Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
421/19.5T9PNI-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
DEVERES E AS REGRAS DE CONDUTA
PULSEIRA ELECTRÓNICA
MODIFICAÇÃO DOS DEVERES
REGRAS DE CONDUTA E OUTRAS OBRIGAÇÕES IMPOSTOS
CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS
DILIGÊNCIAS PROBATÓRIAS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENICHE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 51.º, N.º 3, 52.º, N.º 4, E 54.º, N.º 3, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 118.º, N.ºS 1 E 2, 194.º, N.º 6, 283.º, N.º 3, 308.º, N.º 2, 374.º, N.º 2, 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), 410.º, N.º 2, E 492.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – Os vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. são privativos da sentença, e só da matéria de facto, sendo que quando estão em causa despachos a sua sindicância terá de passar pelo regime das invalidades (nulidades ou irregularidades processuais).
II – A falta de fundamentação das decisões judiciais constitui mera irregularidade, nos termos do artigo 118.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P., a menos que se verifique na sentença, situação em que a lei impõe uma fundamentação especial, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, alínea a), e 374.º, n.º 2, ou que se verifique no despacho que decreta uma medida de coação ou de garantia patrimonial, nos termos do artigo 194.º, n.º 6, ou no despacho de pronúncia, nos termos dos artigos 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, situações em que o legislador comina a falta de observância do específico dever de fundamentação desses actos com nulidade.
III – O conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais e independentemente de incumprimento do condenado, à cláusula rebus sic stantibus, como resulta dos artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 4, e 54.º, n.º 3, do Código Penal.
IV – A tramitação do incidente suscitado pelo condenado com vista à modificação das condições a que ficou sujeita a suspensão da execução da pena de prisão aplicada na sentença obedece, apenas, ao formalismo previsto no artigo 492.º do C.P.P.
V – Na tramitação deste incidente o arguido não tem, obrigatoriamente, de estar presente nas diligências probatórias tendentes a apurar da verificação das circunstâncias relevantes supervenientes consubstanciadoras da pretendida modificação.
VI – Os sentimentos de incómodo, stress e vergonha do condenado, decorrentes do uso da pulseira eletrónica, correspondendo aos sentidos pelo comum dos condenados a quem é aplicado o sistema de vigilância eletrónica, constituem um efeito da condenação e da respetiva pena, não justificando, por isso, ao abrigo do disposto no citado artigo 492º,qualquer alteração das obrigações impostas à suspensão da execução da pena de prisão.
Decisão Texto Integral:

*

Relator: Cândida  Martinho

1º Adjunto: Maria Teresa de Jesus Rocha Coimbra

2º Adjunto: Capitolina Fernandes Rosa

Acordam em conferência os juízes da secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.Relatório

 

1.

… foi proferido despacho que indeferiu o pedido formulado pelo condenado, ao abrigo do disposto no artigo 492º do CPP, com vista a que lhe fosse retirado o mecanismo de fiscalização através da pulseira eletrónica, a que ficou sujeita a proibição de contatar ou de se aproximar da vítima.

           

            2.                                              

            Não se conformando com o decidido, veio o condenado interpor o presente recurso, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

“…

3ª- De acordo com o disposto no artº. 492º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, o despacho “é precedido de parecer do Ministério Público e de audição do condenado, e ainda dos serviços de reinserção social no caso de a suspensão ter sido acompanhada de regime de prova”.

3ª- Impõe-se, pois, a prévia audição, para além do arguido, dos serviços de reinserção social relativamente a esse despacho.

4ª- A presença em simultâneo do condenado e do técnico dos serviços de reinserção social permite estabelecer uma relação dialética em que o contraditório se pode concretizar em termos dinâmicos, possibilitando a prestação imediata de qualquer esclarecimento ou dúvida que a tomada de declarações possa suscitar, habilitando o Tribunal, em face do conteúdo de tais declarações, a, poder decidir modificar os deveres impostos, ou, de forma geral, a tomar qualquer das decisões previstas no artº. 492º do Cód. Proc. Penal.

5ª- In casu, o douto despacho sob recurso foi proferido sem prévia audição dos serviços de reinserção social que acompanham o condenado, ora recorrente, não tendo sido dada oportunidade a essa equipa técnica de se pronunciar sobre a manutenção ou modificação dos deveres, regras de conduta e outras obrigações impostas ao condenado.

6ª- Acresce que o douto despacho em causa não aduz minimamente qualquer razão justificativa de eventual impossibilidade ou inconveniência da audição prévia desses serviços, violando o disposto no artº. 32º da Const. Rep. Portuguesa, uma vez que coarta os direitos e garantias de defesa do arguido, bem como o artº. 119º do Cód. Proc. Penal, nulidade, que desde já se invoca para todos os legais efeitos.

7ª- Contudo, por mera cautela e sem conceder, caso se entenda não se estar perante tal nulidade, sempre se aduz que o referido despacho padece então da nulidade a que se refere o artº. 120º, n.º 2, al. d), 2ª parte.

8ª- O certo é que, num caso ou noutro, a nulidade torna inválido o douto despacho recorrido, bem como os atos que dele dependerem e aquela puder afetar, conforme dispõe o artº. 122º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal

9ª- Após a audição do condenado, foi determinada o seu afastamento da sala de audiências durante a audição da ofendida/vítima, sem que para tal tenha havido indicação de razões sólidas, razões sérias, razões pela qual o Tribunal ordena o afastamento do condenado da sala, ou seja as mesmas não foram especificadamente indicadas, ficando-se assim sem se saber quais as razões de facto que justificaram tal afastamento.

10ª- Nem foi requerida a prestação do depoimento da vítima por videoconferência, mecanismo obrigatório para salvaguardar/garantir depoimentos desinibidos, pelo que tal afastamento foi injustificado, ilegal e excessivo, mostrando-se violados o artºs. 97º e 352º al. a) do Cód. Proc. Penal, e artº. 32º da Lei 112/2009, de 16/09.

11ª- Regressado o condenado à sala não lhe foi dado conhecimento do sucedido na sua ausência, não se mostrando o princípio do contraditório assegurado, só com a presença da defensora do condenado durante a prestação das declarações, não havendo o cumprimento do artº. 332º, n.º 7 do Cód. Proc. Penal (comunicação ao arguido do que se passou na sua ausência), pelo que foi cometida ilegalidade e violadas as normas e princípios constitucionais em causa, com todas as consequências legais.

15ª- Com o devido respeito, o douto despacho recorrido, não se encontra fundamentado ou encontra-se escassamente fundamentado, a Mmª. Juiz a quo limita-se a tecer considerações abstratas, não explicita os motivos que levaram a decidir como decidiu, como tal inquinado de vício de fundamentação, pelo que ter-se-á de revogar o despacho recorrido.

18ª- O Tribunal a quo não valorou as provas juntas aos autos, alicerçando a sua convicção na não produção de prova das circunstâncias relevantes superveniente, que com o devido respeito, deveria ter chegado a outro resultado probatório se imbuído em concordância com os elementares princípios constitucionais e direito penal, dirige-se a sua conclusão fática sob a égide do nomeadamente constitucional, que em suma foi acreditar que o arguido não conseguir fazer prova do pedido formulado e assentando na versão (confusa) da ofendida.

17ª- Não revela o mínimo exame de nenhuma dessas provas: omite a prova documental junta aos autos, omite a prova por declaração do arguido, não dá a conhecer quais os documentos juntos aos autos e o que deles se retirou, etc., não analisa o concreto conteúdo de um único documento em concreto, nem o reflexo de qualquer documento junto aos autos, nem tão pouco da sua desacreditação.

18ª- O douto despacho encontra-se inquinado pelo vício do artº. 410º do Cód. Proc. Penal – uma clara insuficiência para a decisão proferida (com remissão para a prova junta e fundamentos vertidos nos autos).

19ª- Sobrevém, igualmente, um erro notório na apreciação e contradição entre as declarações e prova carreada nos autos e a fundamentação da douta decisão, com referência ao artº. 410º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal.

21ª- O condenado, apresentou a sua pretensão, bem como elementos novos que põem em causa a justiça da condenação, mais concretamente, com a utilização da pulseira eletrónica, que compromete e comprometerá em grande escala os interesses do condenado, quer pessoais, quer de saúde, quer profissionalmente.

22ª- Por conseguinte, diversamente do que foi entendido pelo Tribunal a quo, torna-se possível a formulação do juízo de prognose favorável, em que o condenado está em condições de beneficiar da modificação dos deveres, regras de conduta e outras obrigações impostos.

23ª- Porém, o condenado considera que a utilização dos meios de fiscalização por meios de controlo à distância é absolutamente desnecessária e desproporcional, atendendo a que não mais em ocasião alguma contactou ou pretende contactar com a vítima, e por motivos profissionais e de saúde.

24ª- Por outro lado, a utilização de tal equipamento continua a revelar-se estigmatizante e incómoda, para além de ter de andar sempre com o dispositivo preso ao corpo, o que por si só incomoda, tem igualmente de dormir com o mesmo, o que é um transtorno ainda maior.

25ª- Tem igualmente de estar sempre preocupado com a bateria e sinal de GPS, seja a que horas for, o que nada beneficia o seu estado de saúde, designadamente no que respeita ao foro psicológico e emocional, visto causar-lhe ansiedade com possíveis agravamentos e repercussões na sua evolução clínica – note-se que o condenado sofreu um enfarte do miocárdio e realizou 2 cateterismos, motivo pelo qual foi hospitalizado por mais de um mês, conforme informação clínica junto aos autos.

26ª- Mais deixou o condenado, pelos mesmos motivos, de ter qualquer atividade física no mar ou piscinas, porquanto o aparelho não de estar submerso por longos períodos de tempo, o que traria benefícios para a sua saúde, tendo inclusivamente sido medicamente recomendado a prática de tal modalidade (hidroterapia) como indispensável à sua recuperação, devido às suas limitações físicas atuais e tendo em conta o historial clínico do mesmo, seria bastante benéfico e aconselhável esse exercício ser realizado dentro de água, conforme declaração médica e demais documentos juntos aos autos.

27ª- O condenado passou a ter graves limitações no exercício e desempenho a sua atividade profissional, uma vez que a sua área de atuação e intervenção fica próxima da casa habitada pela vítima.

28ª- O que tudo tem causado para além dos normais incómodos, um alto stress e nível de ansiedade, nefasto à sua situação atual condição de saúde.

29ª- Sujeitar o condenado à pena acessória de vigilância eletrónica para proibir os contactos com a assistente é desajustado e injusto não sendo tal medida imprescindível nem tão pouco necessária, conformando-se, no entanto, com as demais imposições.

            3.

            O Exmo Procurador da República junto da primeira instância veio responder ao recurso, concluindo pela improcedência do recurso …

II. Fundamentação

A)Delimitação do objeto do recurso

… atentas as conclusões apresentadas pelo arguido/recorrente, as questões a decidir contendem com o seguinte:

- Nulidade do despacho proferido por omissão da audição prévia dos serviços de reinserção social.

- Nulidade decorrente do afastamento do condenado durante a prestação de declarações por parte da vítima.

- Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.

- Verificação de circunstâncias supervenientes

     

            B) Despacho recorrido

            É do seguinte teor o despacho recorrido, …

“A presente diligência foi agendada para efeitos de verificação das condições estabelecidas no artº. 492º do Código do Processo penal, o qual estabelece no seu n.º 1 …

Efetivamente foram cumpridas as legais exigências, nomeadamente foram apresentados requerimentos por parte do arguido que solicitou que mantendo-se o dever de proibição de contactos ou aproximação com a vítima fosse retirado o mecanismo de fiscalização dos mesmos através de pulseira eletrónica, foram feitas diligências tido por pertinentes, designadamente a audição do arguido e da própria ofendida.

Efetivamente, nos termos do artº. 492º, n.º 1 do Código do Processo Penal apenas circunstâncias relevantes supervenientes é que permitem a modificação dos deveres que sejam estabelecidos em sede de sentença, e tal justifica-se efetivamente a sentença é a peça processual que cristaliza os factos, que cristaliza a ocorrência e cristaliza a condenação, por uma questão de segurança e certeza jurídica de todos os intervenientes processuais e da proteção em geral dos cidadãos a que uma sentença é dirigida.

Uma decisão condenatória ou absolutória só pode ser objeto de modificação em situações excecionais, caso contrário era suposto que a decisão nos exatos termos em que é proferida e designadamente uma sentença condenatória seja cumprida até ao seu termo, nas condições que ali foram estabelecidas.

E cumpria, portanto, nesta medida, avaliar se, efetivamente, existe aqui uma circunstância relevante que seja superveniente que determine a alteração da obrigação imposta.

No caso concreto desde já se diz sumariamente que não.

O arguido alega que sofreu um enfarte e que a utilização da pulseira lhe causa stress.

Ora, evidentemente que não é só a utilização da pulseira que certamente lhe causará stress. A existência da condenação, as circunstâncias da vida, as alterações de rendimentos que o mesmo referiu, todos estes fatores serão motivadores de stress do arguido, mas não é esta a razão que justifica que seja retira a pulseira.

Por outro lado, o arguido invocou que tem de praticar hidroginástica e que a pulseira é um obstáculo a essa circunstância.

Ora, foi esclarecido aqui pela DGRSP que o arguido pode na mesma praticar o seu desporto, pode haver perda de sinal desde que ela seja comunicada, portanto, isto também não é um fator superveniente que leve à alteração.

O arguido alegou aqui também que por vezes tem de passar ou tem de se deslocar a violar esse raio de 100 metros de proibição, todavia, conforme lhe foi explicado nesta diligência, isto também não é uma alteração de circunstancia superveniente que determine que seja alterada a obrigação imposta, uma vez que basta uma comunicação à DGRSP para que a entidade fiscalizadora tenha conhecimento que naquele momento e local vai ser violada aquela obrigação e as razões pelas quais aquilo sucede pelo que também não existe aqui alguma proibição.

Por outro lado, para além do arguido não ter sido capaz de trazer aqui qualquer circunstância que possa considerar-se como relevante e superveniente que determine a alteração da obrigação ou do dever que aqui foi imposto em sede de sentença, a própria ofendida, embora se possa admitir que a mesma tenha misturado, em termos temporais,  a situação que foi objeto da decisão e o que aconteceu posteriormente, a verdade é que foi manifestada aqui de forma perfeitamente clara e incisiva por parte da ofendida, que este é, ou seja, a manutenção desta vigilância eletrónica para controlo deste raio de proibição de aproximação é o único garante que a mesma tem para a sua segurança e para a sua tranquilidade.

Ora, e foi com este objetivo que este controle foi fixado em sede de sentença.

…”.

            C)Apreciação do recurso

- Nulidade do despacho proferido por omissão da audição prévia dos serviços de reinserção social.

Decorre da sentença proferida em 28/6/2021, da qual não foi interposto qualquer recurso, que o arguido foi condenado na pena única de 4 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, nº1, al.a) e nº2, e um crime de violação de imposições, proibições e interdições, p. e p. pelo art.353º, do Código Penal.

O regime jurídico da suspensão da execução da pena de prisão encontra-se previsto nos artigos 50.º a 57.º do Código Penal, e nos artigos 492.º a 495.º do C. P.Penal.

Da análise do regime legal resulta que a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir três modalidades: suspensão simples; suspensão sujeita a condições (cumprimento de deveres ou de certas regras de conduta); suspensão acompanhada de regime de prova.

Os deveres, visando a reparação do mal do crime, encontram-se previstos, de forma exemplificativa, no artigo 51.º, n.º 1, do C. P., enquanto as regras de conduta, tendo em vista a reintegração ou socialização do condenado, encontram-se previstas, também a título exemplificativo, no artigo 52.º, do mesmo diploma.

Os deveres e as regras de conduta podem ser modificados até ao termo do período de suspensão, sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha tido conhecimento, o que significa que o conteúdo da pena de suspensão da execução da prisão está sujeito, dentro dos limites legais, mesmo independentemente de incumprimento do condenado, a uma cláusula rebus sic stantibus (artigos 51.º, n.º 3, 52.º, n.º 4 e 54.º, n.º3, do C. Penal).

No caso vertente, no âmbito da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, foi imposta ao arguido como condição de tal suspensão, para além de outras, a proibição de aproximação da assistente onde quer que esta se encontre, designadamente do seu domicilio habitual (ou transitório) e local de trabalho, resguardando uma distância de pelo menos 100 metros.

Com vista à fiscalização do cumprimento de tal condição foi determinada a vigilância através de meios técnicos de controlo à distância.

Foi ainda determinado que tal suspensão fosse orientada pela DGRSP.

A respeito do procedimento a seguir nos casos em que está em causa a modificação dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostas ao condenado na sentença que tiver decretado a suspensão da execução da pena, deverá ter-se presente o disposto no artigo 492º do CPP.

No caso em apreço, através de requerimento que fez chegar aos autos em 23/3/2023, sem pôr em causa as condições impostas, veio o condenado requerer a reapreciação e modificação do decidido apenas no que tange à utilização dos meios técnicos de controlo à distância, com vista a ser dispensado do uso da pulseira eletrónica.

Tal pretensão veio, porém, a ser indeferida.

Começa o recorrente por atacar o despacho recorrido pela via da nulidade.

Sustenta, para o efeito, que tal despacho foi proferido sem prévia audição dos serviços da reinserção social que acompanham o condenado, violando o disposto no artigo 32º da CRP, o que configura, no seu entender, uma nulidade insanável do artigo 119º do CPP, ou subsidiariamente uma nulidade do artigo 120º, nº2, al.d) do CPP.

Porém, é manifesta a falta de razão ao recorrente.

De facto, compulsados os autos, facilmente se descortina que tais serviços foram ouvidos a respeito da pretensão do recorrente.

Por conseguinte, em suma, como resulta dos autos, o tribunal recorrido, após ter solicitado o aludido parecer, designou dia para a audição do condenado e da vítima e nessa data (dia 5/7/2023), após a produção de tais diligências probatórias, deu a palavra ao Ministério Público e à Exma Defensora do condenado para se pronunciarem a respeito da pretensão do condenado, …

Improcede, por isso, neste segmento, o recurso interposto.

- Nulidade decorrente do afastamento do condenado durante a prestação de declarações por parte da vítima.

 

Neste particular, começa o recorrente por se insurgir com o facto de não ter estado presente durante a prestação das declarações por parte da vítima, …

Mais alega o recorrente que não tendo sido requerida a prestação do depoimento da vítima por videoconferência, mecanismo obrigatório, foi porque se entendeu que não existiam motivos para crer que o depoimento não seria desinibido, razão pela qual tal afastamento foi ainda injustificado, ilegal e excessivo.

Ora, também por aqui não assiste qualquer razão ao recorrente.

Certamente que o mesmo se esqueceu que a tomada de declarações à vítima não ocorreu no âmbito de uma audiência de julgamento, cuja realização obedece ao formalismo previsto nos artigos 338º a 364º, do CPP, mas antes se inseriu no âmbito da instrução do incidente suscitado pelo condenado com vista a uma eventual modificação das condições a que ficou sujeita a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi imposta.

A tramitação de tal incidente apenas deverá obedecer ao formalismo previsto no citado artigo 492º, deste não constando que o arguido tenha de estar obrigatoriamente presente nas diligências probatórias levadas a efeito, com vista ao apuramento das circunstâncias relevantes supervenientes, mostrando-se assegurado o princípio do contraditório com a presença em tais diligências da respetiva defensora, presença que ocorreu no caso vertente.

Em conformidade com o exposto, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, porquanto desnecessárias, carece igualmente de qualquer fundamento legal a pretendida observância do disposto no artigo 332º,nº7, do CPP (comunicação ao arguido do que se passou na sua ausência), improcedendo também neste segmento o recurso interposto.

- Da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.

            Veio ainda o recorrente sustentar que o despacho recorrido “não é claro no que respeita à aplicação da lei, acabando o seu destinatário (arguido) por não perceber ao abrigo de que norma ou dispositivo legal foi indeferida a sua pretensão, violando-se assim o disposto no artigo 97º, nº 5 do Cód. Proc. Penal (…)”; “o douto despacho recorrido não se encontra fundamentado ou encontra-se escassamente fundamentado, a Mmª. Juiz a quo limita-se a tecer considerações abstratas, não explicita os motivos que levaram a decidir como decidiu (…)”.

Em suma, conclui o recorrente, na sua 20ª conclusão, que o despacho recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação, devendo ser substituído por outro que proceda ao exame de todas as provas produzidas.

Antes de mais, face ao teor da alegação do recorrente, importar consignar o seguinte:

Em primeiro lugar, que os vícios do nº2, do artigo 410º, não podem ser chamados como fundamento para o ataque do despacho em apreço, como fez o recorrente, porquanto, como referiu o Conselheiro Pereira Madeira, no Acórdão do STJ de 20/6/2002, proc.014250, disponível in dgsi, “os vícios do artigo 410º,nº2, do CPP, são vícios da sentença final  e, só, da matéria de facto” (no mesmo sentido, apontam os acórdãos da Relação de Évora de 3/7/2012, proc.4016/08.0TDLSB.E1 e da Relação do Porto de 15/2/2012, proc.918/10.2TAPVZ).

      Deste modo, estando em causa despachos, a sua sindicância terá assim de passar pelo regime das invalidades (nulidades ou irregularidades processuais).

       Em segundo lugar, referir que a falta de fundamentação dos despachos tem como efeito a sua irregularidade (art.118º, nº2 e 123º), se a lei não cominar de forma diferente e, no caso concreto, a lei não comina a falta de fundamentação do presente despacho com a nulidade (como acontece, por ex. no caso do art.194, nº6, do CPP).

Com efeito, constitui entendimento pacífico que a falta de fundamentação das decisões judiciais, situação que se traduz na falta de especificação dos motivos de facto e de direito da decisão, constitui mera irregularidade (artigo 118.º, n.ºs 1 e 2), a menos que se verifique na sentença, ato processual que, conhecendo a final do objeto do processo (artigo 97.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.), a lei impõe que obedeça a fundamentação especial, sob pena de nulidade (artigos 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do mesmo diploma legal), ou que se verifique no despacho que decreta uma medida de coação ou de garantia patrimonial (artigo 194.º, n.º 6, do C.P.P.) ou no de pronúncia (artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do mesmo diploma), em que o legislador igualmente comina a falta de observância do específico dever de fundamentação desses atos com nulidade.

No caso em apreço, como já referimos, estamos perante um despacho, o qual, não sendo de expediente, exige fundamentação.

Todavia, a falta de fundamentação dos despachos judiciais não se mostra cominada com a sanção da nulidade, razão pela qual constitui, como já se disse também, mera irregularidade (cfr.art.118, nº1, do CPP), submetida ao regime do artigo 123º.

Sendo este o regime e não tendo o recorrente, porquanto se encontrava presente na diligência ocorrida no dia 5/7/2022 , arguido a invalidade do ato, requerendo à Mma Juiz que o despacho seja fundamentado, sempre a irregularidade teria à partida de considerar-se sanada nos termos do artigo 123º,nº1, caso ela existisse, uma vez que não foi arguida nos termos legais perante o tribunal recorrido, não podendo pretender saná-la por via do presente recurso.

É certo que em matéria de irregularidades o legislador consagra uma “válvula de segurança” muito grande, que é a de poder ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado, artigo 123º, nº2, do CPP.

Porém, não é a situação dos autos, pois como, aliás, vamos concluir, o despacho recorrido não padece da invocada falta de fundamentação.

Compulsado o despacho recorrido, temos para nós que o mesmo mostra-se fundamentado, quer de facto, quer de direito.

Com efeito, após enunciar a pretensão do condenado e fazer menção às diligências probatórias a que procedeu, a Mma Juiz, trazendo à liça o disposto no artigo 492º do CPP, explicou de forma clara, suficiente e percetível porque motivo as razões adiantadas pelo recorrente para a pretendida alteração não preenchiam os pressupostos vertidos no citado preceito legal.

            Aliás, lida a motivação do recurso vê-se também que o recorrente percebeu com suficiente clareza, quais os motivos de facto e de direito que levaram ao indeferimento da sua pretensão, ainda que não se reveja neles.

No entanto, tal discordância não é sinónimo de falta de fundamentação.

Ressalta de forma clara da fundamentação do despacho recorrido que o indeferimento da pretendida modificação, assentou, em suma,  por um lado, na inexistência de qualquer circunstância relevante e superveniente suscetível de a justificar e, por outro, na circunstância da ofendida ter evidenciado de forma absolutamente incisiva e clara que as circunstâncias que determinaram a aplicação deste mecanismo de controle se mantêm atuais neste momento e que continuam a ser absolutamente essenciais para a salvaguarda da sua segurança.

  Não vislumbramos pois, de modo algum, a invocada falta de fundamentação, razão pela qual improcede também por aqui o recurso interposto.

- Verificação das circunstâncias supervenientes.

Por fim, defende o recorrente que as razões por si alegadas, ao contrário do que defendeu o tribunal recorrido, constituem circunstâncias relevantes supervenientes suscetíveis de conduzirem à retirada do mecanismo de fiscalização através da pulseira eletrónica.

Sendo certo que não está em causa a reapreciação do circunstancialismo que levou à fixação das regras de condutas de que o tribunal da condenação fez depender a suspensão da execução da pena de prisão, como parece pretender o recorrente, entendemos também, na senda do despacho recorrido, que nenhuma das situações invocadas pelo recorrente  impõem, nos termos do citado artigo 492º, do CPP, a modificação do decidido no que tange à determinada fiscalização das condições impostas através de meios de controlo técnico à distância.

Tendo este tribunal procedido à audição das declarações do condenado, limitou-se o mesmo,  no momento inicial, quando instado pela Mma Juiz, a referir que sofreu um enfarte e que o uso da pulseira causa-lhe incómodo, stress e também vergonha, designadamente quando está com clientes e estes se apercebem do seu uso.

Já após a intervenção da sua Exma defensora, o condenado trouxe à liça alguns constrangimentos que o uso da pulseira lhe vêm causando na gestão do seu dia à dia, seja nos condicionamentos das suas deslocações profissionais, com repercussões nos seus rendimentos, seja noutras atividades do seu dia à dia, designadamente no que tange à necessidade de praticar hidroterapia na sequência do enfarte de que foi acometido.

Começando pelo invocado enfarte sofrido em fevereiro deste ano, trazido à liça pelo condenado quando ouvido, pois aquando da apresentação do seu requerimento que determinou o despacho recorrido tal situação ainda não se havia verificado, sempre se dirá que não se encontrando demostrado que tal ocorrência constitua qualquer obstáculo ao uso da pulseira, nem igualmente que este uso esteja relacionado com aquele, não vemos como poder concluir estar-se perante uma circunstância relevante suscetível de levar à alteração pretendida.

O mesmo se passa com os constrangimentos alegados, na medida em que os mesmos podem ser ultrapassados e compatibilizados, com o uso da pulseira eletrónica, como se fez constar da decisão recorrida e resulta do relatório apresentado pela DGRSP.  …

Por fim, quanto aos sentimentos experimentados pelo condenado, longe de poderem justificar qualquer alteração nos termos do citado artigo 492º, correspondem os mesmos aos sentidos pelo comum dos condenados a quem é aplicado o sistema de vigilância eletrónica, constituindo, aliás, um efeito da condenação e da respetiva pena.

Parece-nos, pois, evidente não estarem reunidos os pressupostos vertidos no citado artigo 492º.

Ademais a própria vítima, para proteção da qual foi imposta a condição em apreço e determinada a vigilância eletrónica,  quando ouvida evidenciou a necessidade de se manter tal mecanismo de controlo para a salvaguarda da sua segurança, na senda do que já havia transmitido à técnica da DGRSP, …

Se é verdade que o condenado, como resulta do relatório junto pela DGRSP tem revelado uma postura responsável e de compromisso com as obrigações fixadas judicialmente, designadamente a proibição de contatos com a vítima, a verdade é que tal postura mais não é do que o seu dever em face da condenação sofrida, não constituindo tal comportamento fundamento da alteração das condições impostas, nos termos do citado artigo 492º do CPP.

Em suma, não vislumbramos, pois, qualquer fundamento para alterar o decidido.

            III. Dispositivo

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se o despacho recorrido.

            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3UC.

(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)