastada uma qualquer “visão maniqueísta” dos compartes (que os qualifique e/ou distinga como “compartes genuínos e bem-intencionados, “verdadeiros” compartes, aqueles “que se tentaram travestir de Compartes”, etc.), de resto, incompatível com o referido princípio da igualdade dos compartes e a natureza dinâmica e mutável da comunidade por eles constituída.

            20. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, face ao pedido deduzido pelos AA. e à factualidade que o suporta, afigura-se inequívoco que as reuniões a que os AA./recorrentes se reportam são “reuniões de compartes dos baldios dos Lugares de ..., unidos sob essa veste e na mesma qualidade[39] e para os fins das questionadas assembleias de compartes.

            Em causa, pois, reuniões/assembleias de compartes/titulares dos baldios (art.º 7º, n.º 1), necessariamente, ligados ao respetivo património comum (os baldios) e integrados na comunidade (local) daqueles três lugares.

            Nessas reuniões de compartes foram produzidas deliberações, pelos órgãos colegiais próprios e não por pessoas a título individual (não participando, ou não sendo titulares, de qualquer relação jurídica que de algum modo pudesse ser afetada pela decisão do presente litígio), deliberações que os AA./recorrentes pretendem impugnar (“nestes autos principais e nos do procedimento cautelar”), tal como configuraram o pedido, invocando diversos vícios, principalmente, no plano formal.

            Não são os réus singulares que têm interesse em contradizer na presente demanda - “os réus e os chamados, não têm qualquer interesse em contradizer, já que a procedência do pedido não bole com decisões suas, enquanto pessoas singulares, mas sim com a decisão colegial, que faz de si parte ilegítima nestes autos” (cf. decisão sob censura).

            Os réus/recorridos aturaram como compartes, em assembleias de compartes de que resultaram deliberações sequentes a determinados procedimentos.

            Daí que também se conclua pela ilegitimidade passiva dos demandados, porquanto importa(va) trazer ao lado passivo, apenas, a respetiva entidade colegial.

            Esta, pois, a resposta que cremos decorrer com suficiente clareza do expendido e deduzido na p. i. conjugado com os dispositivos legais aplicáveis (designadamente, os art.ºs 30º do CPC e 24º e seguintes da Lei n.º 75/2017), e que se antolha corroborada pela realidade que se deixa entrever, não se vislumbrando qualquer incongruência que permita considerar a (descrita) realidade processual como absurda ou inadmissível.[40]

            21. No que concerne à capacidade judiciária do A. Conselho Diretivo, afigura-se inteiramente defensável o entendimento para que se propende na decisão recorrida[41], atento o pedido e a causa de pedir da presente ação, no confronto com o teor da concreta deliberação do ano de 2012 e o preceituado nos art.ºs 24º, n.ºs 1, alíneas q) e r), e 2 e 29º, n.º 1, alínea h), pelo que, em princípio, seria necessária a intervenção da Assembleia de Compartes, no sentido da ratificação, ou não, do recurso à via judicial, por parte do Conselho Diretivo, não se tratando, in casu, de ratificar/confirmar/validar atos de execução de uma anterior deliberação daquele órgão, em matéria da sua competência reservada.[42]

            22. Relativamente ao fundo/substância do(s) litígio(s) – não compreendido no objeto deste recurso, mas cuja persistência ou delonga, com elevada verosimilhança,  implicará redobrado prejuízo para o interesse comunitário, desde logo, em razão dos (já) admitidos “desmedidos gastos”...[43] – os compartes (nas palavras dos próprios AA.) não enjeitam que “o que sempre pretenderam foi que fossem reintegrados nos seus direitos sobre o baldio, que os contratos passassem para seu nome, e que fosse estipulada uma renda justa, a ser paga aos órgãos dos baldios”, almejando, todos (ou seja, o universo/comunidade dos compartes)[44], “uma plena reintegração, sem prejuízo para ninguém” e “a tão necessária pacificação das populações desavindas”![45]

            Este, sim, o (único) desiderato que, no respeito pelo quadro jurídico vigente, cumpre prosseguir.

            23. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.  

            Custas pelos AA., sem prejuízo da isenção prevista nos art.ºs 16º, n.º 5 da Lei n.º 75/2017, de 17.8, e 4º, n.º 1, alínea x), do Regulamento das Custas Processuais.


*

12.9.2023



[1] Depois repetido e sintetizado em texto que se seguiu ao “pedido” supra identificado.
[2] Concluindo: “(...) pelo que beneficiam os réus, e destarte o requerem, da ISENÇÃO DE CUSTAS tal como previsto no n.º 5 do artigo 16º da Lei 75/2017, de 17 de agosto (...) e alínea x) do n.º 1 do artigo 4º do DL 34/2008, de 26 de Fevereiro (...)”.

[3] Refere a decisão de 10.01.2023: na “ampliação do pedido formulada no dia 13/10/2022 é peticionada a nulidade da deliberação tomada na reunião de 26/6/2022. / Sendo ambos os pedidos um mero desenvolvimento do primeiro, há que concluir, pelas mesmas razões que acima de expendeu, que os autores alegam os factos jurídicos essenciais conducentes ao efeito jurídico almejado.”
  A dita “ampliação do pedido”, apresentada em 12.10.2022, remata: «REQUEREM OS AUTORES QUE SEJA ADMITIDA UMA SEGUNDA AMPLIAÇÃO DO PEDIDO QUE FORMULARAM POR MEIO DA PRESENTE ACÃO, NOS TERMOS DO N. º 2 DO ARTIGO 265º DO MESMO DIPLOMA E DEMAIS PRECEITOS APLICÁVEIS, POR MEIO DA QUAL, PARA ALÉM DE TUDO O MAIS PETICIONADO NA PRESENTE AÇÃO, AB INITIO E POR EFEITO DA PRIMEIRA AMPLIAÇÃO SUSCITADA E DETERMINADA, DEVERÁ O TRIBUNAL, COM RESPEITO À REUNIÃO DE PESSOAS OCORRIDA EM 26.6.2022, ENTRE AS 09,30H E AS 10,30H, QUE TEVE LUGAR NA ANTIGA ESCOLA PRIMÁRIA DE ..., FREGUESIA ... E concelho ..., PRETENDIDA E ARVORADA PELOS RÉUS COMO ASSEMBLEIA DE COMPARTES DOS BALDIOS DE ..., E REALIZADA COM APARÊNCIAS DE TAL – NÃO OBSTANTE AS MÚLTIPLAS ILEGALIDADES, JÁ SUSCITADAS NESTES AUTOS, DE QUE PADECERAM AS REUNIÕES ANTERIORES, DATADAS DE 10.10.2021 E 14.11.2021, QUE A ESTA DERAM ORIGEM POR TEREM CRIADO PARA OS BALDIOS EM CAUSA ÓRGÃOS-SOMBRA, DUPLICADOS E ILEGAIS –, DAR A MESMA REUNIÃO, A SUA MARCAÇÃO, A SUA CONVOCATÓRIA A SUA REALIZAÇÃO, A RESPECTIVA ATA; A DELIBERAÇÃO NELA TOMADA E TODOS OS ATOS QUE DA MESMA SESSÃO TIVEREM EMANADO OU VIEREM A EMANAR E A ELA FOREM SEQUENCIAIS, POR IMPUGNADOS, INEXISTENTES, ÍRRITOS E SEM QUALQUER VALOR JURÍDICO PARA TODOS E QUAISQUER EFEITOS PRETENDIDOS PELOS RÉUS E, COMO TAL, INEXISTENTES, OU NULOS, OU ANULÁVEIS, OU DE TODA A MANEIRA CONTRÁRIOS À LEI E INEFICAZES QUANTO AOS COMPARTES DOS MESMOS BALDIOS DE ... E EM REPRESENTAÇÃO DOS MESMOS.»

[4] Sobre a problemática da “capacidade judiciária” suscitada no art.º 26º da p. i., concluiu-se: “Não se poderá, por isso, considerar, que a presente ação ainda se inscreve no âmbito dos poderes conferidos pela deliberação habilitante de 19/02/2012. Donde, não existindo uma deliberação em obediência ao disposto no art.º 24º, al. q) da LB, impunha-se a concessão de prazo ao autor Conselho Diretivo para a sua junção aos autos. Contudo, face ao que infra se determinará, não se dará cumprimento ao disposto no art.º 29º do CPC (cf. art.º 130º CPC).”

[5] Decidiu ainda “não condenar os autores e réus contestantes como litigantes de má fé”.
[6] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[7] Retificou-se.
[8] Idem.
[9] Cf. “nota 3”, supra.

[10]Que havia sido alterada pelas Leis n.ºs 89/97, de 30.7, e 72/2014, de 2.9, bem como a regulamentação dela decorrente (art.º 58º, n.º 1). Revogou ainda todas as normas da Lei n.º 72/2014, de 2.9, aplicáveis a baldios (n.º 2) e repristinou os DL n.ºs 39/76, de 19.01, e 40/76, de 19.01, para efeito das remissões nela previstas (n.º 3).
[11] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.

[12] Vide, neste sentido, nomeadamente, J. Lebre de Freitas, e outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 51 e Antunes Varela, e Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 122 e seguintes.
[13] Vide Teixeira de Sousa, in BMJ, 292º, 102.
[14] Vide Rogério E. Soares, Sobre os baldios, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, pág. 295.

[15] Cf. o Parecer n.º 37/87 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, in DR, 2ª série, n.º 39, de 17.02.1988.
[16] Cf. os art.ºs 1º e 4º do DL n.º 39/76, de 19.01 e o preâmbulo do DL n.º 40/76, de 19.01.

[17] Cf., a propósito, a “declaração de voto” do Senhor Conselheiro J. M. Cardoso da Costa junta ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 325/89, de 04.4.1989, publicado no DR, 1ª série, n.º 89, de 17.4.1989 e no BMJ 386º, 129, onde se alude, nomeadamente, aos «baldios que ainda cumpram (ou continuem a cumprir) a sua precípua e tradicional função “comunitária”, enquanto bens ´directamente` utilizados e fruídos pelos compartes, em complemento da respectiva economia privada»; aos terrenos baldios ou maninhos «que há muito deixaram de representar um complemento da economia agrária de certas populações, e só têm hoje um destino ou uma função que não é diversa da dos bens que integram o património privado ou o domínio público de uma autarquia»; à «distinção entre baldios que continuam afectos à sua função típica e terrenos sujeitos ao respectivo regime jurídico, mas que já não desempenham essa função».

   Idêntica posição foi afirmada nas diversas “declarações de voto” apresentadas no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 240/91, de 11.6.1991, publicado no DR, 1-A série, n.º 146, de 28.6.1991.   

[18] Publicadas as Leis 68/93, de 4.9 e 75/2017, de 17.8, passou a entender-se que o novo quadro normativo introduziu «um verdadeiro corte epistemológico com a contemporânea conceção de baldio, amarrado a uma visão de espaço de utilização comunitária numa economia agrária de subsistência: logradouro comum para efeitos de apascentação de gados, de recolhas de lenhas ou matos, de culturas e outras fruições, nomeadamente de natureza agrícola, pastoril ou silvícola» e que a mesma lei «abre a posse e gestão comunitária do baldio a outros campos, como os da exploração da caça, da produção elétrica e de todas outras, atuais e futuras, potencialidades económicas» (sublinhado nosso) - vide João Carlos Gralheiro, Aspetos Fundamentais da nova Lei dos Baldios, in https://www.baladi.pt (Breve Enquadramento Histórico e Jurídico em Áreas Comunitárias / outubro de 2018), págs. 34 e seguinte.

[19] Preceituava o referido art.º: “São devolvidos ao uso, fruição e administração dos respectivos compartes, nos termos do presente diploma, por cujas disposições passam a reger-se, os baldios submetidos ao regime florestal e os reservados ao abrigo do n.º 4 do artigo 173º do DL n.º 27207, de 16 de Novembro de 1936, aos quais a Junta de Colonização Interna não tenha dado destino ou aproveitamento.”
[20] Diploma que vigorou de set./1993 a agosto/2017.
[21] Vide, a propósito, Jaime Gralheiro, Comentário à Nova Lei dos Baldios, Almedina, 2002, págs. 136, 145 e 152; cf., ainda, designadamente, o acórdão da RP de 10.12.2012-processo 45/11.5TBCDR-B.P1, publicado no “site” da dgsi.
[22] Desses abusos nos dão conta, de entre vários diplomas legais, os Alvarás de 06.12.1603 [através do qual o Monarca quis atalhar à seguinte situação de que tivera conhecimento: “os Vereadores e Officiaes das Câmaras de muitas Cidades, Villas, e logares deste Reino, repartem, entre si e as pessoas que costumam andar na governança, as propriedades do Concelho, dando-as uns aos outros com titulo de arrendamento, pagando pouco, ou nada, ao Concelho; e que tomam sobre si as rendas das correntes e os sobejos dellas gastam sem ordem alguma”] e 23.7.1766 [então, o Rei pretendeu pôr cobro ao “abuso, que em muitas Câmaras das Cidades, Villas, e Lugares das Provincias destes Reinos, se tem feito nos aforamentos dos Baldios dos seus respectivos Conselhos, repartindo-os entre si, seus parentes, e amigos, os Vereadores, e mais Pessoas, que costumão andar nas governanças, por fóros, e pensões muito diminutas; praticando estas injustas, e lesivas alienações debaixo de pretextos na apparencia uteis, e na realidade nocivos ao progresso, e augmento da lavoura, á creação dos gados, á subsistência dos Povos (….): Cooperando para relaxação tão perniciosa o descuido dos Ministros em não promoverem a devida observancia das successivas Leis, e Alvarás, que promulgadas em diversos tempos ordenárão as providencias mais justas (…)”].
[23] Vide M. Henrique Mesquita, RLJ, 127º, 351 e, do mesmo autor, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966/1967, Coimbra, 1967, págs. 234 e seguinte.
[24] Veja-se, a propósito, o sumário do trabalho universitário realizado pelo (aqui) relator no âmbito da disciplina de Sociologia do Direito (sob a regência do Senhor Professor Boaventura de Sousa Santos), sob o título “A Articulação entre os Direitos Comunitários e o Direito Estadual: o Caso dos Baldios (A polémica e os abusos ao longo dos tempos)”, publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 21, nov. 1986, págs. 164 a 166.
[25] O que, em regra, não determinava/determina a reposição de modos de aproveitamento ameaçados e violados no passado.
   À data da publicação da Lei n.º 39/76, de 19.01, e, ainda mais, nos anos e décadas seguintes, mesmo onde seria justo repor os antigos usos e costumes na usufruição de terrenos comunitários, este desiderato apresentava-se/apresenta-se praticamente impossível, pelo que restava/resta apenas tirar da terra, das potencialidades de cada região, aquilo que ela por natureza é capaz de propiciar; e talvez os usos e costumes antigos sejam uma lição para o presente e o futuro, mas, nalguns casos, os usos e costumes extinguiram-se ou modificaram-se e, hoje, já não é fácil saber qual o passado e a conveniência e justeza dessa afirmação - vide, a este respeito, Joaquim Barros Mouro, Reforma Agrária, 2ª edição, 1976, pág. 141.
[26] Neste contexto, veja-se a pertinência e atualidade das advertências e considerandos efetuados, em Outubro de 1975, no artigo “Baldios – Uma questão política”, publicado na Revista “Seara Nova” (n.º 1560), da autoria de Victor Louro e Lucílio Martins, onde se afirma, nomeadamente:
   - “Situamo-nos nas vésperas da publicação da lei dos baldios [DL n.º 39/76, de 19.01]. Desde a elaboração e apresentação pública do seu projecto, há 9 meses, algo se tem discutido sobre este tema. Verifica-se que, a par de um grande desconhecimento do que são os baldios, existe um conhecimento parcializado dos problemas que a eles estão ligados [sublinhado nosso]. E principalmente, desconhece-se, geralmente, que os baldios são, antes de mais, uma notável questão política.” (pág. 27)
   - “Hoje em Portugal apresenta-se-nos um outro problema, todo novo. Com a restituição dos baldios aos seus utentes, vamos topar com uma grande desigualdade na distribuição da riqueza, em comunidades da mesma natureza [sublinhado nosso].//Para ilustrar esta situação dir-se-á que enquanto o concelho de Bragança, por exemplo, tem 35 000 ha de baldios, no mesmo distrito o concelho de Freixo de Espada-à-Cinta tem apenas 350 ha.//Portanto impõe-se tomar medidas para atenuar de imediato tais diferenças. (…) a restituição dos baldios aos povos só faz sentido se significar, como significa, a entrega aos povos das respectivas receitas, além da possibilidade de decisão. (…) Há pois que colocar um especial cuidado para que o sentimento de posse colectiva não tome, para com os vizinhos, o mesmo sentido egoísta da posse individual [sublinhado nosso], típico da sociedade burguesa. É essencial criar o espírito de que os povos são, isso sim, os usufrutuários duma riqueza, e não os seus donos.” (pág. 32)
[27] Vide, a propósito, Jaime Gralheiro, ob. cit., págs. 11 e seguinte.

[28] Considera-se que esta nova conceção de comparte (art.º 7º da Lei n.º 75/2017) corresponderá à dita nova conceção de baldio – cf. “nota 18“, supra – e que «em razão desta alteração de paradigma da conceção de compartes advirá a necessidade da elaboração do caderno de recenseamento de compartes, que terá de ser anualmente aprovado pelos compartes, em reunião da assembleia de compartes» - vide João Carlos Gralheiro, Aspetos Fundamentais da nova Lei dos Baldios, cit., págs. 35 e seguinte.

[29] Prevista no art.º 3º, n.º 1 da Lei n.º 75/2017, de 17.8, tendente ao aproveitamento, pelos promotores de energias renováveis, dos “meios de produção” localizados em terrenos baldios.

[30] Veja-se, por exemplo, o caso do acórdão da RC de 12.9.2017-processo 157/16.9T8LSA.C1 (publicado no “site” da dgsi).

     Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, alude-se, por exemplo, a um Projecto de Arborização) [constando da “Introdução” ao dito projecto, aprovado em 1955: “Segundo informações de pessoas idosas, ainda não há muitas décadas, que estes baldios, agora limitados, quase ao terço superior da Serra, se entendiam por outeiros e vales, ocupando enormes extensões de território.//Actualmente, grande parte dessa superfície transitou para a propriedade particular, quer através de divisões colectivas dos logradouros pertencentes a algumas freguesias, quer pela apropriação individual dos terrenos públicos confinantes com as propriedades ´adonadas`.//Favoreceu o primeiro caso, a legislação que permitia às Câmaras ou Juntas de Freguesia, a divisão dos baldios que não fossem necessários ao logradouro comum, tendo influência no segundo, o exemplo de alguns proprietários mais ousados, que alargaram as ´testadas` das suas ´fazendas` para o vizinho baldio.]; comprova-se o conhecimento há muito generalizado/”facto notório” (art.º 412º, n.º 1 do Código de Processo Civil), de que as cumeadas da serra são baldias, tendo algumas das testemunhas referido que “quando passou a florestal só do meio da encosta para baixo é que se podia andar com os gados”, “antigamente havia lá pessoas que tinham muitos rebanhos de gado muito grandes (…), todos iam lá para os montes, (…) não havia lá mato como lá há agora”; terrenos baldios “são os terrenos da comunidade, de todas as pessoas da aldeia para irem lá buscar lenha, buscar mato, guardar as ovelhas”.

   Concluiu-se que os demandados pretendiam “alargar exponencialmente” as áreas que se fizeram constar das matrizes prediais [chegando a atingir quarenta vezes mais!, numa singular manifestação do carácter hiante e voraz do direito de propriedade… –  vide Orlando de Carvalho, “Continuação” da obra Direito das Coisas, Colecção Perspectiva Jurídica/Universidade, Coimbra, 1977, sob o enquadramento “As grandes formas de ordenação do domínio. Modalidades de direitos das coisas”, ponto 6], tudo apontando no sentido de que visavam “integrar”, nas respetivas propriedades, áreas que manifestamente não lhes correspondiam!

   Idêntica situação foi objeto do acórdão da RC de 17.6.2014-processo 17/09.0TBPPS.C1 (inédito), estando em causa os baldios de Decabelos (Pampilhosa da Serra), provando-se que “a população em geral reconhecia que os altos da Serra, até cerca de meia encosta, desde o extremo da Pampilhosa da Serra com o de Góis até ao extremo com o concelho da Covilhã, eram baldios”, sendo que uma das testemunhas chegou a afirmar “(…) e se, em 50 anos, nunca ali apareceu ninguém a reclamar o terreno e agora, ao fim de 50 anos, aparece lá, porquê? Porque estão lá aquelas eólicas em cima, se elas lá não estivessem ninguém reclamava!”, e uma outra, “nós (quem tinha e apascentava rebanhos na zona de Decabelos, entre os quais o depoente, até à idade de 14 anos) considerávamos que aquilo (os terrenos em causa, desde o cume até ao meio da encosta) era baldio, era logradouro dos povos”, e reveste também muito interesse a prova documental de meados do séc. XX junta aos autos, nomeadamente, um ”auto de inquérito” que salientava a preocupação de preservação das áreas baldias destinadas “à vida das povoações” que necessitavam de “matos”, “lenhas para aquecimento das casas” e “pastagens suficientes para manutenção dos seus gados”, evidenciando-se também que a área baldia submetida a arborização no ano de 1954 situava-se nos “cabeços mais elevados do concelho” e a tendência de apropriação dos terrenos baldios pelos particulares, ao longo dos tempos, se bem que menos acentuada nas zonas serranas (mais pobres) e de menor densidade populacional.
[31] Vide Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. I, Livraria Almedina, Coimbra, 1974, pág. 295.

[32] Cf., nomeadamente, o artigo de opinião do Deputado Carlos Matias (do Bloco de Esquerda), sob o título “Nova Lei dos Baldios: um passo em frente”, publicado na edição eletrónica do Jornal “PÚBLICO”, de 29.6.2017, onde se afirma: «Na anterior legislatura, a maioria PPD/PSD e CDS-PP aprovou uma lei para destruir paulatinamente esta forma de propriedade comunitária, introduzindo-lhe elementos tendentes à sua privatização. Por essa via, a direita satisfez interesses económicos que vislumbram na apropriação dos baldios uma nova fonte de rendimento, para benefício próprio, em detrimento das comunidades locais. Assim se explica todo o interesse em permitir a extinção de baldios, abrindo o caminho à sua privatização. Tudo assente na negação do princípio secular de que os baldios estão fora do comércio jurídico e são propriedade das comunidades locais. // Na atual legislatura, o Bloco de Esquerda avançou com uma nova lei que revertesse os anteriores passos privatizadores da maioria de direita e acabasse com os alçapões legais que privavam as comunidades dos rendimentos dos baldios. O Bloco tomou a iniciativa, apresentou e agendou um projeto-lei nesse sentido. // Acaba agora de ser aprovada uma nova Lei dos Baldios, após meses de intenso trabalho e negociações que permitiram acordar um texto conjunto entre PS, BE, PCP e PEV. Trata-se de um diploma que responde ao essencial das preocupações das comunidades locais. Mas que irrita profundamente a direita. // (…) A nova Lei dos Baldios, agora aprovada [Lei n.º 75/2017, de 17.8], é de facto um passo em frente na recuperação do direito das comunidades aos seus baldios e defende-os de ataques privatizadores
[33] Persistem os riscos de abusos e violações, no presente e no futuro…
[34] Vide Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, Arménio Amado-Editor Sucessor, Coimbra, 1987, págs. 17, nota 1; 43 e segs. e 105 e seguinte; J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador (17ª reimpressão), Almedina, 2008, pág. 191 e A. Castanheira Neves, O direito como validade, in RLJ, 143º, 175.

[35] Vide A. Castanheira Neves, O Actual Problema da Interpretação Jurídica, in RLJ, 118º, págs. 257 e seguinte.
[36] Vide M. Henrique Mesquita, in RLJ, 127º, págs. 348 e seguintes.
[37] Neste sentido, vide, designadamente, João Carlos Gralheiro, artigo cit., págs. 36 e seguinte.
[38]Cf., por exemplo, a situação (e correspondente factualidade) objeto do acórdão do STJ de 08.4.2021-processo 69/11.2TBPPS.C1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[39] Ulteriormente à Assembleia de Compartes realizada a 06.6.2021, anexando-se à respetiva ata (reproduzida a fls. 318) diversos documentos (cf. requerimento dos AA. de fls. 522 - de 20.6.2022 - e documentos de fls. 523 e seguintes).
[40] Cf., ainda, “nota 41”, infra.
[41] Cf. “nota 4”, supra.

[42] Porém, como salienta a decisão sob censura, «do lado passivo da instância deveria figurar, apenas, o Conselho Diretivo dos baldios, enquanto representante em juízo da comunidade local erigida em Assembleia de Compartes (...), já que em causa está a potencial eliminação da ordem jurídica de deliberações desse órgão, enquanto colégio, e não dos concretos membros que então o compunham.»; acresce que «não poderá a ilegitimidade ser sanada por via da intervenção principal do universo de compartes, representados em juízo pelo Conselho Diretivo, na medida em que, por um lado, a posição ativa que assumiu na instância não pode ser transmutada numa posição passiva e, por outro, não está em causa a preterição de litisconsórcio entre os réus/chamados e o Conselho Diretivo, tratando-se, por isso, de ilegitimidade singular insuprível

[43] Veja-se, por exemplo (e, porventura, com alguma similitude...), o imbróglio em matéria de honorários versado no acórdão desta Relação (e Secção) de 02.02.2016-processo 2682/14.7T8VIS-D.C1, publicado no “site” da dgsi.
[44] Pouco relevando, neste contexto, a maior ou menor representatividade de cada uma das duas conhecidas “tendências/fações”, temática objeto de discussão, por exemplo, no decurso da audiência final do procedimento cautelar (como se vê no excerto que os AA./recorrentes decidiram incluir na sua alegação de recurso e que inclui importante esclarecimento/precisão por parte da Mm.ª Juíza do Tribunal a quo...).
[45] Utilizando expressões dos AA./recorrentes.