Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | CRISTINA BRANCO | ||
Descritores: | ARRESTO PREVENTIVO SUBSTITUIÇÃO POR CAUÇÃO | ||
Data do Acordão: | 01/24/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J3) | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 227º E 228º, N.ºS 1 E 5, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 376º, N.º 1, E 368º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. | ||
Sumário: | A circunstância de o art. 228.º, n.º 5, do CPP se referir apenas à revogação do arresto logo que seja prestada a caução económica imposta não permite arredar a possibilidade de aplicação, por força da primeira parte do mesmo preceito, das normas previstas no CPC para a providência cautelar de arresto, quando o mesmo foi decretado sem precedência de qualquer determinação de prestação de caução. | ||
Decisão Texto Integral: | Relatora: Cristina Branco 1.ª Adjunto: Paulo Guerra 2.ª Adjunta: Ana Carolina Cardoso Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório 1. No âmbito do Procedimento Cautelar que com o n.º 1391/20.2T9CBR-C corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., a requerida, AA, identificada nos autos, não se conformando com o despacho proferido em 01-06-2023, que indeferiu a por si requerida prestação voluntária de caução económica, veio dele interpor o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): 2. O recurso foi admitido, por despacho de 27-06-2023 (cf. Ref. Citius 91674310). 3. Na sua resposta, o Ministério Público junto do Tribunal pugnou pela improcedência do recurso, concluindo (transcrição): *** Assim, em face do exposto, Vossas Excelências farão a necessária e costumada Justiça, julgando o presente recurso manifestamente improcedente e mantendo, na íntegra, o douto despacho a quo.»
4. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11062121), no qual se pronuncia pela procedência do recurso. 5. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta. 6. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. * II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. In casu, de acordo com essas conclusões, a única questão que nos autos se coloca é a de saber se, contrariamente ao que decidiu o despacho recorrido, deveria ter sido deferido o requerimento apresentado pela ora recorrente no sentido prestar voluntariamente caução económica, em substituição do arresto preventivo dos seus bens que foi decretado nos autos, a requerimento do lesado. * 2. Da decisão recorrida É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição): * 3. Da análise dos fundamentos do recurso Conforme acima referimos, a única questão que nos autos se coloca é a de saber se, contrariamente ao que decidiu o despacho recorrido, deveria ter sido deferido o requerimento apresentado pela ora recorrente no sentido prestar voluntariamente caução económica, em substituição do arresto preventivo dos seus bens que foi decretado nos autos, a requerimento do lesado. Nesse despacho considerou-se que a possibilidade de o arresto ser substituído por caução económica, prevista no n.º 5 do art. 228.º do CPP, é restrita aos casos em que essa caução tivesse sido efectivamente imposta (a requerimento do MP ou do lesado), nos termos do art. 227.º do mesmo diploma, e não prestada, não podendo ser a sua prestação requerida pelo responsável pelas dívidas cujo pagamento se pretenderia garantir através de tais caução e arresto. Contrapõe a recorrente, em síntese, que, a requerimento do lesado, aqui recorrido, e para garantia do seu alegado crédito de 45 816,00€, foi decretado o arresto de todo o seu património; que, apresentada a queixa em 24-02-2020, ainda não foi deduzida acusação, sendo de prever que terá de aguardar, pelo menos, por mais dois ou três anos até que seja proferida uma decisão judicial definitiva, estando o referido arresto a causar-lhe prejuízos irreparáveis; e que, uma vez que o arresto preventivo «segue a lei do processo civil», nos termos do n.º 3 do art. 368.º, ex vi art. 376.º, n.º 1, ambos do CPC, poderá prestar uma caução em substituição do arresto. Acrescenta que, prestando uma caução em dinheiro, no montante de 48 500,00€ ou naquele que o Tribunal fixar (por considerar mais adequado e suficiente para garantir o pagamento do alegado crédito), ficará disponível um montante superior àquele que estará em dívida e, estando disponível em dinheiro, será a operação de pagamento ao requerente mais célere e menos dispendiosa. Cumpre decidir.
O art. 228.º do CPP (Arresto Preventivo) estatui, na parte que ora importa: 1 - A requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial. (…) 5 - O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta. (…)»
Caberá antes de mais, sublinhar que o arresto preventivo decretado ao abrigo do estabelecido no art. 228.º, n.º 1, do CPP, é «um meio de garantia patrimonial inserido num processo penal – e não um arresto ‘civil’ no quadro de um processo civil com fins distintos», como se pode ler no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 724/2014[1], e é ampliativo relativamente ao consagrado no âmbito do processo civil[2]. Perante as diferenças conceptuais existentes entre o arresto preventivo do art. 228.º do CPP e o arresto previsto no art. 391.º do CPC, deverá entender-se que a referência no n.º 1 do art. 228.º ao decretamento do arresto «nos termos da lei do processo civil» se reporta aos casos em que não exista regulação específica no processo penal, e que tal aplicação das normas processuais civis tem de ser levada a cabo em conformidade com os pressupostos e exigências do processo penal, que sempre deverão sobrelevar. Ou seja, no que respeita ao arresto preventivo rege, naturalmente, o critério para a integração de lacunas previsto no art. 4.º do CPP, segundo o qual, nos casos omissos, «quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.» Como explicam Manuel da Costa Andrade e Maria João Antunes[3], «as normas do processo civil terão de operar circunscritas ao âmbito de complexidade de antemão reduzido pelo direito processual penal, constitucional e ordinário. As normas da lei processual civil terão, noutros termos, de ser aplicadas sem pôr em causa nem contrariar as imposições do direito processual penal. Direito a que cabe: definir o lugar do arresto preventivo na topografia dos meios coercivos, em geral, e das medidas de garantia patrimonial, em particular; precisar a sua intencionalidade e programa político-criminal e desenhar o travejamento basilar do respectivo regime jurídico-normativo. (…) Brevitatis causa, o arresto preventivo é uma medida de garantia patrimonial de natureza processual penal, aplicada de acordo com o disposto no CPP, sendo subsidiariamente aplicável a lei do processo civil em tudo o que este Código não preveja e se harmonize com os princípios gerais do processo penal».
Ora, salvo o devido respeito, a circunstância de o art. 228.º, n.º 5, do CPP se referir apenas à revogação do arresto logo que seja prestada a caução económica imposta, em consonância com a especialidade prevista na segunda parte do seu n.º 1 (relativa ao decretamento do arresto após a não satisfação de caução económica decretada), não permite, em nosso entender, arredar a possibilidade de aplicação, por força da primeira parte do mesmo preceito, das normas previstas no CPC para a providência cautelar de arresto, quando o mesmo foi decretado sem precedência de qualquer determinação de prestação de caução.[4] Entre essas normas encontra-se o art. 368.º, n.º 3, do CPC (segundo o qual «A providência decretada pode ser substituída por caução adequada, a pedido do requerido, sempre que a caução oferecida, ouvido o requerente, se mostre suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente»), inserido no capítulo relativo aos procedimentos cautelares não especificados mas aplicável ao arresto e demais procedimentos nominados por remissão do art. 376.º do mesmo diploma. Não se vê que a aplicação de tal preceito contrarie os princípios gerais do processo penal, sendo certo que está em causa um arresto preventivo decretado a requerimento do lesado, para garantia de um direito de crédito deste (não tendo, por isso, em vista finalidades próprias do processo penal) e que, como observa o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, a requerida se propõe prestar a “caução adequada” prevista no art. 368.º, n.º 3, do CPC «em numerário, de modo a garantir plenamente as quantias por cujo pagamento poderá vir a ser responsável, em moldes que se afiguraria de todo iníquo rejeitar, à luz dos princípios gerais do direito civil, em matéria de garantia patrimonial das obrigações.» Procede, pois, o recurso, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que proceda à apreciação da adequação da caução a prestar pela aqui recorrente, nos termos do preceituado no art. 368.º, n.º 3, do CPC, tendo em vista a requerida revogação do arresto decretado. * III. Decisão Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em, concedendo provimento ao recurso interposto por AA, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que proceda à apreciação da adequação da caução a prestar pela aqui recorrente, nos termos do preceituado no art. 368.º, n.º 3, do CPC, tendo em vista a requerida revogação do arresto decretado. Sem tributação (art. 513.º, n.º 1, a contrario, do CPP). * * Coimbra, 24-01-2024 [1] In www.tribunalconstitucional.pt. [2] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 4.ª edição, pág. 651. [3] In Da natureza processual penal do arresto preventivo, RPCC, Ano 27, Janeiro-Abril 2017. [4] Neste sentido, também José Lebre de Freitas, in Modificabilidade da providência cautelar e/ou do objeto sobre que incide, O Direito 153.º (2021), II, págs. 383-395: «(…) o arresto preventivo do artigo 228 CPP é decretado nos termos da lei de processo civil, com duas especialidades (as dos n.ºs 2 e 3 não têm em consideração o regime do CPC desde 1.1.97): se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, é dispensada a prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial; o arresto é revogável a todo o tempo, se for prestada caução económica. Nada se diz sobre os efeitos do arresto, que são portanto os gerais (do CC e do CPC).» |