Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
240/23.4T8ANS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: EXECUÇÃO BASEADA EM DECISÃO JUDICIAL
CONCESSÃO DE FORÇA EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
FUNDAMENTOS DE OPOSIÇÃO
PRECLUSÃO
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º DO ANEXO AO DLEI N.º 269/98, DE 01-09, E 729.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Em execução baseada em decisão, proferida nos termos do art. 2º do anexo ao DL 269/98, de 01.09, que confere força executiva ao requerimento inicial do procedimento, os embargos de executado apenas podem basear-se nos fundamentos elencados no art. 729º do CPC, não podendo servir para renovar a discussão que ficou precludida com aquela decisão condenatória.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: António Fernando Silva
Adjuntos: Henrique Antunes
Silvía Pires

Proc. 240/23.4T8ANS-A

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. AA deduziu oposição à execução, por embargos, afirmando que:

- o outro executado, entretanto falecido, sempre cumpriu com as suas obrigações,

- não tem ideia de ter recebido qualquer interpelação relativa ao incumprimento contratual,

- impugna os valores constantes do requerimento executivo, por a filha do executado falecido ter entregue a viatura objecto do contrato de mútuo à exequente para pagamento da dívida.

- a exequente contabiliza juros a uma taxa muito superior à legal pois a usura impede que os juros sejam superiores a 3% ou 5% aos juros legais, conforme exista ou não garantia real, e os juros moratórios sejam superiores a 6% ou a 8% aos juros legais conforme também exista ou não garantia real.

- existindo assim excesso no pedido na parte em que o pedido de juros excede a taxa de 8% ano, pela duplicação de juros, e também por não estarem de acordo com o estipulado no D.L. n.º 200-C/80, de 24 de Junho e artigo 559º-A do Código Civil.

            - uma vez que o contrato remonta a 2017, estaria prescrito o crédito por terem decorrido mais de 5 anos.

Os embargos foram liminarmente indeferidos por se considerar, em síntese, que:

- o título executivo apresentado é uma sentença condenatória judicial, pelo que os embargos só podem ter os fundamentos previstos no art. 729º do CPC, ora:

- a alegação relacionada com a impugnação da quantia exequenda peticionada não se mostra legalmente admissível porquanto não se reconduz a factos posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração nem isso é alegado pela embargante.

- à embargante cabe o ónus da prova do pagamento, pelo que não cabe ao exequente vir esclarecer quais os pagamentos feitos.

- havendo sentença condenatória, o prazo de prescrição é de 20 anos.

Deste despacho foi interposto recurso pela embargante, no qual concluiu:

1. A executada deduziu embargos de executado para que a execução fosse julgada extinta, com as respectivas legais consequências legais.

2. Requereu igualmente ao Tribunal que fosse notificada a exequente para juntar aos presentes Autos, o documento vulgarmente designado extracto de conta que comprove os valores efectivamente pagos pelos executados, com especificação das prestações pagas, e do montante supostamente em divida, bem como a interpelação à executada da resolução do aludido contrato, a cópia do contrato de crédito e das suas condições, bem como o termo de Avaliação da viatura em causa dos presentes Autos, documento contabilístico denominado factura respeitante à venda da viatura com o valor pela qual ela foi vendida, se é que o foi, porquanto se trata de um contrato de mútuo com reserva de propriedade.

3. A exequente intentou a acção executiva aqui posta em crise, pretendendo ser paga do montante peticionado. Com efeito,

4. Suportou a sua pretensão num título extrajudicial, sendo que a falta de oposição, no domínio da injunção, e a subsequente oposição da fórmula executória, não constitui caso julgado. Ora,

5. Todas as questões suscitadas pela executada deveriam ter sido apreciadas, nomeadamente a impugnação da matéria de facto, bem como as exceções deduzidas pela embargante.

6. No caso em apreço, salvo melhor opinião, é lícito à executada poder deduzir defesa como no processo de declaração.

7. Nos presentes Autos, e com todo o respeito por opinião contrária todos os elementos de prova que foram carreados para os autos impõem decisão diversa.

8. A decisão aqui em causa é nula nos termos do artigo 615º n.º 1, b) e d), porquanto não foi fundamentada a matéria de facto e de direito, nem a Meritíssima Juiz de Direito se pronunciou sobre questões que nosso modesto entender deveria apreciar.

9. No caso em apreço, salvo melhor opinião, resulta da matéria de facto e de Direito alegada, que os presentes embargos de executada deveriam ter admitidos liminarmente.

15. (sic) Pelo que, ao decidir como fez o Tribunal “A QUO”, ao julgar improcedentes os embargos de executada nestes termos, com incorrecta interpretação dos factos e da Lei, violou o disposto nos artigos 607.º, 615.º n.º 1 b) e d); 729º al e), todos do CPC, razão pela qual, no entender dos ora apelantes, deve a presente Decisão ser revogada e, em consequência, a sentença reformulada.

            Notificada para os termos do embargo e do recurso, a embargada não respondeu.

            Foi proferido despacho na primeira instância a considerar inexistir a nulidade invocada.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, as questões a tratar são as seguintes:

- avaliar se ocorre a nulidade do despacho, e

- verificar se os embargos deduzidos têm condições legais para prosseguir.

            III. As coordenadas fácticas relevantes são delimitadas pelo requerimento inicial e pela decisão de indeferimento liminar, já reportados nos seus termos essenciais no relatório, e ainda pelo título executivo, documentado.

IV. 1. O invocado vício formal tem carácter prioritário e, à partida, prejudicial (embora nem sempre em termos finais, dado o disposto no art. 665º n.º1 do CPC). Por ele se deve, pois, iniciar a avaliação.

2. Está em causa despacho, e não sentença, por, pese embora a formulação lata do art. 152º n.º1 e 2 do CPC (e as dificuldades de qualificação que suscita), ser outra a expressa qualificação legal (art. 726º n.º1 e 2 do CC).

            De acordo com o art. 615º n.º1 do CPC, aplicável, com as necessárias adaptações, aos despachos (art. 613º n.º3 do CPC), é nula a sentença quando:

(…)

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

            (…)

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

3. A embargante sustenta, em termos genéricos, que a decisão recorrida seria nula por não ter sido fundamentada a matéria de facto e de direito (al. a) e não se ter pronunciado sobre questões que deveria apreciar, vindo especificamente referido que deveriam ter sido apreciadas a impugnação da matéria de facto, bem como as exceções deduzidas pela embargante (primeira parte da al. d).

Do que da alegação parece resultar é que estes vícios, na perspectiva da embargante, não se dirigem propriamente ao teor da decisão proferida, ao seu conteúdo formal, mas aos efeitos da decisão em si: os vícios teriam a ver com o facto de a decisão não admitir a continuação dos embargos para apreciação do seu mérito (e não a vício intrínseco da decisão). As invocadas faltas de fundamentação e de apreciação teriam a ver com o impedimento assim oposto à discussão da impugnação e das excepções invocadas, e não com qualquer deficiência intrínseca da decisão. Nestes termos, a invocação da nulidade seria desajustada face ao fundamento legal invocado (que apenas respeita aos vícios internos da decisão) e necessariamente improcedente.

4. Sem embargo, e atendendo especificamente ao conteúdo da decisão, também não se vê que se verifique qualquer vício formal.

No que toca à falta de fundamentação (de facto ou de direito), prevista no referido art. 615º n.º1 al. b) do CPC, o vício relaciona-se com o disposto no art. 154º n.º1 do CPC, que impõe o dever genérico de fundamentação para todas as decisões processuais, garantindo, internamente, a sua racionalização, e, externamente, a publicitação das suas razões. Já o regime do art. 607º n.º3 e 4 do CPC visa apenas as sentenças, sem regra que amplie o seu âmbito de aplicação aos despachos[1], nem tal seria justificado dada a natureza e variabilidade do objecto dos despachos. Estas regras legais apenas podem servir como apoios hermenêuticos, face a cada concreta situação.

É dominantemente entendido que o vício em causa apenas ocorreria quando faltasse por completo (em absoluto) a indicação dos fundamentos, e não quando tal indicação fosse meramente deficiente ou insuficiente. Sem embargo, pode ainda estender-se a previsão à falta funcional da fundamentação, contemplando os casos em que esta apresenta contornos tão genéricos que não pode valer como fundamentação (sendo apenas sua manifesta aparência).

Acresce, quanto aos fundamentos de facto, que também se admite que a nulidade apenas se reporta à omissão da matéria de facto, estando a falta de motivação da decisão sobre a matéria de facto sujeita a regime diverso (decorrente do art. 662º n.º2 al. d) do CPC).

Neste quadro, e no que toca à fundamentação de facto, cabe notar que o despacho de indeferimento liminar avalia apenas o conteúdo de uma peça processual (o requerimento inicial dos embargos) e é esse o seu objecto de cognição. Não existem factos em sentido estrito ou naturalístico a avaliar (e descrever). O acto processual postulativo que pretende suportar os embargos constitui o único «facto» (no sentido de objecto de avaliação face ao direito) e este não tem, obviamente, que ser reproduzido na decisão (porque constitui acto processual e não dado apurado, a descrever). Aliás, essa realidade processual (o requerimento dos embargos) também se não ajusta, obviamente, ao regime do art. 607º n.º3 (no que à exigência de menção dos factos provados respeita) e 4 do CPC, tratando-se assim este de regime que, não sendo directamente aplicável como se referiu, também nenhum contributo interpretativo faculta no caso. Assim, inexiste falta de fundamentação de facto.

            Quanto à falta de fundamentação de direito, manifestamente não ocorre, já que a decisão impugnada expõe as razões (jurídicas) por que considera que os fundamentos dos embargos deduzidos não têm virtualidade para sustentar uma discussão subsequente.

Não ocorre, pois, qualquer vício gerador de nulidade.

           

            5. Quanto ao outro fundamento de nulidade, a obrigação de o juiz conhecer todas as questões que lhe são submetidas é, a partir do art. 608º n.º2, primeira parte, do CPC, comummente reportada ao conhecimento de todos os pedidos, causas de pedir e excepções colocadas no processo. Esta asserção relaciona-se, obviamente, com a decisão final (sentença em sentido amplo). Para além de também aquele art. 608º n.º2 não ser directamente aplicável aos despachos, tal asserção dele retirada não vale, ou não vale integralmente, para os despachos decisórios que não têm por objecto de valoração tais questões. Nestes, a suficiência da decisão depende do seu objecto: ela será suficiente, e não omissiva, quando a decisão conheça a questão que lhe foi, pela parte ou pela lei processual, colocada. Assim, por força do art. 732º n.º1 do CPC, a decisão impugnada devia avaliar a manifesta improcedência dos embargos, o que fez, esgotando a avaliação devida. Nenhuma omissão aqui existe. Já as «questões» colocadas pela embargante como fundamento dos embargos não têm que ser objecto de decisão de mérito nesta sede mas apenas equacionadas em relação com o juízo de manifesta improcedência dos embargos, que funda a decisão proferida, pois este juízo depende da avaliação geral da viabilidade de tais questões. Mas esta avaliação devida também se esgota neste juízo, e por isso a omissão da consideração explícita ou directa de uma dessas questões (como parece ter ocorrido com o argumento da embargante assente no carácter usurário dos juros) não equivale a uma omissão de pronúncia mas apenas a eventual vício de fundamentação, pois poderá tornar incorrecta a avaliação da manifesta inviabilidade. Ou seja, aquela não era «questão» que coubesse decidir autonomamente mas apenas momento da fundamentação na busca da manifesta improcedência que constitui o critério legal da avaliação e da decisão. Mas mesmo aquela omissão é apenas aparente, estando realmente integrada na consideração de que os fundamentos invocados não se ajustam aos fundamentos que legalmente são admitidos como fundamento de embargos atento o título executivo em causa.

            Não ocorre também, pois, este fundamento de nulidade.

            6. Quanto ao mérito da decisão recorrida, verifica-se que o título executivo é constituído por decisão judicial que, na sequência da revelia da citada, conferiu força executiva à petição inicial (requerimento inicial), nos termos do art. 2º do anexo ao DL 269/98, de 01.09 [não estando em causa, ao contrário do que a embargante pretende, uma injunção[2]].

Esta concessão de força executiva tem, por expressa previsão legal, o «valor de decisão condenatória», o que importa que o título executivo se enquadre no elenco das sentenças condenatórias, previstas no art. 703º n.º1 al. a) do CPC [o que se mostra justificado pois o procedimento especial em causa admite uma discussão declarativa contraditória e judicializada do direito invocado, com especialidades (mormente quanto ao efeito cominatório da revelia) que não descaracterizam essa natureza do procedimento][3].

7. Baseando-se a execução numa sentença condenatória, nos moldes expostos, vale o regime do art. 729º do CPC, segundo o qual, fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:

a) Inexistência ou inexequibilidade do título;

b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;

c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;

d) Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;

e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;

f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;

g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;

h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;

i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.

8. A embargante começa por afirmar que «sabe que o outro executado entretanto falecido sempre cumpriu com as suas obrigações». A afirmação, genérica, constitui mais uma afirmação de probidade do falecido do que a alegação de qualquer facto relevante. Nessa medida era inconsequente. No máximo, poderia relacionar-se com uma afirmação geral de cumprimento. Mas mesmo tal interpretação se mostra inconsequente pois, de um lado, cabia à embargante alegar factos concretos atinentes ao cumprimento e não a mera afirmação passageira da alegada probidade do executado falecido, ficando aquém do mínimo que pudesse suportar quer os embargos, quer um despacho de aperfeiçoamento. De outro lado e decisivamente, nos termos da al. g) do referido art. 729º, o cumprimento (facto extintivo) oponível à execução tem que ser posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração. Dada a revelia ocorrida (e assim a inexistência de julgamento), teriam que estar em causa factos ocorridos pelo menos após o termo do prazo de contestação. Como se trata de facto determinante da admissibilidade dos embargos, teria a embargante que alegar essa superveniência dos factos, o que não fez. Aliás, a alegação até surge no âmbito do que genericamente a embargante designou por impugnação, sinal de que não estava em causa verdadeira invocação de pagamentos extintivos relevantes mas de mera oposição à afirmação do crédito pela exequente. É certo que se discute se também podem ser invocados factos subjectivamente supervenientes (que o executado ignorava no momento em que a sua alegação e discussão era devida), mas, independentemente da solução a dar à questão, a verdade é que a embargante também não alegou, e aqui de forma absolutamente clara, nada que pudesse suscitar esta questão. 

Já a falta do documento comprovativo (exigido por aquela al. g) do art. 729º), não seria obstáculo à admissão dos embargos por se tratar de questão probatória e não revelação da manifesta improcedência (aliás, até se admite que a junção do documento, legalmente exigida, possa ser suprida pela falta de impugnação ou ao menos pela confissão expressa da exequente, posteriores ao despacho liminar). Inexiste é a alegação relevante.

A afirmação do art. 3º do requerimento de embargos é irrelevante: a dúvida pessoal da embargante sobre a interpelação não constitui um facto relevante nem muito menos se ajusta aos fundamentos dos embargos.

A genérica impugnação do art. 4º do mesmo requerimento é igualmente irrelevante por também se não ajustar a nenhum dos fundamentos dos embargos, dado o específico título executivo em causa. Tal impugnação tinha o seu espaço próprio no anterior procedimento declarativo, sede própria para discutir a existência, consistência e alcance do direito da exequente (e onde a distribuição do ónus da prova, ficando este ónus a cargo do credor, admitia aquela forma de defesa). Ultrapassada essa fase e formado o título executivo judicial, ficou precludida a possibilidade de invocar os meios de defesa que na fase declarativa eram admissíveis, e o acertamento da situação que o título executivo contém já não permite a reabertura da discussão (daí se dizer que «a oposição à execução não constitui uma forma de renovação da instância declarativa»). Por isso que tal impugnação não consta do elenco de fundamentos dos embargos quando o título executivo seja uma sentença condenatória[4].

A impugnação da recorrente vem ainda associada a uma entrega de viatura para pagamento da dívida, sugerindo a existência de uma dação em cumprimento (facto extintivo) mas que, nas suas alegações, se verifica corresponder afinal à entrega da viatura ao titular da reserva de propriedade. De novo e por si decisivamente, faltaria a asserção temporal (a superveniência do facto) que permitiria atribuir relevo à alegação; e de novo, a inclusão da alegação na genérica impugnação tende a revelar que se visa justamente discutir os valores reclamados, não invocar uma nova causa extintiva, posterior ao acertamento judicial da situação.

9. Depois, a embargante passa a discutir os juros reclamados, alegando que seriam usurários, ou seja, que as taxas aplicadas não seriam legalmente toleradas. A embargante não alega qualquer desconformidade entre o que se reclama na execução e o que consta do título. Desse modo, está a discutir apenas o direito aos juros reclamados, a licitude da convenção de juros, mas tal direito já ficou acertado no título executivo, não podendo a embargante reabrir a discussão nesta sede: o art. 729º não contempla essa possibilidade em nenhuma das suas alíneas. Também aqui o fundamento alegado nunca poderia proceder.

10. Por fim, a embargante invoca a prescrição do crédito exequendo, questão que pode sustentar, em tese, os embargos, dado o disposto na al. g) do art. 729º do CPC.

Por força do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2022, no caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação; e ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.

            Isto significa que cada prestação prescreve no prazo de 5 anos a contar da data em que é devida e que, em caso de vencimento antecipado, tal prazo se conta do momento da antecipação do vencimento.

Também aqui a embargante não alegou qualquer facto que desse consistência à sua alegação e que permitisse, em especial, avaliar se a prescrição se consumou após o momento até ao qual poderia apresentar a sua defesa no procedimento declarativo (equivalente ao encerramento da discussão), ou seja, que permitisse avaliar se se trataria de um evento superveniente, para os termos do citado art. 729º al. g) do CPC. Limitou-se a invocar genericamente a data do contrato (e não correcta), o que por si era insuficiente para sustentar a sua pretensão. 

Acresce que os elementos disponíveis permitem excluir qualquer prescrição. Assim, e em termos genéricos, ajustados aos termos da questão, nota-se que:

            - deriva do título executivo que a primeira prestação foi incumprida em 15.08.2018, e que o contrato foi resolvido em 24.09.2019, pelo que, e levando em conta os períodos de suspensão do prazo de prescrição por força do regime do covid[5], tal prazo prescricional ainda não se teria consumado mesmo considerando a primeira das referidas datas;

            - mesmo admitindo que a injunção inicialmente instaurada não vale para os termos do art. 323º n.º2 do CC (por a notificação inerente a tal procedimento não ter carácter judicial)[6], da sentença deriva que a executada foi citada para os termos do procedimento especial, pelo que tal facto, necessariamente anterior a 14.11.2022 (data da sentença e na qual nenhuma prescrição era ainda possível), teria interrompido o prazo de prescrição e tornado inviável qualquer prescrição (art. 323º n.º1, 326º n.º1 e 327º n.º1 do CC);

            - por fim, e embora não esteja documentado o trânsito em julgado da decisão exequenda (atentos os termos do art. 85º n.º2 do CPC), ele vem alegado no requerimento executivo, justificou o cumprimento sem reparo daquele art. 85º n.º2 do CPC (por iniciativa judicial), e não vem discutido pela embargante, a qual, sendo ela o único sujeito que podia recorrer da decisão condenatória, em sede de embargos se comporta de forma incompatível com a pendência de qualquer recurso. Por isso que se pode aceitar nesta sede tal trânsito, o qual implica que o prazo de prescrição tenha, como referido no despacho recorrido, passado a ser de 20 anos (art. 311º n.º1 e 309º do CC) – sem que, como se viu, se possa dizer que antes desta modificação o prazo curto se tenha consumado.

            Donde também não valer este fundamento para suportar os embargos. 

11. Assim, inexiste razão para alterar o despacho recorrido.

12. As custas ficam a cargo da embargante, nos termos do art. 527º n.º1 e 2 do CPC, embora sem prejuízo do decidido em sede apoio judiciário (que dispensa o pagamento mas não isenta da responsabilidade tributária)

V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do decidido em sede de apoio judiciário.

Notifique-se, incluindo os elementos agora juntos (e de que as partes têm já necessariamente conhecimento na acção declarativa).

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).


[1] A regra extensiva do art. 613º n.º3 não abrange os artigos anteriores, incluindo aquele art. 607º.
[2] Pese embora se verifique que o procedimento se iniciou dessa forma, não a manteve depois, como resulta da decisão exequenda, proferida no âmbito do regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos derivado do diploma referido no texto.
[3] Assim, v. Ac. do TRC proc. 304921/09.8YIPRT-B.C1 ou do TRG proc. 1039/19.8T8VNF-A.G1 (in 3w.dgsi.pt).
[4] Embora já seja admissível face outros títulos executivos com outra natureza.
[5] Na interpretação segundo a qual aquela suspensão tem carácter geral (não valendo apenas para os prazos de prescrição que se encontrassem, à data, nos seus últimos 3 meses) - v. art. 7º n.º3 e 4 da Lei 1-A/2020 (e art. 8º e 10º da Lei 16/2020), e art. 6.º-B n.º 3 da Lei 1-A/2020 e art. 4º da Lei 4-B/2021 (e art. 6º e 7º da Lei 13-B/2021).
[6] Asserção não pacífica.