Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2343/22.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: DIVÓRCIO SEM O CONSENTIMENTO DO CÔNJUGE
PRAZO DE UM ANO DE SEPARAÇÃO DE FACTO
FACTO CONSTITUTIVO DO DIREITO
TEMPO DECORRIDO NA PENDÊNCIA DA AÇÃO
APROVEITAMENTO NA SENTENÇA
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1781.º, ALÍNEA A), DO CÓDIGO CIVIL E 611.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Para efeitos do art. 1781.º, a) do Cód. Civil, o lapso temporal de um ano consecutivo da separação de facto apresenta-se como um facto constitutivo do direito a qualquer dos cônjuges requerer o divórcio sem o consentimento do outro, devendo tal requisito estar presente à data da propositura da ação.
II – Não obstante, devendo a sentença tomar em consideração os factos constitutivos que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão (art. 611.º, n.º 1 do CPC), se não subsistirem impedimentos à alteração da causa de pedir, a sentença pode considerar, para efeitos do decretar do divórcio, o prazo da separação de facto do casal decorrido na pendência da causa até ao encerramento da instrução.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 2343/22.3T8CBR.C1

Juízo de Família e Menores de Coimbra – Juiz 1

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

AA, contribuinte fiscal n.º ...83, residente na Rua ..., ... ...

intentou contra

 BB, contribuinte fiscal n.º ...31, residente na Rua ..., ... ..., ...

a presente ação especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, invocando, em síntese,  ter o Ré expulsado a A. da casa de morada de família em 01.11.2021 e que, desde há muitos anos, a relação entre ambos é pautada por violência física e verbal exercida pelo R. contra a A., pelidando-a de “puta”, “vaca”, “porca”, “maluca” e ter cessado a vida conjugal em janeiro de 2020.

Concluiu dizendo “está separada de facto há mais de um ano e é seu propósito não mais restabelecer a vida em comum com o Réu, encontrando-se preenchidos os requisitos das als. a) e d) do art.º 1781º, 1782.º e 1785.º do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2019, de 12/02, para que seja dissolvido o casamento por divórcio”, pedindo, a final, que o divórcio seja decretado.

                                                                  *

O R. contestou impugnando a factualidade alegada na petição inicial e dizendo que a separação do casal apenas ocorre desde 01.11.2021, inexistindo qualquer fundamento para que o divórcio seja decretado.

                                                                  *

Realizado o julgamento, foi, a 07.06.2023, proferida sentença contendo o seguinte dispositivo:
1.  Decreto a dissolução, por divórcio, do casamento celebrado entre AA e BB;
2.   Fixo a data da separação de facto no dia 1 de novembro de 2021, retroagindo a esta data os efeitos do divórcio, para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 1789.º do Código Civil”.

                                                                       *

O R. interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:”
1. Nos termos do nº 1 do art. 662º, Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2. Os elementos constantes nos presentes autos impõem decisão diversa da do Tribunal a quo, nomeadamente no que respeita à fixação de alguns factos considerados como provados e, em consequência no que respeita à decisão final.
3. Considerou o Tribunal a quo como provado que
4. No dia 1 de novembro de 2021, o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam, sita na Rua ..., ..., ...; e que
5. O réu dirigiu-se à autora apelidando-a de “puta”,” vaca”, “porca”, “maluca”.
6. Não poderia o Tribunal a quo ter considerado provado que “No dia 1 de novembro de 2021, o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam, sita na Rua ..., ..., ....”
7. De facto, em sede de audiência de discussão e julgamento, em nenhum momento se disse que o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam.
8. Mais, foi o próprio Tribunal a quo que considerou como não provado que “O réu dirigiu-se à autora dizendo-lhe “se não saíres, de noite ponho-te na rua!”.
9. Não podia o Tribunal a quo ter considerado provado que o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam.
10. Tendo-o feito, resultou violado o disposto no art. 607º, nºs 3 e 4 do CPC.
11. Deve, assim, a sentença ser revogada nessa parte e substituída por outra onde se considere como não provado que “No dia 1 de novembro de 2021, o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam, sita na Rua ..., ..., ....”
12. Não poderia o Tribunal a quo ter considerado provado que “O réu dirigiu-se à autora apelidando-a de “puta”,” vaca”, “porca”, “maluca”.”
13. De facto, em sede de audiência de discussão e julgamento, em nenhum momento se fez referência ao facto de o réu se dirigir à autora nesses termos, com excepção do referido pela testemunha CC, filho de ambos,
14. No entanto, não poderá ser este ser considerado um depoimento credível nessa parte.
15. Tal afirmação é manifestamente fruto da má relação ou relação inexistente entre o filho CC e o réu.
16. Não sendo credível que ao longo de mais de 40 anos de vida conjunta o réu sempre tenha apelidado a autora de puta, cabra, filha da puta, ou porca,
17. Não podendo merecer credibilidade esta parte do seu depoimento.
18. Acresce, ainda, que esta testemunha não precisou ou especificou em nenhum momento, como, quando, e onde foram proferidas tais expressões pelo réu.
19. Não podia o Tribunal a quo ter considerado provado que o réu se dirigiu à autora apelidando-a de “puta”,” vaca”, “porca”, “maluca”.
20. Tendo-o feito, resultou violado o disposto no art. 607º, nºs 3 e 4 do CPC.
21. Deve, assim, a sentença ser revogada nessa parte e substituída por outra onde se considere como não provado que “O réu dirigiu-se à autora apelidando-a de “puta”,” vaca”, “porca”, “maluca.”
22. Considerou como provado, o Tribunal a quo, que autora e réu se encontram separados desde o dia 1 de Novembro de 2021.
23. A Petição Inicial que deu origem aos presentes autos deu entrada no dia 13 de maio de 2022.
24. O decurso de um ano consecutivo de separação de facto é, com efeito, um facto constitutivo do direito potestativo (extintivo) de um dos cônjuges requerer o divórcio sem o consentimento do outro, devendo, por isso, verificar-se esse requisito à data da propositura da ação.
25. O prazo de um ano tem que já ter decorrido à data da propositura da ação de divórcio (que coincidirá com a receção da correspondente petição inicial na secretaria do tribunal, nos termos do art. 259.º, n.º 1, do CPC), porquanto os pressupostos do divórcio devem estar preenchidos nesta data e não na da decisão.
26. O que não sucedeu, no caso em apreço.
27. Assim, tendo o Tribunal a quo considerado verificado o fundamento referido na al. a) do artigo 1781.º do Código Civil, resultou violado este mesmo dispositivo legal, por não estarem preenchidos os requisitos da sua aplicação.
28. A ruptura definitiva do casamento que o Tribunal a quo considerou estar demonstrado, acaba por “cair por terra” ao não se considerar provado que o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam, e que o réu se dirigiu à autora, chamando-a “puta”,” vaca”, “porca”, “maluca”.
29. Fica, assim, “despida” de fundamento a decisão do Tribunal a quo de considerar preenchidos os requisitos necessários para a aplicação deste dispositivo legal, pelo que
30. Tendo o Tribunal a quo considerado verificado o fundamento referido na al. d) do artigo 1781.º do Código Civil, resultou violado este mesmo dispositivo legal, por não estarem preenchidos os requisitos da sua aplicação.
31. Deve, assim, a sentença ser revogada nessa parte e substituída por outra onde se considere como não preenchidos os requisitos necessários para a aplicação do disposto no artigo 1781º do Código Civil, nomeadamente nas alíneas a) e d), e em consequência,
32. Ser revogada a decisão que decretou a dissolução, por divórcio, do casamento celebrado entre AA e BB; e que fixou a data da separação de facto no dia 1 de novembro de 2021, retroagindo a esta data os efeitos do divórcio, para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 1789.º do Código Civil”.
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Colhidos os vistos, foi realizada a conferência, com obtenção prévia dos contributos e dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, face às conclusões avançadas, as questões a apreciar e decidir são as de saber se:
A – A decisão da matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pelo R.
B – Não deve ser decretado o divórcio porquanto, à data da propositura da ação, não tinha decorrido o prazo de 1 ano a que se refere o art. 1781.º, alínea a) do Código Civil.
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III-Fundamentação

Com vista à incursão nas questões objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada e não provada.

Factos provados:
1. Autora e réu casaram a 14 de janeiro de 1979, sem convenção antenupcial.
2. No dia 1 de novembro de 2021, o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam, sita na Rua ..., ..., ....
3. O réu dirigiu-se à autora apelidando-a de “puta”,” vaca”, “porca”, “maluca”.
4. Desde janeiro de 2020 a autora passou a dormir no sofá da sala.
5. A mudança da autora para a sala deveu-se ao facto de ressonar de noite, impedindo o réu de dormir.
6. Desde o dia 1 de novembro de 2021, autora e réu não partilharam a mesma cama.
7. Não tiveram relações sexuais.
8. Não saíram juntos.
9. Não visitaram a família e amigos na companhia um do outro.
10. Cada um deles passando a ter uma vida autónoma e independente da do outro.

Factos não provados
a) Na ocasião referida em 2. o réu dirigiu-se à autora dizendo-lhe “se não saíres, de noite ponho-te na rua!”
b) Desde janeiro de 2020 e sem prejuízo dos factos 6 a 10, que autora e réu não partilham a mesma cama.
c) Não tiveram relações sexuais.
d) Não saíram juntos.
e) Não visitaram a família e amigos na companhia um do outro.
f) Passando a viver como dois estranhos debaixo do mesmo teto.
g) Desde que a autora saiu de casa, nunca o réu se preocupou em saber como ela passava.
h) Nunca revelou interesse em saber em que condições a autora passou a viver desde que saiu de casa.

Apreciemos então as questões suscitadas.
A – Da pretendida modificação da decisão da matéria de facto

No entender do recorrente devem ser considerados como não provados os seguintes factos:

No dia 1 de novembro de 2021, o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam, sita na Rua ..., ..., ... “ (facto provado n.º 2) e “O réu dirigiu-se à autora apelidando-a de “puta”,” vaca”, “porca”, “maluca” (facto provado n.º 3).

Na sentença recorrida foi aposta a seguinte motivação para considerar tais factos como provados:
A relação conflituosa viva por autora e réu, a circunstância de a autora, a partir de janeiro de 2020, dormir na sala de casa e o réu no quarto e a saída da autora de casa dia 1 de novembro de 2021, foram dados como provados com base no depoimento de DD e CC, filhos de autora e réu.
Pese embora a particular afinidade que têm com a autora e a inexistência de relação com o réu, com quem estão de relações cortadas, certo é que estes depoimentos foram intensamente valorados, na medida em que as testemunhas relataram as suas vivências desde a infância, de forma intensa mas tranquila, descritiva e evidenciando conhecimento relativo à situação dos pais, reconhecendo desconhecerem o que se passava em casa dos pais até à saída da mãe, ainda que se apercebessem que a mãe dormia na sala, justificando a ausência do quarto com o barulho excessivo da sua respiração durante a noite, que perturbava o sono do réu.
Acompanharam a mãe na saída da casa onde morava com o réu (CC) ou dois dias depois, para ir buscar alguns bens (DD).
De referir que a testemunha CC foi buscar a mãe à casa onde esta morava com o réu, na sequência de contacto da mãe a informá-lo que o réu a ia pôr na rua. Porém, não se afigurou que tenha assistido a quaisquer palavras proferidas pelo réu a impor a saída da autora, nem foi produzida outra prova a este propósito, não se tendo, por conseguinte, apurado a factualidade referida em a)”.

Da sua parte, o recorrente sustenta que, quanto ao facto provado 2,

em nenhum momento (da audiência) se disse que o réu expulsou a autora da casa onde ambos moravam.

(…) O filho de ambos, DD, sobre essa ocorrência referiu que “Não estava presente na noite em que a Mãe saiu de casa”, referindo expressamente que a Mãe saiu de casa (sublinhado nosso), e não que foi expulsa de casa.

O outro filho de ambos, CC, referiu sobre esse episódio que “O meu Pai basicamente não a ia deixar lá dormir de noite”, nunca referindo que o Pai alguma vez tenha expulsado a Mãe da casa onde ambos moravam.

Nenhuma outra testemunha falou ou afirmou saber algo sobre esse episódio”.

E, quanto ao facto provado n.º 3,

“em sede de audiência de discussão e julgamento, em nenhum momento se fez referência ao facto de o réu se dirigir à autora nesses termos, com excepção do referido pela testemunha CC, filho de ambos, mas que não poderá ser considerado um depoimento credível nessa parte, como a seguir se demonstrará.

(…) Não obstante ter o filho de ambos, CC, referido que o réu apelidava a autora de “(...) puta, cabra, filha da puta, porca, por aí afora (...)”, referiu igualmente que o réu nunca tratou a autora pelo seu nome e que sempre a tratava pelos nomes atrás mencionados.

Ora, tal afirmação é manifestamente fruto da má relação ou relação inexistente entre o filho CC e o réu, não sendo credível que ao longo de mais de 40 anos de vida conjunta o réu sempre tenha apelidado a autora de puta, cabra, filha da puta, ou porca, não podendo merecer credibilidade esta parte do seu depoimento”.

Na ausência de qualquer prova documental a este propósito, procedeu-se à audição da gravação dos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas DD (filho da A. e R.), CC (filho da A. e R.), EE, FF e GG.

Estas 3 últimas revelaram total desconhecimento acerca da vida conjugal da A. e do R. e quanto aos motivos da separação, nada tendo presenciado ou sabido de outra forma acerca do contexto e da forma como o casamento se desenvolvia.

Quanto ao filho DD e estritamente quanto aos factos em apreço, resulta do seu depoimento que não esteve presente aquando da saída de casa por parte da A. em 01.11.2021, apenas se tendo deslocado à residência do casal 2 dias depois para ir buscar os pertences da mãe.

Mencionou que os pais sempre mantiveram uma relação conflituosa e terem existido muitos episódios de conflito, embora sem os ter especificado ou materializado.

Já o filho CC, relatou que, no dia 01.11.2022, depois de ter deixado a mãe na residência do casal, quando efetuava o percurso para a sua casa, foi contactado por ela, que, a chorar, lhe disse para a ir buscar porque o R. não a deixava dormir mais lá em casa e que a tinha “mandado embora”.

Mais afirmou que, no contexto, se tratou de uma ameaça muito convincente, um “ato muito forte”, até porque a mãe não mais regressou a casa com receio/medo.

Finalmente, no que atine ao relacionamento conjugal ao longo dos anos, classificou-a de “um caos” e o pai sempre ter manifestado agressividade, falando aos “berros” e tratando a esposa por “puta”, “cabra”, “filha da puta”, “porca”.

Contrariamente ao sustentado em sede de recurso, não vemos qualquer motivo para colocar em causa a seriedade e veracidade deste último depoimento.

As circunstâncias de sempre ter tido dificuldades de relacionamento com o pai e não falar com ele desde o episódio que motivou a saída de casa por parte da mãe não consentem que se lhe atribua menor credibilidade, tanto mais que encontra respaldo no que foi referido pelo irmão e pelo facto de mãe não ter voltado à casa onde vivia com o R.

Acresce que a justificação apresentada pelo R. para a saída de casa por parte da A. e não mais ter regressado, essa sim, não apresenta qualquer consistência – “na sequência de ter sido interpelada pelo Réu sobre o seu paradeiro durante o dia que a Autora telefonou ao filho mais velho – onde alegadamente teria estado parte do dia -, para a ir buscar” (cfr. alegação 9 da contestação).

Assim, da conjugação dos depoimentos dos filhos do casal, é de considerar acertada a decisão quando considerou provados os factos 2 e 3, não se impondo qualquer modificação da decisão da matéria de facto.

Improcede, como tal, o recurso nesta parte.

B – A não verificação dos pressupostos do divórcio

No entender do R. o divórcio não deve ser decretado porquanto, à data da propositura da ação, não tinha decorrido o prazo de 1 ano a que se refere o art. 1781.º, alínea a) do Código Civil.
Diga-se, a este propósito, que, para além de se ter considerado como fundamento do divórcio a separação de facto por um ano consecutivo, o divórcio foi decretado também com apoio no disposto no art. 1781.º, alínea d) do Código Civil, ou seja, por factos que mostram a rotura definitiva do casamento e que, perante a não modificação da decisão da matéria de facto, se deve manter inalterada.
Na verdade, também aqui, dando-se respaldo à decisão da 1.ª instância, considera-se que a expulsão da A. de casa pelo R. e a forma desrespeitosa como se lhe dirigiu chamando-a “puta”,” vaca”, “porca”, “maluca”, consubstancia a violação pelo réu dos deveres conjugais de respeito, coabitação e cooperação, previstos no artigo 1672.º do Código Civil.
Não deixaremos, ainda assim, de abordar a questão relacionada com a verificação do divórcio com fundamento na separação de facto por um ano consecutivo.
O tribunal recorrido considerou, sem justificação acrescida[2], que a separação de facto do casal “dura há mais de um ano”.
A verdade é que a A. tinha apoiado essa separação de facto na circunstância de não viver com o R. “como marido e mulher” desde janeiro de 2020.
Ocorre que a A. não logrou fazer prova disso, apenas se tendo demonstrado que a separação do casal se verifica desde 01.11.2021.
Nesse pressuposto, tendo a A. sido intentada em 13.05.2022, à data da propositura da ação ainda não se constituíra o fundamento do divórcio a que se refere a citada alínea a) do art. 1781.º do Código Civil.
A este propósito importa, antes de mais, assumir, até para afastar a discussão acerca da eventual modificação do pedido e da causa de pedir, que a A. pediu o divórcio também com fundamento na separação de facto persistente há mais de um ano.
Temos por seguro que o lapso temporal de um ano consecutivo da separação se apresenta como um facto constitutivo do direito a qualquer dos cônjuges requerer o divórcio sem o consentimento do outro, pelo que tal requisito deve estar presente à data da propositura da ação, requisito esse que na situação dos autos não se verificava.

Resulta do art. 611.º do CPC, no que ao caso dos autos interessa, que, sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais (nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir), deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.

É o designado princípio da atualidade da decisão[3] o qual consente, embora com algumas restrições, que sejam tomados em consideração factos que se produzam depois da propositura da ação.

Assim, para efeitos do divórcio com fundamento na separação de facto, “não se vê qualquer obstáculo a que, de acordo com o estatuído no artigo 611º do CPC, se considerem os factos supervenientes, ainda que constitutivos, que se produzam durante o decurso da acção, para que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão” (cfr. acórdão do STJ de 15.09.2022, proferido no processo 381/18.0T8ABT.E1.S1), a incluir o decurso do tempo[4].

Não obstante, por força dos limites estabelecidos nos art. 5.º, n.º 1 e 609.º, n.º 1 do CPC, a possibilidade de, no âmbito do art. 611.º do CPC, os “factos supervenientes” poderem ser considerados, encontra-se dependente da introdução pela parte a quem aproveitem em articulado superveniente (art. 588.º do CPC.), sendo que, no caso, esse articulado não foi apresentado.

Todavia essa exigência, no caso, apresenta-se dispensável, sem com isso se confrontar o princípio do dispositivo que emerge do já citados normativos.

Dispensável, desde logo, porque a A., embora para fundamentar uma separação de facto iniciada em momento anterior, já havia alegado na petição inicial que saiu de casa em 01.11.2021, não mais aí tendo voltado (exceto 2 dias depois para aí ir buscar roupa), continuando o R. a viver na mesma habitação, tendo deixado de viver sob o mesmo teto, cessando a comunhão de mesa e habitação (cfr. artigos 3.º, 14.º e 23.º da petição inicial).

Depois porque, embora numa apreciação pouco segura, se tem vindo a entender que o simples decurso de um período que falte para se completar um prazo sem o qual a ação não possa proceder talvez dispense a invocação em articulado superveniente” (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 725).
Assim, na situação subjudice, tendo ficado demonstrado que a separação de facto se iniciou em 01.11.2021 e se manteve até ao encerramento da instrução do processo (19.05.2023), encontra-se preenchido o fundamento do divórcio previsto no art. 1781.º, alínea a) do Código Civil.

Improcede por isso, na globalidade, o recurso interposto


Sumário[5]:
(…).

                                                                    *

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

                                                                      *

Custas pelo recorrente (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                     *

Coimbra, 21 de novembro de 2023


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(Paulo Correia)

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(Helena Maria Gomes Carvalho Melo)


            _______________________

(Arlindo Oliveira)



[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Maria Gomes Carvalho Melo e Arlindo Oliveira
[2] - Embora no despacho saneador se tenha deixado escrito “Face ao lapso temporal decorrido, poderá ser apreciado como fundamento do divórcio a separação de facto por um ano consecutivo”.
[3] - Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de novembro de 2005 (proc. n.º 05B2266) e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de setembro de 2009.
[4] - O Professor Miguel Teixeira de Sousa (IPCC Blog em anotação de 29.10.2021 ao acórdão do STJ de 23.02.2021, proferido no processo 3069/19.0T8VNG.P1.S1 aparenta ser mais restritivo, considerando “A interpretação razoável do estabelecido no art. 611.º, n.º 1, CPC, tem de ser outra. Um pouco à semelhança do que vale para o disposto no art. 610.º CPC, o art. 611.º, n.º 1, CPC orienta-se por um critério de aproveitamento do processo, pelo que deve ser interpretado no sentido de que, se o autor alegar que o facto constitutivo se verificou e se concluir que isso não era verdade, mas, entretanto, o facto se verificar antes do encerramento da discussão, então pode aproveitar-se esta verificação superveniente desse facto”.
[5] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).