Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
99/19.6PECBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: CORREIO ELECTRÓNICO
ENDEREÇO ELECTRÓNICO ERRADO
ERRO DE DECLARAÇÃO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 249.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – Compete ao expedidor do correio electrónico verificar os elementos gráficos do endereço do correio electrónico do destinatário para o qual pretende remeter correio, sendo público e notório que a mera introdução ou falta de um elemento gráfico inviabiliza a transmissão do correio até ao destinatário electrónico pretendido, impondo-se, por isso mesmo, ao expedidor que faça essa verificação com muita atenção.

II – A omissão ou o acrescentamento de uma letra, um ponto, um espaço, no âmbito das comunicações via Internet assume uma relevância extrema, atenta a identificação por simples caracteres, podendo conduzir a que a correspondência electrónica dirigida a determinado destinatário possa, simplesmente, não ser entregue.

III – Esta situação traduz-se, em termos do correio via postal, em enviar determinada correspondência para um local inexistente e não configura erro de declaração, constante de peça processual ou documento que a acompanhe.

Decisão Texto Integral:
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foi proferido o seguinte Despacho:

            “Dispõe o artigo 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal que o requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporaneidade, incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

A inadmissibilidade legal da instrução assume-se como um fundamento mais lato, dentro do qual se podem incluir diversas situações, nomeadamente questões atinentes ao objeto da instrução ou “às partes” (cfr. ANTÓNIO GAMA, et all., Comentário Judiciário do Código de Processo Penal – tomo III, Almedina, 2021, págs. 1207 e 1208).

O artigo 48.º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal) estatui, para o que releva, que findo o prazo concedido pelo juiz sem ter sido suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado, fica tudo sem efeito.

Contudo, não é menos verdade que o artigo supra identificado tem o seu campo de aplicação nos casos em que foi o mandatário a praticar o ato em si mesmo, sem a junção dos correspondentes poderes para o ato, pelo que, em bom rigor, no caso em exegese, tendo sido o próprio arguido a requerer a abertura de instrução, não poderia, em termos literais, o advogado ratificar o processado.

Neste particular, não é despiciendo afirmar que deve fazer-se uma interpretação abonatória do arguido e não o impedir de exercer um direito, se o defensor, em si mesmo, estiver na disponibilidade de ratificar o requerimento apresentado pelo seu constituinte, concedendo-lhe uma oportunidade.

Por outro lado, também não consta do elenco do artigo 64.º do Código de Processo Penal, a obrigatoriedade de assistência de defensor para requerimento de abertura da instrução.

No caso concreto, o arguido apresentou requerimento para abertura de instrução desacompanhado de defensor apesar de este estar nomeado. Arguido e defensor foram notificados mas não juntaram a ratificação do processado, pelo que rejeito o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal da instrução.

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Pelo exposto, decide-se rejeitar o requerimento para abertura da instrução apresentado.

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Notifique.”

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            2. Na sequência, o Ilustre Defensor do arguido veio …, apresentar o seguinte requerimento: 

            “…, advogado, …, defensor oficioso do arguido …, vem, após notificado do douto despacho, …, requerer e apelar:

1. Recebido o despacho no dia 17.03.2023, contactei pessoalmente, no dia de hoje, 20.03.2023, o Senhor Oficial de Justiça …, informando-me que o requerimento de ratificação do rocessado enviado a 06.03.2023, não foi recebido no destino.

            2. E aí constatei que, por lapso, do qual desde já me penitencio, no endereço de email, escrevi coimbra.. quando deveria ser coimbra. …

            4. Estava ciente que tinha enviado, tempestivamente, ou seja, três dias antes do prazo requerido. Isto porque, aquando do envio, surgiu a mensagem “enviado com sucesso” sem qualquer informação de retorno.

            …

            8. Como se compreenderá, este ato anómalo, ainda que não intencional, poderá ter consequências nefastas, de rdem disciplinar e indemnizatória, para o requerente.

            9. Apela à compreensão de V. Exa., como se expõe, relativamente ao sucedido, por erro humano, …

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            3. De seguida, em 30/3/2023, foi proferido o seguinte Despacho:

            “Notificado que foi do despacho de 15/03/2023 (90808158) que rejeitou o requerimento para abertura de instrução, veio o ilustre defensor do arguido … requerer que seja revogado o referido despacho, …

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Cumpre apreciar e decidir.

O artigo 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal) que é admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada. O n.º 2, do mesmo preceito legal consagra que“deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de vícios ou omissões puramente formais, quando a falta não deva imputar-se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da causa”.

Ora, do cotejo das normas suprarreferidas, temos que é admissível a correção de lapso de escrita ou de cálculo, uma vez que o objetivo é impedir que aspetos meramente formais ou técnicos possam impedir ou condicionar a apreciação do mérito da causa e a justa composição do litígio.

Tratam-se, pois, de aspetos que se revelam do contexto da peça processual, pelo seu próprio teor, pelo teor das peças ou documentos com que tenha conexão. Ademais, não podem contender com a substância do ato praticado.

A este respeito (e ao que supra se referiu), não se autorizarão “suprimentos ou correções suscetíveis de bulir com decisões entretanto proferidas e que tenham tido por referência o ato praticado” (cfr. GPS, Código de Processo Civil Anotado – Volume I, Almedina, 2023).

Compulsados os autos, constata-se que o alegado lapso que o ilustre defensor invoca já foi objeto de uma decisão, na sequência do ato (não) praticado – o que não se configura apto a incluir tal conduta no conceito de “lapso”.

Por outro lado, não é despiciendo afirmar que colocando o e-mail do modo que o ilustre defensor o fez (coimbra..instruçãocriminal@tribunais.org.pt), o sistema imediatamente indica, antes do envio, que o endereço de e-mail não se apresenta válido.

….”

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4. Inconformado com tais Despachos, deles recorreu o arguido, em 8/5/2023, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

            1. Por aplicação do disposto no artigo 40.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 4.º, do CPP, o defensor do arguido e o arguido foram notificados para, no prazo de dez dias, juntarem aos autos requerimento com ratificação do processado subscrito pelo defensor, sob pena de rejeição da instrução, por inadmissibilidade desta.

            2. Em 06.03.2023, o defensor enviou para o Tribunal, tempestivamente, via email eletrónico da O.A., o requerimento com ratificação do processado.

            3. O mail seguiu com a mensagem de envio com sucesso sem qualquer devolução do servidor.

            4. … o recorrente e seu defensor conhecem a decisão sa Denhora Juiz em rejeitar o requerimento para abertura de instrução apresentado.

            …

            6. …, dia 20.03.2023, o defensor dirigiu-se à Secretaria … acompanhado do comprovativo de email eletrónico, do requerimento enviado a 06.03.2023.

            7. Aí constatou, no endereço do destinatário, do acréscimo de um ponto (.);

            Em vez de escrever (coimbra.instruçãocriminal@tribunais.org.pt) colocou (coimbra..instruçãocriminal@tribunais.org.pt).

            8. O servidor da AO assumiu os dois pontos (..) sem notificar o utilizador do erro.

            9. No mesmo dia 20.03, para produção de prova, o defensor reencaminhou, via eletrónica, o mail que tinha enviado no dia 06 de março.

            10. Apresentou requerimento, com cópia do comprovativo do endereço, para que a correção de lapso de escrita pudesse ser admitida e revogada a decisão proferida.

            11. A dim de sanar o erro/lapso ocorrido, juntou o enviado requerimento de ratificação do processado, e documentos de apoio jurídico requerido, o que igualmente fez seguir, posteriormente, via carta registada.

            12. …, o Tribunal decidiu manter a decisão proferida, …

            13. Fundamentando a decisão no disposto no artigo 146.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 4.º, do CPP.

            …

            17. …, a norma elencada – artigo 146.º, do CPC – é omissa quanto à admissibilidade de correção por lapso de escrita de endereço do destinatário.

            …

            20. Ao contrário do proferido no douto despacho, o e-mail do modo que o defensor o fez (coimbra..instruçãocriminal@tribunais.org.pt), o sistema não indicou, antes do envio, que o endereço de e-mail não se apresentava válido.

            21. O servidor não notificou o utilizador de qualquer erro, o que houve foi indicação de mensagem enviada com sucesso, o que é possível segundo parecer de técnico informático.

            22. Assim, não houve dolo ou culpa grave, houve um lapso de escrita que se comprovou pelo reencaminhamento do e-mail de 06.03.2023, do ato que praticou e das diligências levadas a esse efeito.

            23. A celeridade da correção/suprimento foi de modo a não causar prejuízo relevante para o regular andamento da causa.

            …

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5. O recurso, em 18/5/2023, foi admitido, conforme consta de fls. 456 e 457.

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6. O Ministério Público, em 20/6/2023, respondeu ao recurso, …

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7. O Digníssimo Procurador – Geral Adjunto emitiu, em 13/7/2023, douto parecer …

                                                          


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            II. Cumpre apreciar e decidir:

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            A questão a apreciar é a seguinte:

- Saber se os despschos recorridos devem ser revogados e, consequentemente, ser aceite a instrução requerida pelo arguido.

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            Compete ao expedidor do correio electrónico verificar os elementos gráficos do endereço do correio electrónico do destinatário para o qual pretende remeter correio, sendo certo que, como é público e notório, a mera introdução ou falta de um elemento gráfico inviabiliza a transmissão do correio até ao destinatário electrónico pretendido, impondo-se, por isso mesmo, ao expedidor que faça essa verificação com muita atenção.

            No caso em apreço, é inegável que o Tribunal não recebeu, atempadamente, o requerimento de ratificação do processado, enviado por via eletrónica, porque existiu um erro/lapso no endereço do destinatário

Se é certo que o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contesto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, confere o direito à sua rectificação, conforme dispõe o artigo 249.º, do Código Civil, não é menos verdade que, no caso presente, não estamos perante qualquer declaração constante de peça processual ou documento que a acompanhe, mas antes perante uma situação de endereço de destinatário diverso do pretendido por alegado erro no respetivo endereço, em termos equivalentes ao que se passa com a remessa de uma carta registada para um outro endereço errado.

A situação em apreço, apesar da omissão dizer respeito apenas a um ponto no âmbito do distintivo do correio electrónico, configura-se, em termos do correio via postal, numa situação em que, em vez de se enviar determinada correspondência para um tribunal se endereça a mesma, por lapso, para um local inexistente.

A omissão ou o acrescentamento de uma letra, um ponto, ou mesmo um espaço, no âmbito das comunicações via Internet, assume uma relevância extrema (atenta a identificação por simples caracteres) podendo conduzir a que a correspondência electrónica dirigida a determinado destinatário possa, simplesmente, não ser entregue.

Tal significa, salvo o devido respeito, que o lapso não consiste num erro de declaração, mas sim, numa imprevidência, falta de cuidado e de diligência na tarefa de expedição de correio electrónico, numa efetiva remessa de correspondência para destinatário e local diverso do pretendido.

O lapso em apreço acontece com frequência, e, por isso, se o interessado não se acautelou contra ele, sendo imprevidente, sibi imputet.      

            Soçobra, portanto, a pretensão do recorrente.

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            III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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(Texto processado em computador e integralmente revisto – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

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                                     Coimbra, 13 de dezembro

 de 2023
         José Eduardo Martins                                            

                                                                Jorge Jacob

                                                         Maria Alexandra Guiné