Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1113/23.6T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
QUALIFICAÇÃO DO CONTRATO
AQUISIÇÃO E INSTALAÇÃO DE EQUIPAMENTO
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
EXECUÇÃO DE TRABALHOS
INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 312.º, 317.º, AL.ª B), 349.º, 350.º, N.ºS 1 E 2, 874.º, 1207.º E 1210.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A presunção de cumprimento derivada dos art. 317º al. b) e 312º do CC constitui regra de decisão, não permitindo dar como provado o próprio pagamento.
II – O contrato de aquisição e instalação de equipamento pode corresponder, nomeadamente, a um contrato de compra e venda ou a um contrato de empreitada, tendendo a corresponder a este segundo quando o funcionamento do equipamento, como elemento integrante de imóvel, tenha prevalência, envolvendo instalação técnica relevante.

III – A prescrição presuntiva do art. 317º al. b) do CC não abrange situações correspondentes à figura do contrato de empreitada que envolva valores elevados e prestações extensas.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: António Fernando Silva
Adjuntos: Luís Ricardo
Sílvia Pires

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. A..., Lda, intentou a presente acção contra AA pedindo a sua condenação a pagar a quantia de € 93.870,12, acrescida de juros de mora à taxa de juro comercial, contados desde a data de vencimento da factura, no valor de € 36.579,77, no total de € 130.449,89, a que acrescem juros de mora vincendos até integral pagamento.

Alegou para tanto, no essencial, que:

- entre 2010 e 2016 a A. forneceu vários bens e serviços (mão de obra) ao R. (nomeadamente fornecimento e montagem de bomba de furo e aproveitamento de águas das chuvas, sistema de climatização por sistema VRF, pisos radiantes, produção de águas quentes sanitárias, sistemas de ventilação e extração, painéis solares térmicos, materiais de impermeabilização, portões de garagens e automatismos para 3 portões), discriminados na factura n.º ...25, datada de 30/12/2017, com vencimento na mesma data, no valor total de € 93.870,12.

- os produtos e serviços discriminados foram destinados a uma habitação pertencente ao R., em ..., e foram entregues e prestados.

- solicitou o pagamento, o que o R. não fez.

O R. contestou, admitindo parte dos factos alegados pela A. mas sustentando, em particular, que:

- pagou o valor constante da factura no momento do fornecimento dos bens nela mencionados.

- os bens foram vendidos em datas diferenciadas, que indica, e instalados em moradia que construiu e onde instalou a sua residência.

- a A., em 2017, sem reclamar o pagamento, indicou que necessitava de emitir factura por exigência do contabilistas e por razões fiscais.

- e emitiu a factura e enviou-a ao R., reclamando o pagamento.

- descrevendo contactos existentes, afirma não ser compreensível que a A. nunca reclamasse o pagamento, invocando depois a presunção do art. 317º al. b) do CC.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixado o valor da acção, relegado para final o conhecimento da excepção, fixados o objecto do litígio e os temas da prova e apreciados os requerimentos probatórios.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que condenou o R. a pagar à A. a quantia de € 93.870,12 (noventa e três mil, oitocentos e setenta euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa de juro comercial, desde o dia 30 de dezembro de 2017 até integral pagamento.

Desta sentença interpôs o A. recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

A A. respondeu, começando por sustentar a rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto por incumprimento dos ónus legais. Mais sustentou que a prescrição presuntiva não tem o mesmo efeito da prescrição extintiva, que a prescrição presuntiva em causa não seria aplicável e que o pagamento é devido (não o tendo o R. logrado provar), e que a qualificação do contrato está correcta. Conclui assim pelo acerto da decisão recorrida.

Notificado para se pronunciar sobre a requerida rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, o R. sustentou a regularidade da impugnação efectuada.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, importa:

- avaliar a correcção da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, a ser válida, avaliar o mérito dessa impugnação.

- avaliar a verificação da prescrição presuntiva (no que vai co-envolvida a questão atinente à qualificação do acordo negocial subjacente).

III. Estão assentes os seguintes factos:

1. A Autora A..., L.da tem por objeto social a instalação de equipamento de frio em unidades industriais e comerciais; automação e sistemas industriais; fabricação, comércio e instalação de equipamentos e maquinarias industriais, montagem e instalação de quadros elétricos; manutenção industrial.

2. No exercício da sua atividade comercial, a Autora forneceu ao Réu, a pedido deste, os seguintes bens e os serviços correspondentes à mão-de-obra necessária para a respetiva instalação:

a) fornecimento e montagem de bomba de furo e aproveitamento de águas das chuvas;

b) fornecimento e montagem de sistema de climatização por sistema VRF, pisos radiantes, produção de águas quentes sanitárias;

c) fornecimento e montagem de sistemas de ventilação e extração;

d) fornecimento e montagem de painéis solares térmicos;

e) fornecimento e montagem de materiais de impermeabilização;

f) fornecimento e montagem de portões de garagens e automatismos para três portões.

3. Em consequência, a Autora emitiu e remeteu ao Réu a fatura número ...25, no valor de € 93.870,12, datada de 30 de dezembro de 2017, com vencimento a 30 de dezembro de 2017.

4. Os bens e serviços discriminados na fatura a que se alude em 3. destinaram-se à casa de habitação situada na Rua ..., ..., pertencente, à data, ao Réu.

5. O Réu instalou a sua residência permanente, juntamente com a sua família, na moradia indicada em 4..

6. Os bens e serviços discriminados na fatura a que se alude em 3. foram efetivamente entregues e prestados pela Autora.

7. A bomba submersível mencionada na fatura a que se alude em 3. foi fornecida pela Autora ao Réu no dia 28 de agosto de 2009.

8. Os restantes bens e serviços mencionados na fatura a que se alude em 3. foram fornecidos pela Autora ao Réu nos períodos compreendidos entre os dias 4 de agosto de 2010 e 21 de dezembro de 2010, entre os dias 25 de janeiro de 2011 e 15 de novembro de 2011, entre os dias 5 de janeiro de 2012 e 21 de dezembro de 2012, entre os dias 4 de janeiro de 2013 e 11 de setembro de 2013 e entre os dias 14 de fevereiro de 2014 e 25 de julho de 2014.

9. Mediante email remetido no dia 31 de dezembro de 2017, o representante legal da sociedade Autora comunicou ao Réu o seguinte:

“Bom dia AA.

A 10 de dezembro de 2016 entreguei-te as contas relativas ao fornecimento e montagem de equipamentos colocados na casa que construíste no ....

Espero que já tenhas conferido a listagem dos equipamentos e trabalhos efetuados, pois necessito de os faturar ainda este ano, pois em termos fiscais estes já deveriam estar faturados.

No entanto continuo sem saber em que nome queres que a fatura seja emitida.

Se for em teu nome agradeço o envio do teu nome completo e NIF, neste caso o valor será acrescido de IVA, já a fatura é emitida a um cliente final.

Se a fatura é para ser emitida a uma empresa como foi o AC que foi instalado no andar onde moras a fatura terá de ser emitida em regime de IVA em Autoliquidação.

Caso não obtenha uma resposta tua irei emitir a fatura em teu nome como consumidor final, pois o meu contabilista não me assina a escrita se não descarregar os materiais que já não tenho em stock. Para além disso estamos a ser extremamente penalizados por não estarmos ressarcidos dos montantes que já liquidamos, e estamos a incorrer em falha com a Autoridade Tributária.

Anexo novamente a listagem do material instalado.

Atentamente

BB

A..., L.da

Rua ...

... ...”.

10. Mediante carta datada de 22 de janeiro de 2018, o Réu comunicou à Autora o seguinte:

“Caro BB,

Acuso a receção da tua fatura ...25, de 30 dezembro 2017, a qual mereceu a minha melhor atenção e que muito me surpreendeu.

Todos os equipamentos fornecidos e serviços prestados foram integralmente pagos durante a execução da obra.

Por isso, estranho que sete anos depois seja emitida uma fatura a reclamar o pagamento de uma quantia já paga e não tenham sido enviados os respetivos recibos de quitação.

Assim, solicito a entrega dos recibos correspondentes aos valores pagos e que a fatura tenha a data em que os bens e serviços foram colocados à minha disposição.

Mais informo que em razão da fatura não ter a data em que os bens foram colocados à minha disposição, vai a mesma devolvida em anexo à presente carta.

Com os melhores Cumprimentos,

AA

22.01.18”.

11. Mediante carta registada, datada de 31 de agosto de 2021 e recebida no dia 3 de setembro de 2021, a Autora, por intermédio do seu Ilustre Mandatário, comunicou ao Réu o seguinte:

“Exmo Senhor:

A Firma A..., L.da, com sede no ..., freguesia ..., concelho ..., solicitou a n/intervenção profissional no sentido de cobrar de V.Exª, a quantia em dívida no montante de 93.870,12 € (…), relativa à fatura n.º ...25 com vencimento em 30 de dezembro de 2017, referente ao fornecimento de bens e serviços melhor discriminados na referida fatura e sobre a qual, por nada ter sido pago, está em débito e a vencer juros de mora até ao seu total e efetivo pagamento, calculados na presente data à taxa legal, no montante de 24.123,32 € (…), totalizando o valor em dívida a quantia de 117.993,44 € (…).

Assim, vimos propor a V.Exª que efetue voluntariamente o pagamento do citado débito no prazo de 8 dias, querendo, diretamente no n/escritório ou na sede da firma, e informar que, não o fazendo, procederemos à respetiva cobrança judicial, alertando-os desde já que acrescerão as custas do processo em Tribunal e os respetivos honorários de Advogado.

Certos do bom acolhimento desta, apresentamos os n/cumprimentos.”.

12. Mediante carta datada de 16 de setembro de 2021 e por email remetido a 17 de setembro de 2021, o Réu, por intermédio do seu Ilustre Mandatário, comunicou ao Ilustre Mandatário constituído pela Autora o seguinte:

“Ilustre Colega,

Mandatou-me o Senhor Dr. AA, residente na Alameda ..., na ..., para responder à missiva que lhe foi enviada com data de 31.08.2021, pela qual, em nome e representação da sociedade comercial A..., L.da lhe é reclamado o pagamento de uma quantia de 117.993,44 Euros, correspondente a uma dívida de capital de 93.870,12 Euros, lançada numa fatura da mencionada sociedade com o nº ...25, com vencimento aprazado para o dia 30.12.2017.

Como, de certo, a sua cliente lhe terá explicado, os bens a cujo fornecimento se reporta a referida fatura, destinaram-se a ser aplicados ou incorporados na moradia que em 2009 o meu cliente construiu na localidade de ..., concelho ..., e onde, durante mais de 10 anos, teve instalada a sua residência pessoal.

Conforme resulta à evidência da correspondência trocada entre as partes no final de 2017 e início de 2018, e cujo teor a sua cliente não refutou, os valores mencionados na referida fatura há muito que se encontram pagos pelo meu cliente, como de resto é de natural presunção à luz do disposto na al. b) do artigo 317º do Cód. Civil, cuja aplicação ao caso se reclama neste momento.

Posto isto, só por lapso de memória posso entender que a gerência da sua cliente venha neste momento reclamar o pagamento de uma dívida relativa a fornecimento de bens para uma moradia particular do meu cliente, feito há mais de 10 anos e cujo pagamento há muito foi efetuado.

Realidade esta pelo ao ilustre colega seja tida em consideração no tratamento do caso em apreço.

Com os melhores cumprimentos,

(O Colega ao dispor)”.

13. A presente ação declarativa deu entrada em Juízo no dia 20 de junho de 2023.

14. O Réu foi citado para os termos da presente ação declarativa no dia 21 de junho de 2023.

IV. Foram tidos por não provados os seguintes factos:

1. Os bens e serviços mencionados na fatura a que se alude em 3. dos factos considerados provados foram fornecidos no período compreendido entre os anos de 2010 e 2016.

2. Os bens e serviços discriminados na fatura a que se alude em 3. dos factos considerados provados nunca foram pagos pelo Réu.

3. A fatura a que se alude em 3. dos factos considerados provados foi emitida aquando da conclusão da prestação contratual efetuada pela sociedade Autora.

4. O Réu efetuou o pagamento do preço correspondente aos fornecimentos indicados na fatura a que se alude em 3. dos factos considerados provados, em numerário, nos períodos mencionados em 8. dos factos considerados provados e na sequência desses mesmos fornecimentos.

5. A Autora não respondeu à carta a que se alude em 10. dos factos considerados provados.

V.1. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto encontra-se sujeita às regras decorrentes do art. 640º do CPC, regras cujo cumprimento vem impugnado.

(…).

            3. Quanto ao mérito desta impugnação, o R., na alegação e na conclusão, parece entender que a presunção legal derivada do art. 317º al. b) do CC também serviria para dar como demonstrado o facto impugnado [assim quando refere que «na decisão da matéria de facto que suporta a decisão de direito, o Tribunal recorrido entendeu não ter ficado demonstrado, nem mesmo como consequência da invocação da presunção da alínea b) do artigo 317º do Código Civil que: “- O Réu efetuou o pagamento do preço …», ou «A decisão de considerar como não provado que (…) não obstante verificados os pressupostos de facto e de direito da invocada prescrição presuntiva da alínea b) do artigo 317º do Código Civil» ou ainda «A par [da] presunção legal de pagamento prevista no artigo 317.º, al. b) do Cód. Civil, na decisão da matéria de facto deveria o Tribunal a quo servir-se das chamadas presunções judiciais…»].

            Tal asserção assenta num equívoco.

            O art. 317º do CC estabelece uma causa de prescrição presuntiva, prescrição esta que, de acordo com o disposto no art. 312º do CC, corresponde a uma presunção legal do cumprimento.

            A presunção legal constitui a ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349º do CC). Porém, ao contrário da presunção judicial, não conduz à afirmação directa do facto desconhecido. O seu sentido é outro: prevendo a lei, com base em regras de experiência, que ao facto conhecido se seguiria, com probabilidade determinante, a existência do facto desconhecido, não assume contudo a afirmação directa deste (não produz uma «descrição da realidade»). Diversamente, escusa a parte beneficiada com a presunção de fazer a prova do facto contido na presunção (art. 350º n.º1 do CC)[1], invertendo, no caso da presunção ilidível (como ocorre com o art. 317º do CC[2]), o ónus da prova: a parte contrária, desfavorecida pelo facto presumido, terá que demonstrar o facto contrário (art. 344º n.º1 e 350º n.º2 do CC). Ficar legalmente presumido certo facto (pagamento) não equivale, pois, a ter este como facto provado mas a impor a prova do contrafacto (não pagamento) à parte contrária (para assim ilidir a presunção). Não o fazendo, será a questão juridicamente apreciada de acordo com aquela presunção.

No caso, isto significa que não podia o julgador, com base na presunção legal, dar como provado o facto desconhecido (o pagamento), pois esse não é efeito daquela presunção. O efeito de tal presunção operará perante os factos provados (apurados com base nos demais meios ou instrumentos probatórios), avaliando se i. está verificado o facto base da presunção e, na afirmativa, ii. avaliando se foi demonstrado o facto contrário. Na falta deste facto contrário, decidirá contra a parte a quem cabia esta prova do facto contrário (ou seja, decidirá como se o facto presumido existisse, mas não com base na sua afirmação factual). Por isso se diz que as presunções legais «consistem em mandados normativos – que obrigam o juiz a concluir de certa forma em presença de um facto ou estado de coisas – e não em um enunciado relativo a uma afirmação fática». São regras de julgamento, não enunciações de factos [pois tem-se por legalmente presumido o facto, mas não como empiricamente verificado].

Não colhe aqui apoio, pois, a pretensão de alteração da matéria de facto dada como provada.

4. Em segunda linha, o R. considera que o facto impugnado devia ter-se por provado com base em presunção judicial.

Nos termos do referido art. 349º do CC, também as presunções judiciais assentam na ilação retirada de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, embora nestas a ilação seja realizada pelo julgador.

Este tipo de presunção constitui um mecanismo lógico[3] silogístico, assente em dois elementos: o indício, facto instrumental, e a presunção, a inferência causal efectuada a partir do indício, a qual permite suportar a afirmação de um facto distinto, a partir de raciocínio suportado nas regras da experiência (princípio da normalidade, assente na tipicidade probabilística de certos dados empíricos[4]) [ou, também, a partir de regras da ciência]. Quanto aos requisitos intrínsecos da figura, e no que ora releva, pode aceitar-se que os indícios (ou o indicio, quando se admita, como parece possível, que basta um para sustentar a inferência) devem ser unívocos e conformes, ou seja, articular-se num único sentido demonstrativo (pois a equivocidade torna insegura a inferência), conduzindo de forma necessária ou com um elevado nível de probabilidade ao facto desconhecido.

5. No caso, o R. invoca os seguintes indícios:

- primeiro, o depoimento da testemunha CC, quando afirma que a A. (empresa para que trabalhava) só retomava os trabalhos depois de o réu pagar alguma coisa. Com efeito, a testemunha referiu que o R. pagava «algum» (não todo) e voltavam a trabalhar. Mas também precisou que estavam em causa várias obras de várias empresas ligadas ao R. e em relação às quais a A. era credora (sem saber imputar pagamentos e assim sem estabelecer qualquer relação precisa com os factos em causa nesta acção). E, em sentido diverso, também referiu episódio com o ex-cônjuge do R. de onde derivava, indiciariamente, que quando esta já habitava a obra em causa havia dívidas pendentes (que a levavam, por vergonha, a não contactar o «patrão» da testemunha) – sendo este episódio verosímil, relatado de forma espontânea, de experiência vivida. Donde que este depoimento, não servindo naturalmente para demonstrar directamente o pagamento, seja a final, mesmo em termos indiciários, ambíguo e não concludente (e, em último termo, até tenda a funcionar em sentido contrário ao proposto pelo R.).

- depois, o lapso de tempo (2 anos) decorrido após a conclusão dos trabalhos sem que a autora reclame o pagamento, o que, para o R., não seria compreensível sem terem ocorrido pagamentos. Em rigor, ignora-se a data da «conclusão dos trabalhos». O lapso de tempo invocado assenta no facto de os últimos fornecimentos da A. terem ocorrido em Julho de 2014 (face aos factos provados), e na circunstância de se imputar a interpelação para pagamento ao email datado de 31.12.2017 junto com a contestação (também junto com a PI e que está reproduzido nos factos provados). Em si, o indício é frágil. Justificaria interrogações mas não sugere respostas seguras. Acresce que a testemunha DD [que também efectuou serviços para o R. e o procurava, juntamente com o representante da A., para obter o que lhe era devido, e depôs de forma coerente e consistente] revelou que houve várias tentativas de cobrança dos valores, sem sucesso, por parte da A. O que foi também veiculado pelo representante da A., BB, no seu depoimento de parte[5] (no qual este também deu explicações, curiais e em termos convincentes, para o atraso, assentes em dúvidas sobre a quem teriam que ser facturados os fornecimentos, dado o R. ter várias empresas a quem ia imputando os débitos – o que, aliás, também está reflectido no invocado email). Tudo fragilizando decisivamente o indício temporal invocado. 

- em terceiro lugar, invoca o R. o teor do referido email junto com a contestação, que considera revelar que a A. se preocupa com a facturação, por razões contabilísticas e tributárias, e não com a cobrança, o que indiciaria que não haveria pagamentos a fazer. Antes de mais, a afirmação não é exacta: no mesmo documento (email) consta a queixa da A. por estar a ser prejudicada por não ressarcida (i. é, paga) do que já liquidou, notoriamente reportando-se à sua situação de credora insatisfeita. O que bastaria para eliminar o valor do documento como indício de prévio pagamento – sem embargo de a questão da facturação ter sido também evidenciada no julgamento (revelando a forma como o R. imputava a empresas que controlava a facturação de despesas pessoais, o que dificultava a facturação, por ignorar a A. em nome de quem facturar), a partir do depoimento, isento, da testemunha EE [funcionário da A., por isso tendo conhecimento dos factos] - e bem assim, complementarmente, a partir do referido depoimento de parte.

A prova indicada pelo R., e bem assim a demais prova produzida, é claramente insuficiente para impor decisão diversa (art. 662º n.º1 do CPC) sobre a questão factual colocada. Aliás, ao invocar a presunção judicial, o R. está implicitamente a reconhecer inexistir, como de facto não existe, prova directa do pagamento (e sintomaticamente deixou cair o cheque junto aos autos, que não invoca).

Inexiste, pois, razão para alterar a decisão impugnada nesta parte. 

6. A qualificação do contrato (ou contratos) em causa vem erigida em condição da discussão do funcionamento, ou não, da prescrição presuntiva invocada pelo R.. Não parece, contudo, que tal qualificação seja realmente determinante, como se verá, mas constitui de todo o modo questão inerente ao recurso e prévia àquele problema.

7. A qualificação de um negócio analisa-se na identificação das suas características determinantes, as quais, através de um processo subsuntivo (nas situações mais claras) ou tipológico (quando o «parentesco» do negócio a uma figura típica se não mostra evidente), permitem identificar o tipo ou combinação de tipos negociais a que tal negócio se pode reconduzir (ou excluí-los, concluindo antes pela existência de um negócio atípico). Naturalmente, a aferição daquelas características determinantes depende essencialmente da concreta estipulação e regulação editada pela vontade das partes intervenientes no negócio, pelo que ela se traduz sempre num problema de interpretação da vontade negocial (vontade negocial entendida tal como vertida na estipulação e condutas adoptadas e não como abstracta manifestação de intenções).

           

8. Nesta interpretação, o princípio legal básico consiste na afirmação de que a declaração negocial valerá com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (art. 236º n.º1 do CC), sendo ainda que, nos negócios formais (quer essa forma seja legal ou voluntária), a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º n.º1 do CC). Quanto aos elementos auxiliares a atender nessa interpretação, são eles plurais e permutáveis, variando em função das condições de cada caso, tendendo a referir-se, como elementos atendíveis, os termos do negócio, os interesses em jogo, os propósitos ou finalidades perseguidos pelo declarante, os hábitos deste, ou os usos e costumes da prática em tais situações [v. M. Andrade, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, Coimbra Editora, pág. 313 (nota 1)], ou as negociações prévias, os actos preparatórios e as manifestações anteriores das partes às quais a declaração se reporte, o que as partes disseram e fizeram antes e depois da emissão da declaração negocial, o modo como posteriormente se prestou observância ao negócio e, de forma geral, todos os elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta [L. Freitas, O Ónus de Denunciar o Defeito …, Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil, Coimbra Editora 2002, pág. 226].

9. No caso, os elementos disponíveis são algo escassos, face à singeleza dos factos provados. Em termos essenciais, correspondem ao seguinte:

- a A. forneceu bens e serviços, serviços estes que correspondem grosso modo à instalação daqueles bens;

- desenvolveu essa actividade (fornecer e instalar) de forma repetida ou reiterada ao longo de período longo;

- tal actividade ocorre entre os mesmos sujeitos e sempre por referência ao mesmo objecto, objecto este descrito como casa de habitação pertencente ao R.;

- os bens fornecidos são, em regra, instrumentais de outro bem e necessitando de instalação para com aquele bens se articularem em termos funcionais e utilitários; exigem ainda uma preparação técnica específica para a sua instalação (estas asserções derivam do tipo de bens, à luz das regras da experiência: a generalidade das pessoas não detém condições para realizar, por si, a instalação).

- foi emitida uma factura que englobou todos os bens e serviços em causa, especificando os bens fornecidos mas também todas as específicas peças adicionalmente utilizadas (muito numerosas) e a mão de obra (superior a 200 dias de trabalho)[6], emissão que ocorre bastante tempo após os fornecimentos[7]

 - o objecto da A. é definido a partir da «instalação» de equipamentos, embora essa instalação seja, naquele objecto, essencialmente orientada para unidades industriais ou comerciais.

10. O R. discute especialmente a qualificação da relação estabelecida como configurando um contrato de fornecimento.

Este contrato de fornecimento constitui em termos gerais um negócio de execução reiterada (ou, em certo casos, continuada: v.g. fornecimento de electricidade ou água[8]), em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente (o fornecido). Esta obrigação (de realização de fornecimentos periódicos) constitui o cerne do contrato e permite qualificá-lo como um contrato duradouro: «a satisfação do interesse do fornecido exige que as prestações do fornecedor se realizem de forma repetida dentro de cada arco temporal». Não basta o mero estabelecimento de relações prolongadas no tempo para dar origem a um contrato de fornecimento. Este tem, ab initio, que ser querido para vigorar prolongadamente (de forma contínua), em ordem a proceder a periódicos e sucessivos fornecimentos de bens que, em regra, também envolvem alguma homogeneidade ou similitude.

Correntemente reconduzido a sucessivas compras e vendas, o contrato de fornecimento ajusta-se melhor à figura do contrato-quadro, cuja implementação requer a realização de sucessivos contratos de execução de acordo com as condições inicialmente fixadas, contratos estes configurados normalmente como compras e vendas, mas envolvendo também a existência de uma «cooperação comercial», analisada em outros tipos de prestações ou na atribuição de certas vantagens[9].

Ora, a situação apurada, mesmo à luz da singeleza dos factos, não se ajusta aos termos característicos do contrato de fornecimento (embora também se admita que este pode visar a prestação de serviços). Na verdade, os factos não permitem afirmar um acordo inicial visando execuções periódicas sucessivas (não permitem configurar a existência de um contrato-quadro ou ao menos de acordo de regulação sucessiva). E inexiste fornecimento periódico relevante pois as entregas e as prestações de serviços são distintas entre si e ocorrem em períodos próprios, sem periodicidade específica, reportando-se a bens de natureza diferenciada e com finalidades distintas, tendo cada operação (que envolve entrega de bem e prestação de serviço associado) um objecto autónomo, distinto do objecto das demais. Dando conta, desta forma, de falta de consistência interna dos «fornecimentos» e assim indicando a existência de prestações distintas e sucessivas, ainda que estejam entre si relacionadas, mas não de prestações periódicas sucessivas.

Não é possível, pois, afirmar a existência de um autêntico contrato de fornecimento.

11. Os factos descritos correspondem à situação corrente do fornecimento e instalação de bens, a qual suscita grandes dificuldades de qualificação face à concorrência, na situação, de elementos típicos da compra e venda e da empreitada.

No contrato de compra e venda, que transmite a propriedade de um bem mediante um preço (art. 874º do CC), o adquirente pretende aceder a um bem, impondo-se ao vendedor uma obrigação de dare. Eventual actuação subsequente do vendedor (instalação) terá um papel acessório ou subordinado face ao acesso à coisa, principal utilidade visada pelo adquirente.

No contrato de empreitada, pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço (art. 1207º do CC), o interesse do dono da obra radica no acesso a uma obra final (e não aos bens nela usados ou integrados), cabendo à outra parte (o empreiteiro) uma obrigação de resultado (de facere) conducente à realização da obra contratada, e o fornecimento de bens por este (legalmente prevista no art. 1210º n.º1 do CC) tende a constituir mera condição instrumental da realização da sua obrigação, sem autonomia.

Dependendo esta qualificação, como referido, em primeira linha da forma como se expressa a vontade das partes, deveria atender-se ao momento mais relevante do acordado, ou seja, avaliar se está em causa uma vontade de acesso ao bem (como produto acabado) ou ao resultado da instalação do bem. Esta aparente singeleza da questão é, porém, enganadora, dada a multiplicidade de formas de articulação da vontade das partes e os termos quase nunca inequívocos como tal vontade se manifesta, nem sempre se mostrando fácil descortinar qual o concreto tipo negocial querido pelas partes em cada caso (compra e venda, empreitada, contrato misto ou negócios autónomos sucessivos, coligados ou não).

Daí as conhecidas dificuldades em estabelecer um critério seguro de diferenciação entre os contratos de compra e venda e de empreitada. Vários critérios são adiantados: critério da acessoriedade, do factor preponderante, da referência do preço, da existência ou não da coisa ao tempo da encomenda, do carácter fungível ou infungível da coisa ou da configuração económica do contrato, entre outros. Nenhum critério se mostra, porém, absoluto ou concludente nos seus resultados. Assente o papel determinante da vontade das partes (também subjacente aos critérios adiantados), deverá atender-se aos contributos dos vários critérios (na verdade, aos contornos concretos da situação), na medida em que acentuam certos aspectos da regulação realizada e assim exprimem a real vontade das partes.

12. No caso, os factos provados não permitem uma resposta evidente ou clara mas apontam de forma mais relevante para a existência de contrato de empreitada. Ambas as prestações (de dare, inerente à venda, e de facere, própria da empreitada) surgem intimamente relacionadas, dando conta de uma unidade funcional entre elas (sem autonomia recíproca e assim sem convocarem contratos autónomos). Os bens em causa têm uma natureza instrumental, no sentido de que não são aptos a facultar, por si, utilidades imediatas, necessitando ainda de ser montados e associados a outros bens (instalados) para passarem a ter valor funcional. E este parece, na verdade, o aspecto determinante: não o acesso ao bem mas ao resultado da sua instalação (a obra), revelando um determinante interesse no funcionamento integrado na obra. Acresce que todos se associam à casa de habitação do R., tendendo a acentuar a natureza finalística da «aquisição», no sentido de que importava mais a sua incorporação funcional naquela casa do que a mera aquisição. Releva também, no mesmo sentido, que: i. alguns dos fornecimentos em causa se traduzem a final em intervenções «instaladoras» extensas e relevantes, com a produção de um resultado final que vai muito além de uma instalação acessória (v.g. os sistema de climatização por sistema VRF, pisos radiantes, produção de águas quentes sanitárias, ou sistemas de ventilação e extração); ii. que a intervenção instaladora teve uma duração muito relevante (mais de 200 dias de trabalho), acentuando a feição prestadora de serviços; iii. que essa intervenção envolve a utilização de ampla gama de material (vertido na factura), que excede em muito o mero fornecimento, e iv. que o tipo de bem em causa também revela que a instalação exige intervenção técnica, e em muitos casos extensa, superando um mero valor secundário da colocação ou instalação meramente subordinada à alienação. Dado acessório poderia ainda ver-se no objecto da A., que acentua a instalação (ou seja, a obra) em detrimento da alienação, sugerindo que esta é instrumental daquela. Neste quadro, a percepção de um declaratário normal tenderia justamente a privilegiar a finalidade funcional, última, dos bens em causa e assim a sustentar a qualificação do acordado como contrato de empreitada. Mormente porquanto «se do bem em causa só se pode retirar utilidade depois de ter sido montado, e se essa montagem carece de determinada preparação técnica, não se pode qualificar o contrato como de compra e venda»[10] - pois, sendo a prestação de montagem, apesar de sucessiva, indispensável para o uso do bem, o contrato, por via de regra, será de empreitada. De certo modo, prevalece a ideia de que o resultado final visado, o fim contratual, é a obra (a instalação), da qual o fornecimento é instrumental (ideia presente em P. de Lima e A. Varela[11]). Diversamente, J. M. Vilalonga tende a sustentar a existência de dois contratos, que podem estar em união/coligação[12], invocando para o efeito a função própria e destacável do bem instalado, não integrada nas finalidades intrínsecas do todo, mas critério este que também tende a claudicar, em termos gerais, por duas razões: internamente, porquanto o critério vai longe de mais (abrangendo realidades que constituem notoriamente empreitada, e não funcionando quando, por exemplo, a colocação do aparelho de ar condicionado vem incluída na construção integral da casa, o que não afecta a existência de uma sua função própria e destacável – o que tende a revelar o carácter falível do critério); e externamente porquanto em regra a vontade negocial não vem cindida nos termos propostos, padecendo a solução de alguma artificialidade; sem embargo de se notar que mesmo este critério se ajusta à qualificação como empreitada do caso em apreciação, de forma clara ao menos quanto a algumas das prestações, como o chão radiante ou as águas quentes sanitárias.

13. O carácter sintético dos factos não permite aferir se está em causa apenas um acordo global ou vários acordos autónomos, ou até um acordo inicial posteriormente ampliado (alterado). Não obstante, releva ainda a existência de uma unidade global, económica e de interesses, revelada pela proximidade e sequência temporal dos factos (pese embora um hiato inicial), perante os mesmos sujeitos e para a mesma obra, dando lugar a uma reclamação de preço unitária pelo A., a que o R. também responde globalmente.

14. Este o quadro no qual se inscreve a invocada prescrição presuntiva.

Segundo o art. 317º al. b) do CC, prescrevem no prazo de dois anos:

(…)

b) Os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor.

Os pressupostos formais da norma estão, aparentemente, verificados:

- a A., pela sua natureza e objecto, corresponde à previsão legal na parte em que se reporta àqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, levando em conta que a menção legal à indústria está tomada em sentido amplo (quer pelos seus termos, valendo como actividade, ou como actividade criadora de riqueza, quer pelas menções subsequentes, mormente quanto às menções à execução de trabalhos e à gestão de negócios);

- a empreitada integra-se em termos naturais na execução de trabalhos, como prestação de facere, menção dotada de grande amplitude (incluindo a obrigação de entrega do resultado da actividade[13]).

Sendo que adicionalmente também se demonstra que a prestação se não destina ao exercício industrial do devedor, por se destinar à casa de habitação do R. [embora, em rigor, tal não constitua requisito positivo do regime; a demonstração de que a prestação se destina ao exercício industrial do devedor constituirá facto impeditivo (a alegar e demonstrar pelo credor) do funcionamento do regime em causa].

O lapso de tempo em que assenta a prescrição estaria também decorrido, atentos os momentos temporais que os factos revelam e o facto de não ser discutida a exigibilidade do crédito ou, mais rigorosamente, o momento dessa exigibilidade (v.g., face ao art. 1211º n.º2 do CC).

Deste ponto de vista, poderia estar verificada a previsão da norma, devendo assim presumir-se o cumprimento da obrigação de pagamento (art. 312º do CC). 

15. Não obstante, tem sido jurisprudencialmente entendido (em termos claramente predominantes) que na previsão da «execução de trabalhos» se não compreenderiam as empreitadas de construção de imóveis, ou situações afins ou similares (v.g. realização de jardins), situações estas para as quais não valeriam as razões determinantes da previsão legal desta prescrição[14].

De um lado, por ocorrerem diferenças entre a hipótese legal e a situação daquelas empreitadas do ponto de vista estrutural e funcional, uma vez que as empreitadas envolvem em regra valores elevados ou sensíveis e se prolongam por períodos de tempo relevantes (por vezes muito longos), apresentando especificidades de regime que reflectem a sua natureza própria e se não ajustam ao tipo de situação subjacente à presunção de cumprimento – que pressupõe intervenções bastante limitadas, envolvendo valores pouco significativos, respeitando tipicamente à satisfação de necessidades do quotidiano[15]. Assim, na avaliação da formulação legal relativa à «execução de trabalhos» deve-se levar em conta que aquela «se destina a resolver de forma mais justa e eficaz, as situações relativas a trabalhos ocasionais que normalmente são executados e habitualmente pagos de imediato, sejam eles resultantes de prestações de serviços de execução rápida ou não, em que na maior parte das vezes nem sequer são emitidas facturas e recibos de quitação. É do conhecimento geral que isso acontece com frequência na generalidade dos contratos de empreitada relativos a reparações de automóveis, electrodomésticos, computadores e tantos outros bens móveis não consumíveis» [Ac. do TRL de 23/03/2006, secundado pelo Ac. do mesmo TRL, proc. 1485/07.0TJLSB.L1-2].

De outro lado, por estas diferenças entre os dois tipos de intervenção se reflectirem também na razão de ser do regime. Com efeito, e pese embora se verifique alguma oscilação no elenco das razões materiais da regra em causa, pode admitir-se que foi estabelecida «porque, socialmente, se trata (i) de dívidas que costumam ser imediatamente pagas, dado respeitarem a necessidades básicas ou imperiosas ou repetidas dos devedores e os respectivos créditos se destinarem ao sustento do credor, (ii) de dívidas cujo cumprimento não costuma dar origem a emissão de recibo de quitação, (iii) de dívidas que, quando dão origem a recibo de quitação, este não costuma ser mantido, (iv) de situações do quotidiano, mais ou menos banais e de prova muito dificultosa se não for feita imediatamente»[16]. Nenhuma destas razões se mostra presente em intervenções (mormente empreitadas) mais relevantes, que excedem o âmbito do que é imposto pela vida quotidiana, não têm relação com necessidades imediatas do devedor nem com o sustento imediato do credor, e envolvem valores elevados, onde o pagamento não é em regra efectuado de uma vez, nem de forma imediata ou pronta, e onde também não é curial o pagamento em dinheiro, sendo mais frequente a exigência de recibo (justamente pelos valores em causa) e acentuado o cuidado na conservação dos dados comprovativos do pagamento.

Por fim, deve também atender-se ao facto de a previsão legal ser, em termos literais, demasiado ampla, por abranger praticamente toda a actividade unilateralmente comercial (comerciante com não comerciante em sentido amplo), a qual conhece realidades que se não ajustam facilmente à severidade da previsão (e ao curto prazo de prescrição).

Também se refere, como decorrência da profissionalidade do credor, a existência de organização apta à cobrança como fundamento do regime [17], mas a asserção vai longe demais pois ela valeria para todo o credor profissional (comerciante) independentemente do tipo de actividade em causa e da natureza do devedor (pelo que não pode explicar as restrições que a lei opera); o mesmo vale para a tutela da fluidez do tráfico; ou para a afirmação (V. Serra) de que os credores vivem da sua indústria e é de presumir que exigem e lhes é feito o pagamento dentro de curto prazo.

16. Argumentos estes que também são mobilizáveis no caso vertente. Pese embora não esteja em causa uma construção de imóvel, mas trabalhos associados a um imóvel, eles têm ainda um significado muito relevante, pela natureza e extensão das intervenções, globalmente consideradas, estando também em causa valores muito sensíveis.

Assim, e de um lado, a situação em análise, na sua avaliação global mas também nos seus momentos componentes, distancia-se claramente daquele desenho típico da noção de «execução de trabalhos». Trata-se de intervenções amplas, envolvendo ocupação laboral extensa e investimentos relevantes, com amplitude temporal, integradas em obra singular, única e não recorrente, claramente distanciada das necessidades do quotidiano. Trata-se, pois, de intervenção que não corresponde à suposta na previsão legal. E, de outro lado, consiste também em intervenção que, pelas suas referidas características, também não encontra reflexo nas razões determinantes do regime. revelando que se situa fora do âmbito teleologicamente orientado do regime.

É certo que os factos não permitem revelar que está em causa apenas um contrato mas deve levar-se em conta que existe uma certa unidade global da intervenção, no sentido de que se trata dos mesmos sujeitos e de intervenções na mesma casa, atribuindo aso factos uma imagem global unitária, e que justifica, mormente que, os valores em causa sejam acoplados ou associados entre si, e que as partes, ou ao menos o credor, trate com certa homogeneidade a situação, sujeitando-a ao mesmo quadro.

17. Tudo permitindo afirmar que a situação não corresponde tipicamente ao caso previsto na lei (ficando muito além do tipo de execução de trabalhos, limitados e contidos, que a lei tem como horizonte de aplicação), nem se verificam quanto a ela as razões determinantes do regime (mormente não se tratando de situação onde o pagamento tem pouco significado, não sendo usualmente documentado nem sendo o documento comprativo guardado), justificando uma interpretação restritiva do regime e assim a exclusão da situação presente do seu âmbito de regulação. 

18. Sem embargo de se notar que a qualificação negocial como compra e venda[18] ou como contrato misto não alteraria os termos da questão por persistirem as razões apontadas. 

19. Não ocorrendo a prescrição presuntiva, e provado o contrato (e a realização da prestação da A.), tem esta A. direito ao pagamento do preço, como mero efeito do exigível cumprimento do contrato (no que não tem interferência a culpa do devedor – porque apenas se reclama o que deriva do acordado, aquilo a que se obrigou), nos termos dos art. 406º n.º1 e 1207º do CC.

 

20. Não sendo colocada nenhuma outra questão nesta sede (mormente quanto aos juros), nada mais cabe avaliar.

21. Decaindo, o R. deve suportar as custas do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).

VI. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

Custas pelo recorrente.

Notifique-se.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).     

           

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.


[1] Embora esta parte esteja onerada com o ónus de demonstrar o facto base da presunção.
[2] O que o art. 313º do CC confirma (embora restringindo à confissão o meio de demonstração do facto contrário).
[3] É duvidoso, com efeito, que deva qualificar-se a presunção como meio de prova dado constituir primeiramente um processo lógico e depender, depois, de outros (verdadeiros) meios de prova (na revelação dos factos indiciários, ou instrumentais na designação do CPC); não obstante, também continua a afirmar-se constituir um instrumento de convencimento do julgador e assim um meio de prova.
[4] Ou, de outra forma, «juízos de carácter geral formados sobre a observação da vida de todos os dias».
[5] Assume-se que o depoimento de parte não é probatoriamente irrelevante quando não seja desfavorável ao depoente (actualmente, tal asserção encontra apoio no lugar paralelo do art. 466º do CPC); de todo o modo, o depoimento de parte é aqui invocado em termos secundários (indiciários) e corroboratórios.
[6] O que decorre da referenciação da factura nos factos provados, assim remetendo para o documento junto que suporta tal referenciação.
[7] Nota-se que este nome é usado no texto no seu sentido corrente e não como referenciação técnica de certo tipo contratual.
[8] Estes apresentam características próprias, colocando-os em plano diferenciado e não relevante no caso.
[9] Sobre a figura, v. Carolina Cunha, O contrato de fornecimento no sector da grande distribuição a retalho: perspectivas actuais, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, vol. I, Coimbra Editora 2009, pág. 623 e ss., que em grande medida se acompanhou.
[10] Pedro Romano Martinez, Compra e venda e empreitada, in Comemorações dos 35 anos do CC (…), vol. III, Coimbra Editora 2009, pág. 242 (retomando a posição já constante do seu Direito das Obrigações). Sobre os termos da questão, v. o Ac. do STJ proc. 4301/16.8T8VIS.C1.S1.
[11] CC Anotado, vol. II, Coimbra Editora 1986, pág. 789.
[12] Compra e venda e empreitada, contributo para a distinção entre os dois contratos, ROA Janeiro de 1997, pág. 207 e ss.. Em sentido próximo, Pedro de Albuquerque e Miguel Assis Raimundo, Direito das Obrigações, vol. II, 2013, pág. 212/213 (aditando a possibilidade do contrato misto).
[13] Assim, Maria Raquel Rei, As prescrições presuntivas, Liber Amicorum Francisco Salgado Zenha, Coimbra Editora 2003, pág. 623.

[14] Trata-se, com efeito, de solução com ampla tradição jurisprudencial: v. Acs. do TRP proc. 9730198, do TRL proc. 1485/07.0TJLSB.L1-2, do TRC procs. 71368/15.1YIPRT.C1, 1278/05.9TBLRA.C1 ou 575/10.6T2AND.C1, do TRG procs. 252/09.0TBPRG.G1, 91/17.5T8PTL.G1 ou 235585/11.4YIPRT.G1, ou do STJ procs. 06A3693, 2643/12.0TBPVZ.P1.S1 ou 199632/11.5YIPRT.L1.S1 (todos in 3w.dgsi.pt, local onde são disponibilizados os demais Acs. a seguir citados).
[15] Na formulação acertada do Ac. do TRC proc. 575/10.6T2AND.C1.
[16] Maria Raquel Rei, op. cit., pág. 632.
[17] F. Cassiano, Direito Comercial Português, vol. I, Coimbra Editora 2007, pág. 155.
[18] Por si também integrável na prescrição presuntiva, no segmento inicial da referida al. b), atinente aos comerciantes (qualidade que a A. assume: art. 13º §2 do Cód. Comercial), aos objectos por si vendidos (coisas alienadas por compra e venda), e a quem não destine os bens ao seu comércio (como sucede na afectação à casa de habitação do adquirente).