Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/22.7JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
RELAÇÃO CONFLITUOSA
INTEGRAÇÃO SOCIAL E PROFISSIONAL
ARREPENDIMENTO
Data do Acordão: 01/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – J1)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 132º, N.ºS 1 E 2, AL. A), 133º E 72º DO CÓDIGO PENAL.
Sumário:
I- Para a qualificação de um homicídio como privilegiado há que recorrer ao critério do homem médio para aferir da "diminuição sensível da culpa", no sentido de que a menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de uma pessoa normal, respeitadora das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente.
II- A existência de um relacionamento conflituoso entre avó (vítima) e neto (arguido), conjugada com perturbações mentais e comportamentais de que o arguido padece, não permitem dizer que o arguido estivesse dominado por compreensível emoção violenta ou por desespero que diminuísse sensivelmente a sua culpa.
III- Antes preenche os pressupostos da qualificação do homicídio, atendendo aos sentimentos de indiferença e à forma de atuação violenta e inopinada do arguido perante uma vítima desprotegida e de idade avançada.
IV- Não é de considerar social e profissionalmente integrado o arguido que não trabalha, pauta o quotidiano pela ociosidade e consumo de drogas, apresentando traços de personalidade de tipologia antissocial.
V- Não assume relevo atenuativo a mera verbalização do arrependimento pelo arguido em julgamento, extraindo-se antes da postura que por ele nela venha a ser assumida, com sinceridade e com reconhecimento genuíno da gravidade da sua conduta.
Decisão Texto Integral:
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            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I- Relatório

           

            1. No Processo Comum Colectivo Nº 170/22.7JAGRD, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível nos termos do artigo 132º, n.º s 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal.


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            2. Realizada a audiência de julgamento, com intervenção do Tribunal Coletivo, foi proferido acórdão, em 6 de outubro de 2023, depositado na mesma data, do dispositivo do qual ficou a constar:

             “…julgar parcialmente procedente a acusação e, em consequência, decide-se em:

            A) Absolver o arguido AA da prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado, por referência à alínea c) do n.º 2, do artigo 132º, do Código Penal;

            B) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelo artigo 132º, n.º s 1 e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 15 (quinze) anos de prisão

            (…)”


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            2. Inconformados com o decidido, interpuseram recurso do acórdão quer o arguido AA quer o Ministério Público, extraindo da motivação exarada nos respetivos requerimentos de interposição dos recursos as conclusões que se transcrevem:

            2.1. Do recurso do arguido:

            “1. O objeto do presente recurso assenta no erro da apreciação da factualidade dada como provada e não provada, na qualificação jurídica do crime por cuja prática o Arguido foi condenado, e na medida da pena aplicada.

                    2. Salvo o devido respeito, o facto dado como provado n.º 13 não pode ser considerado provado, pois a prova produzida na audiência de julgamento e os demais elementos juntos aos autos, não poderiam fundar a convicção do Tribunal a quo, tal como é descrita ao longo do acórdão recorrido.

            3. Os factos dados como provados, n.º 2, 15, 16, 18 e 19 do Acórdão recorrido, confirmam que a relação entre a vítima e o arguido era altamente conflituosa, pautando-se até por palavras muito fortes e suscetíveis de causar humilhação e frustração.

                    4. O arguido, em primeiro interrogatório judicial, a 02 minutos e 50 segundos da gravação do mesmo, prosseguindo até aos 3 minutos e 2 segundos refere que, no dia do homicídio “ela começou a insultar-me pegou num pau para me bater eu descontrolei-me completamente”.

                    5. A 09 minutos e 25 segundos da gravação do seu depoimento, prosseguindo até aos 09 minutos e 35 segundos, o mesmo relata “eu acordava de manhã com a minha avó a insultar-me” “porco, vais acabar como a tua madrinha”.

                    6. E, o arguido acrescenta, a 16 minutos e 02 segundos da mesma gravação, prosseguindo até aos16 minutos e 16 segundos “ela estava a tentar matar-me como pessoa”.

                    7. A 1 hora e 15 minutos e 59 segundos da gravação do seu depoimento nessa mesma ocasião, prosseguindo até a 01 hora e 16 minutos e 05 segundos, o arguido repete que “a minha avó fazia-me a cabeça total”.

                    8. Este quadro é confirmado pela testemunha BB, que a 4 minutos e 06 segundos da gravação do seu depoimento, prosseguindo até aos 5 minutos e 46 segundos, refere que a vítima “chamava o meu irmão de desgraçado, chegou a chamar de diabo entre outros nomes menos agradáveis de se ouvir (...) o meu irmão limitava-se a ouvir, ficava em silêncio (…) a relação era instável porque tão depressa a avó lhe dizia que podia vir como o tratava mal, já o chamava desgraçado. (…) chegou a chamar-lhe filho da puta (…).”

                    9. A testemunha CC, confirma, a 4 minutos e 48 segundos da gravação do seu depoimento, prosseguindo até aos 5 minutos e 35 segundos, que a avó do arguido lhe dizia ao telefone que o neto era um malandro, era um drogado não queria fazer nenhum e que o filho lhe confirmava que isso acontecia.

                    10. Acrescentando, a 5 minutos e 50 segundos da gravação do seu depoimento, prosseguindo até aos 6 minutos e 50 segundos, que pedia à avó do neto para não chamar esses nomes e que ela lhos chamava “era pura maldade desde sempre desde muito pequeno apresentava-o como sendo o diabo.”

                    11. A testemunha DD, refere, a 6 minutos da gravação do seu depoimento, prosseguindo até aos 6 minutos e 52 segundos, que a vítima dizia que o filho “é um desgraçado, cabrão … dizia-lhe para não chamar esses nomes” e que o filho lhe dizia “pai diz à mãe, diz à avó para não me chamar esses nomes”.        

                    12. As palavras dirigidas pela vítima ao arguido não correspondem a uma mera exteriorização de preocupação ou crítica com o seu percurso de vida, mas antes a uma atuação já desviante desse padrão, determinada por algum sentimento de agressão ou desespero, que foi despoletando conflitos e irritações no arguido, quer culminaram no infeliz desfecho do homicídio.

                    13. Da prova produzida não resultou para lá de dúvida razoável que a circunstância de barbarismo e de especial censurabilidade e de falta de consideração da relação familiar se tenham verificado, devendo o facto dado como provado n.º 13 ser dado como não provado.

                    14. O Acórdão recorrido não deveria ter dado como não provado que “a avó chamava de nomes ao arguido sem razão aparente”.

                    15. A prova produzida, nomeadamente os depoimentos ouvidos, e os factos dados como provados, n.º 18 e 19, na numeração do acórdão recorrido, vão em sentido contrário.

                    16. As discussões não correspondiam sempre às preocupações da avó com a situação do neto, mas iam muito para lá disso.

                    17. Não se concebe como o intuito de preocupação com a inação de um familiar se exteriorize através de insultos como os referidos pelas testemunhas, nem tão pouco se concebe como é que para uma pessoa de mediana inteligência e viva, como era a vítima, os mesmos insultos serviriam para alterar a situação.

                    18. Pelo que este facto deveria ter sido dado como provado.

                    19. O acórdão recorrido, incorretamente, deu como não provado que “A avó embirrava como neto, vexando-o, denegrindo-o e atingindo-o na sua honra sempre na presença de várias pessoas entre as quais a sua irmã e algumas vezes na presença dos pais”.

                    20. Como refere a recolha de depoimentos de testemunhas no acórdão recorrido, “CC, mãe do arguido e nora da vítima: - Que a avó tratava diferentemente os netos: a BB vivia na casa e o arguido num anexo da casa e a relação com o neto era estranha pois tanto estava bem como mal e chamava-o de nomes, implicava com ele, que devia trabalhar para o filho que tem, mas o arguido não dava importância; a testemunha dizia ao filho para ter calma com a avó;”      

                    21. Conjugando este elemento com a prova produzida, é evidente que a vítima embirrava com o arguido, usando palavras idóneas a vexar, a ofender e a denegrir, por vezes na presença da irmã do arguido, e ao telefone com o pai e com a mãe do arguido.

                    22. Deve dar-se como provado que a avó embirrava com o neto, vexando-o, denegrindo-o e atingindo-o na sua honra, por vezes na presença da sua irmã e algumas vezes ao telefone com os pais.

                    23. O facto dado como não provado “O arguido atuou dominado por uma emoção violenta, fruto de sucessivas provocações e num estado de perplexidade psicológica, tendo como que “perdido a cabeça””, foi incorretamente julgado.

                    24. A prova produzida e a factualidade dada como provada quanto aos insultos dirigidos pela vítima ao arguido, a deterioração do relacionamento entre ambos e as reações do mesmo demonstram o contrário.

                    25. Ao que se junta o estado em que o arguido se encontrava no momento em que ocorreram os factos, e a sua personalidade.

                    26. O arguido atuou no quadro de um arrebatamento e num estado de certa exaltação, agravado pelas provocações da vítima e das desavenças anteriores e pela medicação que na altura tomada.

                    27. Para além disso, o acórdão recorrido dá como provado que, nos factos 20, 21 e 29, na numeração do mesmo, que o arguido, dois dias antes dos factos, foi medicado com um fármaco que pode ter como efeitos secundários uma grande agitação, intolerância, alteração comportamental, irritabilidade e violência; que o mesmo padece de perturbações mensais resultantes de consumo anterior de drogas, e que o mesmo tem uma personalidade impulsiva.

                    28. Trata-se de uma “mistura” explosiva a que o homem comum, fiel ao direito, dificilmente resistiria, e que determina que no momento da prática dos factos, o arguido atuou dominado por emoção violenta, devendo o facto acima referido ser dado como provado.

                    29. O presente recurso assenta também, no errado enquadramento jurídico dos factos, que, salvo melhor opinião, não apontam para o homicídio qualificado.

                    30. Para que se preencha o tipo legal de crime de homicídio qualificado, tal como prevê o artigo 132.º, n.º 1, do Código Penal, deve verificar-se pelo menos uma das circunstâncias qualificativas referidas no número 2 do mesmo artigo, o que não sucede, nomeadamente quanto à alínea a) desse n.º 2.

                    31. Dados os factos tidos como provados e a prova produzida, as discussões constantes entre a vítima e o arguido e o ambiente agressivo entre ambos, a ligação entre os mesmos já não era familiar no plano material, não se verificando a ligação visceral que funda essa circunstância qualificativa; era apenas uma ligação formal, nada mais.

                    32. A relação entre arguido e vítima tinha-se deteriorado significativamente, a ponto de a mesma se traduzir em acossamento e expulsão do mesmo de casa, tudo isto gerando nos meses em que viveram juntos, um crescendo de frustração, e de ressentimento do arguido contra a vítima, cuja acumulação despoletou o crime.

                    33. O estado do arguido, perturbado, irritado e medicado com fármaco que potenciava estes sentimentos na época em que ocorreram os factos, deve ser ponderado.

                    34. O Tribunal a quo, incorreu em violação do disposto no artigo 132.º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), devendo reverter-se a imputação ao arguido da prática do crime de homicídio qualificado, em caso algum se justificando a aplicação de forma do crime mais agravada do que o crime de homicídio simples (artigo 131.º do Código Penal), e mesmo neste caso só no caso de não funcionar o privilegiamento do crime

                    35. Ao invés, sempre a conduta do Recorrente será de subsumir ao tipo de homicídio privilegiado, previsto e punido no artigo 133.º do Código Penal.

            36. Contrariamente ao agora decidido, dos factos provados resultam, relativamente à pessoa do Recorrente e à sua tomada de resolução criminosa, que se pautou por uma emoção violenta e pela exteriorização de frustração acumulada, por verificados os pressupostos do homicídio privilegiado.

                    37. Deveria o Tribunal ter tido em consideração os factos que imediatamente antecederam o crime, naturalmente não desgarrados do passado porque, só assim, na sua globalidade, serão totalmente compreensíveis e capazes de provocar reação.

                    38. Os factos provados configuram-se como bastantes para se concluir pela verificação de uma verdadeira “emoção violenta” e “desespero”, comumente entendido como um estado de afeto relacionado com situações de angústia, depressão e revolta que, não raras vezes, se mantêm ao longo do tempo, aqui se incluindo os casos de humilhação prolongada. que diminuíram sensivelmente a culpa do Recorrente, como exige o artigo 133.º do Código Penal. Pelo que a pena aplicável varia entre 1 a 5 anos.

                    39. No caso concreto, é evidente que ocorreu um concurso de causas.

                    40. Nos meses e dias que precederam os factos, pelo menos, ocorria um relacionamento disfuncional e conflituoso entre o arguido, por um lado, e a sua avó, por outro, devido a desentendimentos entre aquele e esta, que amiúde lhe dirigia insultos e o vexava, o que lhe causava irritação.

                    41. Por outro lado, no dia dos factos ocorreu desaguisado, tudo na sequência de outras discussões e da expulsão do arguido de casa da avó.

                    42. O arguido padece de Perturbações mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas – uso nocivo para a saúde, enquadrável na rubrica F19.1 da 10ª Classificação Internacional das Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS), e é uma pessoa suscetível a agir por impulso momentâneo, ao que acresce que, na época em que ocorreram os factos, o mesmo se encontrava medicado, com Quetiapina 25mg, dado o grave quadro clínico de instabilidade que só é administrada em SOS e que pode ter como efeitos secundários uma grande agitação, intolerância, alteração comportamental, irritabilidade e violência.

                    43. O Acórdão recorrido refere e dá como provado que o arguido manifesta arrependimento.

                    44. Como tal, o arguido encontrando-se medicado com um fármaco que lhe potenciava os impulsos de caráter, sendo pessoa impulsiva e tendo sofrido muitos insultos ao longo do tempo, vivendo em desavenças crescentes com a avó e tendo sido mandado embora de casa, perante uma nova discussão, descontrolou-se, sentindo que não conseguia viver mais com os mesmos insultos e atuou de forma claramente desesperada e impulsiva.

                    45. Mesmo um homem médio, quando insultado reiteradamente e com a personalidade e sob as influências em que o arguido se encontrava, também experimentaria conflito interior e seria levado à violência perante esta situação.

                    46. O arguido, era manifestamente, no momento em que atuou, um homem dominado por uma perturbação, de reação afetiva, sujeito a frequentes injúrias, ameaças e provocação, tendo a conduta da vítima provocou, no arguido, uma constante humilhação e revolta, tendo o mesmo exteriorizado no primeiro interrogatório judicial que, vendo a vítima dirigindo-lhe insultos, sentia que a mesma “o estava a matar como pessoa”, nas suas palavras.

                    47. Assim, é de ter por sensivelmente diminuída a culpa daquele, na medida em que, atento o seu estado emocional, o recorrente ficou numa situação de culpa diminuída, tendo atuado dominado pela emoção e pelo seu próprio desespero, sendo levado a atuar contrariamente ao que faria noutras circunstâncias.

                    48. A conduta do recorrente não se enquadra no tipo de homicídio simples, nem no tipo de homicídio qualificado, mas subsume-se no homicídio privilegiado.

                    49. Sem prescindir e sem conceder do exposto,

                    50. Atentos os fundamentos invocados, sempre haverá que referir ainda que, não pode o recorrente concordar com o facto de não ter o Tribunal “a quo” aplicado qualquer atenuação especial da pena ao arguido, nos termos do disposto do artigo 72.º do C. Penal.

                    51. Há que ter em conta os factos que imediatamente antecederam os crimes, os quais, conjugados com os factos passados, serão compreensivelmente provocatórios e, por isso, aptos a provocarem a reação do arguido, com culpa diminuída.

                    52. Como é entendimento comum, o facto de se afastar a integração nos elementos constitutivos do crime de homicídio privilegiado não afasta a consideração sobre uma eventual aplicação do regime de atenuação especial.

                    53. Perante o quadro factual em causa, é evidente que a culpa do arguido se encontra consideravelmente diminuída, o que deve ser tipo em conta para efeitos do disposto no artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal.

                    54. A vítima andava desavinda com o arguido, chamava-lhe nomes com frequência e apresentava queixas-crime contra o mesmo.

                    55. O arguido, dois dias antes da ocorrência dos factos, foi medicado, com fármaco, que pode ter como efeitos secundários uma grande agitação, intolerância, alteração comportamental, irritabilidade e violência.

                    56. O arguido padece de Perturbações mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas.

                    57. O arguido tem um relacionamento muito bom com os seus pais e irmã e com os seus amigos.

                    58. Tem um filho menor de idade, com 13 anos, de uma relação afetiva que manteve e que é muito próxima.

                    59. Os seus pais estão dispostos a receber o arguido e a darem-lhe todo o apoio que o mesmo necessita quando posto em liberdade.

                    60. O arguido assume enorme sofrimento face à sua atual condição, a qual faz naturalmente decorrer dos atos de que surge acusado, e em relação aos quais manifesta um grande alheamento.

                    61. De tudo o exposto resulta que se encontra-se provado que o arguido agiu num contexto e num condicionalismo muito específico e invulgar, só se podendo compreender o ocorrido à luz de fatores externos, o que é suscetível de revelar uma forte diminuição da culpa; de uma culpa cuja intensidade, eventualmente e em abstrato, pode equacionar-se não ser suficiente para o privilegiamento do crime, mas que, no mínimo, justifica a atenuação especial da pena, nos termos do disposto no corpo do artigo 72.º, n.º 2, do Código Penal.

                    62. Estas circunstâncias não podem ser ignoradas para efeito de atenuação especial de pena e na determinação da culpa do arguido.

                    63. Deve a pena a aplicar ser especialmente atenuada.

                    64. Nos termos do disposto no artigo 73.º, n.º 1,alíneas a) e b), do Código Penal, aplicadas à moldura do crime de homicídio simples, previsto e punido no artigo 131.º do mesmo diploma, obtém-se, a moldura da pena entre 10 anos e 8 meses e 1 ano, 7 meses e 6 dias.

                    65. Nesta moldura e no contexto aqui em causa, não se justifica em caso algum a aplicação ao arguido de pena de prisão em medida superior a 9 anos.

                    66. Pelo exposto, caso não se entenda proceder o privilegiamento do crime de homicídio, deve aplicar-se ao arguido uma pena concreta fixada em medida não superior a 9 anos, proporcional e justa.

                    67. No caso de se entender que o arguido cometeu o crime de homicídio qualificado, tendo em conta os factos dados como provados na douta sentença recorrida nos pontos 2, 3, 4, 5, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 29 e 30 e ainda o arrependimento e interiorização do mal que fez, deverá entender-se como proporcional e adequado a aplicação ao arguido de uma pena de prisão muito próxima do mínimo legal de 12 anos.

                    68. O douto Acórdão sob recurso violou os artigos 72.º, 73.º, 131.º e 133.º do Código Penal.

                    69. E nestes termos que deve ser alterado o Acórdão recorrido.

            Nestes termos e nos demais de direito,

                    Tomando em conta o acima alegado e fundamentalmente com o douto suprimento de V.Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser a douta sentença ora recorrida revogada e substituída por outra, que decida pela subsunção da conduta do Recorrente no tipo de homicídio privilegiado, previsto e punido no artigo 133.º do C. Penal, entre 1 a 5 anos, ou, sem conceder e caso assim não se entenda, condenar-se o arguido pela prática de um crime de homicídio na forma simples, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal, devendo decidir-se pela atenuação especial da pena a aplicar, nos termos do disposto nos artigos 72.º e 73.º do Código Penal, em medida não superior a 9 anos, proporcional e justa, decidindo-se que em tal conformidade será feita JUSTIÇA!


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            2.2. Do recurso do Ministério Público:

            “1ª- Não se pode estar mais em desacordo com a jurisprudência da sentença ora em recurso, no que tange ao “quantum” da pena aplicada;

                    2ª- Na verdade, agiu o arguido, no cometimento dos factos, de uma forma brutal, bárbara e sem deixar qualquer hipótese de reacção à vítima já que a agarrou, com ambas ao mãos, pelo pescoço, a atirou ao chão e, em cima dela, projectou-lhe, por diversas vezes, a cabeça de encontro ao solo, com o propósito de lhe tirar a vida, o que conseguiu. (vejam-se as fotografias dos autos)

                    3ª- Actuou, ainda, o arguido, com dolo directo, revelador de grande energia criminosa, tendo agido com total desprezo pela vida humana, designadamente a da sua avó, pessoa que o acolheu quando veio do Luxemburgo e pessoa de quem dependia, na totalidade e a todos os níveis, para sobreviver;

                    4ª- Sendo elevadas, quer as exigências de prevenção geral, quer as de prevenção especial e, bem assim, o alarme social por factos como os aqui em apreço;

            5ª- As penas, em caso algum podem ultrapassar a medida da culpa, nos termos prescritos no artº 40º do C Penal. Sendo esta, a culpa, em nosso sentir, a reprovação ético-jurídica de um comportamento anti-jurídico e de carácter muito elevado

                    5ª- As penas têm um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, tendo por função, ainda, restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, posta em crise pela prática do crime e, bem assim, a eficácia do sistema jurídico-penal;

                    6ª- Sendo, nesta esteira, que se entende que a pena aplicada é insuficiente porque injusta, exigindo-se “mão mais pesada” do Tribunal;

                    7ª- Já que na determinação da medida da pena terá de se ponderar a culpa do agente e a exigência de prevenção de futuros crimes, atendendo ao critério imposto pelo artº 71º do C Penal;

                    8ª- Não se perdendo nunca de vista, as necessidades de prevenção geral de integração e ressocialização positiva que se fazem sentir, de forma premente, no caso em apreço e, bem assim, a tutela do bem jurídico violado;

                    9ª- Assim e tendo em atenção a elevadíssima ilicitude dos factos, o modo de execução bárbaro, cruel destes, os seus contornos, anteriores e posteriores, o desprezo e indiferença pela vida humana manifestada, a violação grosseira e ignóbil das mais elementares regras de convivência social, familiar;

                    10ª- A circunstância do crime ter sido praticado na residência da vítima, o tempo em que persistiu o dolo, a desintegração social, familiar, profissional do arguido, tudo sopesado permite concluir ser exígua a pena aplicada, tudo exigindo, em conjugação e bem ao invés, a aplicação de pena mais pesada;

            11ª-Os traços de personalidade do arguido, retratados no relatório da perícia médico-legal inserto a fls. 766-776;

                    12ª- “A simulação de psicopatologia, com busca de ganhos em sede judicial, pois que o arguido era capaz de entender a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com a essa avaliação, …” (factos 30, 31, 32 e 33) permite concluir, como nós, que a pena de prisão terá de ser fixada de forma mais grave;

                    13ª A sua falta de arrependimento, retratada nos autos subsequentes aos factos e que perdura até hoje;

                    14ª- É por todo o exposto que se entende que deverá a pena aplicada ao arguido ser fixada em, pelo menos, 20 anos de prisão.

                    15ª- A sentença recorrida violou as normas dos artºs 40º e 71º, ambos do CPenal.

            Termos em que,

                    Deve ser revogada a sentença ora em recurso, e

                    substituída por outra que condene o arguido de

                    forma mais gravosa, como é de

                    JUSTIÇA E DIREITO,”

           


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            3. Foram apresentadas respostas a ambos os recursos.

            3.1. O Digno Procuradora da República junto da primeira instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo na resposta apresentada da seguinte forma, que se transcreve:

                    “1ª- Concorda-se com o teor do acórdão ora em recurso, no que tange aos argumentos elencados pelo aqui recorrente;

                    2ª- Na verdade, o arguido agiu de forma bárbara e cruel no cometimento dos factos, com total desprezo pela vida da sua avó; (vejam-se as fotografias dos autos)

                    3ª- Sendo elevadas, quer as exigências de prevenção geral, quer as de prevenção especial e, bem assim, o alarme social por factos como os aqui em apreço;

                    4ª- O tribunal apreço apreciou devida e legalmente o facto dado como provado no número 13 da matéria de facto;

                    5ª-Não sendo tal facto conclusivo e jurídico, nem entra em contradição com outros factos dados como provados (correctamente);

                    6ª- Aceita-se que o acórdão recorrido decidiu convenientemente ao dar como não provados os factos aludidos pelo recorrente;

                    7ª- Não ficou provado que a vítima vexasse o arguido fora do seu meio familiar e não comor forma de recação à sua ociosidade e consumos aditivos;

                    8ª- Não se verificam, no caso “sub judice”, os pressupostos para aplicação da graça instituída pelo artº 133º do CPenal;

                    9ª- Antes e bem ao invés se verificando facticidade compaginável com a aplicação da forma mais agravada do que o crime de homicídio simples, mormente aquela que foi consagrada no acórdão recorrido;

                    10ª- Não poderá o arguido beneficiar, para além do que já foi, da atenuação especial da pena previsto nos artºs 71º a 73º do C Penal;

                    11ª- A pena de prisão aplicada deverá ser situada acima dos 15 anos;

                    12ª- Remetendo, no mais e no que aqui concerne, para o teor do recurso interposto pelo Ministério Público a 9-11-2023;

                    13ª- Pois só assim estará em consonância com a medida (elevada) da culpa, nos termos prescritos no artº 40º do CPenal;

                    14ª- Exigindo esta, “mão mais pesada” do Tribunal;

                    15ª- Já que na determinação da medida da pena terá de se ponderar a culpa do agente e a exigência de prevenção de futuros crimes, atendendo ao critério imposto pelo artº 71º do C Penal;

                    16ª- Não se perdendo nunca de vista, as necessidades de prevenção geral de integração e ressocialização positiva que se fazem sentir, de forma premente, no caso em apreço e, bem assim, a tutela do bem jurídico violado, o mais caro de todos;

                    17ª- Assim e tendo em atenção a elevadíssima ilicitude dos factos, o modo de execução bárbaro, cruel destes, os seus contornos, anteriores e posteriores, o desprezo e indiferença pela vida humana manifestada, a violação grosseira e ignóbil das mais elementares regras de convivência social, familiar;

                    18ª- A circunstância do crime ter sido praticado na residência da vítima, o tempo em que persistiu o dolo, a desintegração social, familiar, profissional do arguido, tudo sopesado permite concluir ser exígua a pena aplicada, tudo exigindo, em conjugação, bem ao invés, e ao contrário do que defende o recorrente, a aplicação de pena mais pesada;

                    19ª- A sentença recorrida não violou qualquer norma penal, mormente as indicadas pelo recorrente, ou qualquer outra

                    Termos em que,

                    Não deve ser revogada a sentença ora em

                    recurso, como defende o recorrente, como é de

                    JUSTIÇA E DIREITO,”


*

            3.2. O arguido respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público, concluindo na resposta apresentada, da seguinte forma que se transcreve:

            “Concluindo dir-se-á que não merece qualquer reparo a aplicação ao arguido da pena de 15 anos de prisão (apenas no recurso apresentado pelo Ministério Público sem prejuízo da discordância manifestada pelo arguido em recurso autónomo), já que só poderá contribuir para que o arguido se consciencialize da gravidade da sua conduta e consequência daí decorrente e se afaste da prática de novos crimes.

                    Avaliando as exigências de prevenção especial de socialização que se fazem sentir em concreto e as exigências de prevenção geral.

                    Sendo que no caso em análise a sentença recorrida não violou nenhum preceito normativo designadamente os referidos nos artigos 40 e 71 do C.P.

                    Termos em que,

                    Tomando em conta os fundamentos expostos e fundamentalmente com o douto suprimento de V.Exas., e tomando em conta os fundamentos de facto e de direito constantes da douta decisão recorrida não deverá ser dado provimento ao recurso apresentado pelo Ministério Publico com as legais consequências, confirmando-se a douta sentença recorrida.

                    Decidindo-se em tal conformidade será feita Justiça!”

           

                                                                                *

            4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido e da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público. 


*

            5. Cumprido o disposto no Art. 417º nº2 do CPP, não foi apresentada resposta ao aludido parecer.

*

            6. Colhidos os vistos legais, os autos foram a conferência.

*

            II-  Fundamentação

            A) Delimitação do objecto dos recursos

            Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

            Decorre de tal preceito legal que o objecto do processo se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º, 403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso ( Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, pág.103).

            Como expressamente afirma o Professor Germano Marques da Silva, in obra citada, “São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem que apreciar”.

            Assim sendo, estando a apreciação dos recursos balizada pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, as questões a decidir nos presentes recursos são as seguintes:

            - Do recurso do arguido:

            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

            - A incorrecta ponderação do enquadramento jurídico-penal dos factos;

            - A incorrecta ponderação da medida da pena e a sua atenuação especial.

           

            - Do recurso do Ministério Publico:

            - A incorrecta ponderação da medida da pena.


*

            B) Da decisão recorrida     

(…)

            a. Nele foram considerados provados os seguintes factos:

               1. O arguido AA é neto da vítima EE, nascida em .../.../1944, contando 78 anos de idade em Junho de 2022, com quem residia desde que regressou do Luxemburgo em finais de Maio de 2022, na Avenida ..., ..., freguesia ..., concelho ..., contando então o arguido 31 anos de idade.

                    2. A vítima andava desavinda com o arguido, tendo já apresentado queixas criminais contra o mesmo, que deram origem aos Inquéritos 148/22.... e 263/22...., não permitindo que aquele permanecesse e dormisse no interior da sua residência, sita no nº...4, da Avenida ..., ..., em ..., deixando apenas que ali tomasse as refeições.

                    3. No dia 14 de Junho de 2022, cerca das 21.00 horas, EE discutiu com o arguido, seu neto, não permitindo que aquele dormisse no interior de sua casa, indo aquele pernoitar junto ao lagar, num anexo da moradia.

                    4. No dia 15 de Junho de 2022, perto das 10.00 horas, o arguido AA apercebendo-se que a vítima - sua avó - estava a chegar a casa, sabendo que aquela não lhe permitia a entrada, aproveitou que a ofendida abrisse o portão da garagem para guardar o carro, e entrou na residência por aquele local.

                    5. Porque a sua avó o mandou sair da residência, e o arguido não obedeceu, aquela dirigiu-se ao 1º andar, à cozinha, dizendo que ia telefonar à GNR, sendo seguida pelo arguido.

                    6. Já na cozinha, o arguido agarrou a sua avó pelo pescoço, com ambas as mãos, apertando-o com força, sufocando-a, bem como a derrubou contra o chão e, ao mesmo tempo em que lhe apertava o pescoço, levantou-lhe a cabeça e o tronco várias vezes e bateu com a mesma contra o chão, com o propósito de lhe tirar a vida, o que conseguiu.

                    7. O arguido só parou com tal actuação quando a sua avó deixou de reagir às agressões de que era alvo, ficando inanimada.

                    8. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a vítima sofreu dores nas zonas atingidas, esganadura e lesões cervicais, que lhe provaram a morte, designadamente:

                    - na zona da cabeça, ferida contusa de aspecto circular com 3 cm de diâmetro na região frontal à esquerda, hematoma na região frontal à direita, ferida inciso contusa com 7 cm na região parieto occipital esquerda e placa apergaminhada a nível do bordo anterior e inferior da mandíbula.

                    - no pescoço, EE sofreu placa apergaminhada ao nível da face anterior e inferior do pescoço; fractura do hioide à esquerda e infiltração sanguínea na laringe e traqueia;

                    - no tórax sofreu placa apergaminhada a nível da região clavicular esquerda e direita e a nível do 1/3 superior do esterno; hematoma com 5 cm de diâmetro na face postero superior do ombro esquerdo e múltiplas escoriações na face anterior do tórax;

                    - no braço direito: múltiplas pequenas escoriações na face anterior do 2/3 superior do braço;

                    - no braço esquerdo: múltiplas pequenas escoriações na face anterior do 2/3 superior do braço;

               - na coluna vertebral e medula: fractura ao nível de C6-C7, D7-D8 e D11-D12; laceração das meninges ao nível de C6-C7; D7-D8 e D11- D12 e secção medular a nível de D7-D8 e D11-D12.

                    9. De seguida, o arguido foi deitar-se no quarto da sua irmã a descansar, e algum tempo após telefonou para o 112, a informar que encontrou a sua avó caída no chão.

                    10. Depois, dirigiu-se a um café da localidade, onde comprou uma bebida e cigarros e voltou para casa.

                    11. O arguido agiu deliberadamente, com intenção de tirar a vida à sua avó, tendo-a esganado com determinação e firmeza, e batido com a cabeça e zona do tronco daquela contra o chão várias vezes, para melhor assegurar o êxito das suas intenções.

                    12. O arguido, ao usar da força e apertar com as duas mãos o pescoço da vítima nas circunstâncias acima descritas, ao mesmo tempo que lhe batia com a cabeça contra o chão, sabia que atingia uma zona vital do corpo e que, a forma como actuava, era apta a causar a morte da vítima como veio a suceder.

                    13. O arguido actuou de forma cruel e bárbara, com total desrespeito e absoluto desprezo que as relações familiares de «neto-avó» devem merecer para aqueles que pertencem à mesma prole e família, não se coibindo de actuar no enquadramento de uma situação de especial censurabilidade para a consciência social e que o cidadão comum ou a generalidade das pessoas veementemente reprovam.

               14. O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

                    Da defesa do arguido:

                    15. O arguido andava desavindo com a sua avó, EE.

                    16. Da última vez que o arguido regressou do Luxemburgo para Portugal e veio para ..., no início do mês de Junho de 2022, por vezes, a avó chamava-o de drogado, vadio e inútil.

                    17. A mesma residia sozinha por ter enviuvado.

                    18. Quando o arguido regressou, a avó, por várias vezes e habitualmente dizia-lhe “não vales nada, és um drogado” indo apresentar queixa à GNR.

                    19. O arguido ficava irritado, transtornado e revoltado.

                    20. Dois dias antes dos factos, o arguido tinha dado entrada no serviço de urgência do Hospital ..., e dada a gravidade do seu quadro clínico foi transferido para o Hospital ....

                    21. Aí foi medicado, com Quetiapina 25mg, dado o grave quadro clínico de instabilidade que só é administrada em SOS e que pode ter como efeitos secundários uma grande agitação, intolerância, alteração comportamental, irritabilidade e violência.

                    22. Está arrependido, sente remorsos e peso de consciência.           

                    23. Embora a vítima tivesse 78 anos de idade, era uma pessoa cheia de vida, de perfeita saúde, subindo e descendo as escadas várias vezes ao dia, ainda conduzia o seu veículo automóvel e que trabalhava nas lides domésticas.

                    24. Não apresentava qualquer problema de saúde, limitação ou deficiência, ninguém lhe dava a idade que tinha, sendo perfeitamente activa e autónoma.

                    25. O arguido tem um relacionamento muito bom com os seus pais e irmã e com os seus amigos.

                    26. Tem um filho menor de idade, com 13 anos, de uma relação afectiva que manteve e que é muito próxima.

                    27. Os progenitores do arguido, já regressaram de vez a Portugal do Luxemburgo onde trabalhavam, para a ... onde arrendaram uma casa de habitação a fim de apoiarem o arguido e aí viverem com a sua filha FF de 27 anos de idade;

                    28. Estão dispostos a receber o arguido e a darem-lhe todo o apoio que o mesmo necessita quando posto em liberdade.

                    Mais se provou que:

                    29. O arguido padece de Perturbações mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas – uso nocivo para a saúde, enquadrável na rubrica F19.1 da 10ª Classificação Internacional das Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS).

                    30. Apresenta traços de personalidade de tipologia anti-social, caracterizada pela incapacidade de se adaptar às normas sociais que ordinariamente governam vários aspetos do comportamento, nomeadamente a tomada de decisões por impulsos momentâneos e sem consideração pelas consequências que tais atos têm nos outros ou em si próprio, e nos poucos remorsos pelas consequências dos seus actos;

                    31. O arguido simula a psicopatologia, com busca de ganhos em sede judicial e assim ao diagnóstico de Simulação, conforme rúbrica Z76.5 da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde (OMS).

                    32. O arguido não apresenta, nem apresentava à data dos factos, sintomatologia psicótica, ou quaisquer outros sintomas que pudessem ser enquadráveis numa doença psiquiátrica, ou agudização da mesma.

                    33. O arguido não apresenta doença psiquiátrica que o incapacite de avaliar a licitude ou ilicitude dos factos, nem a capacidade de se autodeterminar perante os mesmos.

                    Do relatório social:

                    34. O arguido é o mais velho dos dois filhos de um casal, com ascendência paterna na cidade ... e materna em ..., que emigraram para o Luxemburgo, onde permaneceram durante vários anos, e onde vieram a nascer, tanto o arguido, como a irmã mais nova.

                    35. Quando contava cerca de 4 anos de idade, terá acompanhado a sua família, naquele que pretendia ser nessa altura um regresso definitivo a Portugal, com o propósito do progenitor vir assumir a gestão de uma empresa familiar ligado ao fabrico e comércio de mobiliário.

                    36. Apesar de a família do pai ter residência na localidade de ..., os pais do arguido terão optado por se fixar em ..., onde arrendaram uma fracção de um prédio de vários andares, em plena zona urbana da cidade, onde algum tempo depois o arguido veio a iniciar o seu percurso escolar.

                    37. O seu processo de desenvolvimento decorreu, dentro de padrões de normalidade e sem o registo de quaisquer incidentes significativos, suportado por um quadro familiar, aparentemente funcional e estruturado.

                    38. Frequentou o sistema de ensino regular até ao 9 º ano, num processo marcado por uma fase final de maior desinteresse e desmotivação, que se materializou em dois anos de insucesso no 7º e no 9º ano.

                    39. Concluído o terceiro ciclo do ensino básico, optou pelo ensino profissional, na Escola Profissional ..., onde chegou a frequentar o Curso de Técnico de Mesa e Bar, o qual não concluiu.

                    40. Em termos de ocupação de tempos livres, foi demonstrando grande apetência pela prática de futebol, tendo passado pelos vários escalões do ... Futebol Clube, num projecto para si muito gratificante, que lhe permitiu ganhos pessoais significativos e que, hoje, ainda recorda como uma das fases mais felizes da sua vida.

                    41. Chegou a ser um jogador muito promissor, que poderia ter singrado no mundo do futebol, pelas qualidades técnicas que sempre demonstrou.

                    42. Era muito estimado por todos os colegas e funcionários, por ser um jovem muito afável, carinhoso e sempre disponível para ajudar, a quem não eram conhecidos quaisquer comportamentos desadequados ou mais violentos, no quadro das suas relações pessoais

                    43. Com cerca de 19 anos de idade, e na sequência da relação de namoro que iniciara algum tempo antes com GG, viria a ser pai do menor HH, nascido a .../.../2009, nunca tendo o casal pretendido, apesar disso, assumir qualquer projecto de vida em comum, mas mantiveram uma comunicação positiva que permitiu ao arguido manter contactos regulares com o filho, sendo que foram os progenitores a substituir-se ao próprio no dever relativo ao pagamento da pensão de alimentos.

                    44. Terá sido sensivelmente no mesmo período que o arguido reconhece ter agravado o consumo de substâncias estupefacientes, cujos primeiros contactos terão ocorrido alguns anos antes, em contexto de grupo de pares, e que, não obstante ter procurado cingir ao haxixe, o levou nessa fase a incursões e experiências com “drogas mais duras”, algumas das quais desconhecia, como sintéticas e cogumelos.

                    45. Hoje, assume essas experiências como avassaladoras, que o desorganizavam profundamente e no decorrer dos quais registava uma alteração profunda do seu estado de consciência, consequências que considera lhe terem mudado definitivamente a vida.

                    46. Perante a falta de viabilidade da empresa familiar, os pais do arguido regressaram ao Luxemburgo, onde algum tempo depois o arguido, depois de uma curta experiência numa unidade de panificação de ..., se lhes juntou.

                    47. As dificuldades da língua tornaram o processo de adaptação ainda mais complexo, em que a fase de maior estabilidade foi registada durante um mês em que trabalhou numa unidade de ferro, onde o pai também trabalhava.

                    48. Seguiu-se um período em que foi fazendo oscilar permanências no Luxemburgo com outras em Portugal, sendo que quando se encontrava em Portugal, integrava geralmente o agregado familiar da avó paterna, com quem coabitava em ....

                    49. Apesar de os progenitores reconhecerem que nos últimos 5/6 anos o arguido passou a evidenciar uma postura de maior ansiedade, o que levou a que a família o confrontasse com a necessidade de procurar ajuda especializada, o que ele sempre recusou, nunca estabeleceram qualquer relação causal com o possível consumo de estupefacientes, cuja real dimensão desconheciam, nem com uma eventual doença do foro psiquiátrico que nunca lhe fora diagnosticada, mas antes com uma fase de maior dependência em relação ao jogo On-line, nomeadamente poker, e também, com a necessidade, cada vez mais premente para ele, de encontrar uma atividade profissional com a qual se identificasse.

                    50. À data dos factos o arguido tinha regressado a Portugal, motivada por uma promessa de trabalho e que fora antecedida, cerca de um mês antes, pela vinda da irmã mais nova.

                    51. À semelhança das outras ocasiões, foi acolhido em casa da avó paterna em ..., que frequentemente se disponibilizava aos progenitores para o receber.

                    52. A promessa de trabalho não chegou a concretizar-se e o arguido foi permanecendo sem qualquer tipo de ocupação regular, circunstância que começou a motivar alguma tensão na relação com a avó, que seria bastante crítica acerca da falta de pro-atividade do mesmo na procura de emprego, bem como das suas vivências associadas ao consumo de drogas, com as quais era já localmente conotado.

                    53. Perante o agravar desta situação e na sequência de alegadas agressões de que estaria a ser alvo, a avó terá chegado a pedir, em duas ocasiões, a intervenção das autoridades policiais, junto das quais o arguido já era referenciado por outras práticas criminais, episódios que viriam a dar origem aos NUIPC’s 148/22.... e 263/22.....

                    54. Mais tarde a avó acabaria por impedir que o arguido pernoitasse na habitação principal, o que levou a que este se mudasse para um anexo, junto à adega.

                    55. Nos dias imediatamente anteriores aos factos, o arguido referiu não ter consumido drogas, mas alega ter sofrido, aparentemente de forma perfeitamente inusitada e sem motivo aparente, uma violenta agressão por parte de um jovem, em consequência da qual teve que recorrer às urgências hospitalares, vindo a ser encaminhado para os Hospitais ....

                    56. Nesse período, ainda que tenha sido em apenas uma ocasião, terá estado com o filho, num contacto que apesar de lhe ter sido permitido, o mesmo terá visto ser criticado o seu papel e a sua presença na vida do menor.

                    57. O arguido assume enorme sofrimento face à sua actual condição, a qual faz naturalmente decorrer dos actos de que surge acusado, e em relação aos quais manifesta um grande alheamento.

                    58. Apesar de se apresentar orientado no espaço e no tempo, afirma estar a ser alvo de pressões constantes de entidades externas que correlaciona com os acontecimentos e que lhe estão a provocar um grande sofrimento interno, cujos sintomas, em determinados momentos o mesmo chega a exteriorizar fisicamente.

                    59. Em abstrato, atribui a devida gravidade aos actos de que é acusado, bem como reconhece os valores jurídicos que estão em causa.

                    60. Demarca-se de qualquer intencionalidade, de agir contra a figura da avó paterna, por quem afirma que tinha um elevado reconhecimento e uma grande proximidade afectiva.

                    61. Apesar de procurar manter contactos telefónicos regulares com os progenitores, tem prescindido da presença dos mesmos em meio prisional, numa decisão que se poderá prender com o facto do arguido os ter como figuras habitualmente presentes na sua cabeça e que chegam a conspirar contra si.

                    62. Por seu lado, estes têm acatado esta decisão do filho, por reconhecerem que as visitas o estavam a perturbar.

                    63. No plano institucional, e pese embora mantenha uma postura e um relacionamento isento de conflitos, tanto em relação aos demais reclusos, como com os demais funcionários do estabelecimento prisional, o mesmo tende a isolar-se, permanecendo a maior parte do tempo na cela.

                    Dos antecedentes criminais:

                    64. O arguido foi condenado:

                                       Por sentença proferida em 18.02.2019 no processo comum singular n.º 211/18...., do Juízo de Competência de ... – Juiz ..., transitada em julgado em 20.03.2019, pela prática em 20.05.2018 de 1 crime de furto qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30º, n.º 2, 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 2 anos e 2 meses;

                                       Por sentença proferida em 09.10.2019 no processo sumaríssimo n.º 136/18...., do Juízo de Competência de ... – Juiz ..., transitada em julgado em 22.11.2019, pela prática em 27.02.2018 de 1 crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo artigo 348º, n.º s 1, alínea a) e 2, do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00 euros, num total de 600,00 euros;

                                       Por sentença proferida em 13.07.2021 no processo sumário n.º 274/21...., do Juízo de Competência de ... – Juiz ..., transitada em julgado em 28.09.2021, pela prática em 07.07.2021 de 1 crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos artigos 348º, n.º s 1, alínea a) e 2, do Código Penal e 154º, n.º s 1 e 3, do Código da Estrada e de 1 crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena única de 190 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, num total de 950,00 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses.”


*

(…)

*

            - Da incorrecta ponderação do enquadramento jurídico-penal dos factos [questão privativa do recurso interposto pelo arguido]

                    No recurso por si interposto o arguido e ora recorrente, sem pôr em causa que a sua actuação consubstancia a prática de um crime de homicídio, questiona, porém, a qualificação jurídica dos factos feita no acórdão recorrido pelo Tribunal  da 1ª instância - homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132º, nºs 1 e 2 alínea a) do C. Penal - por entender que os mesmos, não só não integram os elementos constitutivos do crime de homicídio qualificado previsto e punido nos termos de tais preceitos legais, como também por pretender que, com base nos factos dados como provados, a sua conduta neles descrita deve integrar os elementos constitutivos do crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo art. 133º do C. Penal.

            A propósito da subsunção jurídica dos factos apurados, discorreu-se no acórdão recorrido da seguinte forma, que se transcreve:

                    “Vem o arguido acusado da prática de factos susceptíveis de integrarem a prática, em autoria material, na forma consumada, de 1 (um) crime de Homicídio Qualificado, previsto e punido pelo artigo 132.º, n.º s 1 e 2, alíneas a) e c), ambos do Código Penal.

                    Do crime de homicídio.

                    Nos termos do artigo 131º, do Código Penal, “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.

                    O crime de homicídio pressupõe uma conduta dirigida ao resultado que é a morte de alguém.

                    O crime de homicídio descrito no citado artigo 131º, constitui o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida, e o homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada do homicídio “simples”.1

                    O bem jurídico protegido é a vida de outra pessoa (vida da pessoa já nascida).

                    O tipo objectivo de ilícito do homicídio consiste em matar outra pessoa, exigindo-se o dolo do agente.

                    A matéria de facto provada é clara quanto à verificação do nexo causal entre a conduta do arguido e a morte da vítima EE, pelo que o resultado morte é imputável, sem qualquer dúvida, à sua conduta: o arguido, por sua actuação, matou EE, pelo que ficou preenchida a conduta típica prevista no art. 131.º do Código Penal, tendo ficado provado que o arguido quis tal resultado, tendo agido livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser ilícita a sua actuação.

                    Mas a acusação imputa ao arguido a prática deste crime de homicídio, na forma qualificada, pelo que cumpre verificar se os factos provados permitem fazer tal enquadramento.

            _____________________

            1 Fernanda Palma, in Direito Penal Especial. Crimes contra as Pessoas, 1983, pág. 40, e Teresa Serra, in Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1990, pág. 49, citadas por Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 3 e 25.

                    Da qualificação do homicídio

                    De harmonia com o artigo 132º, n.º s 1 e 2, alíneas a) e c), do Código Penal:

                    “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos. (…) é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…) ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima (…) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;”.

                    A qualificação do homicídio tem a ver, basicamente, com a especial censurabilidade ou perversidade do agente – as circunstâncias a que alude o nº 2 do artigo 132º são atinentes à culpa e constituem expressão da chamada técnica dos exemplos- padrão reveladores dessa censurabilidade ou perversidade.2

                    A qualificação do homicídio combina um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a referida técnica dos exemplos-padrão. Ou seja, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: “especial censurabilidade ou perversidade” do agente no n.º 1 do artigo 132º, do Código Penal; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos, uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2, do mesmo artigo.3

                    O Acórdão n.º 852/2014, de 10 de Março, do Tribunal Constitucional decidiu julgar “(…) inconstitucional a norma retirada do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, na relação

            ___________________________

            2 O preenchimento desses exemplos-padrão constitui, desde logo, como anota Teresa Serra (Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, Coimbra 1990) como que uma especial chamada de atenção ao juiz. A autora em causa fala mesmo, ainda que naturalmente de forma metafórica, em presunção, possivelmente ilidível. É sintomática esta imagem da presunção para melhor compreender a força normativa destes indícios eleitos pelo legislador como demonstrativos de uma acentuada culpa.

                    3 Figueiredo Dias, in obra citada, pág. 26.

            deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.º 2, ou ao critério de agravação a ela subjacente.”, pelo que, com este enquadramento, devemos então analisar se a factualidade provada permite confirmar a qualificação imputada na acusação, pelo n.º 2, alíneas a) e e) do art. 132.º do Código Penal.

                    Para aferir da qualificação devemos ponderar que a “…qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. Indubitavelmente que o apelo a exemplos padrão, como exemplificadores de uma intensidade qualitativa da culpa, reflecte uma técnica de tipos abertos que apenas pode ser compreendida dentro dos limites por alguma forma propostos pelo princípio da legalidade.

                    Assim, o julgador deverá subsumir à qualificação do artigo em causa apenas as condutas que, embora não abrangidas pelo perfil especificado, normativamente correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão.             O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível.”.4

                    Feito este breve enquadramento jurisprudencial - de teor também doutrinal pela sua abstracção -, cumpre analisar se os factos provados poderão, ou não, permitir afirmar a referida especial censurabilidade e/ou perversidade.

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            4 Ac. do S.T.J. de 18-01-2012, in www.dgsi.pt

                    Provou-se que o arguido AA, é neto da vítima EE, nascida em .../.../1944, contando 78 anos de idade em Junho de 2022, e com quem residia desde que regressou do Luxemburgo em finais de Maio de 2022, na Avenida ..., ..., freguesia ..., concelho ....

                    Mais se provou que a vítima andava desavinda com o arguido, tendo já apresentado queixas criminais contra o mesmo, que deram origem aos Inquéritos 148/22.... e residência, sita no nº...4, da Avenida ..., ..., em ..., deixando apenas que ali tomasse as refeições (no dia 14 de Junho de 2022, cerca das 21.00 horas, EE discutiu com o arguido, seu neto, não permitindo que aquele dormisse no interior de sua casa, indo aquele pernoitar junto ao lagar, num anexo da moradia) e, no dia 15 de Junho de 2022, perto das 10.00 horas, o arguido AA apercebendo-se que a vítima - sua avó - estava a chegar a casa, sabendo que aquela não lhe permitia a entrada, aproveitou que a ofendida abrisse o portão da garagem para guardar o carro, e entrou na residência por aquele local.

                    Porque a sua avó o mandou sair da residência, e o arguido não obedeceu, aquela dirigiu-se ao 1º andar, à cozinha, dizendo que ia telefonar à GNR, sendo seguida pelo arguido e já na cozinha, o arguido agrediu a sua avó, como descrito em 6 dos factos provados e apenas parou quando a sua avó deixou de reagir às agressões de que era alvo, ficando inanimada.

                    E, como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a vítima sofreu dores nas zonas atingidas, esganadura e lesões cervicais, que lhe provaram a morte, designadamente, as descritas em 8 dos factos provados.

                    O arguido agiu deliberadamente, com intenção de tirar a vida à sua avó, tendo-a esganado com determinação e firmeza, e batido com a cabeça e zona do tronco daquela contra o chão várias vezes, para melhor assegurar o êxito das suas intenções.

                    O motivo para a actuação do arguido ficou claro: contrariar a ordem dada pela avó para que saísse da residência e ainda impedi-la de ir telefonar à GNR - que leva à actuação do arguido, de uma violência inopinada, perante uma vítima, de sexo feminino e com idade avançada, e que era a avó do arguido, tendo actuado de forma cruel e bárbara, com total desrespeito e absoluto desprezo que as relações familiares de «neto-avó» devem merecer para aqueles que pertencem à mesma prole e família, não se coibindo de actuar no enquadramento de uma situação de especial censurabilidade para a consciência social e que o cidadão comum ou a generalidade das pessoas veementemente reprovam.    

                    “Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, o que pode reconduzir-se a atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente. No entanto, torna-se necessário que a conduta do agente, em concreto, revele uma especial censurabilidade ou perversidade que justifique, pela referida actuação, a maior severidade da punição devida. E, subjectivamente, esse juízo especial só é sustentável se o elemento subjectivo, o dolo, também abranger essa condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade (…).”.5

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            5 Ac. TRG de 11.09.2017, in www.dgsi.pt e Ac. do TRP de 21.03.2018, in www.dgsi.pt, que

                    O arguido era descendente da vítima, e actuou e forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que estava a agredir a sua avó, nos termos descritos e pelos motivos indicados, revelando a sua conduta especial censurabilidade.

                    Está, sem dúvida, preenchida a alínea a), do n.º 2, do artigo 132º, do Código Penal.

                    O arguido revelou uma total e absoluta indiferença relativamente ao valor da vida humana – bem jurídico supremo do (de qualquer) ordenamento jurídico-penal – da vítima EE, avó do arguido, para com quem não teve assim qualquer complacência, agindo com uma incomensurável crueldade.

                    Já no que respeita à alínea c), do n.º 2 do artigo 132º, do Código Penal, o mesmo não se pode concluir.

                    De facto, não se provou que EE, era pessoa indefesa por força da sua idade avançada.

            Não basta a idade avançada, no caso 78 anos de idade, para se concluir que era uma pessoa particularmente indefesa.

                    Tendo-se provado que embora a vitima tivesse 78 anos de idade, era uma pessoa cheia de vida, de perfeita saúde, subindo e descendo as escadas várias vezes ao dia, sendo que ainda conduzia o seu veiculo automóvel, além de que trabalhava nas lides domésticas e que não apresentava qualquer problema de saúde, limitação ou deficiência, tanto mais que ninguém lhe dava a idade que tinha, sendo perfeitamente activa e autónoma, não se verifica o preenchimento daquela alínea, por não se poder concluir que era uma pessoa particularmente indefesa.

                    Não basta a idade avançada para se considerar preenchida a referida alínea.

                    Tendo o arguido provocado um crime de homicídio, isto é, preenchido com as suas condutas os elementos típicos objectivos do crime homicídio consumado, resta apreciar se actuou culposamente (o que já se foi adiantando), ou seja, se preencheu o elemento subjectivo do tipo legal de crime em análise.

                    Para haver responsabilização jurídico-penal do agente, não basta a realização por este de um tipo de ilícito (facto humano antijurídico e correspondente ao tipo legal) antes se torna necessário que aquela realização lhe possa ser censurada como culpa.6

            A responsabilização criminal (pelo crime de homicídio) pressupõe ainda (para além da existência de um facto, típico e ilícito) a culpa do agente (nulla poena sine culpa), ou seja, o juízo de censura à actuação do agente, por ter agido dolosamente (em qualquer das modalidades: direto, necessário ou eventual).

                    De acordo com o preceituado no artigo 14º, do Código Penal:

                    “1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar.

                    2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.

                    3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com aquela realização”.

           

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            6 Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal anotado, 1º volume, Rei dos Livros, 1995, pág. 177.

                    Corresponde, cada uma das hipóteses previstas no citado artigo 14º, respectivamente, ao dolo directo, necessário ou eventual.

                    Isto é, num homicídio, age com dolo directo quem, ao empreender uma conduta o faz intencionalmente para matar; age com dolo necessário quem sabe que como resultado de conduta que empreende ocorrerá a morte e mesmo assim não se abstém de a empreender; age com dolo eventual quem prevê como possível a ocorrência da morte na sequência da conduta que empreende e conforma-se com tal resultado.

                    Segundo Maria Fernanda Palma “o dolo eventual é ainda uma forma de decisão da realização do facto típico, ou, em última análise, decisão pela lesão do bem jurídico, uma vez que na situação de dolo eventual o agente ao aceitar o risco da verificação do resultado típico (“conformando-se” com ele – artigo 14º, nº 3 do CP), preferindo-o aos custos da não realização da sua conduta, inclui essa aceitação, nos fundamentos da decisão e opta pela lesão do bem jurídico.”.7 ou, usando as palavras de Faria da Costa8 “o dolo eventual representa claramente um alargamento das ações puníveis a título de dolo, onde o elemento da vontade se não perfila frontalmente antes se insinua unicamente na conformação da realização de um facto que preenche um tipo legal de crime (…). Na conformação vinga a ideia, permita-se-nos a linguagem denotativa, de uma certa astenia ético-jurídica da personalidade moral para com os acontecimentos”.

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            7 In de Tentativa Possível em Direito Penal, Almedina, 2006, 79 e ss e é dito no Acórdão, do STJ de 12/03/2009 in www.dgsi.pt

                    8 In Tentativa e Dolo eventual (ou da relevância da negação em direito penal) Coimbra, 1995, 42 e 43

                    A matéria respeitante ao dolo da actuação, porque se situa no campo da subjectividade, é sempre de difícil discernimento.

                    Se quem actua não esclarecer qual o estado de alma em que actuou, terá de ir buscar-se a elementos, a dados objectivos reveladores da verdadeira vontade, o sentimento que determinou a atuação.

                    E quais são, em regra, tais dados? São, desde logo, os instrumentos utilizados na prática do crime e a forma como o foram; e são também a parte do corpo atingida e a extensão qualitativa e quantitativa das lesões.

                    Para além dos factos analisados, provou-se que o arguido agiu deliberadamente, com intenção de tirar a vida à sua avó, tendo-a esganado com determinação e firmeza, e batido com a cabeça e zona do tronco daquela contra o chão várias vezes, para melhor assegurar o êxito das suas intenções.

                    O arguido, ao usar da força e apertar com as duas mãos o pescoço da vítima nas circunstâncias acima descritas, ao mesmo tempo em que lhe batia com a cabeça contra o chão, sabia que atingia uma zona vital do corpo e que, a forma como actuava, era apta a causar a morte da vítima como veio a suceder.

                    E provou-se que o arguido actuou de forma cruel e bárbara, com total desrespeito e absoluto desprezo que as relações familiares de «neto-avó» devem merecer para aqueles que pertencem à mesma prole e família, não se coibindo de actuar no enquadramento de uma situação de especial censurabilidade para a consciência social e que o cidadão comum ou a generalidade das pessoas veementemente reprovam.

                    Por último, provou-se que o arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

                    Tendo-se provado estes factos, encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de homicídio imputado ao arguido, previsto e punido pelo artigo 132º, n.º s 1 e 2, por referência à alínea a), do Código penal.

                    E, como referido, o mesmo não ocorre no que respeita à alínea c), do n.º 2, do artigo 132º, do Código Penal, pelo que será absolvido nesta parte.


*

                    Não se verifica qualquer causa que exclua a ilicitude e/ou a culpa pelo que há que determinar as penas a aplicar em concreto ao arguido.”

*

           

               Sustenta o recorrente aquele seu entendimento, por um lado, na decorrência da impugnação da matéria de facto que, precedentemente, encetou e que – no essencial - se veio a revelar inalcançada, mas também nos factos que no acórdão recorrido se tiveram por apurados.

            Soçobrando a pretensão do recorrente de ver alterada a factualidade dada como não provada no acórdão recorrido – pois, que apenas no tocante a parte de um dos factos impugnados, por conter matéria conclusiva e de direito, a sua pretensão foi atendida -   resta, agora, ponderar a questão do enquadramento jurídico-penal que o mesmo equaciona no seu discurso recursivo à luz da factualidade definitivamente estabilizada.

            A argumentação trazida à liça pelo recorrente a propósito de tal segmento recusivo. demanda que se convoquem as seguintes as normas do Cód. Penal.

            Artigo 131.º - Homicídio:

            “ Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.”

            Artigo 132.º - Homicídio qualificado

            “ 1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

            2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

            a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;

            (…)

            c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.      

             (…)”.

               Artigo 133.º - Homicídio privilegiado

            “Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.”

            No crime de homicídio, tanto a qualificação prevista no artigo 132º, como o privilegiamento previsto no artigo 133º, ficam a dever-se a diferentes graduações da culpa, no primeiro caso no sentido de uma especial censurabilidade da atitude contrária ao direito actualizada no facto pelo agente, e, no segundo, no sentido da consideração da atitude do agente manifestada no facto como sensivelmente menos censurável; o fundamento de uma agravação ou de uma atenuação que altera uma moldura penal pode não ser um fundamento de ilicitude, mas apenas um fundamento de culpa.

               Começando pela ponderação da subsunção dos factos ao crime de homicídio privilegiado, que constitui uma das teses - e a mais favorável  - das defendidas pelo arguido em sede recursiva, importa, antes de mais, atentar nos contributos mais relevantes da doutrina e da jurisprudência sobre os fundamentos do privilegiamento invocados pelo recorrente: a "compreensível emoção violenta", e o "desespero", enquanto estados que diminuam sensivelmente a culpa, sendo estes, como são, os pressupostos em que aquele se ancora para defender o enquadramento jurídico-penal da sua conduta à luz deste e não à luz do crime de homicídio qualificado por que vinha acusado e pelo qual veio a ser condenado.

               A questão amplamente debatida na doutrina e fundamental para ajudar a concretizar os requisitos exigidos para que se mostre preenchido o artigo 133.°, do Código Penal, passa por saber qual é afinal o fundamento do privilegiamento previsto em tal normativo legal.

            Seguindo de perto o que, a esse respeito, vem exposto no acórdão do STJ, de 08.11.2023 ( Proc. 808/21.3PCOER.L1.S1), diremos:       

               Fernanda Palma, in Direito Penal — Parte Especial — Crimes contra as Pessoas, AAFDL, Lisboa, 1983, considera que o privilégio nele contemplado tem dois fundamentos distintos: por um lado, e no que diz respeito aos casos de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero», a menor capacidade psicológica de o agente dominar os seus impulsos e de determinar a sua vontade; por outro, e no que concerne ao «motivo de relevante valor social ou moral», a menor exigibilidade de um comportamento de acordo com o Direito, atenta a relevância social do motivo que o conduziu à decisão criminosa.

            Frederico Costa Pinto, in “Crime de Homicídio Privilegiado — Acórdão da Relação de Évora de 4 de Fevereiro de 1997", RPCC, 8, 1998.) expressa entendimento semelhante, considerando que o fundamento do privilegiamento nos casos de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero» é um estado de menor culpa do agente (imputabilidade diminuída), pelo que relativamente a estas causas não se aplica a exigência de diminuição sensível da culpa, prevista na parte final do artigo 133.°. Na opinião deste autor, tal exigência apenas é aplicável ao privilegiamento por conta de «motivo de relevante valor social ou moral», sendo que, neste caso, o mesmo tem natureza mista, assente num decréscimo do conteúdo de ilícito e da culpabilidade do facto.

               Também Amadeu Ferreira, in Homicídio Privilegiado, p. 143, se situa nesta posição, ao cindir o fundamento do privilegiamento em dois aspectos distintos: por um lado, na «compreensível emoção violenta» a culpa é atenuada por via da imputabilidade diminuída; ao passo que nos restantes casos tal funda-se na exigibilidade diminuída de um comportamento diverso. Sendo que, em ambos os casos, "o art. 133.° constitui um tipo de culpa em que se atende prioritariamente, não à causa do facto ou à sua consideração global, mas ao estado do agente, ao grau de afectação da sua vontade" .

               Por sua vez, para Sousa Pinto ( in "Um caso de homicídio privilegiado", in Direito Penal II, AAFDL, 1984.),  o fundamento do privilegiamento do artigo 133.°, do Código Penal é, em todas as situações aí previstas - «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral» - a imputabilidade diminuída do agente.

            Por fim, no entendimento sustentado por Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, Teresa Serra, in Homicídios em Série, e Curado Neves, in "O Homicídio Privilegiado na Doutrina e na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça", RPCC, 11, 2001), o privilégio é reconduzido à exigibilidade diminuída, sendo certo, porém, que estes autores não são unânimes na concepção de exigibilidade diminuída que todos eles perfilham.

            Para Figueiredo Dias, as várias circunstâncias elencadas no artigo 133.° - a «compreensível emoção violenta», a «compaixão», o «desespero» e o «motivo de relevante valor social ou moral» - têm de ser externas ao próprio agente. Tal conclusão, segundo aquele autor, resulta da delimitação e diferenciação do conceito de «diminuição sensível da culpa», exigida pelo preceito em causa, do conceito de «imputabilidade» (artigo 20.°, do Código Penal) e ainda do conceito de «consciência da ilicitude» (artigo 17.°, do Código Penal). Ou seja, uma vez que a aplicação do artigo 133.°, do Código Penal pressupõe a imputabilidade do agente e a consciência da ilicitude, o privilegiamento tem necessariamente que se fundar numa situação endógena e exógena ao agente e em que "também o homem normalmente "fiel ao direito" ("conformado com a ordem jurídico-penal") teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções" (cfr. ob. cit. P. 48).

            Quanto à densificação normativa dos pressupostos da “compreensível emoção violenta“, vejamos: 

               Para Augusto Silva Dias, por emoção violenta deve entender-se, "um estado de exaltação, de arrebato súbito, de ira ou fúria que limita a capacidade de o agente se motivar concretamente pela proibição" (in Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, p. 38.).

            Na definição de Figueiredo Dias (in ob. cit., p. 50), a "compreensível emoção violenta" é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente "fiel ao direito" não deixaria de ser sensível.

            Para Amadeu Ferreira (in ob. cit., p. 63 e 96), a "compreensível emoção violenta que domina o agente" constitui um "estado psicológico que não corresponde ao normal do agente, encontrando-se afectadas a sua vontade, a sua inteligência e diminuídas as suas resistências éticas, a sua capacidade para se conformar com a norma. Há uma "excitação de molde a obscurecer-lhe a inteligência e a arrebatar-lhe a vontade", sendo uma situação que documenta um menor grau de culpa do agente, que se aproxima da incapacidade acidental".

            A emoção para ser relevante como cláusula privilegiante deve dominar o agente, significando que este perde o seu autodomínio, o controlo, ficando obnubilada ou cortada a sua relação com a realidade. Não é o agente que conduz o seu comportamento, mas "deixa-se levar", arrastar, pela violência da emoção que o domina.

            A emoção violenta, diversamente ao que sucede com as demais cláusulas privilegiadoras, submete-se a uma dupla exigência que se configura como um duplo controlo na medida em que tem de ser compreensível e tem de diminuir sensivelmente a culpa. Tem de ser uma emoção (violenta) socialmente tolerável ou respeitável. Esta característica explica, como considera Augusto Silva Dias (in ob. cit. p. 39) que "a circunstância privilegiante em questão releve através de critérios de menor exigibilidade de uma reacção conforme as exigências normativas".

            De acordo com o entendimento sufragado no acórdão do S.T.J., de 29.10.2008, Proc.  (proferido no 08P1309, disponível em www.dgsi.pt., "No esforço de compreensão da emoção é imperativo o estabelecimento de uma relação entre o afecto e as suas causas ou motivos, pois, para se entender uma emoção tem de se entender as relações que lhe deram origem, tendo em atenção o sujeito que a sentiu e o contexto em que se verificou a atitude, em ordem a entender o estado de espírito, o "conflito espiritual", a situação psíquica que leva o agente ao crime".

               Por sua vez, por "desespero" devem entender-se os estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta.

            Augusto Silva Dias trata o "desespero" como "vivência emocional caracterizável como total falta de esperança, como sensação de estar num "beco sem saída" existencial" (cfr. ob. cit., p. 44.)

            Um estado de afecto que, segundo Paulo Pinto de Albuquerque, "suscita no agente impotência diante de uma situação pessoal, de terceiro ou da vítima" (cfr. Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, p. 523).

            Para Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense …, pág. 52, o estado de afecto desespero corresponde, não tanto a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, mas sobretudo a estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta, não se tornando necessário que deva ter-se como compreensível.

            Já Teresa Serra, in o. cit., págs. 159/160, define desespero como estado emocional que tal como a compaixão afecta o discernimento normal do agente, em que em contraposição à emoção violenta, há uma acumulação de tensão que impele o autor a um beco sem saída ou a considerar-se num beco sem saída, actuando em conformidade com esse impulso. A situação de desespero implica estados emotivos de natureza passiva, interiorizada, reflexiva, com uma componente intelectual, não sujeita à cláusula da compreensibilidade, podendo reconduzir-se ao desespero os casos de homicídio de humilhação prolongada.

            João Curado Neves, in RPCC 2001 citada, pág. 186, afirma que o desespero tanto pode consistir num estado de espírito ocasional como resultar da avaliação ponderada da situação em que o agente se encontra; está em causa, não a perturbação do agente, mas a motivação do facto.

            Para Frederico Lacerda Costa Pinto, in RPCC 1998 citada, pág. 288, desespero corresponde a situação de facto em que o agente se encontra numa situação de pressão psicológica que lhe apresenta o crime como a única saída possível para a situação em que se encontra.

            Também segundo Leal Henriques - Simas Santos, in Código Penal Anotado, II, pág.132, por desespero deve entende-se «o estado de alma em que se encontra quem já perdeu a esperança na obtenção de um bem desejado, de quem enfrenta uma grande contrariedade ou uma situação insuportável, enfim, de quem está sob a influência de um estado de aflição, desânimo, desalento, angústia ou ânsia».

            Por fim, Amadeu Ferreira, in ob. cit. págs. 68 a 71, entende que, embora muito próximo da emoção violenta, o desespero distingue-se dela porque coincide em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, exigindo a lei não apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua consideravelmente a sua culpa, o que só poderá entender-se se levarmos em conta os motivos do autor.

               A jurisprudência que se julga majoritária do Supremo Tribunal de Justiça, segue tendencialmente a doutrina de Figueiredo Dias, no sentido de que o fundamento do privilegiamento previsto no artigo 133.°, do Código Penal é a exigibilidade diminuída, considerando que o mesmo é comum a todas as circunstâncias aí previstas.

            Assim é que, como se refere no citado acórdão do STJ, de 29.10.2008 "O homicídio privilegiado assente numa cláusula de exigibilidade diminuída concretizada em certos "estados de afecto" vividos pelo agente, que diminuam sensivelmente a sua culpa".

            Também no acórdão do STJ. de 24.02.2017, Proc. 1825/08.4PBSXL.ELS1, disponível em www.dgsi.pt, se perfilha que "Ao crime de homicídio privilegiado subjazem considerações atinentes à culpa, que se situam ao nível da exigibilidade. É a especial diminuição da culpa, em resultado de exigibilidade diminuída, que justifica e fundamenta o crime do art. 133°, do CP".

            Bem como o acórdão do S.T.J., de 07.09.20016, Proc. 405/14.0JACBR.C1, também disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que  "Subjacente à norma do art. 133.°, do CP, como elemento do tipo privilegiado, está um critério de menor exigibilidade relacionado com a sensível diminuição da culpa".

            No mesmo sentido, e referindo-se expressamente ao facto de a exigibilidade diminuída ser fundamento comum às várias circunstâncias previstas no artigo 133.°, do Código Penal, diz-se no acórdão do S.T.J., de 05.02.2015, Proc. 160/13.0GBTMR.C1.S1, disponível in www.dgsi, "O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas no art. 133.°, do CP, todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente”.

            E, também no acórdão do STJ, de 09.04.2015, Proc. 353/13.0PAPNI.L1.S1, in www.dgsi.pt, se adianta "A compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero, ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio".

               Também no que diz respeito à delimitação das várias circunstâncias previstas no citado preceito, designadamente no que diz respeito ao facto de as mesmas terem de ser externas ao próprio agente, é a doutrina perfilhada por Figueiredo Dias que é seguida, manifestando-se a mesma sobretudo na referência da jurisprudência a uma relação de proporcionalidade "entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado" - neste sentido cfr., designadamente, os acórdãos do S.T.J. de 12.03.2015 (proc. n.° 40/11.4JAAVR.C2.S1), de 29.05.2013 (proc. n.° 1264/11.0PCSTB.El.S1) e de 20.06.2012 (proc. n.° 416/10.4JACBR.C1.S ) todos eles consultáveis in www.dgsi.pt.

            Finalmente, e do mesmo modo, é a doutrina de Figueiredo Dias que está presente na posição assumida pela jurisprudência de que a "compreensibilidade" exigida para a emoção violenta se distinga da "diminuição sensível da culpa" e de que aquela tem de ser aferida "não atendendo às suas reacções particulares ou ao seu temperamento mas, em função do padrão do homem médio, colocado na situação do agente" - cfr., entre outros, Acórdãos do STJ, de 31.03.2016 ( Proc. 221/14.9JAFAR.E1.S1), de 20.06.2012 ( Proc. 416/10.4JACBR.C1.S1) e de 17.09.2009 (Proc. 434/09.5YFLSB), todos eles consultáveis in www.dgsi.pt.

            Também a jurisprudência considera ser de recorrer ao critério do homem médio para aferir da "diminuição sensível da culpa", ou seja, no sentido de que a menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de uma pessoa normal, respeitadora das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente.

            Sobre a análise do requisito da compreensibilidade da emoção, adianta-se no no acórdão do STJ, de 24.02.2016, disponível in www.dgsi.pt, que o  “ o mesmo consiste no entendimento, compreensibilidade e perceptibilidade da emoção, no sentido de que a emoção só será relevante quando aceitável, cuja aferição deve ser avaliada em função de um padrão de homem médio, colocado nas condições do agente, com as suas características, o seu grau de cultura e formação, sem perder de vista o agente em concreto; a partir da imagem do homem médio (diligente, fiel ao direito, bom chefe de família) tentar-se-á apurar se, colocado perante o facto desencadeador da emoção, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar em que o agente se encontrava, se conseguiria ou não libertar da emoção violenta que dele se apoderou, sem esquecer que o que se pretende apurar não é se o homem médio também mataria a vítima ou se reagia em termos idênticos (o que interessa averiguar é se a emoção é ou não compreensível), mas sim se o homem médio não deixaria de ser sensível àquela situação, sem se conseguir libertar da emoção, para se compreender se é menos exigível ao agente que não mate naquelas circunstâncias.”

               Em jeito de síntese a respeito do que vem de analisar-se, adianta-se no citado aresto, citando o que se mostra explanado no acórdão do STJ, de 28.06.2017, disponível in www.dgsi.pt., que:

            "a) A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no artigo 133.°, do Código Penal comum a todas as situações aí previstas - «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral».

            b) A exigibilidade diminuída corresponde à «diminuição sensível da culpa» referida no artigo 133.°, do Código Penal. Uma vez que, para que possa estar em causa a prática por um agente do crime previsto no artigo 133.º, do Código Penal, este tem, previamente, que ser imputável (artigo 20.º, do Código Penal) e ter consciência da ilicitude (artigo 17.°, do Código Penal), a «diminuição sensível da culpa» tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.

            A «diminuição sensível da culpa» tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível.

            c) A «diminuição sensível da culpa» distingue-se da «compreensibilidade» exigida para a «emoção violenta»: esta corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da «emoção violenta»; aquela corresponde à sensibilidade do mesmo homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.

            d) Em ambas as situações, isto é, tanto no que diz respeito à «compreensibilidade», como no que diz respeito à «diminuição sensível da culpa», é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas".

            Na argumentação recursiva que aduz no corpo da motivação do recurso, para além de fazer apelo ao entendimento sobre o privilegiamento do crime de homicídio sufragado pela doutrina que cita, alguma desta coincidente com a que deixámos exposta, o recorrente, traça o seguinte quadro factual:

            “Em primeiro lugar, nos meses e dias que precederam os factos, pelo menos, ocorria um relacionamento disfuncional e conflituoso entre o arguido, por um lado, e a sua avó, por outro, devido a desentendimentos entre aquele e esta, que amiúde lhe dirigia  insultos e o vexava, o que lhe causava irritação.

            Por outro lado, no dia dos factos ocorreu desaguisado, tudo na sequência de discussões e da expulsão do arguido de casa da avó.

            Como refere o acórdão recorrido, o arguido padece de Perturbações mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas – uso nocivo para a saúde, enquadrável na rubrica F19.1 da 10ª Classificação Internacional das Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS), e é uma pessoa suscetível a agir por impulso momentâneo, ao que acresce que, na época em que ocorreram os factos, o mesmo se encontrava medicado, com Quetiapina 25mg, dado o grave quadro clínico de instabilidade que só é administrada em SOS e que pode ter como efeitos secundários uma grande agitação, intolerância, alteração comportamental, irritabilidade e violência.

            O Acórdão recorrido refere e dá como provado que o arguido manifesta arrependimento.

            A conjugação destes elementos traduz-se num único resultado possível: o arguido, encontrando-se medicado com um fármaco que lhe potenciava os impulsos de caráter, sendo pessoa impulsiva e tendo sofrido muitos insultos ao longo do tempo, vivendo em desavenças crescentes com a avó e tendo sido mandado embora de casa, perante uma nova discussão, descontrolou-se, sentindo que não conseguia viver mais com os mesmos insultos e atuou de forma claramente desesperada e impulsiva”, quadro fáctico este, com base no qual entende configurar-se como compreensível a emoção violenta e o desespero que o citado art. 133º do C. Penal concebe.

            Afigura-se-nos, porém, que tal panorama factual adiantado pelo recorrente não encontra na panóplia fáctica provada – e só esta importa -  correspondência que permita concluir pelo privilegiamento do crime de homicídio imputado nos autos ao arguido.

            Com efeito, o que, na verdade, deflui dessa mesma factualidade provada é que:

                    “ (…)

                    2. A vítima andava desavinda com o arguido, tendo já apresentado queixas criminais contra o mesmo, que deram origem aos Inquéritos 148/22.... e 263/22...., não permitindo que aquele permanecesse e dormisse no interior da sua residência, sita no nº...4, da Avenida ..., ..., em ..., deixando apenas que ali tomasse as refeições.

                    3. No dia 14 de Junho de 2022, cerca das 21.00 horas, EE discutiu com o arguido, seu neto, não permitindo que aquele dormisse no interior de sua casa, indo aquele pernoitar junto ao lagar, num anexo da moradia.

                    4. No dia 15 de Junho de 2022, perto das 10.00 horas, o arguido AA apercebendo-se que a vítima - sua avó - estava a chegar a casa, sabendo que aquela não lhe permitia a entrada, aproveitou que a ofendida abrisse o portão da garagem para guardar o carro, e entrou na residência por aquele local.

                    5. Porque a sua avó o mandou sair da residência, e o arguido não obedeceu, aquela dirigiu-se ao 1º andar, à cozinha, dizendo que ia telefonar à GNR, sendo seguida pelo arguido.

                    (…)

                    15. O arguido andava desavindo com a sua avó, EE.

                    16. Da última vez que o arguido regressou do Luxemburgo para Portugal e veio para ..., no início do mês de Junho de 2022, por vezes, a avó chamava-o de drogado, vadio e inútil.

                    (…)

                    18. Quando o arguido regressou, a avó, por várias vezes e habitualmente dizia-lhe “não vales nada, és um drogado” indo apresentar queixa à GNR.

                    19. O arguido ficava irritado, transtornado e revoltado.

                    20. Dois dias antes dos factos, o arguido tinha dado entrada no serviço de urgência do Hospital ..., e dada a gravidade do seu quadro clínico foi transferido para o Hospital ....

                    21. Aí foi medicado, com Quetiapina 25mg, dado o grave quadro clínico de instabilidade que só é administrada em SOS e que pode ter como efeitos secundários uma grande agitação, intolerância, alteração comportamental, irritabilidade e violência.

                    22. Está arrependido, sente remorsos e peso de consciência.           

                    (…)

                    29. O arguido padece de Perturbações mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas – uso nocivo para a saúde, enquadrável na rubrica F19.1 da 10ª Classificação Internacional das Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde (OMS).

                    30. Apresenta traços de personalidade de tipologia anti-social, caracterizada pela incapacidade de se adaptar às normas sociais que ordinariamente governam vários aspetos do comportamento, nomeadamente a tomada de decisões por impulsos momentâneos e sem consideração pelas consequências que tais atos têm nos outros ou em si próprio, e nos poucos remorsos pelas consequências dos seus actos;

                    31. O arguido simula a psicopatologia, com busca de ganhos em sede judicial e assim ao diagnóstico de Simulação, conforme rúbrica Z76.5 da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde (OMS).

                    32. O arguido não apresenta, nem apresentava à data dos factos, sintomatologia psicótica, ou quaisquer outros sintomas que pudessem ser enquadráveis numa doença psiquiátrica, ou agudização da mesma.

                    33. O arguido não apresenta doença psiquiátrica que o incapacite de avaliar a licitude ou ilicitude dos factos, nem a capacidade de se autodeterminar perante os mesmos.

                    (…)

                    50. À data dos factos o arguido tinha regressado a Portugal, motivada por uma promessa de trabalho e que fora antecedida, cerca de um mês antes, pela vinda da irmã mais nova.

                    51. À semelhança das outras ocasiões, foi acolhido em casa da avó paterna em ..., que frequentemente se disponibilizava aos progenitores para o receber.

                    52. A promessa de trabalho não chegou a concretizar-se e o arguido foi permanecendo sem qualquer tipo de ocupação regular, circunstância que começou a motivar alguma tensão na relação com a avó, que seria bastante crítica acerca da falta de pro-atividade do mesmo na procura de emprego, bem como das suas vivências associadas ao consumo de drogas, com as quais era já localmente conotado.

                    53. Perante o agravar desta situação e na sequência de alegadas agressões de que estaria a ser alvo, a avó terá chegado a pedir, em duas ocasiões, a intervenção das autoridades policiais, junto das quais o arguido já era referenciado por outras práticas criminais, episódios que viriam a dar origem aos NUIPC’s 148/22.... e 263/22.....

                    54. Mais tarde a avó acabaria por impedir que o arguido pernoitasse na habitação principal, o que levou a que este se mudasse para um anexo, junto à adega.

                    55. Nos dias imediatamente anteriores aos factos, o arguido referiu não ter consumido drogas, mas alega ter sofrido, aparentemente de forma perfeitamente inusitada e sem motivo aparente, uma violenta agressão por parte de um jovem, em consequência da qual teve que recorrer às urgências hospitalares, vindo a ser encaminhado para os Hospitais ....

                    (…)”

                    Perante tal quadro fáctico que resultou apurado, revisitando as considerações jurídicas acima expostas, desde já se adianta que a subsunção jurídica daquele não pode ser ponderada à luz do crime de homicídio privilegiado.

            É verdade que existiam desavenças entre o arguido e a vítima, sua avó, com reflexo no relacionamento em termos afectivos, pouco gratificante, para ambos, motivadas pelo tipo de vida que o arguido levava e com o qual a avó não concordava.

            Fruto disso, vinham existindo alguns conflitos pessoais entre o arguido e a vítima, sua avó, com consequências mais gravosas para esta, pois que vítima chegou a ser agredida fisicamente pelo arguido, enquanto que este, sempre e só, foi visado pela mesma com agressões verbais.

            Ainda que, por força das atitudes de cariz insultuoso assumidas pela vítima perante o arguido relacionadas com o estilo de vida que este levava e do qual aquela discordava, o arguido ficasse irritado, transtornado e revoltado, tal contexto não foi impeditivo para que o mesmo continuasse a viver em casa da sua avó, sujeitando-se a dormir, à data dos factos, num anexo da casa da mesma, por imposição daquela, mas continuando a beneficiar da alimentação que pela mesma lhe era proporcionada e a aceder à casa de habitação para esse efeito.

            Pelo que, esse contexto vivenciado pelo arguido junto da sua avó, com os contornos que ficaram apurados, nem de longe nem de perto é susceptível, em nosso entender, de no caso concreto poder integrar o conceito de "emoção violenta" ou de poder constituir um "estado de desespero ou motivo de relevante valor social ou moral" que possa levar a diminuir de forma sensível o juízo de censura e, portanto, o juízo de culpa que impende sobre a sua actuação homicida em análise nos autos

            Basta lembrar apenas que, apesar do desagrado que a avó vinha demonstrando ao arguido sobre o seu percurso de vida ( sem qualquer tipo de ocupação regular e com vivências associadas ao consumo de drogas, com as quais era já localmente conotado ), sempre a mesma se disponibilizou para o acolher na sua casa e para o alimentar, impondo-lhe algumas limitações quanto ao acolhimento fruto de condutas agressivas que o arguido vinha tendo para com ela, e nunca aquele ( que se saiba ), perante ninguém, designadamente perante a sua irmã que com eles também vivia, deu sinais de se encontrar deprimido, angustiado ou desesperado fruto desse relacionamento que vinha tendo com a sua avó.

               Daí que, no caso presente, é perceptível para qualquer cidadão médio, a desproporcionalidade existente entre a alegada relação conflituosa vivenciada entre o arguido e a vítima sua avó e a actuação imputada nos autos ao arguido, para que se possa considerar a existência de uma situação de "desespero" ou de "emoção violenta".

            E, mesmo que assim não fosse, esta nunca seria "compreensível", porquanto tal exigência não pode ser aferida tendo por base as reacções particulares do arguido, mas antes as do homem médio.

            A actuação do arguido que resultou provada é, isso sim, demonstrativa de uma desproporção enorme entre a relação conflituosa que o mesmo tinha com a vítima, sua avó, e a gravidade do facto danoso por ele praticado, e, porque assim é, com base nesse relacionamento conflituoso existente entre avó e neto, o circunstancialismo dos autos não permite dizer que o arguido estivesse dominado por compreensível emoção violenta ou por desespero que diminuísse sensivelmente a sua culpa.

               Compreensível emoção violenta e/ou desespero que, também, não podem ter-se por verificadas por força de eventuais efeitos resultantes de medicação que lhe tenha sido prescrita dias antes, porquanto, apesar de ter resultado provado que, dois dias antes, fora medicado com Quetiapina 25mg, em face do grave quadro clínico de instabilidade que apresentava – fruto de uma violenta agressão por parte de um jovem - e que tal medicamento pode ter como efeitos secundários uma grande agitação, intolerância, alteração comportamental, irritabilidade e violência, a verdade é que, não só não resultou minimamente provado que aqueles possíveis efeitos da referida medicação se tivessem feito sentir na pessoa do arguido aquando da sua actuação em causa nos autos, como até se apresenta duvidoso que, nesse momento, o arguido pudesse estar sob qualquer efeito provado por aquele fármaco, pois, como nesse particular se adianta na motivação da decisão da matéria de facto a respeito do contributo do parecer psiquiátrico forense “ de acordo com a descrição do próprio examinando, após a toma de quetiapina, este sentiu-se sedado e, de alguma forma lentificado, tendo dormido durante toda a noite, não voltando, por isso, a tomar o referido fármaco, segundo o próprio.”

            Nem também, por força das perturbações mentais e comportamentais de que o arguido padece e cujos contornos se mostram descritos na factualidade provada, as quais, por não evidenciarem consequências com reflexo na sua actuação em causa nos autos, não permitem dizer que o arguido estivesse dominado por compreensível emoção violenta ou por desespero que diminuísse sensivelmente a sua culpa quanto à sua actuação homicida que neles está em causa.

            Assim, ao contrário do que defendo o arguido e ora recorrente, ficou provada a sua intenção de matar, sem quaisquer contornos susceptíveis de integrar qualquer elemento privilegiador dos previstos no art. 133º do C. Penal.


*

            Como já o dissemos, na mira de ver atenuada a sua responsabilidade criminal emergente dos factos que resultaram provados, investe também o arguido e ora recorrente na pretensão recursiva de ver decidido por este Tribunal de recurso, que a subsunção jurídica dos mesmos deve ser feita à luz do que se dispõe no disposto no art. 131º do C. Penal para o homicídio simples, e não, como foi decidido no acórdão recorrido, à luz do que se dispõe no art. 132º, nº2, alínea a) do C. Penal para o homicídio qualificado. 

            Na ponderação do enquadramento jurídico-penal da factualidade que resultou provada e que, apesar da impugnação que a ela foi deduzida pelo recorrente, permanece, no essencial, inalterada, revelam-se assertivas as considerações expendidas no acórdão recorrido no tocante à caracterização do crime de homicídio simples e do crime de homicídio qualificado, as quais, não só sufragamos como dispensam acrescidos contributos doutrinários ou jurisprudenciais a esse respeito.

            Ancorado nelas o Tribunal recorrido subsumiu juridicamente os factos à previsão legal contida no art. 132º, nº1 e 2, por referência à alínea a), do C. Penal, afastando o preenchimento da qualificativa do homicídio prevista na alínea c) do nº 2 daquele art. 132º do C. Penal que também vinha imputada ao arguido na acusação contra o mesmo deduzida nos autos.

            Dissente o arguido e ora recorrente do entendimento tido pelo Tribunal recorrido quanto ao preenchimento dos elementos constitutivos do crime de homicídio qualificado por referência à alínea a) do nº2 do art. 132º do C. Penal, pelas razões que resume nas conclusões 20ª a 34ª.

             Sustentando essa sua discordância na circunstância de serem contantes as discussões entre a vítima e o arguido e agressivo o ambiente entre ambos, da ligação entre os mesmos já não ser familiar no plano material, por não se verificar a ligação visceral que funda essa circunstância qualificativa, sendo apenas uma ligação formal, nada mais; ter-se deteriorado significativamente a relação entre arguido e vítima, a ponto de a mesma se traduzir em acossamento e expulsão do mesmo de casa, tudo isto gerando nos meses em que viveram juntos, um crescendo de frustração e de ressentimento do arguido contra a vítima, cuja acumulação despoletou o crime, e, ainda, de dever ser ponderado o estado do arguido, perturbado, irritado e medicado com fármaco que potenciava estes sentimentos na época em que ocorreram os factos.

            O Tribunal recorrido considerou verificada a circunstância qualificativa referida na alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, segundo a qual, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser descendente da vítima.

            Tendo resultado provado que o arguido quis matar outra pessoa e que essa pessoa era sua avó, tendo o arguido conhecimento de que se tratava da sua avó, mostra-se verificado o exemplo padrão que indicia o preenchimento da qualificativa prevista na alínea a), do n.º2, do artigo 132.º, do Código Penal, tal como reconheceu o Tribunal recorrido.

            Não pondo em causa que entre o arguido e a vítima se verificavam, objectiva e formalmente, os laços familiares que indiciam o preenchimento de tal qualificativa do crime de homicídio, entende, porém, o arguido que essa ligação entre os mesmos já não era familiar no plano material porque a relação entre ambos se tinha deteriorado significativamente e esses laços familiares, apenas se verificando no plano formal, não se verificando a “ ligação visceral que funda essa circunstância qualificativa “.

            Pois bem.

            Como o tribunal recorrido ponderou, e bem, obviamente que, estando em causa um exemplo-padrão e que não funciona como agravante automaticamente, não basta que ocorra qualquer uma dessas especiais relações entre o agente e a vítima, é necessário que no caso concreto a existência dessa relação traduza uma especial censurabilidade ou perversidade do comportamento do agente.

            Como bem se salienta no acórdão do STJ, de 27.03.2019, Proc. 316/17JAFUN.L1.S1, in www.dgsi.pt“O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132º do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determinaria a realização do tipo, como acontece por exemplo no furto qualificado, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no nº 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no nº 2.

            Estas circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no nº 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Assim, ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta (só se ocorrer o tipo de culpa) se verificará a qualificação.

            Assim, como meros indícios, as circunstâncias do nº 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do nº 1. Da interação entre os nºs 1 e 2 do art. 132º pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131º. Mas pode também, precisamente pelo seu caráter meramente indiciário de uma culpa especialmente agravada, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão.

            Esta interação reflexa entre os dois números do art. 132º permite por um lado uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e consequentemente na administração da justiça do caso, e por outro assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade.”.

            Acrescentando-se, ainda, no mesmo aresto, que se “A al. a) prevê a circunstância de o agente ser descendente ou ascendente, adotado ou adotante, da vítima. Esta circunstância, mau grado se basear num facto objetivo (a relação familiar de ascendência-descendência), não opera automaticamente, antes exige, como as demais, a verificação de especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente.”

            O requisito da especial censurabilidade resulta do modo como o agente executa os actos ilícitos, tendo por referência atitudes que social e humanamente refletem comportamentos que, para a representação social das circunstâncias factuais, são merecedoras de grande reprovação pelo elevado desvalor para os bens jurídicos defendidos que essas atitudes comportam.

            Por sua vez, a especial perversidade refere-se às condutas que reflectem aspectos e qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente.

            A este propósito, veja-se o acórdão do STJ de 10.07.2008, Proc. n.º 8P1785, em www.dgsi.pt, onde se sumaria que “A qualificação do homicídio assenta, pois, num especial tipo de culpa, agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável. (…) Tudo dependerá, como refere Figueiredo Dias, de uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta. Tipo de culpa que, perante a inexistência de qualquer uma das situações previstas no texto legal, só se deve ter por verificado perante circunstâncias extraordinárias ou um conjunto de circunstâncias especiais (reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente), que exprimam um grau de gravidade e possuam um estrutura valorativa correspondente à imagem de cada um dos exemplos padrão enunciados no texto legal. ”

            No caso dos autos não se pode deixar de considerar verificados, quer a qualificativa da al. a), do n.º 2, do art.º 132.º, quer os requisitos de especial censurabilidade e perversidade exigidos nos termos do n.º 1, do mesmo preceito legal, sendo certo que, para aferir da verificação ao nível da culpa de tais requisitos, há que apreciar as circunstâncias específicas em que decorreu o crime de homicídio, com vista ao apuramento da qualificativa da al. a), do n.º 2, do art.º 132.º do CP.

            Com efeito, provou-se que o arguido é neto da vítima EE, a qual contava 78 anos de idade em Junho de 2022  e ele 31 anos de idade, com ela residindo desde que regressou do Luxemburgo em finais de Maio de 2022;  a vítima andava desavinda com o arguido, tendo já apresentado queixas criminais contra o mesmo; no dia 14 de junho de 2022 anterior a vítima discutiu com o arguido, não permitindo que este dormisse no interior da sua residência, mas deixando que ali tomasse as refeições; no dia 15 de Junho de 2022, perto das 10.00 horas, o arguido, apercebendo-se que a vítima - sua avó - estava a chegar a casa, sabendo que aquela não lhe permitia a entrada, aproveitou que a mesma abrisse o portão da garagem para guardar o carro, e entrou na residência por aquele local; porque a sua avó o mandou sair da residência e o arguido não obedeceu, a vítima dirigiu-se ao 1º andar, à cozinha, dizendo que ia telefonar à GNR, sendo seguida pelo arguido, e, já na cozinha, o arguido agrediu a sua avó, como descrito no ponto 6. da factualidade provada, e apenas parou quando a sua avó deixou de reagir às agressões de que era alvo, ficando inanimada, agressões essas que foram causa directa e necessária das lesões provocadas à vítima  em virtude das quais esta sofreu dores nas zonas atingidas, esganadura e lesões cervicais, que lhe provaram a morte, designadamente; o arguido agiu deliberadamente, com intenção de tirar a vida à sua avó, tendo-a esganado com determinação e firmeza, e batido com a cabeça e zona do tronco daquela contra o chão várias vezes, para melhor assegurar o êxito das suas intenções.

            É verdade que, como já deixámos evidenciado supra, existiam desavenças entre o arguido e a vítima, sua avó, com reflexo no relacionamento em termos afectivos, pouco gratificante, para ambos, motivadas pelo tipo de vida que o arguido levava e com o qual a avó não concordava, que, fruto disso, vinham existindo alguns conflitos pessoais entre o arguido e a vítima, sua avó, com consequências mais gravosas para esta, pois que esta chegou a ser agredida fisicamente pelo arguido, enquanto que este só foi visado pela mesma com agressões verbais.

            E, ainda que, por força das atitudes de cariz insultuoso assumidas pela vítima perante o arguido relacionadas com o estilo de vida que este levava e do qual aquela discordava, o arguido ficasse irritado, transtornado e revoltado, tal contexto não foi impeditivo para que o mesmo continuasse a viver em casa da sua avó.

            O motivo para a actuação do arguido ficou claro: contrariar a ordem dada pela avó para que saísse da residência onde aquela o tinha proibido de permanecer e ainda impedi-la de ir telefonar à GNR.

            E, a conduta do arguido, enveredando por uma actuação violenta e inopinada, perante uma vítima, desprotegida e com idade avançada, que era sua avó, com os contornos de crueldade que assumiu - face ao modo o arguido matou a vítima: agarrando a sua avó pelo pescoço, com ambas as mãos, apertando-o com força, sufocando-a, derrubando-a contra o chão e, ao mesmo tempo que lhe apertava o pescoço, levantando-lhe a cabeça e o tronco várias vezes e batendo com a mesma contra o chão – não pode deixar de ser reveladora de uma grande indiferença pelo bem jurídico protegido, a vida, tornando a sua actuação e o seu  comportamento aviltantes e revelando um modo de agir e uma atitude de quem não recua na intenção de se livrar daquele ser humano desprotegido, cuja vida tinha, não só o dever geral de respeitar mas de, acrescidamente o fazer, pelas relações familiares que «neto-avó» devem merecer para aqueles que pertencem à mesma prole e família, como era o seu caso.

            Circunstâncias estas, em que o arguido actuou, que são de tal modo graves que não podem deixar de reflectir uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores, que, por si só, são reveladoras uma especial censurabilidade que justifica, pela referida actuação, a maior severidade da punição devida.

            Especial censurabilidade essa decorrente da concreta actuação do arguido que resultou provada, para esbatimento da qual não podem relevar, como pretende o recorrente, eventuais efeitos resultantes de medição prescrita ao arguido, por não demonstrados, nem as perturbações mentais e comportamentais de que o mesmo padece – com os contornos descritos na factualidade provada - por estas não evidenciarem consequências com reflexo nessa sua actuação.

            A imagem global que se retira da factualidade provada é de tanto horror e repugnância e dá do arguido uma imagem de personalidade fria, insensível e tão profundamente distanciada do Direito que, necessariamente a sua culpa só encontra reflexo adequado nos parâmetros da especial censurabilidade e perversidade previstos nos nºs 1 e 2 do art.132º do C. Penal.

            Razão pela qual, tal como decidiu o Tribunal recorrido, está, sem dúvida, preenchida a alínea a), do n.º 2, do artigo 132º, do Código Penal, não merecendo, por outro lado, qualquer censura o afastamento pelo mesmo da qualificativa prevista na alínea c) do mesmo normativo legal que também vinha imputada ao arguido na acusação.

            Improcedendo, por isso, neste segmento a pretensão do recorrente.


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            (…)

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            - Da incorrecta ponderação da medida da pena [questão comum dos recursos interpostos pelo arguido e pelo Ministério Público]

            No entendimento de ambos os recorrentes, ainda que em perspectivas diametralmente opostas, foi incorrectamente ponderada no acórdão recorrido a medida concreta da pena nele aplicada ao arguido, por, na opinião do arguido se apresentar excessiva, e, na opinião do Ministério Público, se apresentar desajustada por demasiado branda.

            Na fundamentação da determinação da pena e da sua medida concreta, o Tribunal Coletivo adiantou no acórdão recorrido, o seguinte, que se transcreve:

            “ Relativamente à fixação em concreto da medida da pena, a culpa e a prevenção, geral e especial, são os dois factores a considerar.

                    O momento de aplicação da pena é aquele em que, no direito penal, se deve ter em vista a protecção subsidiária preventiva, quer geral, quer individual, de bens jurídicos e de prestações estatais; ou seja, o fim de prevenção geral, não no sentido de intimidação, mas com o objectivo de “salvaguarda da ordem jurídica na consciência da comunidade”9.

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            9 Segundo Claus Roxin citado por Gonçalves da Costa, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 3, nºs 2/4, pág. 328.

            Na verdade, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa, segundo o disposto no artigo 40º, nº 2, do Código Penal.

                    Funciona assim a culpa como pressuposto e limite inultrapassável da medida concreta das penas.

                    Dispõe o artigo 70º, n.º 1, que quando sejam aplicáveis ao crime, em alternativa, pena privativa ou não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

                    Serão as considerações de prevenção que deverão determinar a medida da pena, abaixo da medida da culpa, de acordo com o disposto no artigo 71º, nº1, do referido diploma legal.

                    Por outro lado, decorre do nº 2 da norma referida no parágrafo anterior, que na determinação da medida da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.

                    Circunstâncias que estão concretizadas exemplificativamente nas diversas alíneas do artigo referido.

                    E, como já exposto, é pela dimensão da culpa, “moldura da culpa”, que a pena não pode ultrapassar, que se vai determinar o limite superior da pena; posteriormente, as exigências de prevenção geral impõem uma sub moldura que terá nos limites da culpa a sua dimensão para assegurar o respeito pelos valores violados, pelo que a pena não pode ultrapassar os limites da prevenção geral.

                    Por último, é dentro da moldura de prevenção geral que se fixa a pena a aplicar, considerando as necessidades de prevenção especial: exigências de ressocialização e reintegração.

                    Assim, a realização da finalidade de prevenção geral que deve orientar a determinação da medida concreta da pena abaixo do limite máximo fornecido pelo grau da culpa, relaciona-se com a prevenção especial de socialização, para que seja esta a fixar a medida da pena.10

                    Como vimos, o crime praticado pelo arguido é punível com pena de prisão de 12 a 25 anos, cabendo determinar qual a pena que, em concreto, lhe deve ser aplicada.

                    À culpa compete, assim, fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicado, sendo em função de considerações de prevenção, quer geral de integração, quer especial de socialização, que deve ser determinada, abaixo daquele máximo, a medida final da pena, de modo que, através deste processo de determinação da medida da pena, se acentue a integração e o reforço da consciência jurídica comunitária e o seu sentimento de segurança em face da violação da norma.

                    Assim, importa ponderar in casu os seguintes factores:

                    - O grau elevado da ilicitude da conduta do arguido.

                    - A isto se alia a intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo.

                    - As exigências de prevenção geral são de considerar elevadíssimas, dada a enorme frequência com que ocorrem crimes contra a integridade física e contra a vida humana (bem jurídico supremo do (de qualquer) ordenamento jurídico-penal), provocando um enorme sentimento de insegurança e alarme social, o que suscita por parte da comunidade uma necessidade acrescida de restabelecimento da confiança na validade das normas infringidas, a exigir por parte do tribunal severidade na punição.

                    - O arguido estava integrado socialmente e verbalizou arrependimento, mas tem antecedentes criminais, ainda que por crimes de diferente natureza e procurou minimizar, desculpabilizar a sua conduta, mostrando-se pouco crítico e com alguma indiferença emocional relativamente ao seu gravíssimo comportamento, nomeadamente, através de manobras de simulação do seu estado psíquico e assim obter ganhos judiciais, procurando conseguir uma atenuação especial, ou ser declarado inimputável, o que é demonstrativo de

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            10 Anabela Rodrigues, in A Determinação da Medida Concreta da Pena, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº2, 1991 e Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 243.

não ter ainda incutido a gravidade dos factos que praticou e a necessidade de se pautar pelas regras de vida em sociedade, ainda mais tendo tirado com a sua conduta a vida à sua avó, sendo assim prementes e muito elevadas as exigências de prevenção especial.

                    Tudo ponderado e atendendo ao que se disse em relação às necessidades de prevenção especial e geral, circunstâncias e consequências na vítima do crime, dentro da referida moldura abstracta, temos por adequado e proporcional a aplicação da seguinte pena ao arguido:

                    - Ao crime de homicídio qualificado uma pena de prisão de 15 (quinze) anos, portanto ainda abaixo da média permitida pela moldura abstracta.”


*

            De acordo com os critérios plasmados no referido art. 71º, nº2 do C. Penal, o limite mínimo da pena a aplicar é determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..

            Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente, ou como diz o acórdão de 22-09-2004, processo n.º 1636/04-3.ª, in ASTJ, n.º 83: “a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível”.

            Ou, como expressivamente se diz no acórdão deste STJ de 16-01-2008, processo n.º 4565/07 - 3.ª: «A norma do art. 40.º do CP condensa em três proposições fundamentais o programa político-criminal sobre a função e os fins das penas: a) protecção de bens jurídicos; b) a socialização do agente do crime; c) constituir a culpa o limite da pena mas não o seu fundamento.

            O modelo do CP é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art. 40.º determina, por isso, que os critérios do art. 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição.

            Tal modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

            Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

            Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».

            São, pois, elementos fundamentais da operação da escolha e determinação da pena, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente, portanto, fins de prevenção – geral e especial – por um lado, e a sua limitação pela medida da culpa do agente, por outro.

            A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a culpa, dirigida ao agente do crime, constitui o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.). Pode, por isso, dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).


*

            Postas estas considerações, desçamos ao caso concreto.

            Considerou-se no acórdão recorrido, serem elevadíssimas as exigências de prevenção geral, dada a enorme frequência com que ocorrem crimes contra a integridade física e contra a vida humana (bem jurídico supremo do (de qualquer) ordenamento jurídico-penal), provocando um enorme sentimento de insegurança e alarme social, o que suscita por parte da comunidade uma necessidade acrescida de restabelecimento da confiança na validade das normas infringidas, a exigir por parte do tribunal severidade na punição.

            Entendimento este que, não só não é posto em causa pelo arguido/recorrente, ao propender que as exigências de prevenção geral são “bastante acentuadas”, como também é perfilhado pelo recorrente MºPº, o qual, a nosso ver, também não merece censura.

            Com efeito, nos crimes graves como o presente, em que está em causa a violação da vida, bem jurídico de superior grandeza, pelo alarme social que provocam relevam especialmente as fortes necessidades de prevenção geral positiva, ligadas à satisfação do interesse público de defesa da sociedade que, pela natureza e gravidade dos factos, sente uma necessidade acrescida de ver restabelecida a confiança nas normas infringidas.

            Também quanto à ilicitude se ponderou no acórdão recorrido ser a mesma de grau elevado, entendimento esse com o qual, igualmente, o arguido/recorrente se conforma, pese embora apele em sede recursiva, com vista à respectiva atenuação, ao mau relacionamento que existia entre o mesmo e a vítima e ao facto de se encontrar descompensado do ponto de vista psíquico, grau de ilicitude esse que o recorrente MºPº reforça para elevadíssimo, aduzindo que o arguido agiu  contra uma vítima particularmente indefesa, pela diferença que apresentava em relação ao arguido em função da idade, da compleição física, da força muscular,  e por agido “ de uma forma brutal, bárbara e sem deixar qualquer hipótese de reacçãoà vítima já que a agarrou, com ambas ao mãos, pelo pescoço, a atirou ao chão e, em cima dela, projectou-lhe, por diversas vezes, a cabeça de encontro ao solo, com o propósito de lhe tirara vida, o que conseguiu”.

            De facto, no caso concreto, mostra-se especialmente desfavorável ao arguido o grau de ilicitude do facto, especialmente o modo de execução do crime (alínea a) do nº2 do art. 71º C. Penal), de que se destaca a circunstância de ter aquele, à data com 31 anos de idade, investido contra a vítima, sua avó, com 78 anos de dade, de forma inopinada e sem qualquer possibilidade de defesa para esta, agarrando-a pelo pescoço, com ambas as mãos, apertando-o com força, sufocando-a, bem como a derrubando contra o chão e, ao mesmo tempo que lhe apertava o pescoço, levantando-lhe a cabeça e o tronco várias vezes e batendo com a mesma contra o chão, só parando com tal actuação quando a vítima deixou de reagir às agressões de que era alvo, ficando inanimada, provocando-lhe esganadura e as lesões cervicais que lhe provocaram a morte.

            Modo de actuação esse, cuja gravidade não poderá mostrar-se esbatida por força das desavenças existentes entre o arguido e a vítima, pela manifesta desproporção destas em relação aquele, e menos ainda, pela indemonstrada descompensação psíquica vivenciada pelo arguido aquando da mesma, a qual foi até avaliada pelo tribunal recorrido como fingida.

            Devendo, pois, ter-se por muito elevada a ilicitude com que o arguido actuou.

            Também no acórdão recorrido se considerou desfavorável ao arguido a intensidade do dolo com que o mesmo actuou, na modalidade de directo, que, segundo o Ministério Público recorrente, se apresenta revelador da grande energia criminosa com que o arguido actuou, com total desprezo pela vida humana, no caso da sua avó, pessoa que o acolheu quando veio do Luxemburgo, de quem dependia e que o sustentava, dolo intenso esse que, em nosso entender, efectivamente, se manifesta na representação pelo arguido de que os factos por si perpetrados constituíam crime, e, ainda assim, actuou com vontade de os realizar, aceitando o seu resultado, actuando, com total desprezo pela vida da sua avó.

            Sobre as razões de prevenção especial, sopesou-se no acórdão recorrido o facto do arguido ter antecedentes criminais, ainda que por crimes de diferente natureza, e a circunstâncias de ter procurado minimizar, desculpabilizar a sua conduta, mostrando-se pouco crítico e com alguma indiferença emocional relativamente ao seu gravíssimo comportamento, nomeadamente, através de manobras de simulação do seu estado psíquico e assim obter ganhos judiciais, procurando conseguir uma atenuação especial, ou ser declarado inimputável, o que é demonstrativo de não ter ainda incutido a gravidade dos factos que praticou e a necessidade de se pautar pelas regras de vida em sociedade, ainda mais tendo tirado com a sua conduta a vida à sua avó,   reputando-as, por tudo isso, “ prementes e muito elevadas”.

            Entendimento este, quanto às exigências de prevenção especial, que não nos merece censura e que se apresenta de pendor desfavorável ao arguido.

            Por fim, considerou-se no acórdão recorrido verificar-se a integração social do arguido, entendimento esse de que o arguido/recorrente se faz valer para, a par do arrependimento que alega e da sua situação familiar, almejar a redução da pena concreta de prisão que lhe foi aplicada, com abrandamento para próximo do mínimo legal (12 anos).

            Discordando, frontalmente, deste entendimento, sustenta o Ministério Público recorrente a desintegração social, familiar e profissional do arguido, os traços de personalidade do mesmo, retratados no relatório da perícia médico-legal inserto a fls. 766-776, dos quais destaca “ A simulação de psicopatologia, com busca de ganhos em sede judicial, pois que o arguido era capaz de entender a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo  com a essa avaliação, …” e a sua falta de arrependimento, retratada nos actos subsequentes aos factos e que perdura até hoje, circunstâncias que reputa como desfavoráveis a ter em conta na ponderação da pena concreta a aplicar ao arguido - que em sede recursiva pretende ver agravada para 20 anos.

             Pois bem.

            Reconhecendo-se que, com base na factualidade provada dada como provada pelo Tribunal recorrido relativamente às condições de vida do arguido - designadamente da que consta vertida nos pontos 25. a 28. - se possa ter como evidenciado que o arguido beneficia de apoio familiar, presente e futuro, que as relação deste com os seus pais e a sua irmã se pautam por laços de afectividade e também que mantém uma relação afectiva gratificante com o seu filho menor de 13 anos de idade, tal não é, porém, suficiente para, a nosso ver, daí se poder considerar, como se fez no acórdão recorrido, que o arguido esteja integrado socialmente, até porque, como deflui da demais factualidade provada, designadamente da que consta nos pontos 52. e 53, o arguido não tinha, nem tem, um projecto de vida estruturado, pois, à data dos factos, não trabalhava nem tinha qualquer outro tipo de ocupação regular, nem perspectivas disso, pautando o seu quotidiano diário, para além, da ociosidade, também pela vivência associada ao consumo de drogas, com a qual era já localmente conotado.

            Daí que, podendo, embora, levar-se em conta como circunstância favorável ao arguido a sua integração a nível familiar, não cremos que possa, com o mesmo desiderato, estender-se esse entendimento à sua situação profissional e social, por inverificada a sua integração a estes níveis, está última decorrente, até, dos “traços de personalidade de tipologia anti-social” que o mesmo apresenta, como resulta da factualidade provada contida no ponto 30.

             Também quanto ao arrependimento a que o arguido e ora recorrente faz apelo no seu discurso recursivo e cuja inverificação o Ministério Público defende, impõe-se dizer o seguinte:

            O tribunal recorrido sopesou para efeito de determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, que o mesmo “verbalizou arrependimento”, aduzindo, ainda, que o arguido “procurou minimizar, desculpabilizar a sua conduta, mostrando-se pouco crítico e com alguma indiferença emocional relativamente ao seu gravíssimo comportamento, nomeadamente, através de manobras de simulação do seu estado psíquico e assim obter ganhos judiciais, procurando conseguir uma atenuação especial, ou ser declarado inimputável, o que é demonstrativo de não ter ainda incutido a gravidade dos factos que praticou e a necessidade de se pautar pelas regras de vida em sociedade “.

            De tal entendimento, assim expresso, se podendo, a nosso ver, retirar que o tribunal recorrido considerou de pouco ou nenhum relevo atenuativo esse arrependimento verbalizado pelo arguido, porque entendeu que o mesmo não demonstrou ter interiorizado a desconformidade do seu gravíssimo comportamento, em face, desde logo, das manobras de simulação sobre o seu estado psíquico que pôs em prática com vista a obter ganhos judiciais.

            Mas se foi esse, como parece ter sido, o entendimento do Tribunal a quo, deveria o mesmo ter-se coibido de expressar, o que em contrário dele resultar, ainda que termos conclusivos, do ponto 22. [Está arrependido, sente remorsos e peso na consciência”].

            É que, o arrependimento - sincero e proactivo - não pode inferir-se da mera verbalização feita pelo arguido na audiência de julgamento, mas antes da postura que por ele nela venha a ser assumida, com sinceridade e com reconhecimento genuíno da gravidade da sua conduta.

            Como a esse propósito se defendeu no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30.05.2012, disponível, in www.dgsi.pt, “a simples declaração proferida em audiência de julgamento pelo arguido de que está arrependido não tem qualquer valor… O arrependimento é uma acto interior, devendo essa demonstração ser visível de modo a convencer o tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a delinquir “.

            Reconhecendo o Tribunal recorrido - partindo do que aferiu do parecer psiquiátrico forense que, para o efeito, valorou - que o arguido “procurou minimizar, desculpabilizar a sua conduta, mostrando-se pouco crítico e com alguma indiferença emocional relativamente ao seu gravíssimo comportamento, nomeadamente, através de manobras de simulação do seu estado psíquico e assim obter ganhos judiciais, procurando conseguir uma atenuação especial, ou ser declarado inimputável, o que é demonstrativo de não ter ainda incutido a gravidade dos factos que praticou e a necessidade de se pautar pelas regras de vida em sociedade”, como, efectivamente, dele decorre, a par, ainda, do que igualmente dele deflui a respeito de que o arguido apresenta traços de personalidade que apontam para que o mesmo assuma “ pouco remorsos pelas consequências dos seus actos “, sejam estas reflectidas nos outros ou em si próprio, afigura-se-nos ser, por tudo isto, por demais evidente a irrelevância do arrependimento que o arguido possa rer verbalizado na audiência de julgamento para efeitos de atenuação da pena.

            Anotando, ainda, que a conduta do arguido posterior aos factos, elencada nos pontos 9. e 10. da factualidade provada, deixa antever alheamento e frieza da sua parte perante as graves consequências da sua conduta, nada abonando, por isso, a seu favor, bem pelo contrário.

            Como vem sendo entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, a intervenção daquele Tribunal superior tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada - neste sentido, citam-se apenas alguns dos arestos da vastidão jurisprudencial que emana do STJ respeito de tal questão processo - processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 1-10-2009, processo n.º 185/06.2SULSB.L1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1-3.ª; de 03-12-2009, processo n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1-3.ª; de 28-04-2010, processo n.º 126/07.0PCPRT.S1-3.ª; de 29-06-2011.

            No caso em vertente afigura-se-nos que, apesar de no acórdão recorrido terem sido levados em conta e sopesados com acerto, na quase generalidade, os critérios legais a ter em conta para efeitos de determinação da pena concreta, ponderando que, no caso, as circunstâncias agravantes se sobrepõem, de longe, às circunstâncias atenuantes, levando também em conta a jurisprudência que vem sendo seguida pelos tribunais superiores para casos com contornos semelhantes ao dos autos, se revela desproporcional a pena concreta, de 15 anos de prisão, decidida pelo tribunal da 1ª instância, porque - fixada relativamente próximo do limite mínimo - peca por defeito.

            Daí que reputemos justo e equilibrado fixar a mesma em 18 ( dezoito ) anos de prisão, por esta se revelar mais adequada e proporcional à culpa do arguido, sendo, sempre, por esta suportada.

            Consequentemente, procede o recurso interposto pelo Ministério Público e improcede o recurso do arguido.


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            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

            1. Proceder à correção do acórdão recorrido nos moldes supra decididos;

            2. Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, e, consequentemente:

            a) com ressalva da, irrelevante, modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos moldes decididos supra, confirmam a decisão sobre a matéria de facto e a subsunção jurídica desta decididas no acórdão recorrido;

            3. Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente:

            a) fixar em 18 ( dezoito) anos de prisão a pena concreta a aplicar ao arguido AA, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal, revogando-se  o acórdão recorrido na parte em que fixou essa pena em 15 ( quinze) anos de prisão.

      4. Tributação:

      4.1. Condenar o arguido nas custas do recurso, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs ( artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).

      4.2. Sem custas quanto ao recurso do Ministério Público.

     

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                                                                 Coimbra, 24 de janeiro de 2024

            ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – art. 94º, nº2 do CPP )

( Maria José Guerra  – relatora)

                 (João Abrunhosa – 1º adjunto)

                    (Cândida Martinho – 2ª adjunta)