Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
I. RELATÓRIO
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Competência Genérica ..., o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido AA, filho de BB e de CC, natural de ..., nascido a .../.../1952, portador do cartão de cidadão n º ...65, residente na Rua ..., ..., ... ..., imputando-lhe a prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
2. Por sentença de 28-09-2023, foi decidido condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, numa pena de 8 (oito) meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 43º, nº 1. do Código Penal, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, na residência sita na Rua ..., ..., ... ....
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3. Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, formulando no termo da respectiva motivação, as seguintes conclusões:
“(…)
VIII - Apesar da lei 38-A/2023 de 02 de Agosto restringir a aplicação da amnistia apenas aos jovens entre os 16 e os 30 anos de idade, entende-se que tal lei deve ser aplicada no caso em apreço, devendo ser efectuada uma aplicação extensiva da mesma,
IX - A violação do princípio da igualdade, consagrado na Constituição da Republica Portuguesa, é nítida nesta lei.
X – Deverá ser feita uma interpretação extensiva da lei em apreço ao caso do ora Recorrente, isto por uma questão de justiça e de igualdade entre as pessoas, e em consequência, deverá a pena aplicada ao Arguido ser perdoada ao abrigo da referida lei 38-A/2023.
Nestes termos e, com o V/ sempre mui douto suprimento, deve ser dado provimento ao recurso, ordenando-se a revogação da douta sentença proferida nos termos expostos, com que Vossas Excelências farão seguramente JUSTIÇA!”
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4 - Respondeu ao recurso o Ministério Público, formulando no termo da contra motivação as seguintes conclusões:
“1. No que se retira das conclusões de recurso, o recorrente discorda da sentença proferida na medida em que o condenou pela prática, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, numa pena de 8 (oito) meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 43 º n º 1 do Código Penal, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, alegando o recorrente ser tal pena excessiva e desproporcional, sobretudo em face da fundamentação da sentença que considerou o grau de ilicitude da conduta do arguido como mediano, sem qualquer gravidade de consequências da conduta do mesmo, devendo ter sido aplicada uma pena não privativa da liberdade.
2. O recorrente alegou ainda que deveria ter sido aplicado o perdão da pena, por interpretação extensiva da Lei nº 38-A/2023 de 02 de Agosto.
(…)
6. De igual modo, não pode ser procedente a argumentação do recorrente, quanto à aplicação da Lei 38-A/2023, de 02.08, porquanto tal lei tem como objetivo medidas de clemência, focadas nos jovens, e que tiveram lugar no quadro da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, sendo aplicável a jovens entre os 16 e 30 anos de idade, e o arguido tem 71 anos de idade, não constituindo tal limite de idades qualquer violação ao princípio de igualdade.
7. Nem tão pouco, seria possível uma aplicação da referida lei por interpretação extensiva, pois conforme estipulado em diversos Acórdãos, “As leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos termos em que estão redigidas, sem ampliações decorrentes de interpretações extensivas ou por analogia, nem restrições que nelas não venham expressas.”
8. Assim sendo, outra decisão não era passível de ser adotada pelo tribunal a quo.”
Termina pugnando pela improcedência do recurso, mantendo-se a Sentença recorrida.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer: (transcrição parcial)
“(…)
7. E também quanto à questão da eventual inconstitucionalidade da Lei n.º 38 A/2023 por violação do princípio da igualdade, não tem razão o recorrente.
8. Esta lei, como qualquer outra lei de amnistia, pode colocar problemas do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade.
9. No entanto, tanto a doutrina como a jurisprudência têm vindo, de forma consistente, designadamente em matéria de amnistia ou perdão, a considerar constitucionalmente conformes as eventuais diferenças de tratamento, desde que as mesmas surjam materialmente fundadas e baseadas em critérios de valor objectivo.
10. Na Exposição de Motivos da referida lei pode ler-se:
“A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de Dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.
Considerando a realização em Portugal da JMJ em Agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adoptar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adoptar à realidade humana a que a mesma se destina”.
11. Mostra-se, assim, perfeitamente fundamentada a opção por limitar a abrangência da lei aos jovens até aos 30 anos, sendo forçoso reconhecer que a assinalada diferença de tratamento consoante a idade do autor à data da prática do crime, não resulta de critério arbitrário ou irrazoável.
12. As razões para a discriminação são evidentes e têm um fundamento material bastante.
13. Assim, e como referimos, acompanhamos a posição do Ministério Público na 1ª instância, no sentido da improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.”
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Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o art. 412º, nº 1, do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- Medida e escolha da pena;
- Aplicação do perdão concedido pela lei 38-A/2023, de 02 de Agosto, mediante interpretação extensiva, de forma a abranger o recorrente não obstante os seus 71 anos de idade.
- Inconstitucionalidade da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, por violação do princípio da igualdade, consagrado na Constituição da Republica Portuguesa.
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Importa ter presente, para a resolução destas questões, o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:
A) Factos provados.
“ [Acusação Pública]
2.1.1. No dia 08 de fevereiro de 2023, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, matrícula ..-..-OZ, no IP..., quilómetro 54, sentido Oeste-Este, ..., concelho ....
2.1.2. O referido veículo tinha sido apreendido no dia 18 de novembro de 2022, pela Guarda Nacional Republicana (GNR), uma vez que o arguido tinha sido intercetado a circular nesse dia, com o mencionado veículo na via pública sem que tivesse sido realizado seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório por lei.
2.1.3. Na ocasião da apreensão do veículo, o arguido foi investido na qualidade de fiel depositário do mesmo, pela GNR, tendo-lhe sido regularmente comunicado, através do respetivo auto de apreensão de veículo, o qual foi assinado pelo arguido, de que tinha a obrigação de o entregar quando lhe fosse exigido, não o podendo remover, alterar o estado, utilizar, alienar, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer outra forma, subtrair ao pode público, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência e/ou descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público.
2.1.4. Na data referida em 2.1.1 a apreensão do veículo automóvel de matrícula ..-..-OZ ainda não tinha sido levantada.
2.1.5. Ao conduzir o referido veículo nas referidas circunstâncias, que bem sabia não o poder fazer, o arguido atuou com o propósito concretizado de não obedecer à determinação que lhe foi comunicada de não utilizar tal veículo, não obstante saber que a mesma lhe tinha sido regularmente comunicada, que era legítima, que emanava de autoridade competente, que lhe devia obediência e que, caso desobedecesse, incorreria na prática de um crime.
2.1.6. O arguido agiu assim, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
(…)
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III Decidindo
(…)
6. Aplicação do perdão concedido pela lei 38-A/2023, de 02 de Agosto, mediante interpretação extensiva.
Como é sabido e constitui jurisprudência uniforme, os recursos destinam-se a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior, visando apenas apurar a adequação e legalidade das decisões sob recurso e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições.
A lei 38-A/2023, de 02 de Agosto, entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2023 - artigo 15.º
A audiência de julgamento dos presentes autos realizou-se no dia 21-09-2023.
Assim sendo, impunha-se que o recorrente tivesse solicitado ao tribunal recorrido a aplicação da referida lei da amnistia, nos termos em que a defende, ou seja mediante a interpretação extensiva quanto ao limite de idade.
O que não fez, por isso que nem sequer é cogitável uma omissão de pronúncia, sequer implicitamente formulada.
Ainda assim, entende este tribunal que a pretendida interpretação extensiva não é sequer concebível, atenta a natureza excepcional de tais normas que, como se assinala no Ac de fixação de jurisprudência de 25-10-2001 «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).”
O perdão de penas e a amnistia, previstos na Lei da Amnistia JMJ, só se aplicam aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19-6-2023 por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, conforme resulta dos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 3.º e 4.º.
Tanto basta para se afirmar que no caso não tem aplicação o regime do perdão e da amnistia previsto na Lei 38-A/2023, de 02.08, atento o disposto no seu art Artigo 2.º, nº 1 e a idade do recorrente à data da prática dos factos - 70 anos.
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7. Inconstitucionalidade da norma do art. 2.º, nº 1, da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, por violação do princípio da igualdade, consagrado na Constituição da Republica Portuguesa.
O direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.
A propósito do direito de graça, vem o Tribunal Constitucional entendendo que - nos parâmetros do Estado de direito democrático, - a liberdade de conformação legislativa “goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d'Etat.»
Discricionariedade normativo-constitutiva que, contudo, tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais, nomeadamente o princípio da igualdade (perante a lei e na lei - cf. Pedro Duro, “Notas sobre alguns limites do poder de amnistiar”, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Cno II, nº. 3, 2001, p. 323 et seq.; e Francisco Aguilar, Amnistia e Constituição, Almedina, p. 37 e seg.) ). e a proibição de arbitrariedade, como limites à actividade legiferante do órgão constitucionalmente competente para dispor sobre a matéria.
Assim, o Tribunal Constitucional nº 25/00, publicado no Diário da República, II Série, nº 71, de 24 de Março de 2000:
"De acordo com a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional, as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas ao crivo do princípio da igualdade. Como se afirmou no acórdão nº 444/97 (Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 1997, sobre a Lei nº 9/96, de 23 de Março, 'o princípio de igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados – como são restringidos pela aplicação das sanções – impede desigualdades de tratamento'.
A diferenciação de tratamento que por elas seja estabelecida não deve ser arbitrária, materialmente infundada ou irrazoável (cf. o acórdão nº 42/95, Diário da República, II Série, de 27 de Abril de 1995, a propósito da exclusão de certas infracções do âmbito do perdão de penas concedido pela Lei nº 15/94; v. também os acórdãos 152/95, Diário da República, II Série, de 20 de Junho de 1995, e 160/96, não publicado, ambos sobre normas extraídas da mesma Lei).
Por outro lado, situações substancialmente diferentes exigem um regime diverso. A desigualdade de tratamento para diferentes situações é ainda uma dimensão essencial do princípio da igualdade - art 13º CRP.
Do mesmo modo, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República 1.ª série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior:
[...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, «razoável, racional e objectivamente fundadas», sob pena de, assim não sucedendo, «estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes», no ponderar do citado Acórdão n.º 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como «princípio negativo de controlo» ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos n.º s. 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados n.º s. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial («tertium comparationis»). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão n.º 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da «diferença» de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.”
Analisada a lei 38-A/2023, de 02 de Agosto entendemos em conformidade com o Ac desta Relação, de 22-11-2023, relator Des João Abrunhosa a Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, que “…a delimitação do âmbito de aplicação da lei reveste carácter geral e abstracto, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, portanto em número indeterminado, está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do n.º 1 do artigo 2.º.”
Sobre a questão, veja-se Ac do TC nº 510/98, que contem um estudo desenvolvido do instituto da amnistia, da sua história e da sua justificação no Estado de direito da Constituição e o respectivo voto de vencido onde se assinala “Ao apreciar a conformidade de uma decisão descriminalizadora com os princípios e normas constitucionais, o Tribunal deve averiguar, nomeadamente, se não há violação do princípio da igualdade (por exemplo, através de uma descriminalização de crimes mais graves, como o homicídio, associada à persistência da incriminação de crimes menos graves, como as ofensas corporais) ou até mesmo da exigência de segurança jurídica derivada do princípio do Estado de direito democrático (mediante a desprotecção sem apelo a meios alternativos de política criminal dos bens jurídicos de primordial dignidade que, afinal, não podem ser negligenciados pelo legislador penal sem que o sistema seja posto em causa no seu conjunto).
Abordando o tema, Ema Vasconcelos (Juíza de Direito no Juízo Central Criminal de Lisboa), na revista Julgar online Janeiro 2024, deixa expresso que “A instituição de normas diferenciando positivamente os “jovens” não é inédita no nosso ordenamento jurídico. Com efeito, e desde logo, o artigo 70.º da CRP, que consagra uma protecção especial da juventude. De igual modo, o artigo 9.º do Código Penal impõe a aplicação de disposições especiais para os maiores de 16 anos e menores de 21. Em obediência a tal disposição, o DL n.º 401/82, de 23 de Setembro, aprovou o Regime Especial para Jovens, aplicável a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime. Finalmente, também ao nível das anteriores leis de graça, é possível identificar disposições que impõem medidas especiais para jovens, designadamente o artigo 10.º da Lei n.º 15/94, de 11.05, e o artigo 3.º da Lei n.º 29/99, de 12.05, ambos impondo um regime diferenciado, aplicável a menores de 21 anos.
Logo, perfilhando este entendimento expresso com muita clareza, também se nos afigura que “o âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2.8, em análise, diferenciando positivamente os “jovens” entre os 16 e os 30, por ocasião da realização em Portugal das JMJ, encontra uma justificação material razoável e constitucionalmente relevante, tendo em conta, desde logo, a consagração, no artigo 70.º da CRP, da protecção especial da juventude, não sendo arbitrária, nem irrazoável, tratando de forma igual todos os que se encontram na mesma situação.
Em suma, a norma em questão mostra-se de acordo com os princípios constitucionais vigentes.
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IV Dispositivo
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC - (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
Coimbra, 24-01-24
Elaborado e revisto pela relatora, que utiliza a ortografia antiga
Isabel Valongo
Pedro Lima
João Novais