Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
586/22.9T8PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: NEGÓCIO INVÁLIDO POR VÍCIO DE FORMA
REDUÇÃO
USUCAPIÃO
MERA DETENÇÃO
INVERSÃO DO TÍTULO DE POSSE
PRÉDIO INTEGRADO EM HERANÇA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
APLICAÇÃO ANALÓGICA
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PORTO DE MÓS DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 220.º, 221.º, N.º 1, 292.º, 947.º, N.º 1, 1252.º, N.º 2, 1263.º, AL.ª D), 1265.º, 1287.º, 1290.º E 2103º-A, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Não é possível operar a redução de um negócio inválido por vício de forma.
II – A ocupação de imóvel com base na autorização do proprietário constitui situação de mera detenção, insusceptível de conduzir à aquisição do imóvel por usucapião.

III – A realização de obras, e o seu pagamento, e o pagamento de impostos atinentes ao imóvel são insuficientes, especialmente quando existe relação familiar entre o proprietário e o detentor, para configurar uma situação de inversão do titulo da posse.

IV – O art. 2103º-A do CC não é analogicamente aplicável a outro herdeiro que tenha instalado a sua casa de morada de família em prédio integrado na herança indivisa.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: António Fernando Silva
Adjuntos: Sílvia Pires
Pires Robalo

           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. A presente acção foi intentada por AA e marido BB contra CC e DD, pedindo:

1. a redução da doação verbal Imóvel por parte do de cujus à AA., relativamente à falta de forma e, por conseguinte, condenar as RR. a reconhecer o direito de propriedade da AA. sobre o Imóvel. Assim não se entendendo,

2. reconhecido do direito de propriedade, por usucapião, dos Autores e, consequentemente, condenar as RR. na exclusão do Imóvel da Relação de Bens, no âmbito do processo de inventário nº 1043/20..... Ainda assim não se entendendo,

3. Reconhecido que o Imóvel constitui Casa Morada de Família dos Autores e, consequentemente, no direito da AA. em ser encabeçada na partilha/direito a preferir, em

primeiro lugar, na adjudicação do Imóvel, no âmbito do processo de inventário nº 1043/20.....

            Alegaram para tanto, no essencial, que:

- a A. e as RR. são herdeiras de EE e de FF, estando pendente processo de inventário relativo a estes, processo no âmbito do qual os interessados foram remetidos para os meios comuns quanto às questões colocadas pela A. quanto ao prédio urbano (fracção autónoma) em causa – questões aquelas que coincidem com as colocadas nesta acção.

- os AA. fixaram a sua residência desde 1984 naquela fracção autónoma, adquirida pelo FF, o qual, em Dezembro de 1987 (ano em que formalizou a aquisição), a doou verbalmente à A..

- face à nulidade da doação, por falta de forma, vale o art. 292º do CC, quanto à redução.

- sendo que o que está em causa é a forma do negócio e não a vontade negocial expressa pelo de cujus em doar o Imóvel.

- o que nenhum dos interessados, até ao momento da forma partilha, colocou em causa.

- e que o registo predial em nome do de cujus não prejudica dada a prevalência da ordem substantiva.

- foram os AA. que pagaram sempre as contribuições do imóvel, e realizaram sempre as benfeitorias a suas expensas, sendo tais factos do conhecimento direto das interessadas e dos seus respetivos familiares, assim como de todos em geral.

- o de cujus referiu em diversas ocasiões à AA. e à sua família que lhe dava a casa, o que esta aceitou.

- demonstrado que era vontade do de cujus doar o imóvel à A., deve-se reconhecer e determinar a redução da doação verbal do imóvel, relativamente à falta de forma da mesma.

- detêm a posse efetiva, de boa fé, pública, não titulada, agindo os AA. publicamente como proprietários legítimos do imóvel, com animus possidendi, há pelo menos 37 anos, pelo que o adquiriram por usucapião.

- o imóvel constitui a casa de morada de família dos AA., tendo por isso a A. “preferência” na adjudicação do Imóvel, ou seja, direito a ser encabeçada, no momento da partilha no direito de habitação da sua casa de morada da família.

- uma vez que o art. 2103º-A do CC visa proteger a casa de morada de família, possibilitando uma continuidade de vida no seu ambiente familiar, regime que deve ser aplicado analogicamente.

- além do mais, o espírito do processo de composição da partilha e respetivos quinhões é permitir um maior equilíbrio no preenchimento dos mesmos, inspirado no espírito de justiça, evitando o apossamento do acervo hereditário por aqueles herdeiros que tenham mais capacidade económica e financeira, porque dá prevalência à composição de quinhões

As RR. contestaram, impugnando a versão dos AA., mormente negando a existência de qualquer doação.

Foi fixado o valor da acção, realizado o saneamento da causa e fixados o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo as RR. do peticionado.

É desta decisão que vem interposto o presente recurso, no qual os AA. formularam as seguintes conclusões:

(…).

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, importa avaliar:

- a modificação da matéria de facto tida por demonstrada;

- a redução da doação verbal realizada;

- a aquisição por usucapião da fracção autónoma em causa;

- a atribuição do direito de habitação daquela fracção, enquanto casa de morada de família.

III. Estão assentes os seguintes factos:

1. A autora e as rés são herdeiras legítimas e diretas de EE e de FF, correndo termos o processo de inventário de ambos os de cujus, no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível ..., com o processo nº1043/20.....

2. No âmbito do referido processo foi relacionado sob a menção “BENS DOADOS PELO INVENTARIADO FF – DOADO VERBALMENTE À HERDEIRA, AA” a verba n.º 31 com a seguinte descrição: “prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, correspondente à fração autónoma designada pela letra F, destinado à habitação, com área de 108m2, sito na Travessa ..., na ..., inscrito na matriz predial urbana com o nº...84, da freguesia ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº...61, com o valor patrimonial de €49.420,35

3. Por despacho proferido no âmbito do referido processo, datado de 11.03.2022 foi decidido “Remeter os interessados para os meios comuns para apreciação das questões suscitadas nestes autos acerca da verba n.º 31 da relação de bens apresentada no dia 07.05.2021”

4. Por escritura pública de justificação, propriedade horizontal e compra e venda, celebrada a 28.12.1987 GG e mulher HH declararam, entre os mais, vender e FF declarou comprar o prédio identificado em 2).

5. O direito de propriedade sobre o imóvel identificado em 2) foi inscrito na Conservatória do Registo Predial ... a favor de FF a 03.09.1993 através da inscrição do n.º 2261/19....

6. Desde o ano de 1984 que os autores fixaram a sua residência na Rua ....,... ..., que constitui o prédio descrito sob na verba n.º 31 dos autos de inventário e identificado no ponto 2) e aí residem ininterruptamente desde então.

7. E fazem-no à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com autorização de FF e da sua mulher EE.

8. Foram os autores que, pelo menos desde 1993, procederam ao pagamento da contribuição autárquica relativa ao prédio identificado em 2).

9. Os autores realizaram a suas expensas diversas obras na cozinha, quarto de banho, na entrada e no telhado entre 1984 e 1986.

10. Os autores procederam ainda ao pagamento das despesas inerentes à utilização do imóvel, como os consumos de água e eletricidade.

11. Durante a vida da esposa EE, e, praticamente todos os domingos, FF, a esposa, a filha DD e do genro II, e por vezes dos netos JJ e KK, deslocavam-se à ..., ao prédio identificado no ponto 2).

12. Na Relação de Bens entregue por morte de EE nas Finanças em ... e com a assinatura do pai da autora e das Rés foi relacionado como verba n.º 5 daquela herança o imóvel identificado em 2) na proporção de metade.

IV. Foram tidos por não provados os seguintes factos:

a) Em dezembro de 1987 FF, pai da autora e das rés, declarou verbalmente doar o prédio referido em 2) à autora.

b) O imóvel referido em 2) foi adquirido por FF para habitação própria e permanente dos autores.

c) Os autores residem no imóvel identificado em 2) com a convicção de que eram seus proprietários.

d) FF referiu em diversas ocasiões aos autores e à sua família que lhe dava a casa.

e) Desde sempre que são os autores quem procedeu ao pagamento do IMI relativo ao imóvel.

f) FF pais entregava aos autores o relativo ao pagamento da contribuição autárquica.

g) Os pais da autora e das rés eram pessoas habituadas a negócios e tinham prática de atos notariais.

IV.1. Estando cumpridos os ónus, gerais e especiais, inerentes à impugnação da decisão sobre a matéria e facto, importa avaliar o seu mérito.

2. (…).

3. A primeira questão suscitada pelos AA. analisa-se na pretendida redução da doação verbal. O argumento, se bem se entende, constrói-se nos seguintes termos: como a doação não tem a forma legalmente exigida, reduz-se à manifestação (oral) da vontade do doador, que assim deveria operar por si (mesmo sem forma legal, de que assim se prescinde).

            Como a sentença recorrida suficientemente demonstrou, a pretensão não pode proceder.

Porque, em primeiro lugar, se não provou que ocorreu uma doação verbal, faltando assim o pressuposto inicial da construção jurídica sustentada pelos AA..

E porque, em segundo lugar, e ainda que assim não fosse, a solução jurídica sustentada pelos AA. não corresponde aos termos do sistema legal, Com efeito, a redução supõe uma invalidade parcial do negócio, um vício que afecte apenas alguma ou algumas das suas cláusulas, sendo válidas as restantes estipulações (não afectadas pela invalidade, podendo subsistir por si, e mantendo-se o mesmo negócio: art. 292º do CC). Como o vício de forma seria, no caso, total, abrangendo a totalidade do negócio, e incluindo assim, em particular, as estipulações essenciais que caracterizam o negócio (art. 220º e 947º n.º1 do CC), ficaria afastada a possibilidade ocorrer qualquer redução por não existir resto válido a salvaguardar. A circunstância de o vício de forma viciar as estipulações meramente acessórias quando verbais, por força do art. 221º n.º1 do CC, revela com acrescida clareza, se necessário fosse, que se não podem excluir de tal vício, como pretendem os AA., as estipulações negociais essenciais. O vício de forma pode permitir a conversão do negócio nulo, mas não a sua redução.

No limite, a construção dos AA. é circular e contraditória: parte da falta de forma como suporte da nulidade para chegar à falta de forma mas agora sem suportar o vício da nulidade. Na lógica da sua alegação, a invocação da redução (desprezando o seu exacto alcance) serviria para paralisar o regime da forma legal, que afinal nada prescreveria: nulo o negócio (ou seja, as declarações negociais) por falta de forma, reduzia-se o mesmo àquelas declarações negociais (as mesmas que deviam ser formalizadas e, não o sendo, se mostram nulas) e assim já valia o negócio … mesmo sem a forma legal. A construção é, obviamente, inconsistente e não tolerada pelo sistema.

4. Como segundo fundamento, invocam os AA. a aquisição por usucapião.

Também aqui a sentença recorrida responde com acerto ao fundamento invocado, não o acolhendo com razões justificadas.

Como é sabido, a posse, com certas características e mantida por certo lapso de tempo, pode conduzir à aquisição do direito de propriedade (art. 1287º do CC). Mas para tanto tem que existir, primeiramente, uma verdadeira posse.

Sobre o que seja esta posse, discute-se se o nosso sistema legal adoptou um sistema objectivo (assente no poder de facto sobre a coisa, o corpus) ou subjectivo (que combina aquele poder de facto com uma especial convicção de quem exerce tal poder, correspondente à vontade de exercer os poderes empíricos como se fosse titular do direito real correspondente – o animus). O tema, que se não reduz à mera contraposição entre teses objectivistas e subjectivistas puras[1], continua a conhecer grande divergência doutrinal[2]. E pese embora se admita que muitos dos problemas práticos emergentes possam ser resolvidos sem discutir o animus (na sua necessidade, existência ou extensão), a verdade é que aquela noção de posse (o seu alcance) continua a encontrar-se no centro de muitas questões práticas colocadas, o que ocorre justamente com o instituto da usucapião, agora em discussão (pois só o possuidor, e já não o detentor, pode usucapir: art. 1290º do CC).

Neste contexto, entende-se, com a posição praticamente unânime da jurisprudência[3], que o CC adoptou um sistema essencialmente subjectivo, no sentido de que a verdadeira posse não se basta com um exercício empírico de poderes sobre a coisa (ou, mais rigorosamente, com a imissão da coisa na «esfera de disponibilidade fáctica» do agente), exigindo ainda, mormente para uma cabal distinção das situações de mera detenção (que não constituiriam assim mero resultado de directas exclusões legais), uma especial «vontade de domínio». Tal derivaria especialmente dos art. 1251º (porquanto o tipo de actuação ali suposto só se compreende pelo animus) e, sobretudo, 1253º al. a) do CC, que directamente apela a um elemento subjectivo (norma que uma concepção objectiva não consegue cabalmente explicar sem lhe retirar alcance)[4], e, em particular, da inerente distinção legal entre detenção e posse (não assente apenas num elenco legal fechado de situações de detenção), reveladora de que o mero poder empírico sobre a coisa (ou o «poder de controlo material») não sustenta a distinção, sendo necessário um atributo adicional que se julga residir no animus[5] (mesmo o art 1252º n.º2 do CC, ao partir do poder de facto para fazer presumir a posse, assume, em articulação com o referido art. 1253º al. a) do CC, que esta posse se constitui por algo mais que aquele poder de facto).

Desta forma, a posse deve configurar-se como o resultado da união (biunívoca, como salientava Orlando de Carvalho[6]) entre aqueles elementos: possuidor é quem exerce (ou pode exercer) os poderes de facto sobre a coisa e o faz com intenção de exercer esses poderes em termos de um direito real (do direito real correspondente a esse exercício) – ainda que este animus não assuma uma vertente exclusivamente subjectiva mas assente em comportamentos reveladores («intenção exteriorizada»). União (biunívoca) que implica que o exercício dos poderes de facto (corpus) reclame uma intenção de domínio, e que esta intenção (animus) se exprima ou reflicta naquela actuação de facto. A posse é, no que ora monta, o comportamento sobre a coisa e a imanente intenção (em regra exteriorizada através daquele comportamento).

5. Os factos provados revelam que os AA. residem na fracção em discussão desde 1984, o que, pese embora a singeleza da afirmação, é suficiente para configurar o exercício de poderes de facto sobre a coisa: não se pode residir sem ocupar e utilizar o espaço. Asserção ainda confortada pelo facto de se demonstrar igualmente a realização de obras na fracção, pelos AA., o que concorre no sentido da conclusão exposta [já o pagamento de despesas, mormente, tributárias, constitui acto desligado da coisa, por não constituir acto empírico sobre ela, não se manifestando como forma de exercício de poderes de facto sobre a coisa; poderá valer apenas como indício de uma certa intenção (ou, para alguns, como exteriorização de inversão do título da posse)].

 Sucede que se não prova que os AA. residiam no «imóvel (…) com a convicção de que eram seus proprietários» [al. c) dos factos não provados].

Como a posse se caracteriza, como exposto, pela articulação corpus/animus, a falta da desmonstração de uma intenção (de exercício de direito real) ajustada aos comportamentos materiais apurados, e neles revelada, impediria a existência da posse.

E como, estando os AA. a invocar a titularidade de um direito, lhes cabe o ónus de demonstrar os elementos constitutivos desse direito (art. 342º n.º1 do CC) e, assim, lhes cabe revelar a existência da posse (o que inclui a demonstração do animus), aquela falta de demonstração impediria que se desse como existente uma autêntica posse, o que, por sua vez, excluiria o funcionamento da usucapião por faltar a posse em que este instituto assenta.

6. Esta asserção deve ser aproximada, porém, do regime do art. 1252º n.º2 do CC, no qual se estabelece que em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º.

Tal norma estabelece, em caso de dúvida, uma presunção de existência de posse quando exista o exercício de poder de facto (equivalente ao corpus), o que corresponde à presunção do animus (pois se o exercício do poder de facto constitui a base da presunção, necessitando de ser provada, e a posse exige ainda o animus, então é este animus que resulta presumido) [como resulta da interpretação fixada no Ac. Uniformizador de Jurisp. do STJ de 14.05.96, in DR II de 24.06.96, com apoio em H. Mesquita, in RLJ 132/24 e 27].

            No caso, persistindo o exercício dos poderes de factos sobre a coisa, mas não se demonstrando directamente o animus que presidiria àquele exercício, poderia justamente subsistir uma situação de dúvida[7], justificando o funcionamento daquela presunção.

7. A referida presunção não tem um carácter absoluto. De um lado porque se apresenta como subsidiária, já que apenas funciona em caso de dúvida: não basta, para funcionar a presunção, o exercício de poderes de facto, acresce a necessária existência da dúvida sobre os contornos da situação, dúvida que constitui assim elemento constitutivo da previsão legal. De outro lado porque, face ao disposto no art. 350º n.º2 do CC, e na falta de estipulação legal diversa, aquela presunção deve ser tida por relativa e assim ilidível pela prova da inexistência de animus (embora as duas situações sejam em regra sobreponíveis, pois a prova da inexistência de animus tende a coincidir com a exclusão da situação de dúvida, e vice-versa).

No caso prova-se que os AA. ocupam / habitam a fracção com autorização de FF e da sua mulher EE, proprietários presumidos (titulares registados, assim beneficiando da presunção decorrente do art. 7º do CRP). Estes factos, por exíguos, não permitem discernir com rigor os exactos contornos da situação (por exemplo, a afirmação é unilateral, nada dizendo sobre a existência, e conteúdo, de uma declaração de vontade dos AA.[8], nem, para além disso, se acordaram previsões sobre o conteúdo da situação, ou algum tipo de remuneração ou não[9]). Ou seja, não permitem ir além do próprio sentido do apurado.

Ora, a autorização para ocupar a fracção significa directamente, na singeleza do apurado, que os proprietários atribuíram aos RR. legitimidade para ocuparem a fracção, prescindindo aqueles do funcionamento dos meios de defesa da sua posição jurídica perante a intervenção daqueles. Trata-se, pois, de uma autorização constitutiva, pela qual os autorizados (os AA.) se tornam titulares de uma posição jurídica activa (por poderem praticar mais actos do que poderiam sem a autorização) como mero reflexo da vontade do autorizante[10] quanto à paralisação voluntária dos seus meios de defesa, mas sem a atribuição de qualquer específico direito (e levando em conta que se não prova, pois tal não deriva dos factos provados, que os autorizantes se obrigaram, por exemplo, a proporcionar o gozo da fracção - caso em que a qualificação deveria, ou poderia, divergir). Esta posição jurídica corresponde a uma situação precária pois constitui apenas um reflexo da restrição dos meios de defesa do titular da situação jurídica e configura assim uma mera possibilidade de actuação (ou uma legitimação precária da intervenção na esfera jurídica do autorizante) mas permanecendo a situação sob o domínio do titular da situação jurídica (do autorizante), o qual pode livremente pôr termo à situação[11]. Deste modo, os autorizados (os AA.) actuam com base na autorização e assim como meros detentores, aproveitando a autorização mas numa situação dependente, sem que fiquem a dominar o bem. Pois se a ingerência ocorre com base no consentimento (autorização) do titular, àquela ingerência não preside uma intenção de domínio próprio, constituindo a ingerência mera extensão do domínio do titular (do autorizante) (art. 1252º n.º1 e 1253º do CC[12]).

Correspondendo a intervenção «mediante favor do titular», a inclusão destas situações no âmbito daquele art. 1253º do CC não suscita reservas. Já a determinação da exacta hipótese (da alínea da previsão legal) que cobre a situação se apresenta menos segura, dependendo da forma como se estabeleçam os limites da intervenção e os limites das várias previsões legais. Por exemplo, discute-se se a tolerância que permite qualificar o poder de facto como mera detenção (art. 1253º al. b) do CC) pode basear-se em acordo ou autorização do titular do direito[13]. Tende a entender-se que na tolerância avulta uma dimensão passiva, assenta na inacção consciente do titular do bem, constituindo realidade distinta da autorização, activa. E que a autorização expressa estabelece um nexo entre sujeitos, nos temos já expostos, que permite configurar uma situação de exercício de poderes de facto como extensão de outrem, o que tenderia a apontar para a al. c) do referido art. 1253º do CC). Sem embargo, também se nota que estas discussões são em grande medida estéreis em termos finais pois, em último termo, sempre quedaria uma situação de mera detenção, qualquer que fosse a hipótese a que se reconduzisse a situação (aliás, e como nota a sentença recorrida, invocando a lição de Pires de Lima e Antunes Varela, as situações elencadas na lei não apresentam contornos fixos ou estanques, correspondendo, no limite, a uma situação única)[14]].

8. Sem que existam factos que permitam fazer intervir a inversão do título da posse como causa de aquisição originária da posse (art. 1263º al. d) e 1265º do CC). Como se sabe, esta forma de aquisição da posse assenta numa situação de detenção em que o detentor converte a sua detenção em posse através de um processo (em si essencialmente psicológico) pelo qual substitui a razão a cujo título exercia os poderes de facto, passando a actuar com animus possidendi (em termos de um direito real). Pode ocorrer por acto de terceiro (capaz de transferir a posse, o que não ocorre no caso) ou por oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía. Oposição esta que, a ter que ser expressa ou directa, não tem qualquer suporte nos factos provados. Admitindo-se a validade de uma oposição implícita (assente num comportamento não declarativo, ou seja, sem declaração expressa ou directa), esta sempre teria que ser inequívoca e sindicável, manifestada através de actos concludentes, revelando com clareza que o detentor passou a invocar uma posição jurídica real. E tal não ocorre.

Com efeito, o pagamento de despesas inerentes à vivência no local mostra-se em linha com a utilização autorizada, sendo-lhe inerente de acordo com um padrão de normalidade (se usa para viver com autorização, paga o que a essa vivência é inerente). São, do ponto de vista em causa, indiferentes, por não envolverem uma oposição clara.

A realização de obras, temporalmente limitadas, é também compatível com a referida autorização e inerente utilização, não revelando por isso uma clara oposição do detentor ao possuidor. Quanto ao pagamento de impostos devidos em relação com a coisa, já se entendeu, como se referiu supra, que poderia constituir um acto de oposição ao possuidor[15]. A afirmação suscita reservas, em si, dada a ambiguidade e insuficiência intrínseca da actuação, sobretudo no caso vertente, em que, à autorização e ao uso prolongado e contínuo, se associa uma relação familiar próxima e a inexistência de demonstração de qualquer pagamento pela ocupação. Ou seja, trata-se de actos que não são manifesta ou necessariamente contrários à autorização concedida, e assim se revelam pouco idóneos do ponto de vista conflitual suposto na oposição que subjaz à inversão do título da posse. Aliás, já se sustentou, com razão, que quando há entre detentor e possuidor um vínculo de parentesco próximo (pai-filho(a), como no caso), a inversão do título da posse deve ser especialmente demonstrada, sob pena de a situação possessória poder ser confundida com outra relação de origem familiar[16]. É esse o caso dos autos, não se julgando que aquela real demonstração da inversão se possa alicerçar nos exíguos factos provados. Tudo permitindo afirmar que estes dados factuais não são suficientes para sustentar uma oposição clara e categórica (enérgica) dos AA., quer por não exteriorizarem seguramente, só por si, qualquer intenção de domínio, quer por se mostrarem conformes a um uso vivencial tão prolongado no tempo quer por, no limite, não se distanciarem decisivamente do conteúdo do acto autorizativo de cariz familiar próximo (este ainda os pode compreender) que legitima a intervenção.

Por fim, nota-se também que os actos de oposição devem ser praticados na presença ou com conhecimento do possuidor pois a inversão tem de efectuar-se «contra a pessoa em nome de quem detinha através de actos públicos dela conhecidos, ou cognoscíveis, sob pena de tal actuação não ter relevância jurídica, porque desconhecida daqueles que poderiam reagir a essa reclamada inversão do título possessório»[17]. O que também não está demonstrado, pois os factos provados não traduzem esta realidade.

Inexiste, pois, inversão do título da posse.

9. Deste modo, o exposto não apenas afasta a dúvida que suportava a aludida presunção legal (do animus) como directamente revela que inexiste uma intenção de domínio equivalente ou inerente ao exercício de poderes de facto.

O que exclui determinantemente o apelo à figura da usucapião por inexistir verdadeira posse que a sustente (citado art. 1290º do CC).

            10. Por fim, invocam os AA. o facto de habitarem na fracção para, enquanto casa de morada da família, sustentarem o direito da A. ser encabeçada no direito «a preferir na adjudicação do imóvel, no âmbito do processo de inventário», ao abrigo do art. 2103º-A (n.º1) do CC.

            Segundo esta norma, o cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada da família e no direito de uso do respectivo recheio, devendo tornas aos co-herdeiros se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver.

            Face aos factos apurados e ao teor do art. 10º n.º3 da Lei 83/2019, de 03.09, o qual dispõe que a casa de morada de família é aquela onde, de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges ou unidos de facto, pode admitir-se que os AA. têm a sua casa de morada da família instalada na fracção em causa.

Literalmente, aquele art. 2103º-A n.º1 do CC não contempla a situação da A., filha dos inventariados (e sua herdeira), por apenas atribuir o direito em causa ao cônjuge sobrevivo.

            Os AA. não sustentam a sua pretensão, porém, na aplicação directa de tal norma. Diversamente, invocam a existência de lacuna legal quanto à situação do herdeiro (que não seja o cônjuge sobrevivo) que tem a casa de morada da família instalada em bem («casa») da herança, lacuna que deveria ser suprida pela aplicação analógica daquele art. 2013º-A do CC, invocando para tanto os art. 9º e 10º do CC.

           

11. Condição primeira da aplicação analógica de certa norma legal é a existência de uma lacuna de regulamentação jurídica. Esta lacuna corresponde, na fórmula legal (art. 10º n.º1 do CC), aos casos que a lei não preveja. Supõe uma situação relevante para o direito (que deva ser juridicamente regulada) mas que o sistema normativo[18] não contempla, não lhe dando solução. Assenta assim numa incompletude do sistema, definida por dois factores: a ausência de regulamentação e a exigência dessa regulamentação[19]. Daí ganhar sentido a ideia da lacuna enquanto “incompletude contrária a um plano”, em que o sistema omite regulação que se deveria integrar no seu sentido regulativo. Em fórmula sintética, a lacuna ocorre «quando há caso mas não há regra».

            12. O que está em causa, na situação em apreciação, é, em primeira linha ou em termos gerais, a regulação da distribuição dos bens integrados em património hereditário. Nesse sentido amplo, a situação encontra regulação: a atribuição dos bens, na falta de acordo, segue o regime do processo de inventário (máxime licitação, adjudicação, sorteio – art. 1113º, 1115º, 1116º ou 1117º do CPC). A atribuição preferencial da casa de morada de família constitui apenas um caso especial de adjudicação de bens (rectius, de direito de preferência na atribuição dos bens, concretizado depois na constituição de um direito real menor), sujeito a regime próprio mas integrado no procedimento geral de distribuição dos bens hereditários. Não valendo este regime especial, vale então o regime geral, ao qual se subordinaria justamente a A.. Neste sentido, não existe incompletude do sistema, ou lacuna de regulação, por existir regra aplicável (não se podendo falar, pois, em «caso sem regra»).

           

            13. Assim, e em rigor, o que os AA. sustentam é que esta regulação é desajustada à sua situação, por confronto com a situação do cônjuge sobrevivo que tem a casa de morada de família instalada em bem da herança, e que a sua situação merece igual tratamento que esta situação. Neste sentido mais estrito, a lacuna residiria especificamente na falta de regulação de situações em que se encontra instalada em bem da herança a casa de morada de família de herdeiro (sem título de ocupação que sobreviva ao fenómeno sucessório). O conflito de interesses não se situaria entre posições iguais concorrentes face aos bens (como ocorre entre os herdeiros sem mais) mas entre a posição do herdeiro que tem a casa de morada de família instalada em bem da herança e as posições de quem tem apenas o interesse geral decorrente da sua qualidade de herdeiro. E não estaria regulado e deveria sê-lo em termos similares aos prescritos para a casa de morada de família do cônjuge sobrevivo.

A descoberta de uma lacuna de lei, na modalidade aqui em causa, assenta na própria analogia que serve para a preencher: baseia-se na verificação da existência de norma que regule conflito de interesses análogo àquele para o qual se não encontra regulação directa[20]. Depende, assim, da avaliação da razão de ser e finalidade da norma (ratio legis), da qual deve resultar que a categoria de casos que a lei prevê abrange uma outra categoria (ou sub-categoria), valorativamente idêntica, que a lei não contemplou.

14. Ora, deve começar por sublinhar-se que as duas situações em causa não são equivalentes.

O direito de preferência em causa derivou de intervenção legal que visou expressamente revalorizar a posição sucessória do cônjuge e reforçar a sua tutela (v. preâmbulo do DL 496/77, de 25.11)[21]. A este direito de preferência, em particular, preside uma especial intenção de beneficiação e protecção do cônjuge sobrevivo, face à posição dos demais herdeiros, e em função de razões que são próprias (exclusivas) deste cônjuge. Logo por aqui se começa a traçar uma intencional diferença legal entre a posição do cônjuge sobrevivo e dos demais herdeiros, diferença esta tendencialmente hostil a uma ideia de lacuna de regulação no que a estes respeita.

Depois, e quanto ao objecto da tutela, a norma em causa reporta-se à residência habitual do agregado familiar em que o de cujus e o cônjuge sobrevivo se integravam (de que constituam o ponto nuclear), assegurando «a manutenção do lar conjugal, tal como este era configurado antes da morte do de cujus»[22]. Não visa pois, ao contrário do que os AA. sustentam, a casa de morada de família em si mas a posição do cônjuge sobrevivo no que a esta casa de morada de família respeita.

Quanto ao fundamento da solução, os termos da sua enunciação variam. Fala-se, a propósito, de protecção face a um certo grau de possibilidade de carência económica do cônjuge sobrevivo[23] e em razões éticas e sentimentais (assegurar ao cônjuge sobrevivo a manutenção do ambiente e nível de vida em que estava inserido) [Capelo de Sousa], na valorização da especial ligação que o cônjuge sobrevivo tem com certos bens e de conceder uma garantia contra a possível fraqueza negocial desse cônjuge face aos demais interessados [Guilherme de Oliveira/Pereira Coelho], de assegurar ao cônjuge sobrevivo a possibilidade de continuar vivendo no ambiente que era seu [Nuno Cid], de atender a que certos bens tinham uma ligação mais forte com a vida conjugal, bens que estiveram ao serviço do casal e que por isso devem continuar ligados ao cônjuge que sobrevive [França Pitão] ou na intenção de proporcionar ao cônjuge sobrevivo o mesmo quadro de vida, o mesmo ambiente que vivera na vigência da sociedade conjugal [Espinosa Silva].

Todas estas considerações gravitam, porém, em torno de ideias centrais que são exclusivas da situação do cônjuge sobrevivo face ao falecimento do seu cônjuge. Quer-se evitar que a disrupção derivada do óbito, fazendo cessar o projecto de vida comum, se estenda ao centro da organização pessoal e vivencial do cônjuge sobrevivo, ao espaço de intimidade e segurança, impondo ao cônjuge sobrevivo uma segunda violência: a cessação da relação conjugal era ainda acentuada pela imposição de mudança de aspecto central da sua vida pessoal. E isto num momento em que, em regra, estará mais fragilizado e, ao menos de forma tendencialmente corrente, se encontra numa fase já adiantada da sua vida. Visa-se, pois, evitar que o efeito traumático do óbito, terminando a união existente, se amplie com a terminação também da situação vivencial, permitindo que se mantenha o seu centro de vida e a sua vivência no espaço a que já tinha ligação e onde radicava a sua intimidade. Em suma, «continuar vivendo no ambiente que era o seu» (referido preâmbulo). O que poderia não conseguir face aos demais interessados sem a solução legal, mormente por fragilidade económica. Ou seja, não se tutela especificamente a casa de morada da família mas a posição do cônjuge em função da sua relação com a casa de morada da família e da fragilização decorrente do óbito do companheiro de vida. Intervém uma ideia de continuidade (do centro de vida), que também poderia concorrer na situação dos AA., mas assente em valorações que não são transferíveis para os demais herdeiros que ocupem bem da herança. Quanto a estes, inexiste aquela necessidade de tutela acrescida.

15. Asserção que se confirma por outras vias.

Desde logo, aquele direito apenas cabe ao cônjuge e já não cabe ao ex-cônjuge (ou ao cônjuge separado judicialmente de pessoas e bens, dado o disposto no art. 2133º n.º3 do CC), ainda que este (ainda) tenha a sua casa de morada de família instalada em bem da herança (e até que este bem se integre no património conjugal comum, ainda não partilhado[24]). Isto revela que a existência de casa de morada de família não é em si o critério da solução legal.

16. Estando os referidos valores que justificam a solução do art. 2103º-A do CC tendencialmente presentes na união de facto (em que os unidos partilham de uma morada comum, em situação similar à dos casados entre si, embora a sua situação se diferencie destes justamente por terem querido evitar o estatuto legal decorrente do casamento), o legislador tratou de regular a sua situação, criando regime semelhante mas com diferenciações adaptativas (art. 5º da Lei 7/2001, de 11.05, na redacção da Lei 23/2010, de 30.08).

Esta intervenção legal envolve dois sinais: um positivo, confirmando que o legislador só pretende intervir na morada de família comum ao de cujus e ao sobrevivente (unido de facto), por razões associadas à união que subsistia aquando do óbito de um deles (onde permanecem as valorações próprias da situação paralela derivada do casamento); outro negativo, revelando que o legislador, intervindo apenas nos casos referidos (únicos onde intervém a morada do de cujus e do elemento sobrevivo da relação), não pretende assimilar outras situações (ou regular genericamente a atribuição sucessória da casa de morada da família fora dos casos elencados).

O próprio tratamento menos intenso da situação do unido de facto (v.g. a limitação temporal do direito concedido, não vitalício como ocorre no casamento) revela que o legislador faz variar também o grau de protecção devido a cada situação, recusando uma ideia de equivalência de situações quanto à situação da casa de morada de família. Ou seja, não se dirige a esta mas à situação particular em que se encontra quem a ocupa, e que trata de forma diferenciada em função da situação. Pelo que pode também diferenciar as situações não carecidas de tutela, que omite (deixando a atribuição dos bens entregues ao regime comum).

17. O legislador não foi, em geral, sensível à instalação de casa de morada da família em bens da herança fora dos casos referidos. Nessas situações, o destino da casa de morada de família depende do vínculo existente com o bem, i. é, do regime jurídico que preside à ocupação do bem onde se mostra instalada a casa de morada da família. Plano este em que o herdeiro que ocupe bem da herança com a sua casa de família não tem posição especial: aquela sua qualidade é para o efeito indiferente.

18. A própria natureza do direito atribuído (direito real limitado) tende a ajustar-se à situação do cônjuge sobrevivo, à ideia de manutenção do seu status quo familiar mas em termos não definitivos e levando em conta regra da normalidade segundo a qual não terá duração muito prolongada, ficando logo definida a titularidade subsequente (a partir da propriedade de raiz, atribuída sucessoriamente), não havendo razão para atribuir tal direito (perturbador da ordenação definitiva do domínio, para que se tende) a outros sujeitos fora das mesmas condições

19. Neste quadro, o que ressalta é que as situações em causa não são valorativamente equivalentes. Ora, como referem P. de Lima e A. Varela, a «analogia das situações mede-se em função das razões justificativas da solução fixada na lei, e não por obediência à mera semelhança formal das situações».

Ressalta também que a qualidade de herdeiro qua tale (diferente da qualidade de cônjuge sobrevivo[25]) é acidental para o regime, no sentido de que não o determina. 

Por isso que se entenda inexistir qualquer lacuna a suprir. Ao invés, verifica-se que o legislador atentou nas situações e interveio justificadamente, deixando de fora do regime as demais situações (incluindo aquela em que se encontra a A.) por deverem sujeitar-se ao regime geral, sem tratamento especial. Nesse sentido, a falta de previsão constitui «silêncio eloquente», traduzindo a opção do legislador em excluir, intencionalmente, certa situação do comando legal (este aplica-se apenas aos casos nele especificados), excluindo-se a analogia. Situação que é particularmente evidente a partir da consideração da união de facto. Com efeito, onde havia paridade bastante, similitude de facto e sobretudo valorativa, o legislador interveio; no mais, sem paralelo, deixou prevalecerem as regras gerais.

20. Os AA. invocam ainda argumento atinente ao equilíbrio no preenchimento dos quinhões dos herdeiros que «o espírito do processo de composição da partilha» prossegue, «evitando o apossamento do acervo hereditário por aqueles herdeiros que tenham mais capacidade económica e financeira». Trata-se, porém, de asserção que, independentemente do seu mérito, nada acrescenta à discussão, pois não se relaciona com a reclamada aplicação analógica do art. 2103º-A do CC (que é alheio a considerações atinentes à limitação do poder de «apossamento» dos herdeiros economicamente mais favorecidos). Sempre se nota, contudo, que o regime legal visa efectivamente a igualação patrimonial dos herdeiros, e até tendencialmente a igualação quanto à natureza dos bens atribuídos a cada um (v. art. 1117º n.º1 do CPC), mas não o faz criando direitos a atribuições preferenciais. 

21. Improcede assim integralmente a pretensão recursória dos AA..

            22. Decaindo, os AA. suportam as custas do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).

VI. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

Custas pelos recorrentes.

Notifique-se.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):  

            (…).

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.


[1] A dificuldade do tema está desde logo revelada pelas várias posições intermédias, que combinam subjectivismo com elementos objectivistas e, inversamente, objectivismo com manifestações subjectivas, e ainda por posições que se pretendem superadoras da distinção.
[2] Sobre as várias posições, v. J. L. Bonifácio Ramos, Manual de Direitos Reais, AAFDL 2022, pág. 204 e ss. ou, mais completo mas mais datado, Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações, vol. I, tomo I, Almedina 2008, pág. 120 e ss. - em elencos que, porém, não são exaustivos, não contemplando, por exemplo, as tomadas de posição relativamente mais recentes de Vassalo de Abreu ou de Rui Mascarenhas Ataíde.
[3] V. a título exemplificativo, em termos expressos ou implícitos (i. é, assumindo o animus como elemento constitutivo da posse), Acs. do STJ proc. 4753/07.7TBALM.L2.S1, 215/16.0T8VPA.G2.S1, 460/11.4TVLSB.L1.S2, 326/2000.E1.S1, 120/2000.S1, 373/11.0TBLLE.E1.S1, 1578/11.9TBVNG.P1.S1 ou 638/15.1T8STC.E1.S1 (todos em 3w.dgsi.pt).
[4] Sobre estas questões, por último, v. Armando Triunfante, O arresto e a posse, Julgar 51, pág. 12 e ss..
[5] E não, por exemplo, numa «espiritualização» da posse, atinente à mera faculdade de o agente, que detém o controlo material da coisa, lhe conferir as afectações que entender e a coisa admita (o que não sucederia com o mero detentor) – pois a mera potencialidade de uso não chega para delimitar a posse, para além de suscitar sérias dificuldades de demonstração prática.
[6] RLJ 105/68: nestes termos, não existiria corpus sem animus nem animus sem corpus:.
[7] Naturalmente, a falta de prova do animus não equivale à demonstração da sua inexistência.
[8] O máximo que se pode dizer é que os AA. actuaram em conformidade com aquela autorização, como se explicita a seguir.
[9] A falta de prova (ou de alegação) da existência de contrapartida não equivale à demonstração da sua não previsão pelas partes.
[10] Ainda que unilateral, e sem objecção derivada do art. 457º do CC, na medida em que o titular da situação pode, em princípio, praticar livremente actos que apenas afectam a sua esfera jurídica.
[11] Sobre o exposto, v. P. Leitão Pais de Vasconcelos, A Autorização, Coimbra Editora 2012, especialmente pág. 130 e ss., 155 e ss. e 206 e ss., o qual se seguiu com proximidade.
[12] Naturalmente, não se adopta a solução objectivista que vê na previsão da al. a) deste art. 1253º apenas a situação de quem, exercendo poderes de facto sobre a coisa, declara não ser possuidor («protestatio»), carecida de apoio literal e racional (a mera declaração deve ser tida, em rigor, como irrelevante) mas a questão não releva decisivamente no caso.
[13] V. sobre as questões, J. L. Bonifácio Ramos, Manual de Direitos Reais cit., pág. 195, ou, sobre este ponto, Armando Triunfante, Coment. ao CC, Direito das Coisas, UCE 2021, pág. 28.
[14] Também assim J. L. Bonifácio Ramos, Manual de Direitos Reais cit., pág. 196.
[15] Assim, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora 2008, pág. 590.
[16] V. Paulo S. Soares do Nascimento, anotação em CDP 18, pág. 22.
[17] V, Ac. TRC de 18.02.2014 in 3w.dgsi.pt.
[18] E não sistema legal, porque inexiste lacuna quando sejam aplicáveis regras com fonte não legal ou existam princípios mobilizáveis.
[19] V. M. Teixeira de Sousa, Introdução ado Direito, Almedina 2023, pág. 387.

[20] J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina 1995, pág. 196, e Agostinho Cardoso Guedes, Nótula Sobre o Preenchimento de Lacunas da Lei Segundo o Art. 10.º do Código Civil Português, RIDB, Ano 2 (2013), nº 11, pág. 12557 (disponível online).
[21] Manifestada, além do direito em causa, na instituição do cônjuge como herdeiro legitimário, na garantia de quotas hereditárias mínimas (conforme com quem concorra na sucessão) e na dispensa de colação (ao menos na solução literal da lei e maioritariamente acolhida).
[22] V. Isabel Menéres Campos, CC Anotado, Livro V, Almedina 2022, pág. 133.
[23] Para disputar a titularidade do bem face aos demais herdeiros, ou para obter nova habitação (já tem que dispor de capacidade económica para pagar eventuais tornas, pois o regime não visa avantajar a sua posição patrimonial face aos demais herdeiros).
[24] A casa de morada de família é tutelada no divórcio (e na separação judicial) mas em termos diferenciados (art. 1793º e 1794º do CC).
[25] Que será também herdeiro; mas não é esta qualidade, mas aquela, que determina o regime.