Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
509/22.5PAMGR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: CONCEITO DE ACTO PROCESSUAL
INTERROGATÓRIO DE ARGUIDO
REGRA GERAL QUANTO À PRÁTICA DOS ACTOS PROCESSUAIS
FALTA NÃO JUSTIFICADA
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 103.º E 116.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – O acto processual é toda a acção, comportamento ou actuação praticadas no processo, ou em vista do processo, e integram-se na dinâmica processual enquanto unidade perspectivada pela finalidade do processo penal, delimitando a sua relação sequencial o momento da prática de cada um deles.

II – O primeiro interrogatório é um acto de natureza processual estando, portanto, condicionado à disciplina dos actos processuais, regulada no artigo 103.º, do C.P.P.

III – A regra, constante do n.º 1 do artigo 103.º do C.P.P., é que os actos processuais se praticam nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça, e fora do período de férias judiciais.

IV – Não se inscrevendo o primeiro interrogatório designado em processo de natureza urgente, por alguma das causas previstas nas alíneas a), b) e c) a h) do n.º 2 do artigo 103.º do C.P.P., e não tendo o Ministério Público proferido despacho a reconhecer vantagens em que o seu inicio, prosseguimento ou conclusão ocorresse no período de férias judiciais, nos termos da alínea c), a marcação do interrogatório para período das férias judiciais constitui um acto irregular.

V – Sendo o acto irregular, a falta de comparência do suspeito à diligência não é cominada com multa ou detenção, estabelecidas no artigo 116.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P.

Decisão Texto Integral:
Relator: Alcina Costa
1.º Adjunto: José Eduardo Martins
2.º Adjunto: Paulo Guerra

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do presente inquérito, promoveu o Ministério Público ao senhor Juiz de Instrução Criminal: a) a condenação do faltoso em multa processual, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e b) a passagem de mandados de detenção para comparência do mesmo neste DIAP ..., em horário de expediente, pelo tempo indispensável à realização da diligência referida - constituição como arguido, interrogatório nessa qualidade e prestação de TIR -, no prazo de 30 dias, em conformidade com o preceituado no artigo 116.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. 

2. Sobre esta promoção recaiu o seguinte despacho:

«(…) Da notificação constante de fls. 67 resulta que … foi notificado para comparecer em diligência de inquérito no dia 03/01/2023, às 16 horas, isto é, em plenas férias judiciais. Considerando que nos presentes autos não está em causa uma qualquer das situações previstas no n.º 2 do artigo 103º do C. P. Penal, nenhuma razão existe para a prática de acto no período de férias judiciais. Nessa medida, nenhuma obrigação existia para o visado comparecer nesse acto.

Termos em que, face ao exposto, não se mostrando verificado o condicionalismo previsto no artigo 116º do C. P. Penal, indefiro o requerido pelo Ministério Público (…)».

3. Não se conformando, recorre o Ministério Público, concluindo:
«1.ª Em investigação a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de roubo agravado, previsto e punido pelo artigo 210.º, nºs 1 e 2, al. b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, al. f), do Código Penal, e a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
2.ª No decurso das diligências realizadas pelo OPC (PSP ...) ao abrigo de competência delegada, e por assumir sustentadamente a qualidade de suspeito da prática do indicado crime de roubo agravado, notificou-se pessoalmente  … para comparência na Esquadra da PSP ... no dia 03.01.2023, às 16h00m, tendo por objectivo a sua constituição como arguido e interrogatório nessa qualidade, bem como  prestação de TIR.
3.ª Apesar de devidamente notificado, o suspeito … não compareceu à diligência agendada na data, hora e local indicados, e não comunicou atempadamente a sua impossibilidade de comparência, nem requereu a justificação da sua falta, nos termos do artigo 117.º do Código do Processo Penal.
4.ª Nessa sequência, promovemos, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, a condenação do faltoso em multa processual e a passagem de mandados de detenção para comparência do mesmo neste DIAP ..., pelo tempo indispensável à realização da diligência referida.
5.ª Tal promoção não obteve acolhimento, por se entender inexistir qualquer obrigação do suspeito de comparência no acto, uma vez que a diligência teria lugar em férias judiciais e não integrava qualquer das situações previstas no n.º 2 do artigo 103.º do Código de Processo Penal.
6.ª O entendimento sufragado no despacho recorrido opera uma extensão da tramitação processual em férias judiciais às diligências de investigação realizadas, nesse período, pelos OPC’s, equiparando realidades absolutamente distintas.
7.ª Tal entendimento ignora a realização contínua e legítima de diligências de investigação pelos OPC’s em inquéritos e/ou actos de natureza não urgente, no período de férias judiciais.
8.ª Tal entendimento isenta qualquer cidadão que, pessoalmente notificado, falte injustificadamente a diligências dessa natureza das cominações legalmente expressas no artigo 116.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, e não legalmente excepcionadas.
9.ª Tal entendimento implica, levado ao limite, a paralisação de diligências de investigação dessa natureza levadas a cabo em milhares de inquéritos, todos os anos, no período de férias judiciais.
10.ª Tal entendimento contraria frontalmente a norma e não tem, assim, arrimo legal.

4. Nesta instância, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, …

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento de mérito do Recurso.

II. ACTOS PROCESSUAIS RELAVANTES

Para apreciação da  questão a decidir, importa ter presente, os seguintes actos processuais:

a) No inquérito referenciado em epígrafe investiga-se a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de roubo agravado, …, e a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, …

b) No decurso das diligências de investigação realizadas pela PSP ..., ao abrigo de competência delegada, coligiram-se elementos que sustentaram suspeita de que … fosse um dos indivíduos que abordou o ofendido nas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar, subtraindo-lhe os indicados objectos.

c) Nessa senda, o OPC, a 15.11.2022, notificou pessoalmente o suspeito … para comparência na Esquadra da PSP ... no dia 05.12.2022, às 10h00m, tendo por fito a sua constituição como arguido e interrogatório nessa qualidade, bem como a prestação de TIR.

d) Apesar de devidamente notificado, o suspeito não compareceu à diligência agendada na data, hora e local indicados, e não comunicou atempadamente a sua impossibilidade de comparência, nem requereu a justificação da sua falta, nos termos do artigo 117.º do Código do Processo Penal.

e) Em 5.12.2022, o suspeito foi detido no âmbito do inquérito n.º NUIPC 593/22.... e sujeito a 1.º interrogatório judicial, pela prática de um crime de roubo (desqualificado pelo valor), previsto e punido pelo artigo 210.º, nºs 1 e 2, al. b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, al. f) e n.º 4, do Código Penal, tendo-lhe sido aplicadas, a 06.12.2022, medidas de coacção não privativas da liberdade).

f) Em 21.12.2022, o suspeito … foi notificado pessoalmente para comparência na Esquadra da PSP ... no dia 03.01.2023, às 16h00m, tendo por fito a sua constituição como arguido e interrogatório nessa qualidade, bem como a prestação de TIR.

g)  Apesar de devidamente notificado, o suspeito não compareceu à diligência agendada na data, hora e local indicados, e não comunicou atempadamente a sua impossibilidade de comparência, nem requereu a justificação da sua falta, nos termos do artigo 117.º do Código do Processo Penal.

h) Na notificação efectuada, consta expressamente que “em caso de falta injustificada de comparecimento no dia, hora e local designados, o juiz condena o faltoso ao pagamento de uma soma entre 2UC e 10UC. Sem prejuízo de pagamento da soma indicada, poderá ser ordenada a sua detenção pelo tempo indispensável à realização da diligência e, bem assim, ser condenado no pagamento de todas as despesas ocasionadas pela sua não comparência – Art.º 116º, nº 1 e 2, do Código de Processo Penal”.

 

IIII.  APRECIAÇÃO DO RECURSO

Em causa está, a questão de saber se saber se o primeiro interrogatório arguido, quando realizado pelo órgão de policia criminal, integra o conceito de acto processual para efeitos do disposto no artigo 103.º, do Código de Processo Penal.

Apreciando:

O processo estrutura-se como um conjunto, uma sequência de actos ordenados em direcção ao fim que o caracteriza. Os actos que o compõem não são praticados caótica e desligadamente:  formam uma ordem, uma sequência que se dirige para um fim.  E valem apenas, em regra, como actos dessa sequência em função da finalidade a que o processo se destina - Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1.º volume, página 39 e. Antunes Varela, /J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manuel do Processo Civil, página 10;).

O processo é composto por uma multiplicidade e diversidade de actos, os actos processuais. Na expressão de Cavaleiro Ferreira - Curso de Processo Penal, volume I, páginas181 - «os actos processuais integram-se no todo de que fazem parte e participam do fim comum; sendo por isso, verificável uma intrínseca interdependência funcional em todos os actos processuais».

O acto processual «pode caracterizar-se como toda a acção, comportamento ou actuação praticada no processo, ou em vista do processo; os actos processuais integram-se na dinâmica processual enquanto unidade perspectivada pela finalidade do processo penal – a averiguação sobre a existência de um crime e de quem foram os seus autores, respeitando as imposições decorrentes do principio da legalidade processual para obter uma decisão sobre a responsabilidade e a culpa e, se for caso disso, a aplicação de uma sanção criminal e a reparação as consequências do crime.

Os actos processuais são uma espécie dentro do conceito genérico do acto e facto jurídico que pertence à teoria geral do direito, nos actos processuais os seus efeitos jurídicos incidem sobre a relação jurídica processual. Mas, incidindo, sobre a relação jurídica processual, podem não ser praticados no processo; basta que sejam praticados para o processo e produzam efeitos processuais, embora possam ser, em si mesmos, exteriores ao processo. O que releva é a natureza do fim, isto é, da finalidade com que sejam praticados, que os efeitos no processo denunciam.» [Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, anotação ao artigo 103.º, páginas 341 e 342].  

A relação sequencial entre os diversos actos processuais postula a delimitação temporal, o momento, o quando se podem praticar.

Neste particular dispõe ao artigo 103.º, do Código de Processo Penal:

O âmbito objectivo de aplicação deste preceito está inelutavelmente associado aos actos processuais. Será a prática de um acto no processo, ou fora dele, mas com finalidade processual que devem ser praticados nos tempos indicados no citado artigo 103.º transcrito.

Pois bem.

O primeiro interrogatório de arguido pode ser feito no inquérito pelo Ministério Público ou por órgão de polícia criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização, de acordo com o preceituado no artigo 144.º, n.º 1 de 2, do Código de Processo Penal e está condicionado à disciplina dos actos processuais regulada no artigo 103.º, do Código de Processo Penal,  mormente os números 3 a 5,  que se lhe referem expressamente.

Neste quadro, parece-nos indubitável que o primeiro interrogatório do arguido (em liberdade ou detido) é um acto de natureza processual, sendo, por isso, destituído de fundamento, a alegação de que aquele acto configura uma mera diligência de investigação realizada pelos órgãos de policia criminal, no âmbito dos poderes investigatórios, podendo ser realizada a todo o tempo, à revelia da previsão do artigo 103.º, do Código de Processo Penal.

Dito isto, vejamos se a diligência para o qual o suspeito foi notificado – interrogatório como arguido – podia ter sido realizado em período de férias judiciais.

De acordo com o artigo 103.º em análise e acima transcrito, a regra é a de que os actos processuais não podem ser praticados a qualquer momento, mas apenas nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais (estas decorrem entre 22 de dezembro a 3 de janeiro; de Domingo de Ramos a Segunda Feira de Páscoa e de 16 de julho a 31 de agosto).

Desta regra, excepciona o legislador, no n.º 2:  a) os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas;  b) os atos relativos a processos em que intervenham arguidos menores, ainda que não haja arguidos presos;  c) os actos de inquérito e de instrução, bem como os debates instrutórios e audiências relativamente aos quais for reconhecida, por despacho de quem a elas presidir, vantagem em que o seu início, prosseguimento ou conclusão ocorra sem aquelas limitações;  d) os actos relativos a processos sumários e abreviados, até à sentença em primeira instância;  e) os actos processuais relativos aos conflitos de competência, requerimentos de recusa e pedidos de escusa;  f) os actos relativos à concessão da liberdade condicional, quando se encontrar cumprida a parte da pena necessária à sua aplicação;  g) os actos de mero expediente, bem como as decisões das autoridades judiciárias, sempre que necessário;  e h) os atos considerados urgentes em legislação especial.

No caso vertente, nem o primeiro interrogatório do arguido para o qual o suspeito foi convocado se inscreve em processo de natureza urgente por alguma das causas previstas nas alíneas a), b) e c) a h) do n.º 2 (operam opes legis), nem o Ministério Público proferiu despacho a reconhecer vantagens em que o inicio, prosseguimento ou conclusão do interrogatório do arguido ocorresse no período de férias judiciais, nos termos da alínea c) do mesmo n.º 2, do artigo 103.º.

Pelo que, o interrogatório do arguido agendado para o dia 3 de janeiro, período das férias judiciais, data para o qual foi convocado, com inobservância do disposto no n.º 1, do artigo103.º, do Código de Processo Penal, constitui um acto irregular.

E, sendo irregular, a falta de comparência do suspeito, AA à diligência de 3 de janeiro, não é cominada com multa ou detenção estabelecida no artigo 116.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal, improcedendo, assim o Recurso.

IV. Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em julgar não provido o Recurso interposto pelo Ministério Público

Sem tributação.

Notifique.

Coimbra, 11 de outubro de 2023