Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
114/22.6GCLMG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CAPITOLINA FERNANDES ROSA
Descritores: JUIZ DE INSTRUÇÃO
COMPETÊNCIA DO JUIZ DE COMARCA
ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA PELO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
ABSTENÇÃO DO ASSISTENTE EM ACUSAR
CONDENAÇÃO EM TAXA DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LAMEGO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 119º, N.º 1, E 130º, N.º 3, DA LEI N.º 62/2013, DE 26.8; 515.º, N.º 1, AL. D), E 519º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
I. Fora dos municípios onde estejam instalados juízos de instrução criminal, o Conselho Superior da Magistratura pode definir os atos jurisdicionais a praticar por cada um dos juízos locais e de competência genérica.
II. O assistente deve ser condenado no pagamento de taxa de justiça pela não dedução da acusação particular quando foram recolhidos indícios suficientes para deduzir acusação, pois que deu azo a atividade processual e investigatória que se revelou inútil.
Decisão Texto Integral:
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Processo nº 114/22.6GCLMG-A.C1


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Acordam, em conferência, na 4 Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


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I. Relatório

No processo de inquérito nº 114/22.6GCLMG, a correr termos junto da Procuradoria da República da Comarca de Viseu, foi proferido despacho pelo Digno Magistrado do Ministério Público que ordenou o arquivamento do inquérito por falta de legitimidade, na parte relativa ao crime de injúrias, porquanto o assistente, apesar de notificado para o efeito, não deduziu acusação particular; mais promoveu a condenação do assistente na taxa de justiça prevista no artigo 515º, nº1, alínea d) do Código de Processo Penal, por abstenção injustificada de acusar, ordenando a  remessa dos autos à Mma. Juiz de Instrução para a apreciação e decisão.

Em 22.06.2023, a Mma. Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu Juízo Local Criminal de Lamego proferiu o seguinte despacho:

“O assistente apresentou queixa, contra a arguida, de factos susceptíveis de integrar a prática, por esta, de um crime de injúria e de um crime de dano.

O Ministério Público determinou a notificação do assistente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, para, no prazo de 10 dias, deduzir acusação particular quanto ao crime denunciado com natureza particular, adiantando logo o seu parecer que os autos reuniam indícios suficientes da sua prática pela arguida.

Decorrido tal prazo, o assistente não deduziu acusação particular.

Nessa sequência, o Ministério Público arquivou o procedimento criminal, quanto ao crime de injúria, por falta de legitimidade, e, quanto ao crime de dano, por falta de indícios do seu autor.

Mais promoveu a condenação do assistente em taxa de justiça pela abstenção injustificada de acusar, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 515.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, por entender que, dos autos, resultam indícios suficientes da prática do crime de injúria denunciado.

O artigo 515.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal dispõe que “é devida taxa de justiça pelo assistente nos seguintes casos: d) se fizer terminar o processo por desistência ou abstenção injustificada de acusar”.

A doutrina tem entendido como abstenção justificada de exercer a acção penal a falta de indícios suficientes da existência de crime ou da sua autoria, a despenalização de determinada conduta ou a existência de amnistia ou prescrição.

No caso, segundo o parecer emitido pelo Ministério Público, existiam indícios suficientes da prática, pela arguida, do crime denunciado pelo assistente, sem que este tenha deduzido a competente acusação particular, nem nada dissesse que pudesse justificar tal abstenção.

Assim, não tendo o assistente deduzido acusação particular, como lhe competia, não apresentando ainda motivo justificado para não o fazer, é assim por si devida taxa de justiça pela abstenção injustificada de acusar.

Como tal e pelo exposto, e sem necessidade de outras considerações, decide-se:

a) julgar injustificada a abstenção de acusar por parte do assistente e, em consequência,

b) condenar o assistente no pagamento de taxa de justiça, que se fixa no mínimo legal, levando-se em consideração a taxa já paga pelo mesmo – artigos 515.º, n.º 1, alínea d) e 519.º, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais.

(…)”


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Inconformado, veio o assistente recorrer daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:

“1. Na fase de inquérito, as funções jurisdicionais competem ao juiz de instrução (art.17.º, do C.P.P.).

2. Compete designadamente ao juiz de instrução na fase de inquérito praticar, ordenar, autorizar e validar os atos que diretamente se prendam com os direitos e liberdades fundamentais das pessoas, e conhecer da aflição de tais direitos em resultado de invalidades processuais.

3. Quem proferiu o Douto Despacho de condenação do assistente em taxa de justiça, por considerar ter havido abstenção injustificada de acusar, foi a Meritíssima Juiz do Juízo Local Criminal pelo que o Despacho foi proferido por Tribunal incompetente em razão da matéria, devendo por isso, ser anulado.

4. Nos autos de inquérito que decorrem nestes autos foi proferida a fls.85 ato decisório do Ministério Público que determinava a notificação ao assistente para informar se aceita a aplicação da suspensão provisória do processo ou em caso negativo deduzir acusação particular relativamente ao crime de injúria que denunciou.

5. Durante todo o Inquérito, o assistente nunca foi notificado desse despacho ou confrontado para declarar se concordava com a eventual suspensão provisória do processo nos termos em que foi fixada, tendo (o cumprimento do despacho aludido, na parte citada) sido omitido.

6. Contrariamente ao que sucede no caso do arquivamento (do processo) em caso de dispensa de pena, na suspensão provisória, o cit. art. 281º, nº 1, al. a) exige a concordância do arguido e também a do assistente, quando estiver constituído.

7. A vítima, constituída assistente no processo, pode ter interesse na suspensão provisória do processo e dar o seu acordo à aplicação do instituto, seja porque não deseja a punição formal do culpado, mas a reparação dos seus danos, seja porque não está interessada em enfrentar as penosas etapas do sistema de justiça formal.

8. Não tendo sido cumprida o requisito da concordância do assistente, porque não foi notificado para esse efeito, deve ser declarada a nulidade do processado.

9. Razão por que deve ser anulado o Despacho referente ao dever do assistente de acusar e deve ser cumprido este pressuposto da suspensão provisória do processo.

10. O art. 113º nº 10 estabelece a regra de que as notificações do assistente podem ser feitas ao respetivo mandatário em lugar daquele, mas faz algumas ressalvas.

11. Uma dessas ressalvas diz respeito às notificações respeitantes à acusação, onde se enquadra a notificação para deduzir acusação particular que como acrescenta o mesmo preceito legal, deve ser notificada “igualmente” a assistente e respetivo mandatário.

12. Tanto o mandatário do assistente, como o assistente até à presente data não foram notificados para deduzir acusação particular, pese embora exista promoção no despacho  Sob. a Ref. 92515508 sendo que a referida omissão permanece até à presente data;

13. A notificação respeitante à dedução de acusação particular tem de ser efetuada especificamente ao assistente (sem embargo de o poder ser cumulativamente ao seu mandatário).

14. Ao assistente, como se extrai dos presentes autos não foi elaborada qualquer e consequente notificação do despacho para se pronunciar sobre a Suspensão provisória e, subsidiariamente, para deduzir acusação particular.

15. O assistente não pode ser prejudicado por omissões da secretaria artº 157 nº 6 do Cod. Processo Civil);

16. Com a falta da notificação, quer para pronunciar sobre a eventual Suspensão provisória do processo, quer para deduzir acusação particular ao ora assistente houve violação do dever de informação;

17. Mais, existiu uma omissão do MP ao não dar cumprimento ao disposto no artigo 285º, nºs 1 e 2 do CPP porquanto tal notificação nunca veio a ser concretizada apesar de promovida por despacho.

18. O cumprimento deste preceito se insere no poder/dever de o MP promover a ação penal, sem o cumprimento do qual o assistente fica sem a faculdade de poder acusar.

19. Dispõe o corpo do artigo 119º, do CPP que as nulidades insanáveis devem  ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, podendo o Tribunal a quo declarar esta nulidade ou assim não se entendendo, deve ora em sede de recurso, ser declarada a nulidade dos doutos despachos em questão.

20. Devem, pois, os Doutos Despachos ser revogados e substituídos por outro, nos termos sobreditos que ordene a notificação promovida ao assistente no âmbito da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo. “


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A Mma. Juiz admitiu parcialmente o recurso, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo dos efeitos da decisão de 22.06.2023, nos termos consignados no respectivo despacho:

“Inconformado com o despacho do Ministério Público de 16-06-2023 (a fls. 92-95) no arquivamento do inquérito quanto ao crime de injúrias - em virtude da não dedução de acusação particular - e com o despacho de 22-06-2023 (fls. 100) onde, na sequência do promovido pelo Ministério Público, foi julgada injustificada a abstenção de acusar por parte do assistente, condenando-o numa taxa de justiça, veio o assistente AA interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, rogando, a final, a revogação dos sobreditos despachos.

Ora, é sabido que a forma de reagir a um despacho do Ministério Público é a intervenção hierárquica ou a abertura de instrução (art. 278.º e art. 286.º e ss. do Código de Processo Penal), não se mostrando legalmente possível atacar uma decisão do Ministério Público através do recurso.

Como se lê no acórdão de fixação de jurisprudência de 08-01-2015 (Relator Manuel Brás, Processo n.º 336/11.5PDCSC.L1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt.) “assim, estando em causa factos susceptíveis de preencherem crimes públicos ou semi-públicos que admitam a constituição de assistente, a lei prevê duas vias de controlo da decisão de não acusação por parte do Ministério Público: a judicial, requerendo o assistente a abertura de instrução, e a hierárquica, que pode ter lugar mediante requerimento do assistente e do denunciante com a faculdade de se constituir assistente ou por iniciativa do imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público titular do inquérito”.

Assacando o assistente ao Ministério Público omissões que a seu ver substanciam nulidades quanto muito seria discutível se a competência para apreciar essas invalidades alegadamente cometidas em sede da fase do inquérito pertence ao Ministério Público ou ao Juiz de Instrução, mostrando-se, contudo, cristalino que a via adjectiva para tal arguição não é, sempre e em todo o caso, o recurso. Cfr. o aresto do Tribunal da Relação de Guimarães de 05-02-2018 (Relatora Alda Casimiro, Processo n.º 683/16.0PBGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.) onde se dá conta dos argumentos e da jurisprudência / doutrina concordante às duas posições, concluindo que “o JIC possui competência para verificar a existência de irregularidade em despacho proferido pelo Mº Pº em fase de inquérito, desde que tempestivamente arguida. Tal entendimento não viola a autonomia do Ministério Público, pois que a mesma não pode ser confundida com direcção do inquérito, sem qualquer controlo jurisdicional”. Diferentemente, entre vários, o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-02-2017 (Relator Artur Vargues, Processo n.º 2/15.2IFLSB-D.L1-5, igualmente consultável em www.dgsi.pt) onde se lê que “o juiz de instrução na fase eventual que se lhe segue -, pelo que só em instrução – fase cuja direcção lhe compete – é que o juiz de instrução pode (deve) sindicar o inquérito com vista a decidir da correcção da acusação ou do arquivamento. (…) a arguição de nulidades do inquérito deve ser suscitada perante o Ministério Público, entidade que preside a essa fase processual, com eventual reclamação para o superior hierárquico. Do despacho do Ministério Público (seja do inicial, seja do despacho do superior hierárquico) não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior. As nulidades do inquérito só podem ser conhecida pelo juiz de instrução se requerida a abertura da fase processual da instrução ou, na ausência de instrução, pelo juiz da causa no momento de recebimento dos autos (artigo 311.º, n.º 1 do C.P.P.), pois, nessa fase, compete-lhe fazer o saneamento do processo e como tal conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito (e de que possa, então, conhecer, entenda-se).”.

E nestes termos de harmonia com o art. 319.º e art. 414.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Penal e nesta parte - recurso do despacho de arquivamento do Ministério Público e arguição das nulidades praticadas na fase do inquérito - não se admite o recurso interposto pelo assistente AA.


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Veio ainda o assistente recorrer do despacho a fls. 100 nos termos e para os efeitos do art. 515.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Penal arguindo que o Tribunal que a proferiu se mostra materialmente incompetente.

O despacho é recorrível (art. 399.º e art. 400.º a contrario ambos do Código de Processo Penal). Cfr. o aresto do Tribunal da Relação do Porto de 27-06-2007 (Relatora Isabel Pais Martins, Processo n.º 0740894) e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-09-2012 (Relatora Teresa Baltasar, Processo n.º 55/11.2GACMN-A.G1) um e outros consultáveis em www.dgsi.pt.

O recurso mostra-se tempestivo (Cfr. o art. 107.º, n.º 5 e art. 107.º, al. a) e art. 441.º, n.º 1, al. a) todos do Código de Processo Penal).

O assistente tem legitimidade (art. 401.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal).

O recurso contém a motivação e conclusões (art. 412.º e art. 414.º, n.º 2 a contrario do Código de Processo Penal).

De harmonia com o art. 414.º, n.º 4 do Código de Processo Penal consigna-se que não se impõe reparar o despacho proferido pois que emanado de Tribunal materialmente competente nos termos do art. 17.º do Código de Processo Penal, art. 119.º e art. 130.º, n.º 2, al. b) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, art. 101.º e seu Mapa III do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março e ainda da medida de gestão de afetação de atos ao JIC 2022/2023 da Comarca de Viseu - Iudex - Gestão Documental - PROC 2022/DSQMJ/3074 - CSM homologada em 30-08-2022 por despacho do Exmo. Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, disponível em www.citius.mj.pt.

Nestes termos, admito o recurso interposto pelo assistente AA do despacho de 22-06-2023, a fls. 100 (frente e verso), para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual sobe imediatamente, em separado e suspende os efeitos da decisão de 22-06-2023 recorrida caso venha o recorrente a prestar caução - arts. 406.º, n.º 2, 407.º, n.º 2, al. d) e 408.º, n.º 2, al. a), todos do Código de Processo Penal.

(…)”

O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:

1) A forma de reagir a um despacho do Ministério Público é a intervenção hierárquica ou a abertura de instrução (art. 278.º e art. 286.º e ss. do Código de Processo Penal), não se mostrando, pois, possível sindicar a bondade de uma decisão do Ministério Público mediante um recurso.

2) A decisão sob recurso foi proferida pelo juiz materialmente competente (Juízo Local Criminal de Lamego da comarca de Viseu) nos termos do disposto no artigo 17.º do Código do Processo Penal, artigo 119.º e artigo 130.º, n.º2, alínea b) da Lei n.º62/2013, de 26.08, artigo 101.º e Mapa III do DL n.º49/20164, de 27.03 e ainda da medida de gestão de afetação de atos ao JIC 2022/2023 da comarca de Viseu –Iudex–Gestão Documental – Proc 2022/DSQMJ/3074 – CSM, homologada em 30.08.2022 por despacho do Exmo. Sr. Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, acessível em www.citius.mj.pt.

3) No decurso do inquérito, não foram omitidas notificações que tornassem a condenação em custas do assistente injustificada.

4) Com efeito, o Ilustre Mandatário do assistente foi notificado do despacho de 14.03.2023 (onde se determinava, além do mais, a notificação da assistente para informar se concordava com a suspensão provisória do processo condicionada às injunções ali propostas) por carta expedida para o seu escritório no dia 11.04.2023.

5) O Ilustre Mandatário do assistente foi também notificado do despacho de arquivamento por carta expedida no dia20.06.2023 -notificação esta também certificada informaticamente.

6) Não obstante as descritas notificações, não foi arguida qualquer irregularidade nem nulidade por parte do assistente, nem naquela data, nem no prazo de cinco dias previsto no artigo 120.º, n.º3, c) do Código do Processo Penal.

7) E por tudo isto, entende-se que a decisão sob recurso (a condenar o assistente no pagamento de taxa de justiça por ter omitido, sem justificação válida, a dedução de acusação particular quando existiam indícios suficientes da prática do crime denunciado) deve ser mantida na íntegra. “


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Neste Tribunal da Relação de Coimbra, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, subscrevendo a argumentação apresentada pela Digna Magistrada do Ministério Público na 1ª instância.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo o assistente apresentado resposta.

Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.


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II.  Questões a decidir

As relações conhecem de facto e de direito, (artigo 428º do Código de Processo Penal) e, no caso em apreço, o recorrente manifestou o propósito de interpor recurso sobre a matéria de direito.

É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (artigos 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal.

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente tendo presente que não foi admitido o recurso na parte  do despacho de arquivamento do Ministério Público e arguição das nulidades praticadas na fase do inquérito, tendo apenas sido admitido o recurso do despacho de 22-06-2023, a fls. 100 (frente e verso), não tendo o recorrente apresentado reclamação —, as questões a apreciar e a decidir circunscrevem-se a saber:

• Se a decisão recorrida foi ou não proferida pelo Tribunal materialmente competente;

Se o assistente deve ou não ser condenado no pagamento de taxa de justiça pela não dedução da acusação particular.

III. Mérito do recurso

Como se enunciou, os fundamentos do recurso estão circunscritos as questões supra identificadas, que serão apreciadas segundo a ordem de precedência que legal e logicamente lhes cabe.

Vejamos, então.

Invoca o recorrente que“ Na fase de inquérito, as funções jurisdicionais competem ao juiz de instrução (…) e “Quem proferiu o Douto Despacho de condenação do assistente em taxa de justiça, por considerar ter havido abstenção injustificada de acusar, foi a Meritíssima Juiz do Juízo Local Criminal, pelo que o Despacho foi proferido por Tribunal incompetente em razão da matéria, devendo por isso, ser anulado.” – cf. nºs. 1 e 3 das conclusões de recurso.

A questão suscitada pelo recorrente, a ser confirmada, integra a nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea e), 1ª parte, do Código de Processo Penal, considerando que está em causa um acto jurisdicional a praticar pelo Juiz de Instrução Criminal e não pelo Juiz de Julgamento – cf. artigo 17º, 68º, nº4, e 268º, nº1, alínea f) e nº2 do Código de Processo Penal.

Foi por isso mesmo que o Ministério Público, na fase de inquérito, no despacho que proferiu, em 16.06.2023, referiu expressamente “remeta os autos à Mma. Juiz de Instrução para apreciação e decisão do ora promovido.”.

Integra a Comarca de Viseu uma Secção de instrução criminal, com sede em Viseu, cuja área de competência territorial abrange toda a Comarca, onde se inclui o Município de Lamego[1]

Nos termos do artigo 119º, nº 1, da Lei n.º 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário) compete aos juízos de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, salvo nas situações, previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelos juízos locais criminais ou pelos juízos de competência genérica.

Sem embargo, o artigo 130º deste último diploma legal, que versa sobre a competência dos Juízos locais cíveis, locais criminais, locais de pequena criminalidade, de competência genérica e de proximidade, estabelece que:

“1 - Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.

2 - Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem ainda competência para:

a) Proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, onde não houver juízo de instrução criminal ou juiz de instrução criminal;

b) Fora dos municípios onde estejam instalados juízos de instrução criminal, exercer as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por esse juízo especializado;

(…)

3 - Nas situações a que se reporta a alínea b) do número anterior, o Conselho Superior da Magistratura define, detalhadamente, os atos jurisdicionais a praticar por cada um dos juízos locais e juízos de competência genérica.”.

Ou seja, os Juízos Locais Criminais, como é o Tribunal a quo, podem, fora dos municípios onde estejam instalados juízos de instrução criminal, exercer as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por esse juízo especializado, desde que o Conselho Superior da Magistratura defina os actos jurisdicionais a praticar.

No caso em apreço, o Juízo de Instrução Criminal da Comarca de Viseu está sediado em Viseu, nada obstando, por isso, a que o Juízo Local Criminal de Lamego pratique acto jurisdicional em inquérito, se tal se mostrar autorizado pelo Conselho Superior da Magistratura.

Ora, como referido pela Mma. Juiz no despacho em que se pronunciou sobra a (in)admissibilidade do recurso, a Senhora Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, através de despacho proferido em 29.08.2022, homologado em 30.08.2022 pelo CSM, definiu, além do mais, que “ (…) a prolação de despacho relativo à constituição de assistente, de aplicação de multas, de emissão de mandados de detenção para intervenientes faltosos, e da declaração de perdas de objetos, cuja competência, nos termos legais, se mantém no Juízo local Criminal de Lamego (…)” – cf. despachos juntos aos autos a fls. 27/28 e 29/30.

Impõe-se, pois, concluir que a Mma. Juiz de Direito a exercer funções no Juízo Local Criminal de Lamego tinha competência para prolatar o despacho recorrido, pois encontrava-se autorizada a tramitar actos jurisdicionais a praticar no âmbito dos inquéritos penais que correm na respetiva área do seu município respeitantes, para além do mais, a condenações de intervenientes processuais em multas e/ou taxas de justiça, onde se enquadra o caso em apreço.

O recurso é, assim, improcedente nesta parte.

Finalmente, pese embora se tenha concluído que o despacho de condenação do assistente em taxa de justiça, por se considerar ter havido abstenção injustificada de acusar, foi proferido pelo Tribunal competente, sempre se dirá que, dado o circunstancialismo apurado, apesar do assistente ter apresentado queixa sobre o alegado crime de injúrias e de o Ministério Público ter assumido posição favorável à demonstração da prática deste crime de natureza particular, consignando o “entendimento que haviam sido recolhidos indícios suficientes” e notificado o assistente, este nada fez ou nada disse, postura que integra a conduta prevista no artigo 515º, nº1, alínea d) do Código de Processo Penal, que se traduz na abstenção injustificada de acusar” e que determina o termo do processo.

Ora, como se explana no acórdão da Relação do Porto de 10.01.2024[2], num contexto em tudo semelhante ao dos autos, e que aqui seguimos de perto, “A responsabilidade do assistente por taxa de justiça prevista no art. 515.º, n.º 1, al. d), do CPPenal tem em vista evitar a realização de actividade processual inútil e o infundado termo do processo, tendo por fundamento a desistência de queixa quando nos autos se tenham recolhido indícios suficientes da prática do crime ou a assunção de uma atitude de inércia, encapotando uma desistência da queixa que não é formalizada.”

Em suma, o assistente deve ser condenado no pagamento de taxa de justiça pela não dedução da acusação particular [a abstenção é injustificada na medida em que foram recolhidos indícios suficientes para deduzir acusação], pois que deu azo a actividade processual e investigatória que se revelou inútil, devendo tomar-se em consideração a taxa de justiça já paga pelo mesmo, em  conformidade com o disposto nos artigos artigo 515º, nº1, alínea d), e 519º, nº1 do Código de Processo Penal.

            Improcede, pois, o recurso na sua totalidade.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto por AA e, em consequência, em manter integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.


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Coimbra, 6 de Março de 2024

Capitolina Fernandes Rosa

(Juiz Desembargador Relatora)

Jorge Jacob

(Juiz Desembargador Adjunto)

Maria Teresa Coimbra

(Juiz Desembargador Adjunta)






[1] Cf. artigo 101º, do DL n.º 49/2014, de 27-03, que regulamenta a LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26, e Anexo II da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto).

[2] No Processo nº562/21.9GAPRD-A.P1, Relatora: Maria Joana Grácio, disponível in www.dgsi.pt.