Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2596/23.0T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULA MARIA ROBERTO
Descritores: PROVA PERICIAL
INDEFERIMENTO
EMPRESA TERCEIRA
SEGREDO COMERCIAL
DADOS PESSOAIS DE CLIENTES
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 476.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 313.º E 314.º DO CÓDIGO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL, 26.º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, CONSIDERANDO 36 DA DIRETIVA (UE) 2016/943 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 08/06/2016, REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 27/04/2016, E LEI N.º 58/2019, DE 18/08
Sumário: I – A prova pericial só deve ser indeferida se for impertinente ou dilatória, não podendo ser indeferida com o fundamento de que a matéria em causa pode ser provada por outros meios.
II – A perícia dirigida a todos os equipamentos informáticos e tecnológicos de uma empresa terceira e de forma genérica a descargas/downloads de informação nos equipamentos da mesma, sem mais, viola o segredo comercial, inexistindo qualquer fundamento legal para a quebra do mesmo.

III – Os dados pessoais dos clientes/pacientes da empresa terceira encontram-se protegidos nos termos constantes do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27/04/2016) e pela Lei n.º 58/2019, de 18/08 que assegura a execução de tal regulamento na ordem jurídica nacional, pelo que, o acesso aos mesmos só pode ter lugar nos termos previstos em tal legislação, mediante consentimento dos respetivos titulares.

IV – Tal perícia não se reveste de proporcionalidade tendo em conta que tal diligência de prova violaria os direitos de terceiros consagrados, desde logo, no n.º 2 do artigo 26.º da CRP.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam[1] na Secção Social (6ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

A..., SA, com sede em ...

intentou a presente ação de processo comum, contra

AA, residente em ..., ....

Para tanto, apresentou a respetiva petição inicial que termina formulando o seguinte pedido:

Termos em que deve a presente acção ser julgada provada e procedente, condenando-se o Réu a pagar à Autora a quantia global de 950.000,00 euros, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.”

                                                           *

O Réu veio apresentar contestação que termina dizendo que:

NESTES TERMOS,

e nos melhores de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve:

a) Ser julgada procedente, por provada, a contestação e, em consequência, ser o R. absolvida do pedido;

b) Ser a A. condenada como litigante de má-fé, no pagamento de multa e de indemnização à R. de valor nunca inferior a € 10.000,00.”

                                                           *

De seguida foi proferido o seguinte despacho:

Da prova pericial:

Na petição inicial veio a Autora requerer a realização de prova pericial, requerendo que seja efectuada perícia a todos os equipamentos informáticos e tecnológicos da empresa B..., Lda, com a certidão permanente com o código de acesso ...51 válida até 03.06.2024, indicando como objecto da perícia que fosse esclarecido pelo sr. perito se ocorreram descargas/download de informação nos equipamentos supra citados nomeadamente mas sem limitar operações de descarga/downlould de disco externo contendo as informações da Autora referidas identificadas na petição inicial no período entre Outubro de 2021 e Dezembro de 2022.

Notificado o réu para se pronunciar sobre a necessidade e oportunidade da requerida prova pericial, veio o mesmo requerer o seu indeferimento por a mesma ser ilegal e impertinente, porquanto mesmo que se verificasse existir naquela clínica uma base de dados que inclua clientes que antes eram clientes da Autora, não se pode concluir pela existência de aproveitamento de dados dos clientes e utentes da Autora por parte do Réu. O que a Autora pretende é ter acesso às informações dos clientes e utentes do Réu, existindo assim um claro abuso de direito da Autora em pretender obter por essa via o que acusa o Réu de ter feito. Por outro lado, não vislumbra a necessidade de violar os dados informáticos detidos pela empresa, dado que sempre seria possível obter tais informações através de prova testemunhal, pelo que o deferimento de tal prova pericial violaria o princípio da proporcionalidade previsto no artº 18º, nº 2 da CRP.

Acresce que a empresa em causa não é parte no processo, e estaria a obter-se informações confidenciais de uma empresa concorrente, informações essas que configuram segredo comercial nos termos do artº 313º do Código da Propriedade Industrial, sendo que as informações relativas a clientes são desde logo secretas por respeito às normas de protecção de dados, pelo que tais informações não podem ser obtidas sem o consentimento do respectivo titular.

A Autora no exercício do contraditório veio invocar que a perícia é essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, sendo que a oposição do Réu à sua realização visa apenas evitar a sua responsabilidade pelos danos causados à Autora com a sua conduta ilegítima, ilícita e desleal. O que a Autora pretende provar com tal perícia é saber se existiram essas transferências/operações informáticas efectuadas de um disco externo para outros equipamentos informáticos e tecnológicos da empresa da qual o Réu é sócio fundador e com referência a informações da própria Autora e não do Réu, dados esses que foram transferidos ilegalmente pelo Réu da empresa ora Autora, tudo enquanto trabalhava para a Autora. Acresce que o Tribunal ao ouvir o Réu já entendeu que a diligência pericial não era impertinente nem dilatória, devendo este pronunciar-se apenas quanto ao objecto proposto.

Cumpre decidir:

Preliminarmente, cumpre referir que o Tribunal não se pronunciou ainda sobre a questão de saber se a perícia é impertinente ou dilatória, tendo notificado o Réu para, no exercício do contraditório, se pronunciar sobre a necessidade e oportunidade da requerida perícia, pelo que terá que ser primeiramente apreciada tal questão.

Ora, considerando que a perícia requerida terá que incidir sobre equipamentos informáticos de empresa terceira que não é parte na presente acção, sendo que o que se pretende é efectivamente aceder a informação relativa a dados de clientes de tal  empresa, terá que se concluir que com a realização da perícia estaria a aceder-se a informação relacionada com a vida interna da empresa e a dados pessoais dos clientes da mesma, sendo que grande parte desses conteúdos se encontram sujeitos a confidencialidade e nos presentes autos não está em causa qualquer responsabilidade criminal que permita levantar tal confidencialidade.

Na verdade, como bem refere o Réu as informações pretendidas pela Autora encontram-se sujeitas a sigilo comercial de empresa terceira nos termos do artº 313º do Código de Propriedade Industrial, pelo que o acesso a tais informações carece de consentimento do respectivo titular como decorre do artº 314º do mesmo Código.

Por outro lado, os dados referentes a clientes de tal empresa terceira estão também protegidos pelo Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016) e pela Lei nº 58/2019 de 18/08 que assegura a execução de tal regulamento na ordem jurídica interna, pelo que o acesso a tais dados apenas pode ser feito nos termos previstos em tal legislação, designadamente mediante consentimento do titular dos dados.

Ora, pese embora não se pudesse considerar impertinente a realização da perícia para a descoberta da verdade material, o certo é que como se refere no Ac. do TRE de 13-07-2017, no proc. 1860/15.6T8FAR.E1 “O direito à prova não é um direito absoluto, ainda que coberto pela capa de uma determinação do juiz quer no uso dos deveres instrutórios que a lei lhe impõe quer quando defira um determinado meio de prova a requerimento da parte que beneficia da respectiva produção, actuando a coberto do dever de cooperação para a descoberta da verdade, vertido no artigo 417.º do CPC. No caso vertente, ao princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva na vertente do direito à produção de prova, contrapõe-se o princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, com a garantia ínsita no n.º 2 de que a lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias.”

Ora, no caso em apreço estão em causa informações confidenciais, e não comprovou a Autora qualquer consentimento dos respectivos titulares para a sua divulgação, não podendo o tribunal impor a terceiros, no âmbito do presente processo, a obtenção de tais dados, o que sempre violaria o princípio da proporcionalidade atenta a diversa natureza dos interesses em causa.

Na verdade, a realização de tal diligência implicaria um injustificado acesso a informações pessoais de empresa que não é parte na presente acção, bem como de pessoas singulares terceiras, cujos dados pessoais estão legalmente protegidos, o que sempre violaria do princípio da proporcionalidade, sendo que a Autora sempre poderá produzir prova da factualidade alegada por outros meios de prova.

Pelo exposto, por indefere-se a prova pericial requerida pela Autora na petição inicial.

*                                                       

A Autora, notificada deste despacho, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

“1 – A Autora requereu a produção de prova pericial com o fim de se averiguar se o Réu procedeu à recolha de dados e informações existentes no seu sistema informático, que descarregou para um disco externo e posteriormente descarregou no sistema informático da sociedade que criou, concorrente da Autora;

2 – A Autora apenas pretende a confirmação ou não, desta situação, através do rasto deixado nos respectivos sistemas;

3 – A Autora não pretende nem requereu o acesso aos dados da sociedade “B..., Lda”, criada pelo Réu em concorrência com a Autora;

4 – A realização da perícia não implica o acesso injustificado a informações pessoais de uma empresa que não é parte na presente acção;

5 - Não está em causa saber os dados referentes a clientes de tal empresa terceira, pelo que não tem aplicabilidade, nos termos pretendidos pelo Tribunal, do Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016) e pela Lei nº 58/2019 de 18/08;

6 - As informações pretendidas, não estão sujeitas a sigilo comercial por parte da sociedade do Réu;

7 – O Tribunal não considerou impertinente a prova pericial requerida, reconhecendo, até, ser imprescindível para a descoberta da verdade;

8 - O Tribunal ao indeferiu a requerida perícia, não levou em conta devida a finalidade da mesma, nem o seu concreto âmbito;

9 - Não existe, por parte do Autor, qualquer tentativa de obtenção de dados da Réu, que estejam sujeitos a segredo comercial;

10 - O que a Autora pretende é apenas e tão só saber se existe informação da própria Autora e não do Réu ou de terceiros, informação que haja sido transferida ilegalmente pelo Réu da empresa Autora para a sua própria empresa;

11 - A perícia requerida, diz apenas e tão só respeito a estes dados e no identificado período de tempo;

12 – As informações/dados informáticos contêm uma “impressão digital” que pode determinar a identidade/proveniência dos seus “criadores” e “proprietários”;

13 - A sua transmissão electrónica para outros equipamentos deixa “rasto informático” insusceptível de ser apagado com facilidade;

14 – Daí a perícia requerida com os mencionados fins.

15 - Nenhuma prova proibida ou ilegal pretende a Autor aproveitar, para fazer prova do por si alegado.

16 – O despacho ora em crise violou entre outros mas sem limitar o artigo 476º nº1 do Código Processo Civil.

Termos que que deve o presente recurso ser recebido e julgado provado e procedente e em consequência o despacho recorrido ser substituído por um outro que admita a realização da prova pericial requerida por legal, assim se fazendo justiça.”

*

O Réu apresentou resposta concluindo que:

(…).

*

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer que antecede, no sentido de que a apelação deverá ser julgada improcedente.

*

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

*

II – Fundamentação

a)- Factos provados:

Os constantes do relatório que antecede                                       

*

*

b) - Discussão

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º do C.P.C.), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Cumpre, então, apreciar a questão suscitada pela Autora recorrente, qual seja:

- Se a prova pericial que requereu deve ser admitida.

Alega a recorrente que:

- Requereu a produção de prova pericial com o fim de se averiguar se o Réu procedeu à recolha de dados e informações existentes no seu sistema informático, que descarregou para um disco externo e posteriormente descarregou no sistema informático da sociedade que criou, concorrente da Autora;

- A Autora apenas pretende a confirmação, ou não, desta situação, através do rasto deixado nos respetivos sistemas;

- A Autora não pretende nem requereu o acesso aos dados da sociedade “B..., Lda”, criada pelo Réu em concorrência com a Autora;

- Não está em causa saber os dados referentes a clientes de tal empresa terceira, pelo que não tem aplicabilidade, nos termos pretendidos pelo Tribunal, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016) e pela Lei nº 58/2019 de 18/08;

- As informações pretendidas não estão sujeitas a sigilo comercial por parte da sociedade do Réu;

- As informações/dados informáticos contêm uma “impressão digital” que pode determinar a identidade/proveniência dos seus “criadores” e “proprietários”;

- A sua transmissão eletrónica para outros equipamentos deixa “rasto informático” insuscetível de ser apagado com facilidade;

- Daí a perícia requerida com os mencionados fins.

Vejamos:

Como já referimos, o tribunal de 1ª instância indeferiu a requerida perícia com os fundamentos constantes do despacho supratranscrito.

Pois bem, conforme resulta do artigo 388.º do CC, <<a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial>>.

Por outro lado, <<se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objecto proposto (…)>> - n.º 1 do artigo 476.º do CPC.

Assim, a perícia só deve ser indeferida se for impertinente ou dilatória, sendo que, <<a diligência é impertinente se não respeita aos termos da causa e será dilatória se as questões colocadas não exigirem conhecimentos especiais>>[2].

Acresce que, <<por expediente dilatório deve entender-se o desonestamente usado pela parte, sem intuito sério ou construtivo, sem cabimento processual, que visa apenas torpedear e retardar o prosseguimento da acção, entorpecer a sua normal tramitação e a realização da justiça>>[3].

Por outro lado, a prova pericial não pode ser indeferida com o fundamento de que a matéria em causa pode ser provada por outros meios, por documentos ou testemunhas[4].

Regressando ao caso dos autos, a Autora requereu a realização de uma perícia “a todos os equipamentos informáticos e tecnológicos da empresa B..., Lda, com a certidão permanente com o código de acesso ...51 válida até 03.06.2024, para o que indica o seguinte quesito:

- Esclarecer o Sr. Perito se ocorreram descargas/download de informação nos equipamentos supra citados nomeadamente mas sem limitar operações de descarga/downlould de disco externo contendo as informações da A. referidas acima melhor identificadas na P.I. no período entre Outubro de 2021 e Dezembro de 2022.”

 Lida a petição inicial constatamos que nos artigos 124.º a 126 da petição inicial a Autora alega que o Réu, ao serviço da Autora, utilizava um disco externo acoplado ao computador de serviço e com o qual trabalhava e para o mesmo gravou todos os dados constantes no computador e respeitantes a clientes da Autora, para posteriormente os utilizar em proveito próprio e da sua clínica e, ainda, que no mesmo disco externo procedeu à gravação de toda a informação relevante existente no computador, como sejam as fichas de consentimento, relatórios médicos e demais documentação  pessoal e privada da Autora.

Mais resulta da p. i. que a Autora peticiona a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e morais por violação de deveres contratuais e concorrência.

Assim sendo, impõe-se concluir, desde logo, que a perícia requerida não é impertinente, na medida em que respeita aos termos da causa.

Acresce que, pese embora tais factos possam ser provados por outros meios, não podemos concluir que a perícia requerida é dilatória, posto que a prova da existência de descargas/download de informação nos equipamentos da B..., nomeadamente, operações de descarga/download de disco externo, requer conhecimentos especiais, ou seja, a mesma tem cabimento processual.

Acontece que a requerida perícia não foi indeferida por ser impertinente mas sim por se considerar que com a realização da mesma estaria a aceder-se a informação relacionada com a vida interna de empresa terceira e dados pessoais dos clientes da mesma, informações sujeitas a sigilo comercial e dados protegidos pelo RGPD, a realização de tal diligência implicaria um injustificado acesso a informações pessoais da empresa que não é parte na presente ação, bem como de pessoas singulares terceiras, cujos dados pessoais estão legalmente protegidos, o que sempre violaria o princípio da proporcionalidade, sendo que a Autora sempre poderá produzir prova da factualidade alegada por outros meios de prova.

Ora, como já referimos, a prova pericial não pode ser indeferida com o fundamento de que a matéria em causa pode ser provada por outros meios.

Quanto ao mais não podemos deixar de acompanhar a decisão recorrida.

Na verdade, ao contrário do alegado pela recorrente, a realização da requerida perícia implica o acesso injustificado a informações pessoais de terceiros.

Alega a Autora que pretende saber se o Réu recolheu dados e informações existentes no seu sistema informático e se posteriormente as descarregou no sistema informático da sociedade que criou, no entanto, a sua pretensão não pode ser realizada sem intromissão no sistema informático da empresa “terceira” e nos dados dos seus clientes.

Ao efetuar a requerida perícia com vista a averiguar se ocorreram descargas/downloads de informação nos equipamentos da B..., nomeadamente, operações de descarga/download de disco externo contendo as informações da Autora, o senhor perito terá necessariamente de aceder ao conteúdo dos mesmos, sendo certo que no sistema informático constará toda a informação daquela empresa, nomeadamente, a respeitante aos dados pessoais dos seus clientes/pacientes.

Ora, como se refere na decisão recorrida, esta informação, por um lado, encontra-se sujeita a sigilo comercial (artigos 313.º e 314.º do CPI) e, por outro, está protegida pela Lei n.º 58/2019, de 18/08 (Proteção de dados).

Como se decidiu no Acórdão da Relação de Guimarães, de 03/02/2022, disponível em www.dgsi.pt, que acompanhamos:

<<O direito à prova não é um direito absoluto, podendo ser sujeito a limites e restrições, que não impliquem a eliminação do direito, tendo em conta outros interesses e valores que reclamem tutela. Deve proceder-se a uma análise dos interesses em jogo, procurando aquietar as tensões numa solução que seja socialmente e em termos de justiça, aceitável, que maximize a satisfação de uns e outros valores, podendo no limite soçobrar os interesses em confronto com o direito à prova. Estas tensões são normalmente resolvidas pelo legislador, com normas limitativas ou proibitivas da prova. Tal não obsta, no entanto, a que o julgador, em cada caso concreto, não deva fazer a ponderação, limitando a pretensão probatória quando ela toca outros interesses, máxime, nos casos em que a pretensão vai além do necessário para o fim pretendido. As diligências probatórias devem desde logo ser necessárias – artigo 411º do CPC -, devendo o juiz recusar as que foram impertinentes ou dilatórias-. Artigo 6º, nº 1 do CPC-.

Desconsiderar esta realidade equivale a desconsiderar interesses que o legislador pretendeu proteger. Assim, e, não obstante não resultar do nº 3 do artigo 417º do CPC o segredo mercantil como motivo de recusa, impõe-se uma adequada ponderação do solicitado, devendo limitar-se o acesso aos elementos efetivamente necessários e imprescindíveis para a demonstrações dos factos que se visa provar, tendo em consideração os princípios da adequação e proporcionalidade; e sem prejuízo do dever de guardar segredo por parte dos intervenientes que acedam às informações.

A preservação do segredo comercial é uma preocupação da União Europeia, relevando para o bom funcionamento do mercado interno – considerando 36 da Diretiva (UE) 2016/943 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2016, relativa à proteção de know-how e de informações comerciais confidenciais (segredos comerciais) contra a sua aquisição, utilização e divulgação ilegais.

Nos considerandos da Diretiva (UE) 2016/943 consta:

(1) As empresas e as instituições não comerciais de investigação investem na aquisição, no desenvolvimento e na aplicação de know-how e de informações que são a moeda de troca da economia do conhecimento e proporcionam uma vantagem competitiva. Este investimento na criação e na aplicação de capital intelectual é um fator determinante no que diz respeito à sua competitividade e ao seu desempenho … Outro meio de apropriação dos resultados da inovação é a proteção do acesso e da exploração de conhecimentos valiosos para a entidade que não sejam do conhecimento geral. Esse valioso know-how e essas valiosas informações empresariais, que são confidenciais e que se pretende que permaneçam confidenciais, são designados como segredos comerciais.

(2) As empresas, independentemente da sua dimensão, valorizam os segredos comerciais tanto como as patentes e outras modalidades de direitos de propriedade intelectual. Utilizam a confidencialidade como um instrumento de gestão da competitividade empresarial e da inovação na investigação, em relação a um conjunto variado de informações que vão para além dos conhecimentos tecnológicos e abarcam dados comerciais tais como informações sobre os clientes e os fornecedores, planos de negócios e estudos e estratégias de mercado. As pequenas e médias empresas (PME) valorizam ainda mais os segredos comerciais e são ainda mais dependentes deles…

(…)

(14) É importante adotar uma definição homogénea de segredo comercial, sem restringir o objeto a proteger contra apropriação indevida. Essa definição deverá ser formulada de forma a abranger o know-how, as informações empresariais e as informações tecnológicas sempre que exista um interesse legítimo em mantê-los confidenciais e uma expectativa legítima de preservação dessa confidencialidade. Além disso, esse know-how ou essas informações deverão ter um valor comercial real ou potencial.

(…)

(15) É igualmente importante identificar as circunstâncias em que se justifica a proteção jurídica dos segredos comerciais. Por este motivo, é necessário definir a conduta e as práticas que devem ser consideradas como aquisição, utilização ou divulgação ilegais de um segredo comercial.

(…)

Conquanto a diretiva pareça ter visado essencialmente criar condições para o titular do segredo não se inibir de recorrer a tribunal com receio de o revelar, conforme considerando 24 e artigo 4º, 1 (os Estados-Membros asseguram que os titulares de um segredo comercial estejam habilitados a requerer a aplicação das medidas, dos procedimentos e das vias de reparação previstos na presente diretiva a fim de impedir a aquisição, utilização ou divulgação ilegais do seu segredo comercial ou de obter reparação por essa aquisição, utilização ou divulgação ilegais), deu fundamento ao artigo 352º do Código de Propriedade Industrial, que estabelece uma proteção no âmbito de um processo judicial.

Refere-se no preâmbulo do D.L. n.º 110/2018, de 10 de dezembro que aprova o novo Código da Propriedade Industrial, transpondo as Diretivas (UE) 2015/2436 e (UE) 2016/943.

A Diretiva dos Segredos Comerciais procura harmonizar entre os vários Estados-Membros os níveis de proteção de que deve beneficiar um conjunto diversificado de know-how ou informações de natureza confidencial que hoje assumem uma importância crescente no quadro de uma economia do conhecimento, que faz assentar nas atividades de inovação e investigação um dos motores para o crescimento económico, para o progresso científico e tecnológico, para o emprego e para a competitividade das empresas…. Esta importância que o recurso aos segredos comerciais hoje assume para as empresas de perfil inovador, em particular para as pequenas e médias empresas, contrasta, porém, com um quadro jurídico ainda insuficiente ao nível da União Europeia para proteção do acesso e da exploração desses segredos contra a sua obtenção, utilização ou divulgação ilegal por terceiros, deixando muitas vezes os agentes económicos expostos à utilização indevida do seu capital intelectual… A Diretiva dos Segredos Comerciais procura dar resposta a esta insuficiência do ordenamento jurídico em vigor, instituindo um conjunto de mecanismos de natureza civil que, sem pôr em causa os direitos e as liberdades fundamentais ou o interesse público, permita prevenir e reprimir práticas ilícitas neste domínio. Seguramente que um quadro legal reforçado, dotado de mecanismos jurídicos equilibrados e eficazes, servirá como um incentivo para que as empresas continuem a utilizar e a explorar com maior segurança os segredos comerciais, encorajando-as a prosseguir as suas atividades de inovação tão necessárias ao bom desempenho das economias e ao progresso social…. Nesta matéria adapta-se aos segredos comerciais a secção já existente no Código da Propriedade Industrial relativa às medidas e procedimentos que visam garantir o respeito pelos direitos de propriedade industrial. Esta opção vai além das obrigações que decorrem do regime mínimo imposto pela Diretiva, instituindo-se um quadro legal verdadeiramente mais robusto para os titulares de segredos comerciais….>>

Regressando ao caso dos autos, impõe-se concluir que sendo a requerida perícia dirigida a todos os equipamentos informáticos e tecnológicos da empresa terceira e de forma genérica a descargas/downloads de informação nos equipamentos da mesma, tal diligência, sem mais, viola o segredo comercial nos termos já enunciados, inexistindo qualquer fundamento legal para a quebra do mesmo, sendo certo que não consta dos autos qualquer consentimento por parte da empresa visada.

Acresce que, os dados pessoais dos clientes/pacientes da mesma empresa terceira encontram-se protegidos nos termos constantes do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27/04/2016) e pela Lei n.º 58/2019, de 18/08 que assegura a execução de tal regulamento na ordem jurídica nacional, pelo que, tal como se refere na decisão recorrida, o acesso aos mesmos só pode ter lugar nos termos previstos em tal legislação, mediante consentimento dos respetivos titulares.

Tal como consta da decisão recorrida “no caso em apreço estão em causa informações confidenciais, e não comprovou a Autora qualquer consentimento dos respectivos titulares para a sua divulgação, não podendo o tribunal impor a terceiros, no âmbito do presente processo, a obtenção de tais dados, o que sempre violaria o princípio da proporcionalidade atenta a diversa natureza dos interesses em causa.

Na verdade, a realização de tal diligência implicaria um injustificado acesso a informações pessoais de empresa que não é parte na presente acção, bem como de pessoas singulares terceiras, cujos dados pessoais estão legalmente protegidos, o que sempre violaria do princípio da proporcionalidade, (…).”

Em suma, a perícia tal como foi requerida pela Autora não se reveste de proporcionalidade tendo em conta que tal diligência de prova violaria os direitos de terceiros consagrados, desde logo, no n.º 2 do artigo 26.º da CRP.

Pelo exposto, impõe-se o indeferimento da perícia requerida pela Autora tal como consta da decisão recorrida.

*

Improcedem, assim, as conclusões da recorrente com a consequente manutenção do despacho recorrido em conformidade.

*

*

IV – Sumário[5]

(…).

                                                          

*

*

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na improcedência do recurso, acorda-se em manter a decisão recorrida.

                                                                       *

                                                    *

Custas a cargo da Autora recorrente.

                                                           *

                                                           *


   Coimbra, 2024/03/15

____________________ 

  (Paula Maria Roberto)  

    ___________________

(Felizardo Paiva)

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(Mário Rodrigues da Silva)

                                                                                                                                                                 


      


[1] Relatora – Paula Maria Roberto
 Adjuntos – Felizardo Paiva
                – Mário Rodrigues da Silva


[2] Acórdão da RE, de 25/01/2018, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Acórdão da RP, de 25/10/2007, disponível em www.dgsi.pt.
[4] A este propósito, cfr. o acórdão da RE, de 31/05/2012, disponível em www.dgsi.pt.
[5] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.