Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3370/22.6T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
ÂMBITO DE COBERTURA
INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO
FURTO EM RESIDÊNCIA
CHAVES FALSAS
FACTOS NOTÓRIOS
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 37.º DO DECRETO-LEI N.º 72/2008, DE 16/4 (LEI DO CONTRATO DE SEGURO), 236.º, N.º 1, 253.º, N.º 2, 342.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL E 412.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário:
Havendo cobertura do contrato de seguro celebrado entre as partes, no caso de furto ou roubo em residência, quanto a chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das autoridades competentes, não pode operar tal cobertura se não ficou apurado o modo como os autores do furto entraram nessa residência, desconhecendo-se o concreto método de acesso ao respetivo interior, que a parte demandante não logrou provar, embora fosse seu o ónus probatório.
Decisão Texto Integral:

Relator: Arlindo Oliveira
1.ª Adjunta: Helena Melo
2.ª Adjunta: Catarina Gonçalves

            Processo n.º 3370/22.6T8CBR.C1 – Apelação

            Comarca de Coimbra, Coimbra, Juízo Local Cível

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA e mulher, BB, residentes R. Quinta ..., ..., intentaram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra Aegon Santander Portugal Não Vida – Companhia de Seguros, S.A., sociedade comercial, Pessoa Colectiva nº 513 251 936, com sede na R. da Mesquita, nº 6, na cidade e concelho de Lisboa, pedindo na sua procedência: 1) a condenação da ré a pagar-lhes a quantia de € 11.830,00 (onze mil e oitocentos e trinta euros), a titulo de ressarcimento indemnizatório pelo furto dos objectos/bens furtados na sua residência; 2) a condenação da ré a pagar-lhes a quantia de € 1.000,00 (mil euros) a titulo de danos não patrimoniais; 3) a condenação da ré a pagar-lhes juros pela mora, contabilizados à taxa legal de 4%, sobre os valores contantes nos números anteriores, desde a data da citação da presente acção, até efectivo e integral pagamento.

Alegam para tanto, em síntese, que celebram com a ré um contrato de seguro denominado “Protecção Lar”, pelo qual e para além do mais, a ré assumiu a responsabilidade pelo ressarcimento aos autores, no caso da verificação de furtos ou roubos ocorridos na residência destes, nomeadamente, pelas perdas e danos resultantes desses furtos ou roubos, mediante a utilização de chaves falsas.

Em 18/11/2021, os autores foram alvo de um furto na sua residência, tendo sido utilizado para o efeito chaves falsas ou outro objecto que funcionasse como tal e que permitiu a abertura da respectiva porta de entrada, tendo os assaltantes levado consigo os bens móveis no valor global de € 11.830,00, que melhor identificam na p.i..

Nesse seguimento, apresentaram a respectiva participação criminal contra desconhecidos em 19/11/ 2021 junto da P.S.P. ..., dando azo ao processo de inquérito nº 1714 / ..., o qual correu termos na ... Secção do DIAP ... que foi alvo de arquivamento por não ter sido possível identificar-se os autores dos factos denunciados.

Tal como evidencia o respectivo relatório de inspecção judiciária, efectuado no âmbito do referido processo de inquérito, verificou-se na porta de entrada da residência dos autores, uma marca no aro vertical esquerdo, próximo da fechadura, indiciando a utilização de um objecto para efectuar a abertura da porta ou auxiliar a abrtura da mesma.

Os autores participaram à ré o referido furto, que declinou a sua responsabilidade contratual.

Toda a descrita situação, para além dos citados prejuízos resultante da perda, por furto, dos bens descritos, implicou igualmente um forte desgosto, tristeza e revolta nos autores, não só pela circunstância de verem-se desapossados dos ditos bens, mas também pelo acto de “invasão/intromissão” na sua residência, sendo que tal indignação e revolta agravaram-se sobremaneira tendo em consideração o facto da ré ter decidido declinar a sua responsabilidade contratual, de uma forma totalmente injustificável.

*

Citada, ofereceu a ré contestação, impugnando a factualidade subjacente ao alegado furto e correspondentes prejuízos, mais alegando que o sinistro não está coberto pelo contrato de seguro celebrado entre as partes, pois que inexistindo vestígios inequívocos de arrombamento, escalamento, ou tivesse sido constatada por inquérito policial, a utilização de chaves falsas, a cobertura contratada não cobria qualquer desaparecimento de bens seguros, concluindo no sentido de dever a ação ser julgada improcedente.

***

Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador tabelar e se se identificaram o objecto do litígio e os temas de prova.

Os autores requereram a ampliação do pedido para a quantia de 12.802,00 €, a qual foi admitida, cf. despacho de fl.s 94/5.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, e finda a mesma foi proferida a sentença de fl.s 105-A a 105-L, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu julgar a presente acção improcedente por não provada, absolvendo-se a ré do pedido, ficando as custas a cargo dos autores.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os autores, AA e mulher BB, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 120), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1- Na presente acção, não poderia a Meritíssima Juiz de 1ª Instância ter decidido como decidiu, ou seja, não poderia ter julgado a acção interposta pelos ora recorrentes, totalmente improcedente, absolvendo a ora recorrida dos respectivos pedidos, porquanto,

2- atento à factualidade dada como provada nos Pontos III 1., 2., 3., 6. E 9. da sentença recorrida, afigura-se claro que o contrato de seguro em causa, é susceptivel de cobrir os respectivos prejuízos sofridos pelos recorrentes, dado que,

3- encontra-se provado o facto de no dia 19 / 11 / 2021, ter-se verificado um furto na residência daqueles, tendo os mesmos participado criminalmente junto da autoridade policial, encontrando-se igualmente provado que,

4- o ou os autor(es) do citado ilícito introduziram-se na residência dos recorrentes, pela porta de entrada, pelo que e, na ausência de sinais de estroncamento ou danos visíveis no canhão da respectiva fechadura,

5- não haveria outra forma de introdução na residência dos recorrentes que não fosse mediante a utilização de chaves falsas ou objecto que funcionasse como tal, sendo de realçar que,

6- encontra-se também dado como provado, no Ponto III 9. da sentença recorrida que, no aro vertical esquerdo, próximo da localização da fechadura, foi produzida uma marca, indiciando a utilização de um objecto para efectuar a abertura da porta ou auxiliar na abertura da mesma.

7- Por outro lado, é a própria testemunha CC, perito da área dos seguros que, no seu depoimento acima transcrito, confirma que a utilização de chaves falsas, por regra, não deixa vestígios na fechadura, sendo igualmente algo do conhecimento geral e público.

8- Deverá também evidenciar-se que, como é referido no Ponto IV da sentença recorrida: “É certo que o objecto da garantia do seguro são, além do mais, bens móveis integrantes do recheio da casa de residência dos autores e o risco é a eventualidade do prejuízo decorrente da sua subtracção fraudulenta.”.

9- Diga-se ainda que, constatando as condições da apólice de seguro em causa, patentes no doc.7 junto com a P.I., sempre se poderá verificar que, na parte sob a epigrafe “O que não está coberto”, referente aos casos de furto ou roubo, não encontra aí qualquer previsão que se enquadre nos factos dados como provados, ou seja,

10- nenhuma dessas previsões que afastam a cobertura do seguro, se encontram reflectidos no citados factos dados como provados da sentença recorrida.

11- Assim, deverá a descrita factualidade dada como provada na sentença recorrida ser considerada integrada na previsão das condições contratuais do respectivo contrato de seguro e, em consequência, ser a recorrida condenada na indemnização peticionada pelos ora recorrentes.

PELO EXPOSTO, deve dar-se total provimento ao presente recurso e, em consequência do mesmo:

a) Deverá revogar-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, procedendo os pedidos efectuados pelos recorrentes na P.I., condenando-se assim a recorrida nos mesmos.

E assim se fará INTEIRA JUSTIÇA

Contra-alegando, a ré, Aegon, SA, pugna pela manutenção da decisão recorrida, aderindo aos fundamentos na mesma exarados, designadamente que o sinistro em causa, não se enquadra no risco previsto, por não se ter provado o uso de chaves falsas nem a existência de vestígios que denotem o arrobamento ou escalamento, como forma de entrada na residência dos autores.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de averiguar se o sinistro em causa se mostra ou não, enquadrado nas coberturas da apólice do seguro contratado entre as ora partes, designadamente, as previstas na cláusula “Furto ou Roubo”.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. Entre o autor e a ré foi celebrado um contrato de seguro, intitulado “Protecção Lar”, do ramo multirriscos habitação, com início em 26.12.2017, renovável anualmente, titulado pela apólice n.º ...50, o qual tem como objeto seguro o «Recheio» da habitação sita na Rua ..., ..., ..., ..., com o capital seguro até ao limite de € 35.000,00, conforme cláusulas particulares e gerais constantes de tal contrato junto com a p.i. sob os docs. nºs 6 e 7, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

2. As coberturas que, no seu conjunto, constituem a cobertura base dessa apólice são, entre outras, “Furto ou Roubo” de recheio.

3. Nas cláusulas contratuais gerais desse contrato, sob a epígrafe “Furto ou Roubo”, consta:

«Definições

As situações em que haja tentativa ou efetiva subtração dos bens seguros realizada por terceiros, conforme definidos neste contrato, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa.

Furto: Caso em que não existe emprego de violência sobre pessoas ou bens.

Roubo: Casos em que existe emprego de violência sobre pessoas ou bens.

Disposições comuns:

. Para efeitos de utilização desta cobertura, é necessária a participação formal às autoridades competentes.

(…)

O que está coberto

Furto ou roubo de recheio

As perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco, desde que ocorram nas seguintes situações:

. Com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tectos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos;

. Com ação constrangedora por meio de violência ou ameaças físicas, exercidas sobre o Segurado, qualquer pessoa do seu agregado familiar, ou outras pessoas que se encontrem no local de risco;

. Chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das autoridades competentes».

4. Nos termos das cláusulas contratuais gerais desse contrato, o conceito de “sinistro” é definido como: “A verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento das coberturas do risco previstas no contrato (…)».

5. E o conceito de “risco” é definido como: «Possibilidade de ocorrência de um acontecimento fortuito, súbito e imprevisto suscetível de produzir danos».

6. No dia 19.11.2021, pessoa, ou pessoas, cuja identidade não se apurou, entraram, de modo não apurado, na residência dos autores supra referida em 1., e do interior dessa residência, sem o conhecimento e contra a vontade dos autores, subtraíram, os seguintes bens:

a) Um colar de pérolas com fecho;

b) Um cordão de ouro;

c) Um anel de ouro com pedras semi-preciosas;

d) Uma libra com aro em ouro;

e) Um anel de ouro fino;

f) Uma cruz de ouro;

g) Dois fios de ouro;

h) Um anel trevo com pedras;

i) Dois fios marca ...”;

j) Uma pulseira marca ...”;

k) Um fio marca “Cinco”;

l) Duas pulseiras marca “Cinco”;

m) Um relógio marca ...”.

7. Os autores aperceberam-se do sucedido após terem chegado à sua residência nesse mesmo dia, dando por falta de tais objectos.

8. No dia 19.11.2021, a autora apresentou queixa na ... Esquadra da Polícia de Segurança Publica ... por furto na sua residência, ocorrido nesse dia, tendo-se um agente daquela Polícia deslocado à residência dos autores, e elaborado o respectivo auto de notícia, registado sob o NUIPC 1714/21...., conforme doc. nº 1 junto com a p.i., que deu origem aos autos de inquérito que com o mesmo número correram termos no DIAP ....

9. A brigada do núcleo de investigação criminal da Polícia de Segurança Pública, esteve na residência dos autores no dia 20.11.2021 e, concluídos os procedimentos de investigação no local, exarou o “Relatório de Inspeção Judiciária” junto com a p.i. sob o doc. nº 8, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido, no qual consta assinalado sob a epígrafe “2.1 Fim de inspeção: Sem recolha: Ausência de vestígios”.

10. E Sob a epígrafe “8. Observações e descrições

Modus operandi: Chaves falsas

Suspeito(s): Desconhecido(s)

Outras observações e descrições: -- No local do ilícito foi possível apurar que, após aceder ao interior do edifício, desconhecendo-se o método de entrada, o(s) autor(es) do ilícito, introduziram-se na fracção ... andar, através da porta de entrada.

--- O canhão da fechadura da porta de entrada da residência, não apresentava sinais de estroncamento, nem danos visíveis, sendo que no aro vertical esquerdo, próximo da localização da fechadura, foi produzida uma marca, indiciando a utilização de um objecto para efectuar a abertura da porta ou auxiliar na abertura da mesma (…)

11. Nesse relatório, sob a epígrafe “9. CONCLUSÃO”, está assinalado: “Inspeccionados os locais/objetos referidos no presente relatório, não foram observados, revelados, nem recolhidos quaisquer vestígios, pelo que a inspeção judiciária é considerada NEGATIVA”.

12. Nesses autos de inquérito que correram termos no DIAP ..., foi proferido despacho de arquivamento que se fundamentou na não existência de indícios quanto à autoria dos factos denunciados, conforme doc. nº 1 junto com a p.i., cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido.

13. Os autores participaram à ré o descrito furto.

14. Na sequência dessa participação, a ré, através dos seus peritos, encetou diligências de averiguação do participado furto, com vista a apurar as suas causas e prejuízos sofridos em consequência dos mesmos.

15. Efectuadas tais diligências de averiguação, o perito da ré elaborou o “Relatório de Sinistro” junto com a contestação sob o doc. nº 3, cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido, no qual exarou:

«(…) Na peritagem realizada não verificamos qualquer tipo de indício ou vestígio de entrada forçada nos dispositivos de entrada do local de risco, nomeadamente, na porta de entrada.

Quanto ao modus operandi de perpretação do furto, o segurado invoca a utilização de chave-falsa, sendo esta uma mera possibilidade, uma vez que não existe nenhum vestígio físico de tal actuação na fechadura da porta de entrada.

É de notar que, que conforme declarado pelo segurado e sua esposa, as caixas das peças desaparecidas estavam nos sítios de sempre, como tal, nunca notaram nada de estranho, pelo que o furto foi apenas detetado aquando da abertura da caixa do relógio “...” e constatação da falta do mesmo.

 (…)

Estranhamos a atuação dos meliantes desenquadrada das práticas correntes, pois habitualmente remexem, desarrumam os bens e levam as caixas, adotando, assim, uma ação rápida de procura dos bens e de consumação do furto para minimizarem o risco de deteção (…)”.

16. Findas as diligências de averiguação que levou a cabo, a ré declinou indemnizar os autores pelo furto participado.

17. Os autores sentiram forte desgosto, tristeza e revolta por se verem desapossados dos bens/objectos supra referidos, e pelo acto de invasão na sua residência, abordando recorrentemente o assunto de forma indignada e revoltada.

18. A revolta dos autores agravou-se pelo facto de a ré ter decidido declinar indemnizar os autores pelo sinistro/furto participado.

*

FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram outros factos com relevo para a decisão e, nomeadamente, que:

1.1. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas em 6. dos factos provados, a pessoa, ou pessoas, cuja identidade não se apurou, introduziram-se na residência dos autores utilizando para o efeito chaves falsas ou outro objecto que funcionasse como tal e que permitiu a abertura da respectiva porta de entrada.

2.2. O objecto supra referido em 6.a) dos factos provados, tem o valor de €150,00.

3.3. O objecto supra referido em 6.b) dos factos provados, tem o valor de € 598,00.

4.4. O objecto supra referido em 6.c) dos factos provados, tem o valor de € 750,00

5.5. O objecto supra referido em 6.d) dos factos provados, tem o valor de € 224,00.

6.6. O objecto supra referido em 6.e) dos factos provados, tem o valor de € 100,00.

7.7. O objecto supra referido em 6.f) dos factos provados, tem o valor de € 100,00.

8.8. Os objectos supra referido em 6.g) dos factos provados, têm o valor de € 2.000,00.

9.9. O objecto supra referido em 6.h) dos factos provados, tem o valor de € 150,00.

10.10. Os objectos supra referidos em 6.i) dos factos provados, têm o valor de € 270,00.

11.11. O objecto supra referidos em 6.j) dos factos provados, tem o valor de € 200,00.

12.12. O objecto supra referidos em 6.k) dos factos provados, tem o valor de € € 70,00.

13.13. Os objectos supra referidos em 6.l) dos factos provados, têm o valor de € 190,00.

14.14. Os objecto supra referidos em 6.m) dos factos provados, tem o valor de € 8.000,00.

Se o sinistro em causa se mostra ou não, enquadrado nas coberturas da apólice do seguro contratado entre as ora partes, designadamente, as previstas na cláusula “Furto ou Roubo”.

No que a esta questão respeita, como decorre do relatório que antecede, alegam os recorrentes que se tem de concluir que os autores do furto que está na génese dos presentes autos, entraram na sua residência mediante a utilização de chaves falsas ou objecto que funcionasse como tal, pelo que tal risco se encontra previsto no contrato de seguro que celebrou com a ré, pelo que está verificada a responsabilidade desta pelo ressarcimento dos danos aqui reclamados.

Na sentença em recurso, com o aplauso da recorrida, considerou-se que o sinistro em causa não se enquadra na previsão da cláusula “Furto ou Roubo”, tendo a ré, em conformidade, sido absolvida do pedido formulado pelos autores, com o fundamento em que: 

“… não se mostra verificada a situação prevista nas cláusulas contratuais da cobertura “Furto ou Roubo”, pois não se provou que o furto foi perpetrado com chaves falsas, cuja utilização tenha sido ou comprovada por prova pericial das autoridades competentes, nem através de arrombamento ou escalamento com ou sem vestígios.

Assim, não têm os autores o direito de exigir da ré a indemnização que, com base no mencionado contrato de seguro, lhes pedem judicialmente, porquanto não provaram os factos constitutivos do seu alegado direito.

Como tal, terá a acção de improceder, porque não resultou provada a concretização do risco assegurado pela ré.”.

Conclusão, esta, motivada pelo facto de que “… não foi comprovada por prova pericial das autoridades competentes a utilização de chaves falsas, nem há vestígios inequívocos de arrombamento ou escalamento de portas, janelas, etc, que dêem acesso ao local de risco”.

É sabido que em matéria de interpretação e integração de contratos rege o disposto nos artigos 236.º, 238.º e 239.º, todos do Código Civil e 10.º e 11.º do DL 446/85, de 25 de Outubro (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais).

Estas, atento o carácter especial do contrato de seguro, em regra, resultante de clausulado pré-fixado pelas seguradoras.

Assim, em matéria de contrato de seguro, importa apurar o sentido normal da declaração, o que, como refere José Vasques, in Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, a pág. 351 “se fará pela busca do sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ela”, em conformidade com o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do CC e desde que, atento o carácter formal do contrato de seguro, nos termos do artigo 238.º, n.º 1, do mesmo Código, a declaração tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso.

Só sendo de apelar à interpretação mais favorável ao aderente prevista no artigo 11.º, n.º 2 da LCCG, no caso das cláusulas ambíguas, as quais, de acordo com o autor e ob. cit., a pág. 352, citando Rodrigues Bastos, são aquelas que, apesar de se lhes aplicarem as regras gerais de interpretação, continuam obscuras ou às quais podem ser fixados mais do que um sentido.

Idêntico entendimento expressa Moitinho de Almeida, in Contrato de Seguro Estudos, Coimbra Editora, 2009, a pág.s 126 e seg.s, o qual, a pág. 140, refere que mesmo nos casos em que se imponha uma interpretação complementadora por força da existência de cláusulas insuficientes, ou falta de cláusulas necessárias, tal interpretação não pode conduzir a uma ampliação do objecto negocial, limite este que, no domínio dos seguros, deve ser entendido de modo particular, dada a relevância da amplitude do risco no âmbito deste contrato, ali acrescentando que tal interpretação é de excluir quando “implique a ampliação do núcleo da prestação da seguradora, na acepção da jurisprudência alemã segundo a qual esse núcleo se reporta aquelas cláusulas que estabelecem as condições e delimitam a prestação da seguradora, sem as quais o núcleo essencial do contrato careceria de precisão.”.

Rematando, a pág.s 151 e 152 que na interpretação do contrato de seguro se exige “bom senso e uma análise serena dos interesses em presença: dos tomadores de seguro consumidores, frequentemente logrados nas suas legítimas expectativas por cláusulas ambíguas, demasiado técnicas ou escondidas nas apólices; das seguradoras que lutam contra a fraude dos segurados e para as quais a definição do risco é essencial para uma boa gestão dos seus negócios.”.

Por outro lado, como refere Pedro Romano Martinez, in Contratos Comerciais, Principia, a pág. 83, no contrato de seguro, dado que este tem na sua génese uma proposta por ela mesmo redigida, deve entender-se que o real declaratário a que se alude no n.º 1 do artigo 236.º do CC é o tomador do seguro.

Por último, como resulta do teor do artigo 10.º da LCCG, importa, ainda, ao interpretar as cláusulas de um contrato de seguro, analisar o contexto de cada contrato singular em que se incluam.

Estes critérios têm vindo a ser seguidos, de forma unânime, no nosso STJ, podendo ver-se, neste sentido, entre outros, os Acórdãos de 05 de Julho de 2012, Processo 1028/09....; de 27 de Novembro de 2018, Processo n.º 3158/16.... e de 18 de Março de 2021, Processo n.º 1542/19...., todos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj.

Como decorre do disposto no artigo 37.º, do Decreto Lei 72/2008, de 16/4 (Lei do Contrato de Seguro), o contrato de seguro deve ser reduzido a escrito na respectiva apólice, na qual, se deve fazer constar todo o conteúdo do acordado pelas partes, em que se incluem, para além de outras coisas, a identificação dos riscos contra que se faz o seguro, bem como, com destaque, as cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação (cf. seu n.º 3, al. b).

Apólice esta que, por via de regra é precedida da proposta de seguro, a qual mais não é do que uma declaração de ciência e de vontade, cujo conteúdo se destina a determinar a completa e exacta representação do risco, e a indicação de todas as circunstâncias que possam influenciá-lo e a documentar a vontade de querer concluir o contrato de seguro – cf. Guerra da Mota, O Contrato de Seguro Terrestre, 1.º vol, pág.s 404 e seg.s, citado por Abílio Neto, Código Comercial e das Sociedades Anotados, 15.ª edição, nota 14, a pág. 277.

Como refere José Vasques, ob. cit., a pág.s 211 e 212, a declaração do risco é uma das obrigações fundamentais do tomador do seguro e constitui uma declaração unilateral do proponente, a qual é aceite pela seguradora e que se destina a avaliar o risco e a permitir o cálculo do prémio, acrescentando que “A declaração do risco não é uma declaração de vontade, mas sim uma declaração de ciência, cujo cumprimento permitirá ao segurador aceitar ou recusar essa declaração.”.

E porque a declaração do risco constitui uma obrigação prévia à celebração do contrato, não são admitidas, contrariamente ao direito comum, sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, bem assim a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, cf. artigo 253.º, n.º 2, CC, uma vez que, no contrato de seguro, a seguradora baseia toda a sua prestação nas declarações do tomador do seguro, nas quais deve (precisa, acrescentamos nós) de ter toda a confiança.

Traçado o quadro teórico em que nos devemos mover ao interpretar as cláusulas de um contrato de seguro e a importância que tem a definição dos riscos que se têm em vista ao celebrar um contrato de seguro, importa, agora, em face da factualidade dada como assente, aferir se os danos que sobrevieram para os autores em consequência do ajuizado sinistro estão, ou não, cobertos pelo contrato de seguro em causa.

Não se discute que o referido contrato é válido, bem como aceitam as partes a eficácia do mesmo, abrangendo os riscos nele previstos, assim como é pacífica a ocorrência do sinistro e a existência, pelo menos, parcial, dos relatados danos, residindo o dissídio entre as partes na forma de interpretar a cláusula “Furto ou Roubo”, designadamente se, em face da matéria de facto dada como provada se poderá ou não, concluir que o método de intromissão na residência dos autores, foi o uso de chaves falsas ou o arrombamento ou escalamento, de que tenham resultado vestígios inequívocos.

Como resulta da cláusula “Furto ou Roubo”, constante das Condições Gerais da Apólice (cf. fl.s 27 v.º) e reproduzida no item 3. dos factos provados, foi contratado o seguinte:

“3. Nas cláusulas contratuais gerais desse contrato, sob a epígrafe “Furto ou Roubo”, consta:

«Definições

As situações em que haja tentativa ou efetiva subtração dos bens seguros realizada por terceiros, conforme definidos neste contrato, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa.

Furto: Caso em que não existe emprego de violência sobre pessoas ou bens.

Roubo: Casos em que existe emprego de violência sobre pessoas ou bens.

Disposições comuns:

. Para efeitos de utilização desta cobertura, é necessária a participação formal às autoridades competentes.

(…)

O que está coberto

Furto ou roubo de recheio

As perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco, desde que ocorram nas seguintes situações:

. Com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tectos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos;

. Com ação constrangedora por meio de violência ou ameaças físicas, exercidas sobre o Segurado, qualquer pessoa do seu agregado familiar, ou outras pessoas que se encontrem no local de risco;

. Chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das autoridades competentes».

Assim, impõe-se concluir que, relativamente a este risco e no que ao caso interessa, as partes acordaram:

- ser necessária a participação formal às autoridades competentes;

- se verifique/constate o arrombamento ou escalamento de portas, janelas, telhados ou outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos e;

-  chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das entidades competentes.

Ora, conforme consta dos itens 6.º, 8.º, 9.º, 10.º e 11.º, dos factos provados, não se apurou o modo como os terceiros, autores do ajuizado furto, entraram na residência dos autores; os autores apresentaram queixa na PSP; a Brigada do NIC da PSP de ..., efectuou na residência dos autores uma “Inspecção Judiciária”, junta nos autos a fl.s 37/8, aqui dado por reproduzido e transcrito no item 10.º, em que se refere como “Modus operandi: Chaves falsas”, mais se referindo ser “desconhecido o modo de entrada dos autores do ilícito,… através da porta da entrada”.

Mais se referindo que: “O canhão da fechadura da porta de entrada da residência, não apresentava sinais de estroncamento, nem danos visíveis, sendo que no aro vertical esquerdo, próximo da localização da fechadura, foi produzida uma marca, indiciando a utilização de um objecto para efectuar a abertura da porta ou auxiliar na abertura da mesma”.

De notar, ainda, que cf. consta do item 1.1 dos factos não provados, consta que não se apurou que os autores do ilícito se tenham “introduzido na residência dos autores utilizando para o efeito chaves falsas ou outro objecto que funcionasse como tal e que permitiu a abertura da respectiva porta de entrada”.

Assim, com todo o respeito pelo alegado pelos recorrentes, não estão verificados todos os condicionalismos previstos para a assunção do risco: uso comprovado de chaves falsas e/ou arrombamento ou escalamento, de que resultaram vestígios inequívocos.

Efectivamente e desde logo, não se apurou que o método usado tenha sido a utilização de chaves falsas, pois que como consta do item 6.º dos factos provados, não se apurou o modo de entrada na residência dos autores.

Por outro lado, como resulta do item 9.º dos factos provados, mais uma vez se reitera que se desconhece o modo de entrada na habitação, bem como a inexistência de danos na fechadura, apenas sendo visível, no aro da porta, próximo da fechadura, uma marca, indiciando a utilização de um objecto para auxiliar a abertura da porta.

Pelo que, como referido na sentença recorrida, não se pode concluir nem pela utilização de chaves falsas, uma vez que se desconhece o modo de entrada na residência dos autores, nem pelo arrombamento da porta, de que resultem sinais inequívocos, o que é afastado pelo facto de o canhão da fechadura não apresentar sinais de estroncamento, nem danos visíveis.

É certo que a cláusula “Furto ou Roubo” está elaborada de um modo que restringe em elevado grau a responsabilidade da seguradora.

Todavia, os autores nada alegaram quanto a tal, designadamente que se tratava de cláusula abusiva ou nula, nem quanto a um eventual desconhecimento dos respectivos termos, pelo que, nesta fase, nada se pode referir quanto a tal.

Efectivamente, os autores, cf. conclusão 7.ª, limitam-se a referir que é “do conhecimento geral e público” que a utilização de chaves falsas, por regra, não deixa vestígios na fechadura, pelo que se deveria concluir que foi mediante a utilização de chaves falsas que os autores do furto se introduziram em casa dos autores.

Não obstante, assim não se pode concluir, desde logo e em primeiro lugar, porque os autores não recorreram da matéria de facto dada como provada e não provada e, como acima já se referiu, foi considerado como provado que se desconhece o modo de entrada em casa dos autores.

E, em segundo lugar, não se pode considerar que estamos perante factos notórios.

Estes, como resulta do disposto no artigo 412.º, n.º 1, do CPC são os que “… são do conhecimento geral”.

Assim se devendo considerar “… os que sejam de conhecimento e de experiência comum, de acordo com os padrões médios da coletividade de um determinado tempo e lugar. A exigência do conhecimento geral atua em vários âmbitos: na esfera pessoal, o facto notório tem de constar como certo ou falso para a generalidade das pessoas de cultura média, entre as quais se encontra o juiz; na esfera cognoscitiva, no sentido de que tal conhecimento deve integrar a cultura média, não integrando apenas um saber especializado; na esfera espacial, no sentido de que tal facto deve ser conhecido no território a que respeita” – cf. Código GPS, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 504.

Ou, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC, Anotado, Vol. 2.º, 4.ª Edição, pág. 209 “São notórios os factos do conhecimento geral, isto é, conhecidos ou facilmente cognoscíveis pela generalidade das pessoas normalmente informadas de determinado espaço geográfico, de tal modo que não haja razão para duvidar da sua ocorrência (…) No domínio do processo civil, a esfera social que o caracteriza tem de abranger as partes e o juiz da causa.”.

Ora, atentos os critérios acima referidos, não se pode considerar ser um facto notório que a utilização de chaves falsas, não deixa marcas.

Como acima já referido, a definição dos riscos assumidos num contrato de seguro é um dos elementos mais importantes, se não o decisivo, no clausulado de um contrato de seguro e interpretar-se as referidas cláusulas como o pretendem os recorrentes, seria alargar o núcleo da prestação da seguradora, seria maximizar o risco previsto no contrato, o que, com o devido respeito, os comandos interpretativos acima enunciados não consentem.

A conclusão a que chegamos, afigura-se-nos como o mero resultado da interpretação das cláusulas contratadas, de acordo com os ditames legais aplicáveis e sem esquecer que foi a própria seguradora que redigiu e precisou qual o âmbito da sua responsabilidade (trata-se de contrato de adesão), os autores, como acima já referido, nada alegaram no sentido de obviar á aplicação da dita cláusula, que fixa o risco assumido com a celebração do contrato de seguro em causa, nos termos expostos.

Ora, in casu como resulta da factualidade descrita nos itens 3.º, 6º e 9.º, dos factos provados, conjugada com a não demonstração do que consta no item 1.1, dos factos não provados, tem de se concluir que os autores não lograram provar os elementos constitutivos do direito a que se arrogam, cuja prova lhes incumbe, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, sendo, assim, de manter a decisão recorrida.

Consequentemente, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 05 de Março de 2024.