Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1622/19.1T8PBL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
VALORAÇÃO DA PROVA PERICIAL
EDIFICAÇÃO EM PRÉDIO DE UM DOS CÔNJUGES
FALTA DE LICENCIAMENTO
VALOR DA EDIFICAÇÃO
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 489.º, 615.º, N.º 1, AL.ª B), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 24.º, AL.ª B), DO DLEI N.º 10/2024, DE 08-01, 389.º E 1377.º, AL.ª A), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – Padece de nulidade, por falta de fundamentos, a decisão que não contém qualquer avaliação de perícia na qual se baseia para fixar o valor de certo bem.

II – A edificação construída em prédio de um dos cônjuges não fica privada de valor económico por não estar licenciada.

III – Os custos de legalização devem ser considerados na fixação do valor da edificação.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Relator: António Fernando Silva
1.º Adjunto: Pires Robalo
2.º Adjunto: Henrique Antunes

Proc. 1622/19.1T8PBL-D

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            O presente inventário, instaurado por iniciativa de AA, respeita à partilha do património comum derivado da dissolução do casamento celebrado entre aquela requerente e BB.

            Após vicissitudes formais (atinentes à competência por conexão e à instrução do processo), foi BB nomeado cabeça-de-casal, tendo posteriormente apresentado relação de bens na qual, no que ora monta, se indicou:


ativo

verba 1


Benfeitoria constituída por uma casa de habitação construída sobre um terreno do cabeça de casal BB, sita na rua ..., ..., ... ..., com o artigo matricial número ...70, da freguesia e concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...83, com o valor patrimonial tributário de € 61.204,50 (que incluiu já o valor do terreno em que a casa se encontra implantada e que é bem próprio do cabeça de casal) e a que o ora cabeça de casal atribui o valor de € 35.000,00A requerente apresentou reclamação na qual, e além do mais, discutiu o valor atribuído à benfeitoria, por o considerar fixado em valor muito abaixo do seu valor de mercado.

A requerente deduziu reclamação na qual, além de questões atinentes à omissão de bens, impugnou os valores indicados na relação de bens, requerendo a realização de avaliação.

O cabeça-de-casal respondeu, tecendo considerações sobre os valores em causa e afirmando que deveria ser nomeado perito para proceder à avaliação.

Realizada audiência prévia, nesta foram fixados por acordo os bens a partilhar e, na sequência da posição mantida pela requerente na sua reclamação de bens, foi determinada a avaliação de verbas da relação de bens, incluindo a benfeitoria.

Foi realizada avaliação a qual fixou para a construção, no estado actual, o valor de 68.000 euros, o seu valor de mercado em 112.840 euros e o valor de mercado do terreno em 16.660 euros.

Dessa avaliação começou por reclamar o cabeça-de-casal, alegando essencialmente que a construção não dispunha de licença de habitação (recusada em virtude da insuficiência dos acessos) e que i. isso, não permitindo a alienação ou o arrendamento, não foi atendido na avaliação, e que ii. deveria ter sido averiguado se era possível aumentar o acesso à habitação, e custo, concluindo que a construção não terá qualquer valor económico. Terminou formulando os esclarecimentos solicitados.

Também a requerente reclamou, discutindo a omissão da sua convocação para a diligência, a existência de divergências quanto à composição da construção, a omissão de elementos relevantes (aquecimento), a falta de suporte para algumas afirmações sobre defeitos (chegando a discutir os conhecimentos do perito), a irrelevância da falta de licenciamento e a discrepância não explicada entre valores constantes de dois quadros do relatório pericial, para concluir pela subvalorização da construção na avaliação efectuada.

O perito respondeu a parte das questões suscitadas, admitiu lapso na falta de notificação da requerente e requereu depois a sua substituição por motivos de saúde.

Notificados os interessados, a requerente sustentou a substituição do perito.

Nessa sequência foi determinada a realização de segunda perícia, que «que terá como objeto apenas o valor da benfeitoria identificada na verba nº 1 da relação de bens».

Esta perícia fixou o valor de 112.795 €.

Dessa avaliação reclamou a requerente, pugnando pela correcção do valor atribuído por se dever ter por assente o valor atribuído na primeira perícia ao terreno, não sendo essa avaliação objecto da segunda perícia.

Reclamou também o cabeça-de-casal, considerando que deveria ter sido atendida a falta de licenciamento da construção, que os anexos foram efectuados à revelia do projecto apresentado, que a casa apresenta patologias que deveriam ter sido consideradas e que a falta de licenciamento também se repercute no valor do terreno. Formulou os esclarecimentos que reputa devidos e apresentou documentos.

Notificado, o perito prestou esclarecimentos.

O cabeça-de-casal, considerando que as questões colocadas não foram respondidas, requereu que estas fossem respondidas de forma concreta e directa.

A requerente veio afirmar manter o que alegou na reclamação.

Notificado, o perito apresentou esclarecimentos discriminados.

O cabeça-de-casal apresentou requerimento, renovando dúvidas atinentes à falta de legalização da construção e ao risco de ser demolida, requerendo nova notificação do perito para esclarecer a situação.

Notificado, o perito respondeu.

Foi depois proferida a seguinte decisão:

Mostrando-se prestados pelo sr. perito os esclarecimentos solicitados e concluída a avaliação, notifique o cabeça para no prazo de 10 dias juntar relação de bens, em conformidade com os valores decorrentes da avaliação.

*

Notifique ainda os interessados para proporem a forma da partilha (artº 1110º nº 1 al. b) do CPC).

É dela que vem interposto o presente recurso, formulando o recorrente as seguintes «conclusões»:

(…).

Não foi apresentada resposta.

A Mma. Juíza proferiu despacho a considerar não verificada a invocada nulidade.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, as questões a apreciar reconduzem-se a:

- verificar se a decisão impugnada é nula;

- fixar o valor da benfeitoria, à luz dos elementos disponíveis e das objecções suscitadas pelo cabeça-de-casal.

III. Os dados relevantes para a avaliação do recurso dizem respeito ao desenvolvimento processual referido e supra descrito, e, em especial, ao teor dos relatórios periciais e seus esclarecimentos (que constituem, porém, meios probatórios e não factos a descrever).

IV.1. O recorrente começa por invocar a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, nos termos do art. 615º n.º1 al. b) do CPC, do qual resulta que:

1 - É nula a sentença quando:

a) (…)

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (…).

            Este regime é aplicável aos despachos por força do art. 613º n.º3 do CPC.

Este vício relaciona-se com o disposto no art. 154º n.º1 do CPC, que impõe o dever genérico de fundamentação para todas as decisões processuais, garantindo, internamente, a sua racionalização, e, externamente, a publicitação, como meio de convencimento pelas suas razões. O desvalor da decisão radica na sua incapacidade em garantir a inteligibilidade ou compreensibilidade da decisão e assim aqueles valores.

Tem sido entendido de forma claramente dominante que apenas a falta absoluta de fundamentação constitui a nulidade em causa, não bastando a mera deficiência ou incompletude da fundamentação. Eventuais defeitos da fundamentação constituiriam questões apenas relevantes na avaliação do mérito da decisão. Fala-se ainda, embora de forma menos corrente, na falta funcional de fundamentação, para os casos limite em que a fundamentação é apenas aparente por não ter conteúdo, esgotando-se em fórmula sem significado próprio: nestes casos continuaria a faltar completamente a fundamentação.

Atendendo aos termos da decisão proferida, entende-se que existe a sancionada falta integral de fundamentação. Com efeito, avaliando analiticamente a decisão proferida, ela pode decompor-se em 3 secções:

- a primeira, correspondendo à menção «Mostrando-se prestados pelo sr. perito os esclarecimentos solicitados e concluída a avaliação», não constitui mais que uma introdução, uma espécie de relatório onde se evidenciam actos processuais prévios, sem qualquer valor argumentativo ou racionalizador da decisão. 

- a segunda, contendo a menção «notifique o cabeça para no prazo de 10 dias juntar relação de bens …» constitui uma determinação judicial, uma ordem de junção de peça processual. Pode valer como decisão, não como fundamentação.

- a terceira, analisada na menção «… em conformidade com os valores decorrentes da avaliação», articula-se com a anterior secção, levando expressa uma outra determinação (que a relação de bens deve reflectir os valores da avaliação) que, por sua vez, contém em si uma decisão: aquela que fixa o valor dos bens nos termos da avaliação[1]. Só, com efeito, esta decisão justifica aquela determinação: sendo controvertido o valor dos bens, a ordem para atender a certo valor pressupõe a superação da controvérsia, justamente através de decisão que fixa o valor em causa. A determinação encerra em si também a decisão. Aliás, a questão foi, como podia ser[2], suscitada em sede de reclamação contra a relação de bens (reclamação nesta parte dirigida aos valores atribuídos) e, nessa sequência, tal questão postula uma decisão que ponha termo ao procedimento processual típico (embora eventual) desencadeado, constituindo aliás uma decisão de saneamento do processo (art. 1110º n.º1 al. a) do CPC)[3]. E decisão sujeita, pois, ao regime dos art. 154º n.º1 e 615º n.º1 al. b) do CPC, ao menos por força do art. 613º n.º3 do CPC (podendo até discutir-se se a estruturação do procedimento de reclamação não justificaria, ao abrigo do art. 152º n.º2 do CPC, qualificar a decisão devida como sentença).

De todo o modo, nenhum elenco de razões consta também desta terceira secção da decisão, para além da geral remissão para o valor da avaliação. Remissão que não pode valer como fundamentação pois, como se sabe, a perícia está sujeita à livre apreciação do tribunal, por força do art. 389º do CC, o que postula necessariamente uma sua avaliação judicial, ainda que condicionada pela específica natureza deste meio probatório (a liberdade de apreciação não envolve a substituição do perito pelo tribunal na respostas a dar, mas apenas a livre valoração das respostas dadas à luz dos fundamentos da perícia). E a mera remissão não contempla qualquer avaliação crítica do meio de prova que pudesse valer como juízo justificador e sustentador da decisão (especialmente em situação em que existem, embora com especificidades, duas avaliações diferenciadas).

No despacho em que avalia a nulidade, o tribunal recorrido afirma que perante os últimos esclarecimentos e «face à ausência de qualquer requerimento», «entendeu o tribunal (…), que se encontravam sanadas todas as divergências quanto ao valor da benfeitoria», «nada mais havendo a apreciar». Parece assim estribar-se quer no valor da perícia quer num suposto convencimento (acordo) das partes por aquela perícia (após esclarecimentos). Tal asserção não é correcta (inexiste acordo ou convencimento expresso – aliás, as sucessivas reclamações são disso demonstração; e a perícia constitui meio de prova, a avaliar, e não meio de fixação imediato de um resultado a acolher acriticamente) e, também por isso, não explica ou concorre para excluir a deficiência apontada.

Assim, existe uma decisão que, além do mais e como se verifica, não vem estribada em qualquer fundamentação, ocorrendo por isso a nulidade invocada.

            Sem que, porém, esta importe, como o recorrente primacialmente pretende, que se devolva ao tribunal recorrido a prolação de nova decisão devidamente fundamentada pois, nesta matéria, vigora um regime de substituição que impõe que, ainda que seja declarada nula a decisão recorrida, se deve conhecer o objecto da apelação (art. 665º n.º1 do CPC). Assim, como a apelação interposta se dirige também ao mérito da questão, e por isso o seu objecto excede aquela nulidade, cabe, de acordo com esta regra processual, proceder à avaliação do mérito do recurso no que excede aquela nulidade (por isso se diz, aliás, que o conhecimento da nulidade, nestes casos, nem será em rigor necessária, por irrelevante, pois será sempre superada pela avaliação do mérito da impugnação, superando esta avaliação aquela nulidade).

Quanto aos termos desta substituição, o que o direito positivo postula é que o tribunal supra a nulidade da decisão recorrida e passe a apreciar se ela deve ser revogada ou confirmada (na expressão de T. Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex 1997, pág. 472), devendo assim primeiramente declarar a nulidade e prosseguir com a correcção do vício (na formulação de A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 389)[4].

Isto sempre sem embargo de esta substituição se inserir ainda no sistema de reponderação, próprio do sistema legal de recursos, pelo que se julga a decisão recorrida nos limites do objecto respectivo e segundo a sua impugnação (as razões do recurso).

Continuando assim a valer, nesta substituição, as ideias de que «o efeito substitutivo não pode ser deixado à oficiosidade do tribunal de recurso (…)», e, em sequência, de que «cabe ao recorrente individualizar o teor dos efeitos que por meio da decisão pretende que sejam proferidos», com o desvio/excepção do regime do art. 665º n.º2 do CPC (que não está aqui em causa)[5] e levando em conta que a invocação da nulidade já leva ínsita, por imperativo lógico-legal (e ao menos nos casos em que a nulidade não constitui o único fundamento da impugnação), uma pretensão de suprimento do vício.

4. Assim, devendo começar-se por suprir o vício (falta de fundamentação), tal postula a aferição dos fundamentos da fixação do valor da benfeitoria[6] – o que acarreta a verificação da existência, ou não, de razões para, por isso, manter a decisão em causa. E, simultânea ou subsequentemente, realizar tal aferição também à luz das razões adicionais invocadas pelo recorrente.

5. Os elementos relevantes para a fixação do valor discutido analisam-se nas perícias realizadas.

            Entende-se que as perícias realizadas em processo de inventário se sujeitam ao regime geral do CPC quanto a tal meio de prova no que não seja contrariado por regra especial[7], dado o disposto no art. 549º n.º1, 1ª parte, do CPC. Daqui se segue que, por força do art. 489º do CPC, ambas as perícias realizadas têm idêntico valor legal, sujeitando-se em moldes idênticos à livre valoração do tribunal (nos termos do citado art. 389º do CC), sendo este que entre elas deverá fixar diferenciações.

No caso, verifica-se que a primeira perícia apresenta um deficit imediato, radicado no facto de o perito não ter respondido cabalmente aos esclarecimentos solicitados, especialmente pelo cabeça-de-casal. Ela é, neste sentido, incompleta, o que seria bastante para afectar o seu valor probatório. De outra banda, ela foi realizada por pessoa que, denotando embora ter conhecimentos relevantes, não aparenta ter formação profissional específica na área da construção, dada a sua qualidade profissional (atenta a qualidade que na própria perícia invoca – «Lic. Solicitadoria»), sendo que se trata também aqui de questão que não chegou a ser esclarecida. Por fim, verifica-se um maior rigor e pormenorização na segunda perícia, que lhe empresta um valor persuasivo acrescido (quer na demonstração tentada, quer na compreensão da situação, quer na abordagem de questões não consideradas na primeira perícia).

Assim, a segunda avaliação realizada será a que maior confiança justifica, justificando-se a sua prevalência sobre a primeira.

Quanto aos termos desta segunda perícia, ela mostra-se racionalmente fundada, no sentido de que, fazendo apelo a conhecimentos técnicos do perito, expõe de forma lógica e coerente as razões que a sustentam, explicitando a metodologia utlizada, tendo o perito contemplado várias situações condicionantes do valor do objecto da avaliação e dado cabal resposta a todas as questões suscitadas pelas partes (sobretudo pelo cabeça-de-casal). Pelo que, antes de considerar especificamente os fundamentos do recurso invocados pelo cabeça-de-casal, se verifica que, apesar da referida nulidade, a decisão impugnada chega a um resultado fundado, não existindo neste aspecto e neste momento razão para dela divergir – sem prejuízo de acertamento a seguir discutido, porque relacionado com as questões suscitadas pelo cabeça-de-casal.

6. Resta, assim, apreciar as razões trazidas ao recurso pelo cabeça-de-casal.

7. Este sustenta que, não estando a construção legalizada, nem se revelando ser legalizável, o valor da benfeitoria seria igual a zero.

Cabe começar por diferenciar a situação em apreciação daquela outra que foi avaliada no Acórdão invocado pelo recorrente: aqui não está em causa uma intromissão indevida em prédio alheio mas uma construção levada a efeito por comum acordo pelos cônjuges, em terreno pertencente a um deles. Tal altera as coordenadas jurídicas da questão (porquanto a situa, atenta a qualificação que as partes não discutem, no plano das compensações devidas por um dos cônjuges ao património comum) e sobretudo as coordenadas valorativas (depois de beneficiar de rendimentos comuns, colhidos numa situação de cooperação e confiança derivada do casamento, transformando com eles um terreno numa habitação, e habitação que pertence ao recorrente[8], pretender que não ocorre incremento patrimonial, com manifesto benefício próprio, parece no mínimo desajustado ao sentido da valoração inerente[9]), sustentando a plena aplicabilidade do regime do art. 1689º n.º1 do CC.

Acresce que a objecção assenta em coordenadas não determinantes. Assim, a falta de licenciamento não transforma um bem, na situação vertente, num nada económico, numa coisa sem valor. Mesmo em termos comuns, pretender essa redução patrimonial a zero choca com a mera constatação de que foi edificada uma habitação, que tem valor económico, ainda que não possa ser alienada ou que esteja sujeita a reacções administrativas. E mesmo estas objecções jurídicas têm relevo mais limitado do que o sustentado. De um lado, a falta de licenciamento deixou de constituir obstáculo à alienação do prédio, dado o DL 281/99, de 26.07 (cujo art. 1º colocava a «autorização de utilização» como condicionante dos negócios de transmissão) ter sido revogado pelo art. 24º al. b) do DL 10/2024, de 08.01. Esta revogação do DL 281/99 entrou em vigor em 04.04.2024 (corpo do art. 26º do DL 10/20204), mas a eliminação da exigência de apresentação da «autorização de utilização» entrou em vigor no dia 01.01.2024, dado o disposto na al. f) daquele art. 26º[10]. Ora, qualquer que seja a data a considerar para a avaliação, e mesmo atendendo a que a avaliação e a discussão se localizam em momento anterior ao surgimento deste regime, a verdade é que não se mostra justificado usar argumento legal que já não subsiste. Assim, passou a obtenção de licença a constituir apenas um encargo para o adquirente, que fica onerado com a legalização da situação, ou a conviver com a falta de legalização. De outro lado, a objecção relativa à inviabilidade do licenciamento vem assente num dado jurídico (certa dimensão do acesso, atento o art. 21º do DL 64/90, de 21.02) que já não está em vigor, tendo aquele DL 64/90 sido revogado pelo art. 36º al. d) do DL 220/2008, de 12.11 (regime este aplicável aos novos licenciamentos, como também deriva da norma transitória do art. 34º deste diploma, que apenas ressalva os licenciamentos à data já pendentes de avaliação), o qual, em si, não contém exigência semelhante. Por fim, e atendendo à argumentação do recorrente, também se nota que não constitui incumbência da requerente demonstrar a possibilidade de legalização: do que se trata é de avaliar um meio de prova (perícia), avaliação onde intervém ou pode intervir o argumento usado pelo recorrente, sendo que, e em rigor, se o recorrente pretende afectar o meio de prova, até lhe caberia a ele revelar os factos que sustentariam a sua pretensão probatória tendente à inutilização do resultado pericial (mormente revelando a absoluta inviabilidade da legalização). Sendo que não está demonstrado que a legalização seja inviável – mesmo à luz do regime invocada (e já revogado), apenas se tendia a revelar que ela não dependia apenas do proprietário mas também de terceiros. Mesmo a referência à proibição de fracionamento[11] não é determinante, dado o disposto no art. 1377º al. a), 2ª parte, do CC, que abrange a parcela resultante do fraccionamento.

Monta ainda, de forma muito relevante, o facto de o próprio recorrente ter, na relação de bens, atribuído valor à benfeitoria, posição que agora parece pretender negar. No mínimo, aquela posição significa o seu reconhecimento de que a benfeitoria tem um valor económico autónomo. Sendo que tal circunstância, em articulação com o facto de a solução que agora propõe redundar, de forma directa, num enriquecimento pessoal à custa do património comum (e assim também à custa da requerente), tende a revelar que esta argumentação se mostra eivada de alguma incoerência, se não mesmo contraditoriedade entre posições próprias que fica próxima de uma ideia de censurabilidade.

8. Invoca também a (des)consideração da falta de legalização e dos custos de eventual legalização (conclusão 49). Tem razão quando afirma que a perícia não considerou estas circunstâncias. Elas foram, porém, atendidas em resposta do perito a reclamação apresentada pelo cabeça-de-casal (resposta datada de 28.05.2023), na qual se fixou em 3.500 euros o valor necessário para tratar da legalização. Assim, haverá que subtrair este valor ao valor fixado na perícia.

Na mesma linha, considera que também não foram atendidos os custos de aquisição de parcela de terreno para ampliar o acesso e permitir a legalização da construção. Sucede que a necessidade desta ampliação (e assim da aquisição) se baseava em regime legal revogado, como referido, inexistindo outros dados que revelem que tal aquisição é necessária. Donde não valer esta consideração.

9. Por fim, o recorrente considera que a segunda perícia excede o objecto da avaliação, que estaria limitado à casa de habitação descrita na relação de bens.

A objecção vem suscitada apenas no recurso, constituindo uma questão que nunca foi colocada no processo e, nessa medida, uma questão nova, a qual, não sendo de conhecimento oficioso, não poderia ser aqui incluída no objecto da reapreciação, nos termos já referidos.

Sem embargo, e em benefício de clarificação adicional, nota-se que a objecção, atendendo aos seus termos, poderia ser encarada numa perspectiva procedimental ou numa perspectiva material.

Na primeira, constituiria um vício de procedimento, formal, de um acto processual (a perícia), vício que podia influir na decisão da questão em discussão, e assim numa nulidade processual que, não sendo de conhecimento oficioso, deveria ter sido suscitada perante o tribunal recorrido (art. 476º n.º2 e 487º n.º3, e 195º n.º1, 196º, 197º e 199º, todos do CPC), e não nesta sede.  

Na segunda perspectiva, poderia considerar-se que o vício estaria no resultado da avaliação, por incluir no valor alcançado algo que dele não faz parte – sendo que, em rigor, é este o sentido que o cabeça-de-casal lhe assinala, ao pretender limitar o valor apurado a parte do objecto avaliado. 

Mas mesmo neste sentido a posição do cabeça-de-casal não se mostra convincente nem fundada. A questão prende-se, em primeira linha, com a interpretação do que seja a «casa de habitação» descrita na relação de bens. Ponto onde se têm por determinantes três considerações. De um lado, o próprio cabeça-de-casal indica, na descrição da benfeitoria, um artigo matricial em cujo teor se faz menção à garagem (de acordo com documento que o cabeça-de-casal juntou aos autos), pelo que, além de pelo menos este «anexo» estar integrado na benfeitoria segundo o que descreve, tal tende a indiciar ligeireza na descrição e não uma intenção delimitadora. De outro, os anexos em causa são claramente acessórios da habitação e dela dependentes, constituindo elementos integrantes da habitação (situadas no mesmo prédio e acrescentando-lhe utilidades). Natural seria que a menção à casa de habitação fosse assim considerada como valendo para todos os elementos acessórios. Por fim mas de forma determinante, o cabeça-de-casal não alega que os anexos não foram construídos com meios comuns, situando-se fora do âmbito da benfeitoria relevante, pretendendo apenas beneficiar de um desvio meramente formal entre a descrição realizada e a avaliação efectuada. Aliás, não seria curial o recorrente pretender prevalecer-se da sua própria parcimónia descritiva para, não negando a natureza «comum» da benfeitoria, pretender exclui-la com base em razões formais, atinentes aos supostos limites da segunda perícia. Também não procede esta objecção.

Quanto à falta de integração dos anexos nos projectos, lateralmente invocada, não está demonstrada e assim não tem relevo.

10. A avaliação foi efectuada em termos actuais (por referência ao valor actual da benfeitoria). Os limites da indagação recursória, já definidos, colocam fora do âmbito de (re)apreciação esta questão, devendo apenas acolher-se a determinação (aliás, nunca discutida pelas partes, as quais, nesta fase, têm um poder determinante).

11. Assim, deverá fixar-se o valor da benfeitoria no que decorre da segunda avaliação, com dedução do valor atinente à legalização, aditado em esclarecimento posterior, fixando-se em 109.295 euros.

12. As custas devem correr por conta das partes na medida do decaimento, aferido em função dos valores em discussão (art. 527º n.º1 e 3 do CPC) – sem prejuízo do decidido em sede de apoio judiciário.

V. Pelo exposto:

- declara-se a nulidade da decisão recorrida, e

- suprindo o vício, e em substituição da decisão nula, fixa-se o valor da benfeitoria em 109.295 (cento e nove duzentos e noventa e cinco) euros.

Custa pelas partes na proporção do decaimento – e sem prejuízo do decidido em sede de apoio judiciário

Notifique-se.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).     

Datado e assinado electronicamente

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.



[1] E por isso se considera que não existe falta de decisão (omissão da própria decisão que constituiria nulidade processual comum, a invocar nos termos gerais).
[2] A contestação do valor atribuído aos bens constitui uma forma de impugnação, cabível na subfase da oposição por poder ser deduzida no âmbito da oposição/reclamação [art. 1104º do CPC (dentro da fase dos articulados)], embora possa ser ainda deduzida ulteriormente, por força do art. 1114º n.º1 do CPC (v. sobre isto, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Miguel Teixeira de Sousa e outros, Almedina 2021, pág. 9/10, 61, 85 ou 106).
[3] Isto terá estado ainda subjacente à actuação judicial adoptada no processo pois, respeitando o disposto no art. 1110º n.º1 do CPC, à decisão agora em avaliação seguiu-se despacho a ordenar a notificação dos interessados para proporem a forma da partilha, constituindo pois a decisão impugnada uma forma de decisão de saneamento que aquele art. 1110º n.º1 do CPC prevê.
[4] O limite a esta actuação encontra-se apenas nas situações em que o tribunal de recurso não dispõe de elementos bastantes para operar a substituição, o que não ocorre no caso.
[5] V. Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, AAFDL 2020, pág. 200.
[6] Esta qualificação não é discutida no recurso e por isso impõe-se nele como um «dado adquirido» (não cabendo, pois, avaliar aqui tal qualificação). 
[7] É neste âmbito que se discute a admissibilidade de segunda perícia, questão não suscitada no caso (também pelas especificidades – incompletude – da primeira perícia).
[8] O carácter próprio do prédio não foi discutido, sendo antes tido por assente pelos interessados.
[9] Como se a edificação fosse um buraco negro, que absorve sem rasto nem resto o investimento comum.
[10] O sentido literal da norma é claro, e racionalmente fundado (era materialmente injustificado manter exigência cuja morte - cuja falta de fundamento - já estava assinalada: tratar-se-ia de obstáculo formal injustificado). Não obstante, surgiram ainda na prática vozes discordantes.
[11] Julga-se que seria a esta situação que se reportaria o recorrente ao invocar a «proibição de desemparelhamento» (sendo que os elementos dos autos indicam que ao menos um dos prédios vizinhos da «serventia» seria rústico - v.g. link para o google maps que consta da primeira perícia).