Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3202/18.0T8VIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ALTERAÇÃO DO ANTERIORMENTE ACORDADO
NECESSIDADES DE CADA UM DOS EX-CÔNJUGES
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 988.º, DO CPC
ARTIGOS 82.º, 1 E 2; 437.º, 1; 1793.º, 3 E 2012, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - Quando não se possa concluir que a manutenção do acordo de atribuição da casa de morada de família afecta gravemente os princípios da boa fé deve manter-se esse acordo.
II – Assim o impõe a disciplina da alteração das circunstâncias, tal como resulta do disposto no art 437º CPC, que deve aplicar-se à alteração da atribuição da casa de morada de família, ainda que de forma mitigada, em função do facto de se estar na presença de jurisdição voluntária.
III - Tal como a casa de morada deve ser atribuída ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela, também essa atribuição deve ser mantida quando o ex-cônjuge a quem a mesma não foi atribuída não prove que precisa dela.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I - AA, intentou acção de alteração da atribuição de casa de morada de família contra BB, pedindo que se lhe atribua a casa de morada de família até à partilha.

Alega, para o efeito, que a casa de morada de família se encontra abandonada há cerca de um ano, porque a Requerida se encontra a residir em Lisboa e os filhos em comum, e já maiores, já ali também não residem, pelo que, em face da desnecessidade da utilização da referida casa pela Requerida e filhos, a mesma lhe deve ser atribuída.

 Foi designada tentativa de conciliação, na qual não foi possível obter acordo entre as partes.

A Requerida apresentou contestação, onde rejeitou que a casa de morada de família esteja ao abandono, uma vez que fez ali regressa com os seus filhos aos fins de semana, feriados e férias, admitindo que a deixou de usar no dia a dia, mas porque teve que recorrer à mobilidade do seu local de trabalho para se proteger do Requerente, sendo que não tem outra possibilidade de ter uma casa.

Realizado julgamento, no início do qual o Requerido se pronunciou acerca do alegado na contestação, veio a ser proferida sentença, que julgou improcedente a acção, absolvendo a Requerida do pedido.

II – Do assim decidido, apelou o Requerente que concluiu as respectivas alegações, nos seguintes termos:

1 – O acordo sobre a casa de morada de família assentou sobre o facto de o centro de vida da família, designadamente da recorrida e dos filhos do casal estar em .... A recorrida era funcionária da escola e o filho mais novo nessa altura ainda estudava no concelho.

2 – Em Julho de 2020, por despacho de dia 13, a recorrida foi autorizada a passar a trabalhar em ..., pelo período de 18 meses – cfr doc 8 junto com a contestação, que entretanto há-de ter sido prorrogado, considerando que, se não o tivesse sido à data do julgamento a recorrida já não residiria em Lisboa como referiu.

3 – Verifica-se assim que a recorrida mudou o seu centro de vida de ... para Lisboa e que desde Julho de 2020, presumindo que a notificação, presumindo que a notificação do despacho que autorizou a mobilidade conduziu à imediata alteração, não reside em ..., o que nos leva a concluir que, a casa de morada de família, deixou de ser o centro da vida da família, que agora é Lisboa – local onde a recorrida trabalha e vive como namorado e o filho mais velho, a cerca de 300 km da casa de ....

4. A alteração da realidade que motivou o pedido de alteração do acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, foi assim, a alteração da residência da recorrida e do filho mais novo do casal.

5. Não logrou o recorrente provar que a casa de morada de família estavaabandonada, porque apenas conseguiu demonstrar que numa altura em que as testemunhas se deslocaram lá, a mesma estava com sinais disso: “plantas secas”, “sujidade”, “persianas fechadas”, mas até nos parece quase irrelevante tal prova, diante do confessado uso do imóvel: casa de férias e fins de semana.

6. Não é verdade que a recorrida tenha alterado a sua residência por causa da perseguição do recorrente, como decorre da sentença. Basta atender às datas que constam dos documentos para se conseguir afastar esse argumento:

7. o despacho que defere o pedido de mobilidade da recorrida data de 17 de julho de 2020, o recorrente cumpriu pena até março de 2020 e os relatórios que referem as chamadas telefónicas referem-se a factos ocorridos entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021.

8. Os factos que a recorrente relata e que constam do último relatório foram aferidos no processo ... e o recorrido foi absolvido de uns e nem sequer foi acusado de outros, pelo que não poderão servir de fundamento para justificar a qualificação de um facto como verdadeiro, se eles próprios não o são.

9. Não é por isso verdade que a Recorrida tenha saído de ... por causa do recorrente, que aliás nem sequer lá mora e trabalha a semana inteira fora do país só regressando aos fins-de-semana –doc. 1 junto com a contestação.

10. Se a recorrida tivesse como intuito afastar-se do recorrente não seria essa, decerto a estratégia.

11. Aliás os telefonemas para a recorrida foram no sentido de tentar resolver a situação da casa uma vez que esta já não residia no local.

12. É obvio que o recorrente aceitou o acordo pré divórcio porque compreendia que a Recorrida não tinha, na altura outra alternativa. Hoje, vê o seu sacrifício, de morar numa casa sem grandes condições e ter que se privar de muita coisa para poder cumprir o compromisso financeiro com o empréstimo bancário, para a recorrida ter uma casa de férias, completamente inaceitável.

13. A sentença violou as disposições do artigo 1793º do Código Civil.

A Requerida ofereceu contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:

1. O recorrente não impugna a matéria de facto, logo o presente recurso visa apenas matéria de Direito.

2. Quanto a esta, foi a decisão proferida superiormente fundamentada e alicerçada nos meios de prova admitidos.

3. Não existe qualquer fundamento legal para alteração da decisão proferida, sendo até de relevar a posição assumida pela requerida, ora recorrida, que não alterou a sua residência, apenas foi obrigada precisamente pelo recorrente a requerer a sua mobilidade especial, conforme resulta dos autos.

4. O recorrente pretende socorrer-se de uma situação da qual ele é o protagonista, sendo a recorrida a vítima e a fugitiva.

5. Faz-se justiça, também, proclamando merecedor de tutela jurídica quem dá aquilo que não pode, nem nunca poderá, ser medido: o amor.

6. Não se mostra violada qualquer norma legal, muito menos a indicada pelo recorrente.

III – O Tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

 1. AA e a BB foram casados entre .../.../1992 e .../.../2018, e o seu casamento foi dissolvido por divórcio decretado no âmbito da Ação n.º 3202/18.....

2. Na constância do casamento nasceram dois filhos.

3. No âmbito da Ação de Regulação das Responsabilidades Parentais foi regulado o exercício das responsabilidades parentais do filho CC, ainda menor de idade, o qual ficou a residir com a mãe.

4. Na Ação referida no ponto 4, AA e BB acordaram em converter a Ação referida no ponto 1, em Ação de Divórcio por mútuo consentimento e acordaram que a casa de morada de família ficava atribuída a BB até à partilha, acordo que foi homologado por sentença proferida a 26.11.2018.

5. A casa de morada de família é um bem próprio de AA.   6. A casa de morada de família situa-se na Rua ..., Bairro ..., concelho ..., encontrando-se descrito na Conservatória do Registo Predial com o número ...83 e está inscrito no serviço de finanças sob o artigo matricial ...97 da União de Freguesias ... e ....

7. O então casal, para a realização de obras na casa de morada de família, contraiu um empréstimo bancário o qual, a 30 de maio de 2022, importava no total de €38.943,72.             8. BB exerce a função de assistente técnica, atividade que exerceu no Agrupamento de Escolas ..., e após a prolação do Despacho de 17 de julho de 2020, foi dado acordo à mobilidade para exercer tais funções na Câmara Municipal ..., residindo perto do seu local de trabalho durante a semana.

 9. A requerida solicitou a sua mobilidade do seu local de trabalho porquanto o Requerente assumiu comportamentos perturbadores do quotidiano e do bem-estar da Requerida.

10. O filho mais velho do Requerente e da Requerida já terminou os seus estudos e vive durante a semana com a Requerida.

11. BB vive em união de facto.

12. A Requerida vendeu a 22 de maio de 2021, um prédio urbano, composto por casa de habitação de dois pisos e logradouro, pelo montante de vinte e dois mil euros.

E julgou não provados:

 1. AA, desde a data de separação anterior a novembro de 2018, suporta o pagamento das prestações devidas pelo pagamento do empréstimo contraído pelo então casal.

2. O filho mais novo do Requerente e da Requerida já terminou os estudos; ambos os filhos já não residem em ....

3. A casa de morada de família está fechada há mais de um ano (a contar da data da instauração desta Ação), sem que ninguém lá resida.

4. A casa de morada de família necessita de limpeza e de obras de conservação.

III – Como resulta do confronto das conclusões das alegações com a decisão recorrida, importa decidir no presente recurso, se, tal como o apelante o pretende, as actuais circunstâncias vivenciais da Requerida e filhos, justificam que a casa de morada  de família deixe de lhe ser atribuída e passe a sê-lo a ele.

 Foi já opinião comum na jurisprudência, anteriormente à L 61/2008 de 31/10,       que o acordo que respeitando ao destino a dar à casa de morada de família, precedesse um divórcio por mútuo consentimento, era imodificável, dizendo-se que «o complexo de interesses que determinam as referidas interdependência ou "união genética" entre o acordo de divórcio e os demais acordos entre si», implicava, «na falta de previsão legal sobre a matéria – diversamente do que sucede com os demais acordos obrigatórios – a sua imodificabilidade, por iniciativa e imposição de uma das partes», pois que esta «poderia conduzir à frustração, pura e simples, do equilíbrio de interesses que foram postos em equação e ponderação pelos cônjuges e pelo próprio Juiz (ou Conservador), quer no consentimento dos acordos de divórcio e complementares quer na respectiva homologação»[1] .

Sendo também opinião comum, e convergindo no mesmo sentido, a de que «o acordo sobre o destino da casa de morada da família homologado por sentença transitada, proferida em acção de divórcio por mútuo consentimento, tal como a decisão do próprio divórcio, está acobertado pela força do caso julgado, nos termos do art 673º CPC, pelo que só poderá ser atacado por via do recurso de revisão da própria sentença homologatória, nos termos do art. 771º do mesmo Código, depois de obter sentença transitada em julgado a declarar nulo ou anulado o acordo, por falta ou vício de vontade das partes, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 301º do CPC».

Entendia-se assim, que, porque nem a legislação civil, nem a  processual civil previam a possibilidade de alteração desse acordo, o mesmo tinha de se manter inalterado até à partilha dos bens do casal, caso não fosse atacada a sua validade [2].

Hoje, o nº 3 do art 1793º CC, aditado pela L 61/2008 de 31/10, refere, claramente, que «o regime fixado, quer por homologação dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais de jurisdição voluntária».

Deve assinalar-se, que antes do aditamento da norma em referência pela L 61/2008 de 31/10, já muita jurisprudência reclamava esse entendimento [3], invocando-se, para assim concluir, o disposto no art 437º/1 CC, referente à resolução ou modificação do contrato por alteração de circunstâncias, exigindo apenas que ocorresse uma  alteração substancial das circunstâncias tidas em consideração aquando da celebração e homologação do acordo em causa, admitindo que essa alteração substancial pudesse decorrer tanto de factos novos como do conhecimento de factos anteriores, cuja significativa  repercussão fosse ignorada aquando do acordo.

È, de facto, esse o melhor entendimento -  quer à luz da finalidade específica da atribuição contratual ou judicial  da utilização ou atribuição da casa de morada de família, (a premência de habitação), quer à luz das regras de processamento nos incidentes que visam essa atribuição (na medida em que esses incidentes se integram na jurisdição voluntária),  quer à luz da tutela cautelar dessa atribuição na pendência do divórcio -  sendo que outro entendimento contrariaria a exigência que desde sempre justificou o instituto da alteração das circunstâncias – a mitigação do desequilíbrio contratual que delas resulta para uma das partes.

Entendeu o legislador no nº 3 do art 1793º CC recorrer aos termos gerais de jurisdição voluntária para a alteração do regime fixado, quer por homologação dos cônjuges, quer por decisão do tribunal.

Com o que deixou claro que, tal como nos processos de jurisdição voluntária as decisões são alteráveis sempre que se alterarem as circunstâncias em que se fundaram, também nas situações em causa o regime fixado é alterável, estando em causa «uma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula rebus sic stantibus ou seja um caso julgado com efeitos temporalmente limitados» [4].

De todo o modo, a cláusula rebus sic stantibus, podendo implicar a extinção da força obrigatória daquele acordo por efeito de circunstâncias supervenientes à sua celebração, desde que elas impliquem uma modificação substancial das condições vigentes no momento em que o acordo foi celebrado,  não faz cessar automaticamente a obrigatoriedade do acordo, apenas permitindo à parte que se vê prejudicada pela alteração que promova por via convencional ou jurisdicional a sua alteração para o adoptar ao novo condicionalismo.

Importa, por isso, ponderar, na situação dos autos, se as modificações na vivência da Requerida e filhos -  ocorridas cerca de dois anos depois do acordo relativo a atribuição da casa de morada de família logrado entre as partes para a convolação do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento – implicaram uma modificação substancial das condições vigentes no momento em que esse acordo foi celebrado.

Essa modificação substancial, como resulta do já acima referido, terá de obedecer às exigências que o art 437º CC exige para a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias - ainda que, reconhecidamente, de forma mitigada, por se estar na presença de jurisdição voluntaria. 

Exigências que, Salter Cid [5], aplicando-as à alteração da atribuição da casa de morada de família, resume nos seguintes termos:

“a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...);
            b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...);

c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva.(...);.
            d
) E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (...).».

Há jurisprudência que encontra os requisitos para a alteração da atribuição da casa de morada de família na regra geral enunciada no artigo 2012º do CC, para os alimentos: «Se, depois de fixados os alimentos pelo tribunal ou por acordo dos interessados, as circunstâncias determinantes da sua fixação se modificarem, podem os alimentos taxados ser reduzidos ou aumentados, conforme os casos, ou podem outras pessoas ser obrigadas a prestá-los.» [6].

Mas, na verdade, também a alteração nos alimentos devidos aí prevista, ainda que estabelecida na lei anteriormente ao nº 3 do art 1793º CC, porque tem como subjacente a alteração das circunstâncias se deverá conformar com as exigências que emanam do disposto no art 437º CC, mesmo que, como se referiu, numa aplicação mitigada em função da jurisdição voluntária em que se integra.

Assim, no Ac RP de 22/05/2017, é ainda por referência à disciplina do art 437º CC que se entende «atendível o pedido unilateral de modificação do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado pelo tribunal, com fundamento em circunstâncias supervenientes, face ao disposto no n.º 3 do artigo 1793º, exigindo-se o preenchimento dos requisitos enunciados no artigo 2012º do Código Civil, ou seja, que o requerente alegue e prove: i) que se alteraram as circunstâncias que determinaram a sua aceitação do acordo; que tal alteração, tendo natureza substancial, evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória; que a referida alteração tenha modificado a “base negocial” ou dos pressupostos fácticos que determinaram a vontade negocial das partes.»

Pode, pois, concluir-se, que, «para se poder alterar a decisão de atribuição da casa de morada de família se tem de se verificar uma alteração das circunstâncias que estiveram na base dessa atribuição (arts. 1793/3 do CC e 988 do CPC)»[7], e que, por isso, o ponto de partida para a pretendida alteração, será sempre a de que, aquele que a pretende, proceda à alegação das circunstâncias existentes no momento em que aquela obrigação foi contraída e das circunstâncias presentes no momento em que requer a modificação dessa mesma obrigação, como se afirma no Ac R L de 7/4/2011 [8].

Mas, tal não basta, não se podendo afirmar, tão simplesmente, como nesse aresto se parece fazer, que, «se o juízo de relação mostrar uma variação de contexto, então deve autorizar-se a alteração da obrigação. No caso contrário, a alteração deve, naturalmente, recusar-se».

È  que, será sempre imprescindível, que, para além dessa alteração ter implicado a modificação dos pressupostos fácticos que determinaram a vontade negocial das partes - e que, como se viu, revista natureza substancial, não se confundindo com uma modificação meramente conjuntural -  se some ainda a esses requisitos, o fundamental, a que a disciplina do art 437º sempre condiciona  a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, e que é, o de que, «a manutenção do acordo ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa fé».

À luz destas considerações, revertamos à situação concreta.

Para, em primeiro lugar, assinalar, que pouco se sabe a respeito dos pressupostos fácticos que levaram a que o então casal tenha acordado na atribuição da casa morada de família ao cônjuge mulher, porque o aqui Requerente não lhes fez referência na petição inicial.

Não obstante essa omissão,  os elementos reunidos no processo permitiram que se tivesse provado que na constância do casamento nasceram dois filhos, que ao tempo da propositura da acção de divórcio – ano de 2018 - um deles era menor, tendo sido necessário  regular o exercício das responsabilidades parentais no que lhe dizia respeito, tendo o mesmo ficado a residir com a mãe, aqui Requerida; que a  casa morada de família  é bem próprio do Requerente, e que, para a realização de obras nessa casa, o casal contraiu um empréstimo, que, pelo menos até 30/5/2002, existia, e importava  o montante de  € 38.943,72; que a Requerida exerce a função de assistente técnica no Agrupamento de Escolas ....

Nada mais se sabe a respeito das condições familiares ao tempo do acordo aqui em causa.

Após o mesmo, obtido em 2018, como já referido, sabe-se que a Requerida, em função de comportamentos perturbadores do quotidiano e do seu bem estar por parte do Requerente, solicitou a mobilidade do seu local de trabalho para exercer funções na Câmara Municipal ..., o que lhe foi deferido por Despacho de Julho de 2000. E que, desde então, durante a semana, reside perto do seu local de trabalho, vivendo com ela, igualmente durante a semana, o filho mais velho, que, entretanto já terminou os seus estudos. Vive em união de facto desde data que se desconhece.

Perante esta matéria de facto, sustenta o apelante que a Requerida mudou o seu centro de vida de ... para Lisboa, e que não é verdade que a mesma o tenha feito  por causa da perseguição dele, pois cumpriu pena até Março de 2020 e os relatórios que referem as chamadas telefónicas reportam-se a factos ocorridos entre Outubro de 2020 e Fevereiro de 2021, portanto, em datas posteriores à do referido Despacho de Julho de 2020.

Mostra-se junta aos autos sentença, datada de 5/2/2019, de que resulta a condenação do Requerente pela prática de um crime de violência doméstica,  na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa  por igual  período,  e condicionada, durante o período de 1 ano, à obrigação de afastamento do arguido em relação a vitima, a uma distancia mínima de 300 m da sua residência ou local de trabalho, e à proibição de contactos, tendo sido determinado que as medidas de afastamento e proibição de contactos fossem  fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância.

Estão juntos aos autos vários relatórios de execução relativos à suspensão da execução da pena,  o primeiro datado de  3/11/2020, no qual se refere  que o Requerente  «confirmou ter contactado recentemente com a ofendida por telefone», com o propósito da mesma passar a suportar o encargo relativo à amortização do empréstimo incidente sobre a casa, referindo igualmente que a Requerida «confirmou várias tentativas de contacto  por  parte do arguido  no decorrer do mês de Outubro, duas no dia 12», em que lhe dirigiu,  a ela e aos filhos, ameaças de morte. Os demais relatórios reportam-se a contactos do Requerente havidos em datas subsequentes, contactos muito insistentes e agressivos nos inícios de Fevereiro de 2021, em que persistiu nas ameaças de morte, mais afirmando que a andava a seguir, voltando de novo a contacta-la  em Outubro de 2021.

Destes relatórios resulta também, com suficiência, que tal como a Requerida o refere na sua contestação, o Requerente deixou de prestar alimentos tendentes à formação académica de ambos os filhos, sensivelmente em fins de 2020, tentando com isso pressiona-la para passar a ser ela a suportar o empréstimo referente às obras da casa.

Deste relatado circunstancialismo fáctico, resulta que, se, efectivamente, o Requerente, como refere  na conclusão 7ª, «cumpriu pena atá março de 2020»  (estando a reportar-se à circunstância de durante o período de 1 ano  se ter mantido afastado da Requerida  a uma distância mínima de 300 m da sua residência ou local de trabalho e não ter com ela estabelecido contactos), e se, efectivamente, os relatórios de execução de pena se referem a episódios situados  em  Outubro de 2020,  e não anteriormente, a verdade é que a perigosidade e agressividade que o mesmo demonstrou -  por exemplo, quando, como resultou provado na sentença crime, a agarrou pelos braços e a puxou para a casa de banho onde lhe amarrou uma toalha à volta do pescoço e introduziu a cabeça na sanita - faziam  temer que depois do cumprimento daquela pena o mesmo se viesse a aproximar dela para a intimidar, como, aliás veio a suceder,  fazendo todo o sentido que a mesma  se quisesse afastar de ....

 Resulta também que a Requerida e filhos não abandonaram a casa em causa nos autos porque a ela regressam nos fins de semana.

E, como a mesma salienta, e resulta do art 82º/1 e 2 do CC, «a pessoa tem   domicílio no lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles».

 A Requerida provou que ainda habita a casa objecto dos presentes autos e, visto o regime provisório da mobilidade em que se processa a sua deslocação  do Agrupamento de Escolas ... para a Câmara Municipal ..., o facto de residir durante a semana em Lisboa, será contingente, como contingente pode ser a união de facto em que vive. 

Na verdade, e à margem das considerações até aqui feitas, no contexto dos parcos factos de que se dispõe nos presentes autos, sempre se imporia negar a alteração da atribuição da casa de morada de família,  na medida em que o Requerente não provou minimamente que precise de habitar nessa casa, antes parecendo que com a propositura desta acção apenas pretendeu incomodar a Requerida, a quem não reconhecerá  meios económicos para  sequer ter pedido que a mesma passasse a suportar ou partilhar o esforço económico do pagamento do empréstimo que recai sobre a  casa.

 Ora, tal  como a casa de morada deve ser atribuída  ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela [9], também essa atribuição deve ser mantida quando o ex-cônjuge a quem a mesma não foi atribuída não prove que precisa dela. 

Do que decorre que não pode concluir-se, como se viu acima ser imprescindível, que a manutenção do acordo de atribuição da casa de morada de família à aqui Requerida afecte gravemente os princípios da boa fé, devendo por isso manter-se esse acordo.

Com o que há que julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.


                                         Coimbra, 7 de Novembro de 2023
                                          (Maria Teresa Albuquerque)
                                         (Pires Robalo)
                                         (Sílvia Pires)

(…)

[1] Ac STJ 15/2/005 (Alves Velho)

[2] - Ac STJ 2/10/2003 (Ferreira Girão) CJ/ASTJ III, p. 74; Ac STJ de 19/3/2002,  Ac R P 2/5/1995 CJ III, p. 197; Ac R L 18/2/1993  CJ I, p. 149

No sentido da inadmissibilidade pronunciaram-se, entre outros, os Ac.s do STJ, de 15.2.2005, 2.10.2003 (com um voto de vencido) e de 19.3.2002, publicados in www.dgsi.pt, ; da RP, de 22.11.2005,  da RL, de 12.7.2001, 2.2.94 e 18.2.93, www.dgsi.pt, e da RG, de 7.5.2003, CJ, 2003, III, 279.        

No sentido da inadmissibilidade da alteração, os Acs. da RP, de 3.3.2004 e de 30.9.2002, www.dgsi.pt, da RL, de 27.5.2003, www.dgsi.pt, proc. 00106767 e CJ, 2003, III, 91; e da RE, de 2.12.99, CJ, 1999, V, 275. No sentido da inadmissibilidade pronunciaram-se, entre outros, os Ac.s do STJ, de 15.2.2005, 2.10.2003 (com um voto de vencido) e de 19.3.2002, publicados in www.dgsi.pt, ; da RP, de 22.11.2005,  da RL, de 12.7.2001, 2.2.94 e 18.2.93, www.dgsi.pt, e da RG, de 7.5.2003, CJ, 2003, III, 279.
                Decidiram-se pela admissibilidade da alteração, os Acs. da RP, de 3.3.2004 e de 30.9.2002, www.dgsi.pt, da RL, de 27.5.2003, www.dgsi.pt, proc. 00106767 e CJ, 2003, III, 91; e da RE, de 2.12.99, CJ, 1999, V, 275.

[3] -Decidiram-se pela admissibilidade da alteração, os Acs. da RP, de 3.3.2004 e de 30.9.2002, 26/10/2006 (Saleiro de Abreu) todos em www.dgsi.pt, da RL, de 27.5.2003, www.dgsi.pt,  e CJ, 2003, III, 91; e da RE, de 2.12.99, CJ, 1999, V, 275.Sobre o tema em análise: Ac R C 29/1/2008 (Jacinto Meca); Ac R L 24/4/2012 (Pimentel Marcos); Ac R C 27/4/2004 (Monteiro Casimiro); Ac R P 5/2/2007 (Pinto Ferreira); Ac R G 18/.1/2018 (José Amaral); Ac R G 28/9/2017 (Raquel Tavares)
[4] -Ac R E 22/2/2018 Relator, Bernardo Domingos, que remete para Remédio Marques, «Algumas Notas sobre Alimentos (devidos a menores)» – Centro de Direito da Família, vol 2, p 106 .
                [5] - Em «A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português», págs. 314/316
                [6] - Ac R P 22/5/2017 (Carlos Querido); Ac R P 22/5/2017 , Proc nº 395/12.3TBVLC-I.P1

[7] - Ac R L 15/4/2021 (Pedro Martins)
                [8] - Proc 9079/10.6TBCSC.L1-2; Ac R L 07/04/2011, Proc. 9079/10.6TBCSC.L1-2
                [9]  - Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, «Curso de Direito da Família», vol. I, 2ª ed., p. 663-664