Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
161/20.2GCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REGRAS DE CONDUTA
AFASTAMENTO DA RESIDÊNCIA DA VÍTIMA
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 50.º, N.ºS 1 E 5, 51.º, 52.º E 152.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 25.º, N.º 1, E 34.º-B, N.º 1, DA LEI N.º 112/2009, DE 16 DE SETEMBRO/REGIME JURÍDICO APLICÁVEL À PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E À PROTECÇÃO E ASSISTÊNCIA DAS SUAS VÍTIMAS
Sumário: I – O afastamento do arguido da residência da vítima durante o período da suspensão da execução da pena de prisão visa proteger a vítima do perigo que representa a proximidade do arguido, cabendo ao tribunal aferir se o perigo existe, sendo irrelevante à aplicação da medida que ela possa provocar transtornos/inconvenientes de ordem pessoal ao arguido.
II – O facto de a casa de morada de família ser um bem comum e de, no processo de divórcio, o seu uso ter sido atribuído ao arguido e à assistente, por acordo entre ambos, não obsta a que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada pela prática do crime de violência doméstica seja subordinada ao afastamento do arguido da residência da vítima, se esta se revelar essencial à protecção desta e adequada e proporcional aos fins preventivos pretendidos.
Decisão Texto Integral: *

            I-  Relatório

            1.


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            2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, datada de 28.06.2023, depositada na mesma data, do dispositivo da qual ficou a constar o seguinte (transcrição):

            a) Condenar o arguido, …, pela prática, autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:

                - um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros); e de

                - um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. a) e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão;

                b) Suspender a execução da pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão ora aplicada ao arguido, por idêntico período, subordinada a ao cumprimento pelo arguido … das seguintes condições:

                - afastamento, durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, da residência da vítima …, sita …, fiscalizada através de meios de controlo à distância – a instalar e monitorizar pela Direcção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais;

                - frequência durante o período da suspensão da execução da pena de prisão, de programa específico de prevenção da violência doméstica – este mediante indicação da Direcção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais;

                c) (…)

                d) Condenar o arguido, , no pagamento à vítima … da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de reparação pelos prejuízos não patrimoniais àquela causados, nos termos do art.° 82.°-A do Cód. Proc. Penal e 21.º, n..ºs 1 e 2, do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, aprovado pela Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro - quantia que vencerá juros moratórios, à taxa legal em vigor, contados a partir do trânsito em julgado da presente decisão e até integral pagamento.”


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            3. Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso o arguido … extraindo da motivação as seguintes conclusões que se transcrevem:

            “…

                5) II – Da Impugnação da decisão relativa à matéria de facto: DOS CONCRETOS PONTOS DE FACTO QUE SE CONSIDERAM INCORRETAMENTE JULGADOS COMO NÃO PROVADOS: foram incorretamente julgados como provados os pontos de facto 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 29, 31 e 31 supratranscritos da Sentença recorrida;

            6) DAS CONCRETAS PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA:

               

            42) IV – Da subordinação da suspensão da execução da pena ao cumprimento da injusta regra de afastamento da residência da alegada vítima …

                43)Nunca os factos impugnados são suficientes para justificar a aplicação de uma tão gravosa regra de cumprimento, desde logo atentando-se à grave doença de que padece o Arguido, da qual lhe advém uma clara incapacidade física e restrições de movimentos. O Arguido padece de rara doença neurológica degenerativa progressiva (vide prova documental pericial dos autos);

                44) O Arguido não possui um qualquer outro lugar onde se abrigar a não ser a sua própria casa, que adquiriu com muito esforço e na Sentença condenatória nunca foi devidamente analisada a fraca capacidade económica do Arguido/Recorrente e o seu DIREITO a habitar na sua própria casa, …

                …

                49) O Arguido/Recorrente não foi tratado de forma igual a outros cidadãos perante a lei, acrescendo o facto de que a Sentença recorrida viola o disposto nos artigos 374.º, 375.º e 377.º do CPP;

                50) A Sentença sob recurso violou:

                a) O disposto nos artigos 40.º, 70.º, 71.º, 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal;

                b) O disposto nos artigos 359.º, n.os 1 e 2, 374.º, 375.º, 377.º e 410.º, todos do Código Processo Penal;

                c) O disposto nos artigos 13.º, 205.º, 207.º, 208.º da Constituição da República Portuguesa.

                ….”


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            4. Ao recurso interposto pelo arguido, responderam o Digno Magistrado do Ministério Público … e os assistentes ….

           


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            5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso

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            II-  Fundamentação

            A) Delimitação do objecto do recurso

            …são as seguintes as questões a decidir:

            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e suas consequências;

            - A inverificação dos elementos constitutivos – objectivos e subjectivos – do crime de violência doméstica imputado ao arguido;

            - A incorrecta ponderação da subordinação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido ao afastamento deste da residência da vítima durante o período da mesma; 

            - A nulidade da sentença por omissão de pronúncia e falta de fundamentação.


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            B) Da decisão recorrida

Para a apreciação das questões suscitadas nos presentes recursos, importa ter em conta o que deflui da decisão recorrida, a qual na parte relevante para o efeito se transcreve:

D) Enquadramento Jurídico-Penal


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             C) Apreciação do recurso  

            - Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e suas consequências

            …


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            - Da inverificação dos elementos constitutivos – objectivos e subjectivos – do crime de violência doméstica imputado ao arguido

           


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            - Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia e falta de fundamentação


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            - Da incorrecta ponderação da subordinação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido ao afastamento deste da residência da vítima durante o período da mesma

            Por fim, pretende, ainda, o recorrente a revogação da sentença recorrida na parte da mesma em que se decidiu a subordinação da suspensão da execução da pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão que lhe foi aplicada, ao afastamento, durante o período da suspensão, da residência da vítima … fiscalizada através de meios de controlo à distância – a instalar e monitorizar pela Direcção Geral de Reinserção.

            A argumentação que subjaz a tal pretensão recursória é a seguinte:

            “ Nunca os factos que constam da condenação – e que acima se impugnaram – são suficientes, assim, tão singelamente, justificar a aplicação de uma tão gravosa regra de cumprimento, a qual acima se transcreveu.

            Em primeiro lugar, relembre-se a grave doença de que padece o Arguido, da qual lhe advém uma clara incapacidade física e restrições de movimentos. Com efeito, o Arguido padece de rara doença neurológica degenerativa progressiva, segundo prova documental pericial produzida e constante dos autos.

            Cremos que ficou, ainda, claro nos autos de que o mesmo não possui um qualquer outro lugar onde se abrigar a não ser a sua própria casa, que adquiriu com muito esforço.

            …

            A regra agora aplicada ao Arguido, não só é desproporcional, como também vai contra um direito seu, constitucionalmente previsto, que é o direito à habitação.

            Salvo o devido respeito, que é muito, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo não avaliou os custos, a possibilidade real e efetiva de poder suportar uma estadia fora da sua habitação, e o impacto social que tem na vida do Arguido/Recorrente.

            O Arguido/Recorrente não tem rendimentos que permitam suportar as despesas da sua casa, e ainda tenha que arranjar outro local para dormir e fazer a sua vida, sendo a regra agora aplicada é injusta para a pessoa do Arguido/Recorrente.”

            …

Como sobressai do regime decorrente do aludido art.º 34.º-B (redacção introduzida através da Lei n.º 129/2015, de 3 de Setembro), levado em conta na sentença recorrida, a suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no art.º 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.” (sublinhados nossos).
               
Como se perfilha  no Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.04.2018, in www.dgsi.pt, “o regime regra nos casos de condenação de um agente pela prática do crime em causa, em pena de prisão suspensa na sua execução, será o da sua subordinação à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, mas sempre se incluindo regras de conduta de protecção da vítima, designadamente as elencadas e impostas ao arguido. O que redunda, em outras palavras, que a não imposição de um tal regime conducente a facultar a suspensão da execução da pena de prisão, há-de ser excepcional e devidamente fundamentado. Compreende-se facilmente o alcance do regime resultante do citado art.º 34.º-B: definir regras de protecção da parte mais débil nas relações tipificadas neste crime, acautelando, sobretudo, uma sua eficácia real. Entre elas, desde logo, o afastamento dos intervenientes.”

Os elementos carreados aos autos por forma alguma denotam circunstâncias susceptíveis de “revogar” aquele regime regra.

            Dispõe o artigo 52.º do Código Penal, sob a epígrafe “Regras de Conduta”:

            “1 - …

            2 - …”

            Por remissão directa do n.º4 do artigo 52º, para o n.º2 do artigo 51º, as regas de conduta não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.

            Como resulta da lição do Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 348 a 351, as regras de conduta assumem maior importância do que os deveres em sentido estrito, na medida em que aquelas, ao contrário destes, se ligam mesmo ao cerne socializador da pena de suspensão de execução de prisão.

            A imposição tanto de uns como de outras constitui sempre um poder-dever; só que no primeiro caso, condicionado pelas exigências de reparação do mal do crime, no segundo vinculado à necessidade de afastar o delinquente da prática de futuros crimes.

            Quanto à exigibilidade de que, em concreto, devem revestir-se os deveres e regras de conduta, o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados.

            Considera o arguido que, em virtude de ser uma pessoa doente e com fraca capacidade económica, deveria ser-lhe reconhecido o direito de residir na sua própria casa.

            O afastamento do arguido da residência da vítima durante o período da suspensão da execução da pena de prisão (medida fiscalizada através de meios de controlo à distância) é uma medida que visa essencialmente proteger a vítima do perigo que representa a proximidade do arguido motivo pelo qual o tribunal deve aferir se existe, ou não, esse perigo sendo irrelevante que essa medida de protecção possa provocar transtornos/inconvenientes de ordem pessoal ao arguido.

            O tribunal aferiu esse perigo ao considerar que o comportamento do arguido que está subjacente ao crime pelo qual foi condenado e à circunstância de, estando já divorciados, o arguido e a assistente … continuarem a viver na mesma casa.

            Seguramente que o afastamento do arguido e ora recorrente da residência da assistente …, contende com o direito do mesmo habitar na casa onde aquela tem fixada a sua residência e que é, precisamente, também a da residência do arguido.

            Com efeito, tal como decorre da acta da audiência final que se integra na certidão judicial que enforma o Anexo A junto a estes autos - a que se faz alusão na motivação da decisão da matéria de facto exarada na sentença recorrida – no âmbito do Processo de Divórcio o uso da casa de morada de família, foi, por acordo dos ora arguido e assistente …, atribuído a ambos até à partilha ou à venda, tratando-se a mesma de um bem comum do dissolvido casal.

            Ocorre que, apesar de já divorciados entre si, desde 18.10.2020, ambos continuaram a residir na referida casa, no interior da qual ocorreram, entre a referida data do divórcio e a data de 27.06.2021 alguns dos factos integradores do crime de violência doméstica em causa nos presentes autos, circunstância esta que inculca a existência do perigo que  tribunal recorrido considerou verificado e por força do qual  se decidiu pela medida de protecção da vítima como condição da suspensão da execução da pena de prisão  que aplicou ao arguido.

            É certo que o cumprimento dessa condição importa para o arguido a impossibilidade de utilização da casa onde o mesmo tem fixada a sua residência, por ser nela onde, igualmente, a assistente ….

            Todavia, como bem defende o Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância na resposta ao rescurso, “mal se perceberia que atendendo aos factos provados o tribunal considerasse que arguido e vítima podiam perfeitamente conviver no mesmo espaço sem que existisse um intolerável risco de reiteração da actividade criminosa (sendo que a condenação apenas exacerbaria ainda mais a hostilidade do recorrente para com a vítima)”.

            E, acrescentaremos nós, menos ainda se compreenderia que, tendo sido o arguido quem atentou contra o bem estar físico e psíquico da assistente e ora recorrida, vítima nos autos, para protecção desse risco criado pela actuação daquele -  que, efectivamente se perspectiva - tivesse de ser a assistente a abdicar do direito à utilização dessa residência, quando é certo que o direito a essa utilização é tão seu quanto do arguido!

             Não havendo dúvidas, como não há, de que a regra de conduta em causa nos autos está relacionada, em termos globais, com os fins preventivos almejados no caso concreto, designadamente com as exigências de proteção da vítima, apesar da sua extensão e implicação no direito de o arguido e ora recorrente habitar na sua casa ( comum ao mesmo e à assistente ), a mesma revela-se proporcional aos fins visados.

            Adiantando-se, por fim, que o afastamento do recorrente da residência da vítima, enquanto condição a que ficou subordinada a suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, acarretando, embora, para o recorrente o transtorno de  não poder continuar a residir da casa onde vem residindo com a assistente …, tal transtorno é, indiscutivelmente, menor transtorno do que o cumprimento efectivo da pena de prisão que lhe foi aplicada.

            E, para além disso, esse transtorno – o de não poder residir na referida casa – sempre o arguido e ora recorrente poderia ter de o equacionar, independentemente da imposição da regra de conduta decidida na sentença recorrida e por ele agora posta em causa, visto que tratando-se a mesma de um bem comum do dissolvido casal só em sede de partilha poderá ficar definida a respectiva atribuição – ao arguido ou à assistente – ou, se assim não for, havendo lugar à respectiva venda, a nenhum deles, desfecho esse que, uma vez alcançado, por qualquer uma das referias vias,  conduzirá a que ambos, ou pelo menos, um deles deixe ter direito a habitar na referida casa. 

           Assim, improcede também, quanto a este segmento, o recurso do arguido.


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Por tudo o exposto, julga-se totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido. 

            *

            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

            1. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido …, e, consequentemente, confirmar integralmente a sentença recorrida.

            2. Condenar o recorrente nas custas relativas ao recurso, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


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                                                         Coimbra, 8 de novembro de 2023


            ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )


(Maria José Guerra  – relatora)

(Helena Lamas – 1ª adjunta)

(Fátima Sanches Calvo – 2ª adjunta)