Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
37/22.9GACLB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: NATUREZA DO CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
APRESENTAÇÃO DE QUEIXA
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 153.º, N.º 1, E 155.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 49.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – Com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça agravada passou a estar previsto no artigo 155.º do Código Penal, que nada diz quanto à necessidade de apresentação de queixa para a instauração do procedimento criminal.
II – Não exigindo a lei que, para a instauração do procedimento criminal, o respectivo titular apresente queixa ou formule acusação particular, resulta que o crime de ameaça agravada tem natureza pública.
Decisão Texto Integral: *

            I. RELATÓRIO

            1. … foi proferida sentença, em 31-05-2023 [referência30410076], com o seguinte dispositivo (transcrição):

   «Isto posto, julgo válida tal desistência, homologando-a por sentença e, consequentemente, declaro extinto o presente procedimento criminal – cfr. artigos 49.º e 51.º do Código de Processo Penal, e 113.º e 116.º do Código Penal.

Sem custas, por não haver assistente constituído, nos termos dos artigos 513.º e 515.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a contrario.

Notifique e deposite – cfr. artigo 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.»

            2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o Ministério Público.

            O recorrente apresentou as seguintes conclusões e petitório (transcrição):

                «1. No caso concreto, foi o arguido … acusado da prática de um crime de ameaça agravado, …

2. No início da audiência de discussão e julgamento, a ofendida … veio declarar desistir da queixa apresentada contra o arguido, o que este expressamente aceitou.

3. O Ministério Publico opôs-se à homologação da desistência da queixa.

4. Contudo, o Tribunal a quo proferiu sentença que, considerando revestir tal crime natureza semi-pública, julgou válida a desistência de queixa apresentada pela ofendida, homologando-a e, consequentemente, declarando extinto o presente procedimento criminal contra o arguido.

                5. Porém, o Tribunal recorrido não podia ter homologado a desistência de queixa em apreço, dado que o crime de ameaça agravado imputado ao arguido assume natureza pública.

            3. Não houve resposta ao recurso.

            4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer …

            5. Não foi apresentada qualquer resposta a este parecer.

           

            6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.

           

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objeto do recurso.

            …

            Atentas as conclusões formuladas pelo Recorrente, a questão a decidir é a de saber qual a natureza do crime de ameaça, previsto e punido pelos artigos 153º nº1 e 155º nº1 alínea a), ambos do Código Penal – se semipública, como foi considerado na decisão recorrida, se pública, como defende o Recorrente.

            2. Da decisão recorrida.

            A sentença proferida pelo Tribunal a quo é do seguinte teor (transcrição):

            «…

Em nosso entendimento, adiantamos desde já, o crime de ameaça agravada assume natureza semipública, ainda que não se desconheçam posições em sentido contrário.

As razões pelas quais consideramos que a agravação ínsita no artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal, não altera a natureza semipública do crime de ameaça, residem essencialmente nos elementos interpretativos da redação dada ao referido preceito pela Lei n.º 59/2007, de 04/09.

De acordo com o elemento histórico, há que relevar a circunstância de o crime de ameaça ter sempre revestido natureza semipública, …

Na revisão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09 “foram “aglutinadas” no art. 155º as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção, cujas previsões típicas se encontram, respectivamente, nos arts. 153º e 154º, colhendo-se da Exposição de Motivos da Proposta de Lei de alteração do Código Penal ter-se pretendido que o crime de ameaça passasse “a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”.

Quanto ao elemento teleológico também não encontramos qualquer razão para que a referida agravação implique a mudança da natureza do crime de ameaça.

A razão de ser da distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger - …

No tipo em causa, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a autodeterminação, nas suas componentes do direito à tranquilidade e segurança individuais.

Consubstanciam bens de natureza estritamente individual da pessoa ameaçada (ofendida).

Também não se nos afigura que existam, mesmo quando tais bens sejam violados sob a forma agravada, razões de ordem pública e coletiva que imponham ao ofendido o início ou continuação do procedimento penal, quando este o não pretenda.

…»

            3. Apreciação do recurso.

            …

            Como se disse, a questão em apreciação é a de saber qual a natureza do crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153 e 155 nº 1 alínea a) do Código Penal e, nessa medida, a de saber se o respetivo procedimento criminal continua (após a redação dada aos dispositivos em causa pela Lei nº59/2007 de 4 de setembro) a depender de queixa (posição adotada na sentença em recurso) ou, como nada consta do artigo 155º, passou a ser crime público (posição adotada no recurso).

            Os entendimentos sobre esta questão subjacentes à decisão em crise e ao recurso, espelham a controvérsia jurisprudencial, onde se podem surpreender duas posições, desde a entrada em vigor daquela lei: uma que defende a natureza semipública do crime de ameaça agravada e outra, que defende que o ilícito em causa passou a ter a natureza de crime público.

            Na verdade, é quase unânime este segundo entendimento.

            Uma pesquisa na base de dados do IGFEJ (www.dgsi.pt) permite-nos – salvo algum lapso de que nos penitenciamos, desde já – concluir que, dos arestos ali publicados desde 2009 até hoje, apenas dois do Tribunal da Relação do Porto, do mesmo relator, adotam o entendimento de que o crime de ameaça agravada tem natureza semipública, mesmo após a redação dada em 2007, aos artigos 153º e 155º do Código Penal (acórdãos de 13-11-2013 e de 06-04-2022, prolatados no âmbito dos processos nºs335/11.7GCSTS.P1 e 1301/19.0PBAVR.P1, respetivamente).

            Todos os restantes acórdãos ali publicados e que conheceram da questão são em sentido contrário:

            - Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17-02-2016 (processo nº509/12.3GBAMT.P1); de 26-11-2014 (processo nº396/12.1PASTS.P1); de 15-06-2016 (processo nº6928/13.0TDPRT.P1); de 12-11-2014 (processo nº883/12.1PAPVZ.P1); de 27-04-2011 (processo nº53/09.6GBVNF.P1); de 02-05-2012 (processo nº284/10.6GBPRD.P1); de 09-01-2013 (processo nº160/11.5GEVNG.P1); de 07-09-2011 (processo nº63/09.3GDSTS.P1); de 26-05-2021 (processo nº775/18.0GBVFR.P1); de 29-09-2010 (processo nº162/08.9GDGDM.P1) e de 15-09-2010 (processo nº354/10.0PBVLG.P1). 

            - Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-12-2019 (processo nº1325/18.4PBPDL.L1-3); de 31-01-2017 (processo nº190/16.0SXLSB.L1-5); de 03-11-2015 (processo nº178/13.3PASCR.L1-5); de 10-12-2014 (processo nº52/12.0PEPDL.L1-3); de 13-10-2010 (processo nº36/09.6PBRSQ.L1-3); de 30-04-2015 (processo nº64/14.0PAPTS-A.L1-9); de 13-11-2019 (processo nº841/17.0PBPDL.L1-3) ; de 09-07-2020 (processo nº478/15.8PBLRS.L1-9); de 29-10-2020 (processo nº223/19.9PCRGR.L1-9); de 20-03-2018 (processo nº1514/16.6GLSNT.L1-5); de 20-12-2011 (processo nº574/09.0GCBNV.L1-5); de 26-11-2015 (processo nº658/12.8PILRS.L1-9) e de 15-01-2019 (processo nº131/16.5T9PDL.L1-5).

                - Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 30-05-2012 (processo nº94/10.0GASAT.C1); de 20-05-2015 (processo nº45/14.3GEACB.C1); de 02-04-2014 (processo nº222/12.1GCVIS.C1); de 06-07-2016 (processo nº467/13.7GASEI-A.C1); de 12-11-2014 (processo nº348/12.1PBVIS.C1); de 01-06-2011 (processo nº1222/09.4T3AVR.C1); de 30-03-2011 (processo nº400/09.0PBAVR.C1); de 19-06-2013 (processo nº478/11.7GBLSA.C1); de 30-03-2011 (processo nº1596/08.4PBAVR.C1); de 25-06-2014 (processo nº285/10.4TBVIS.C1); de 02-03-2011 (processo nº550/09.3GCAVR.C1); de 10-12-2013 (processo nº183/09.4GTFVIS.C1); de 10-07-2013 (processo nº187/11.7GBLSA.C1); de 26-06-2013 (processo nº207/10.2GAPMS.C1); de 03-02-2016 (processo nº164/11.8GAPNC.C1); de 08-05-2019 (processo nº62/17.1GBCNF.C1) e de 14-07-2020 (processo nº667/18.3PCCBR.C1).

            - Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 09-03-2010 (processo nº59/08.2PBBJA.E1); de 12-11-2009 (processo nº2140/08.9PAPTM.E1); de 25-02-2014 (processo nº491/12.7GAOLH.E1); de 07-04-2015 (processo nº517/12.4PAOLH.E1); de 08-04-2014 (processo nº775/12.4TAOLH.E1); de 14-10-2014 (processo nº2057/12.2TAFAR.E1); de 15-05-2012 (processo nº16/11.1GAMAC.E1); de 12-10-2021 (processo nº105/20.1GCCUB.E1); de 04-12-2018 (processo nº1377/15.9PBFAR.E1) e de 26-10-2019 (processo nº538/17.0PBELV.E1).

            - Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-05-2011 (processo nº127/08.0GEGMR.G1); de 09-05-2011 (processo nº1028/09.0GBGMR.G1); de 15-11-2010 (processo nº343/09.8GBGMR.G1); de 12-01-2015 (processo nº59/13.0GVCT.G1); de 22-02-2023 (processo nº1015/20.8PBGMR.G1); de 25-02-2019 (processo nº390/17.6T9PTL.G1); de 23-05-2011 (processo nº368/10.0GEGMR.G1) e de 07-11-2022 (processo nº41/19.4GBVNF.G1).

            O nosso entendimento é, também, o plasmado no recurso, dada a pertinência dos seus argumentos, sendo certo que, a decisão recorrida não assenta em argumentos novos que não tenham sido amplamente discutidos na vasta jurisprudência indicada.

            Senão vejamos.

            A decisão em recurso apela aos elementos interpretativos da redação dada aos preceitos em causa pela Lei nº59/2007 de 04-09, concretamente, o elemento histórico, o teleológico e o sistemático, terminando por apontar uma incongruência da Lei, caso se entenda ter o crime de ameaça agravada, natureza pública.

Como é sabido, no que tange à legitimidade para instaurar e fazer prosseguir o procedimento criminal, a lei estabelece para uns crimes, que estão dependentes da apresentação de queixa, para outros, que dependem de acusação particular e, por fim, para outros, a Lei nada diz quanto a este particular aspeto. Os primeiros são denominados doutrinariamente de crimes semipúblicos, os segundos de crimes particulares e os últimos de crimes públicos.

Assim, quanto aos primeiros, para que o Ministério Público, titular da ação penal, tenha legitimidade para iniciar a investigação criminal, é necessário que o ofendido ou a pessoa a quem a lei atribui esse direito, apresente queixa - artigo 49º do Código de Processo Penal.

Quanto aos segundos, aquela mesma legitimidade depende, para além da apresentação de queixa por parte dos sujeitos processuais mencionados, que estes se constituam assistentes e deduzam acusação particular – artigo 50º do Código de Processo Penal.

Por fim, nos crimes de natureza pública, o Ministério Público tem legitimidade, por si só, para iniciar e fazer prosseguir o procedimento criminal.

            As hesitações do intérprete da lei sobre a natureza do crime de ameaça agravada, surgem com as alterações introduzidas pela Lei nº59/2007 de 04-09.

Antes, o crime de ameaça – quer o simples quer o agravado – estava previsto num só artigo - o artigo 153º do Código Penal.

O nº1 do preceito previa, tal como hoje, a ameaça simples, enquanto que o nº2 previa a ameaça agravada. De acordo com o nº3 (atual nº2) o procedimento criminal por qualquer um destes crimes, dependia de queixa. 

Com a alteração introduzida pela Lei nº59/2007, o artigo 153º ficou reduzido a dois números, continuando a ameaça simples a ser definida no nº1 e passando o nº2 a ter a redação do anterior nº3, ou seja, estabelecendo-se ali que o procedimento criminal depende de queixa.

Por outra parte, o crime de ameaça agravada passou a estar prevista no artigo 155º, que nada prevê quanto à natureza do crime.

            Em face desta distinta redação, isto é, apesar de o dispositivo legal que prevê, agora, o crime de ameaça agravada, nada dizer quanto à necessidade de apresentação de queixa (o que, em regra faz concluir pela natureza pública do crime, conforme explicitado supra) o Tribunal a quo, considera que, os elementos interpretativos colocados à disposição do intérprete impõem a leitura contrária, isto é, a de que o crime continua a assumir a natureza de crime semipúblico.

            Quanto ao elemento histórico, argumenta-se na decisão recorrida que o crime de ameaça agravada sempre teve a natureza de crime semipúblico e que a opção do legislador de prever o crime na forma agravada num preceito distinto onde nada se diz quanto à necessidade de formulação de queixa não significa que tenha pretendido que o mesmo assumisse natureza pública, antes correspondeu à decisão de, por mero utilitarismo sistemático,  passar a prever num mesmo artigo as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e de coação.

            Tal argumento, que não é novo, não nos convence como não convence a jurisprudência maioritária.

            Com efeito, parece-nos que a opção do legislador não pode senão significar que escolheu, de forma clara, atribuir natureza pública ao crime de ameaça agravada (prevendo-o num outro artigo), mantendo a natureza semipública para o crime na sua forma simples, continuando a exigir a formulação de queixa no artigo que o prevê.

            Se a lei exige que, para haja procedimento criminal, o respetivo titular apresente queixa (para os crimes semipúblicos) ou apresente queixa e formule acusação particular (para os crimes particulares), não dizendo a lei uma coisa nem outra, o crime é público.

É isso mesmo que ensina o Professor Germano Marques da Silva[1]:

Há, assim, crimes em que a lei nada diz quanto ao procedimento criminal - são os que a doutrina denomina por crimes públicos -, noutros diz que depende de queixa – e que a doutrina denomina por crimes semipúblicos ou quase públicos -, e ainda noutros diz que o procedimento depende de acusação – são os chamados crimes particulares.

Em termos práticos, há que ver se a norma penal estabelece algo sobre a exigência de queixa ou de acusação particular. Se nada estabelecer o crime é público e, consequentemente, o Ministério Público tem legitimidade quanto a esse crime para promover livremente o procedimento”.

            E não se diga que não houve por parte do legislador a intenção de prever o crime de ameaça agravada como crime autónomo, não obstante a alteração legislativa em causa.

            …

Acrescentamos nós que não pode olvidar-se o elemento literal que impõe ao intérprete que não enverede por considerar que o Legislador pretendeu dar um determinado sentido à norma que não tenha o mínimo de correspondência com a letra da mesma. Com se disse, e repete-se, compulsado o artigo 155º do Código Penal que prevê autonomamente o crime de ameaça agravada, ali não se faz qualquer referência a que o procedimento criminal esteja dependente de queixa, pelo que, entender que, não obstante essa redação, se está perante crime de natureza semipublica, é ignorar aquele elemento interpretativo.  

            Relativamente ao elemento teleológico afirma-se na sentença recorrida que assentando a distinção entre crimes de natureza semipublica e pública na graduação da gravidade de cada um deles por referência aos interesses jurídicos violados e à necessidade de ordem pública e coletiva em os proteger e sendo os bens protegidos em ambos os ilícitos (simples e agravado) a liberdade e autodeterminação, bens eminentemente pessoais, não há razão para retirar ao ofendido o poder de decidir sobre a instauração e prosseguimento do procedimento criminal, mesmo quando verificadas as circunstâncias agravantes.

            A interpretação da lei não pode prescindir daquilo que terá sido o objetivo que o Legislador pretendeu alcançar em termos práticos, traduzindo-se esse “olhar” do intérprete naquilo a que a Doutrina apelida de “teleologia da norma” ou “ratio legis”, fator de interpretação reconhecidamente decisivo naquilo que é a determinação do sentido da norma.

Para identificar a “ratio legis” é preciso ter em consideração os interesses pessoais e comunitários para cuja regulação a norma foi criada.

Ora, se é de subscrever o entendimento plasmado na sentença de que a gravidade do crime é fator que está na base da distinção entre crimes públicos, semipúblicos e particulares já não se pode aceitar que esse seja o único fator que fundamenta tal distinção.

Se assim fosse, não se compreenderia que, por exemplo, o crime de violação (punível com prisão de 3 a 10 anos) tenha natureza semipública.

Claramente, neste caso, o fator que é tido em conta não é a gravidade da conduta.

Sendo os interesses protegidos relativos à esfera íntima do ofendido, a proteção dos interesses da vítima (de não ver expostos factos que são traumáticos e íntimos ocorrendo uma dupla vitimização) falam mais alto do que o interesse punitivo do Estado. É, pois, a necessidade de proteção da vítima que é o fator determinante da atribuição de natureza semipública e não a gravidade do crime.

A qualidade do agente passivo do crime também justifica que, em muitos casos, se atribua natureza pública aos crimes.

É o que acontece, por exemplo, com a ofensa à integridade física simples em relação ao qual o procedimento criminal depende de queixa, “salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício de funções ou por causa delas” – artigo 143º nº2 do Código Penal.

Se um Conselheiro de Estado, um Magistrado, um Deputado, um Provedor de Justiça, um Presidente de Câmara Municipal, um Advogado, um Professor, um Jornalista, etc., quando no exercício de funções ou por causa delas, são vítimas de uma ameaça, há um interesse público (que transcende o interesse individual) que reclama uma tutela penal reforçada e justifica que se inicie e prossiga o respetivo procedimento criminal, mesmo contra a vontade do ameaçado – Artigo 155º nº1 alínea c), por referência ao disposto no artigo 132º nº2 alínea l) do Código Penal.

A mesma tutela penal reforçada ocorre, quando se trate de pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez – Artigo 155º nº1 alínea b) do Código Penal.

Finalmente, também pode ser a qualidade do agente do crime a reclamar a atribuição de natureza pública ao crime. É o que ocorre com a ameaça quando for levada a cabo por funcionário com grave abuso de autoridade – artigo 155º nº1 alínea d) do Código Penal. Neste caso é a salvaguarda da integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário que reclama a aludida tutela penal reforçada.

Ainda no campo da interpretação da vontade do legislador de 2007, cabe ter presente o que consta, relativamente ao crime de ameaça, da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº98/10, que procede à vigésima primeira alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro:

“O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção.”

Pensamos que do texto transcrito resulta clara a intenção do legislador de aproximar o crime de ameaça agravado ao crime de coação grave, (que sempre foi um crime público) e essa aproximação não pode quedar-se pela identidade das circunstâncias agravantes, estendendo-se outrossim, à natureza pública do crime.

            O Tribunal a quo convoca, também, em abono do seu entendimento, um argumento que insere no elemento interpretativo relativo à coerência entre as normas que integram o Código Penal (elemento sistemático).

            …

            Como já se disse, a gravidade do ilícito, em regra refletida na gravidade da sanção prevista, não é fator único para que se atribua natureza pública a um ilícito. De todo o modo, são muitos os exemplos de crimes previstos no Código Penal em que é inequívoca a sua natureza pública não lhes correspondendo, porém, especial gravidade ao nível da sansão aplicável – entre outros, os crimes previstos e punidos nos artigos 139º; 146º alínea a); 151º nº1; 193º nº1; 200º; 228º; 229º; 232º; 251º; 252º; 253º; 254º.

            Por fim, o Tribunal a quo, aponta à jurisprudência maioritária – que reconhece natureza pública ao crime de ameaça agravada previsto no artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal - uma incongruência, a saber:

“De acordo com essa tese, o crime de ameaça agravada com a prática de um dos crimes previstos nos artigos 163.º, 164.º ou 165.º (a título de exemplo), teria natureza semipública, impondo-se o seu início e prosseguimento à vontade do ofendido. Já o procedimento criminal pela concretização destes crimes, que assumimos tratarem-se de condutas substancialmente mais graves, dependem de queixa (salvo se foram praticados contra menor ou deles resultar o suicídio ou morte da vítima).”

            Salvo melhor opinião, este argumento também não colhe.

            Na verdade o mesmo radica no pressuposto de que a atribuição de natureza pública a um ilícito depende apenas da sua maior gravidade e, como pensamos já ter explicitado supra, assim não é.

            Atento tudo o exposto, verifica-se ter a decisão recorrida violado o disposto nos artigos 48º 49º e 51º do Código de Processo Penal e nos artigos 153º e 155º nº1 alínea a) do Código Penal, pelo que, na procedência do recurso, é a mesma revogada.

III. DISPOSITIVO

            Nesta conformidade, os Juízes da 4.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra, concedendo provimento ao recurso, julgam inválida, irrelevante e juridicamente ineficaz a desistência de queixa apresentada, no que diz respeito ao crime previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por que o arguido vem acusado, determinando-se o prosseguimento dos autos, através da designação de data para a realização da audiência de julgamento.

            Sem custas.


(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

                                               Coimbra, 08-11-2023       

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (relatora)

Helena Lamas (1ª Adjunta)

Teresa Coimbra (2ª Adjunta)

 (data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


           


[1] In “Curso de Processo Penal”, I, Verbo, 6.ª edição, p. 271.