Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
570/19.0GCLRAR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CONVICÇÃO DO JUIZ
ABSOLVIÇÃO DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONDIÇÕES DE PROCEDIBILIDADE PARA A CONDENAÇÃO POR CRIME PARTICULAR
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DA ASSISTENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 410.º, N.º 2, E 412.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGOS 181.º E 188.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário:
I – Em sede de “revista alargada” o tribunal de recurso limita-se a detectar se a decisão da primeira instância padece de algum dos vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do C.P.P.

II – A convicção do juiz é formada pela conjugação dialéctica de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, certezas, lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

III – Tendo a ofendida apresentado queixa por factos que o Ministério Público entendeu configurarem o crime de violência doméstica e que integravam, numa relação de concurso aparente, vários crimes, nomeadamente de injúria, a constatação, após o julgamento, de que os factos julgados provados integram a prática de um crime de natureza particular não tem qualquer efeito sobre o procedimento iniciado e desenvolvido de forma válida, designadamente sobre a legitimidade do Ministério Público de promover a acção penal.

IV – Nesta situação não renasce, nesta fase, a questão relativa à procedibilidade do procedimento ou legitimidade do Ministério Público para a prossecução do processo, pois a imputação criminosa inovatória resultou de actividade cometida ao tribunal, apenas obstando ao curso normal do processo a apresentação de desistência de queixa por parte do ofendido.

Decisão Texto Integral:

            Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I- Relatório

           

            1. … o MºPº deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, alínea a), nº2 alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal e de um crime de violência doméstica, p. e p. e art. 152º, nº1, alínea d), nº2 alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal, com base nos factos constantes da mesma.


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            2. …, foi proferida sentença, em 3 de maio de 2023, na qual se decidiu:

            a) Absolver o arguido da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, …(na pessoa de AA), e de 1 (um crime) de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea d), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal (na pessoa de BB), de que o mesmo vinha acusado;

            b) Julgar extinto o procedimento criminal deduzido contra o arguido – por falta de condições de procedibilidade – pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal (na pessoa de AA).


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            2. Inconformados com o decidido, recorreram o Ministério Público e a Assistente … [esta requerendo, apenas, a sua constituição como assistente no decurso do prazo para interposição de recurso da sentença, …], extraindo da motivação dos recursos por si interpostos as conclusões …

            2.1. Do recurso do Ministério Público:

            1 – Consideram-se incorrectamente julgados os factos das alíneas d), f, m, n, cc, ee, ff, gg, hh, ii, jj, kk, ll e mm, da rubrica “factos não provados”.

                    …

                    5 – Toda a prova impõe necessariamente decisão diversa.

                    …

                    27 - Ora, todos estes factos dados como provados e os que deveriam ser dados como provados e o não foram, integram, na sua globalidade, a prática do crime de violência doméstica.

                    …

                    35 - Porém, se assim não dever entender-se, o que apenas se considera como mera hipótese académica, deveria o arguido ser condenado, pelo menos pelo crime de injúrias.

                    36 -Na realidade, no crime de violência doméstica incluem-se os crimes de injúria e difamação.

                    …

                    39 – Uma corrente jurisprudencial destaca que, encontrando-se o arguido acusado ou pronunciado como autor de um crime de violência doméstica e não se apurando, em audiência de discussão e julgamento factos bastantes para o preenchimento dos requisitos típicos de tal crime, mas apenas suficientes para imputar ao arguido a autoria de um ou mais crimes de natureza particular, isso não constitui obstáculo à condenação do arguido pela pratica de crimes de natureza particular, independentemente e ter havido queixa ou/e constituição formal como assistente.

                    40 - Outra corrente jurisprudencial, embora reconhecendo legitimidade do ofendido para exercer a ação penal pelo crime de natureza particular, apenas permite que a mesma se exerça após o cumprimento do artigo 359.° do Código de Processo Penal – C.P.P. (alteração substancial) e só não havendo oposição é que se permite a legitimidade da condenação

                   

                    41 - E se assim não se entender, encontrando-se o arguido acusado como autor de um crime de violência doméstica, abrangendo este crime as injúrias, as ameaças e as ofensas físicas, mesmo que os últimos (ameaças e ofensas físicas) não fossem dados como provados, mas apenas a autoria de crimes de natureza particular (injúrias), deveria ter sido proferida condenação pela pratica desses crimes de natureza particular, independentemente de ter havido queixa ou/e constituição formal como assistente.

                   

                                                                                                                     


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            2.2. Do recurso da Assistente …:

            “A. Os factos d), f), m), n), cc), ee), ff), gg) e hh) do rol de factos «não provados» devem todos ser julgados como «provados» em decorrência da sua reapreciação e da renovação dos meios probatórios …

                    C. Houve assim erro notório na apreciação da prova ( artº 410º, nº 2, alínea c) do C.P.C.).

                    D. A sentença em apreço é claramente violadora do artigo 127.º do C.P.P.

                    E. Atenta a alteração da matéria de facto provada encontram-se demonstrados os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica.

            …


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            3. Admitidos tais recursos, foi o arguido notificado, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 411º, nº6 do CPP, tendo o mesmo apresentado resposta apenas ao recurso interpostos pelo Ministério Público, …


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            4. Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência de ambos os recursos, …

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            II-  Fundamentação

            A) Delimitação do objecto dos recursos

            … as questões a decidir nos presentes recursos são as seguintes:

            - Do recurso interposto pelo Ministério Público:

            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

            -A verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de violência doméstica imputado ao arguido;

            - A verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de injúria e das condições de procedibilidade para a condenação do arguido pela prática do mesmo.

            - Do recurso interposto pela Assistente:

            - A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

- A verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de violência doméstica imputado ao arguido.


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            B) Da decisão recorrida     

Para a resolução destas questões, importa ter presente o que consta da sentença recorrida, a qual, na pare relevante para apreciação das mesmas, se transcreve:

“II- Fundamentação

A) Factos Provados

Discutida a causa, e com pertinência, resultaram provados os seguintes factos:

1. Em 10/09/1988, AA e o arguido, CC, casaram catolicamente.

 2. Deste relacionamento nasceram DD e BB, respetivamente, no dia 20/12/1990 e 17/12/1996, ambas maiores de idade.

3. BB é portadora de uma deficiência genética - Síndrome de Turner – que lhe provoca 70% de incapacidade cognitiva.

4. O casal residia na Rua ..., ... (...).

5. O arguido ingeria bebidas alcoólicas.

6. As discussões do casal eram frequentes.

7. No decurso das referidas discussões, na presença das filhas do casal, frequentemente, o arguido dirigia-se a AA nos seguintes termos: “puta”, “cabra” e “filha da puta”.

8. Em data e contexto não concretamente apurados, o arguido puxou, um fio de prata que BB tinha ao pescoço.

9. No dia 13/09/2019, pelas 17h30m, no interior da residência comum do casal, quando BB tentava efetuar uma chamada telefónica o arguido, agarrou-a pelo braço esquerdo e, de seguida, retirou-lhe, à força, o telefone da mão.

10. Perante o comportamento do arguido, BB, fugiu para o exterior da residência, refugiando-se na casa de uma vizinha.

11. Com a conduta descrita o arguido, provocou em BB as seguintes lesões:

“- Membro superior direito: 2 escoriações com crosta no cotovelo a maior com 8mmx4mm;

- Membro superior esquerdo: cicatriz descamativa superficial no terço medio da face lateral do braço com 2cmx1cm”

12. As lesões descritas em 11. determinaram a BB um período de doença fixado em 3 (três) dias, todos com afetação da capacidade de trabalho geral.

13. No dia 30/09/2019, pelas 22h30m, na cozinha, da residência comum do casal, quando AA e BB se encontravam a jantar, o arguido trouxe consigo um gato pequeno e deu-lhe de comer do prato da sopa de AA.

14. Que, em momento posterior, quando se encontravam no exterior da habitação, BB caiu ao chão.

15. AA e BB deixaram de coabitar com o arguido em 01 de outubro de 2019.

16. No dia 04/11/2020, pelas 12h35m, no interior do estabelecimento comercial, “Café...”, o qual se situa próximo do local de trabalho de AA, quando o arguido se encontrava a tomar café, AA abeirou-se deste e, após uma troca de palavras, de conteúdo não concretamente apurado, abandonou o local.

17. O arguido sabia que AA era sua mulher.

18. Ao adoptar os comportamentos supra descritos em 7., atuou com o propósito, concretizado de a ofender de modo a atingir o seu bem-estar psíquico e honra.

19. … o que fez de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

 20. Mais, sabia o arguido que BB era sua filha, com quem residia, pessoa particularmente indefesa em virtude da doença que padece – síndrome de Turner – e que a mesma se encontrava ao seu cuidado, sendo responsável pela sua saúde e bem-estar.                                                                                                                                                                                                                                

B) Factos não provados

Discutida a causa, e com pertinência, não se provou:

C) Motivação e análise crítica das provas

No caso dos autos, a convicção do Tribunal encontra-se alicerçada nos seguintes meios de prova:

Ora, da prova assim produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, não resultou, para nós, sustentada a acusação pública deduzida contra o arguido …

               D) Enquadramento Jurídico-Penal

                   

               …

                    Com reporte à conduta praticada pelo arguido sobre AA, melhor descrita nos pontos 7, 17, 18 e 19 da rubrica “Factos provados” lamentável que seja a mesma, ela não integra, por si só a tipologia legal mencionada.

                    …

                    Não que é que a conduta adoptada pelo arguido não atinja o patamar criminalizável. Não atinge é o patamar específico exigido pelo artigo 152.º do Código Penal ] este raciocínio, aliás, foi o que esteve subjacente aos despachos de arquivamento prévios à dedução da acusação pública com reporte a (algumas) condutas adoptadas por AA contra o aqui arguido (então, ofendido) CC].

                   

                    No entanto, a factualidade mencionada poderia ser apreciada, como atrás se referiu, à luz do disposto no artigo 181.º, n.º 1, ambos do Código Penal (crime de injúria).

                    …

                    … o procedimento criminal pelo ilícito referenciado – injúria – depende de acusação particular, …

               Concretamente, disciplina o artigo 50º, nº 1, do Código de Processo Penal, que “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular”.

               Ora, compulsados os autos, verifica-se que a ofendida, AA, não só não se constituiu assistente, como também não deduziu acusação particular.

                    …

               Com reporte à conduta praticada pelo arguido … Sobre BB, melhor descrita nos pontos 9, 10, 11, 12 e 20, da rubrica “Factos provados”, ela não integra, a nosso ver, nem a tipologia legal mencionada, nem qualquer outra, mormente a prevista no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal (crime de ofensa à integridade física simples).

                    …

              


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             C) Apreciação dos recursos

           

           


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            - Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

            Enveredam ambos os recorrentes por discordar da sentença recorrida relativamente à decisão da matéria de facto nela sufragada, visando, pois, impugnar a matéria de facto que consta da mesma com vista à modificação de alguma da que nela veio a ser considerada não provada.

            a.

            A impugnação, por via de recurso, da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.

            …

            Ao enveredar pela primeira hipótese, a sua discordância traduz-se na invocação de um vício da decisão recorrida e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda hipótese, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.

            Com efeito, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas.

            Esta especificação deve fazer-se, quando se trate de declarações gravadas, por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).

            O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

            …

            O que se visa com a impugnação ampla é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

            Tal reapreciação por parte do tribunal de recurso deverá, porém, ser feita com a necessária ponderação, atentos os princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova que nortearam a decisão do tribunal recorrido.

            Com efeito, conforme jurisprudência constante, esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como nela se apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente  - vide, neste sentido, Acs. do STJ de 18-01-2018 (Proc. n.º 563/14.3TABRG.S1), de 17-03-2016 ( Proc. n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 ( Proc. n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (Proc. n.º 07P21) e de 23-05-2007 (Proc. n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (Proc n.º 110407), in www.dgsi.pt.

            E, nessa medida, como já referido, impõe-se, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos do artigo 412º, nº3 do C.P.P., o qual dispõe o seguinte:

            …

            A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorrectamente julgados e só se se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

            Como bem defende Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134 -1135, «… o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado»

            A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).

            Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).

            Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo destas, quais as particulares passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem aos factos impugnados.

            A concretização das passagens da prova por declarações pode ser feita, designadamente, pela indicação dos tempos de gravação dos segmentos em causa, ou pela transcrição destes.

            O recorrente terá pois de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.

            Exige-se que o recorrente refira o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

            No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão de que se recorre, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

            Como se refere no acórdão da Relação de Coimbra, de 4/5/2016, proferido no processo 721/13.8TACLD.C1, “Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação das regras da experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória, mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção”.

            Ao Tribunal da Relação, na sindicância do apuramento dos factos realizado em primeira instância, cabe, fundamentalmente, analisar o processo de formação da convicção do julgador e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado ou por não provado o que se deu por não provado.

            E só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão – neste sentido, Acórdãos do STJ de 15/5/2009,10/3/2010,25/3/2010, in www.dgsi.pt./stj.


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            b.

            Partindo, pois, da forma como um e outro dos recorrentes equacionam a questão da incorrecta decisão da matéria de facto que assacam à sentença recorrida, passemos, então, à apreciação da mesma. 

            Sendo a invocação dos vícios decisórios, como já o dissemos, uma das vias de impugnação, por via de recurso, da decisão da matéria de facto, o sujeito processual que desta discorde pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida.

            Com efeito, nesta forma de reagir - invocação dos vícios do Art. 410º, nº2 do CPP - contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto – a denominada “revista alargada” - o Tribunal de recurso limita-se a detectar os vícios que a decisão da primeira instância em si mesmo evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art.426, nº1).

Os vícios previstos no art. 410º nº2 do CPP são do conhecimento oficioso – conforme jurisprudência fixada no acórdão nº7/95, de 19 de outubro, in Diário da República, I Série – A, de 28/12/1995 - e constituindo um defeito estrutural da decisão têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para os fundamentar como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

Tais vícios decisórios traduzem, pois, defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e, por isso, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e ser de tal modo evidente que uma pessoa normalmente dotada os pode detectar – neste sentido, vide Ac. da Rel. de Coimbra, de 12.06.2019, Proc. 1/19.5GDCBR.C1, in www.dgsi.pt.

            O respetivo regime legal não contempla a reapreciação da prova – contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto – limitando-se a apreciação pelo tribunal de recurso a incidir sobre defeitos presentes na decisão recorrida susceptíveis de serem detectados, e, na impossibilidade de sanação, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento, como impõe o citado Art. 426º nº1 do CPP, relativamente ao qual se impõe esclarecer o seguinte:

            Nele prevê-se que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio».

            Densificando a previsão e o conteúdo normativo relativo ao invocado erro notório na apreciação da prova - previsto na alínea c) do Art. 410º nº2 do CPP – a que a recorrente Assistente … alude expressamente no seu discurso recursivo,  verifica-se o mesmo quando o tribunal procede à valoração contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Edição, 2000, Editorial Verbo, pág. 341).

             …  

            Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

            Existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Leal-Henriques e Simas Santos, in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros, AC. do STJ de 4.10.2001 ( in CJ, AC. STJ, ano IX, 3º, pág.182 ), Ac. da Rel. Porto de 27.09.95 ( in C.J. , ano XX , 4º, pág. 231)., Ac. do T. Rel. Coimbra, de 10.07.2018, in www.dgsi.pt.

      Ora, quer a mencionada recorrente Assistente … -, quer o recorrente Ministério Público … baseiam-se, uma e outro, em juízos de erro de análise da prova que indicam a partir da diferente valoração que os próprios fazem dos elementos probatórios carreados para os autos – que não foi a seguida pelo tribunal recorrido e que este exprime na decisão recorrida pela forma nela exarada  - da qual se não descortina, ao contrário do que parecem pretender os recorrentes, falta de lógica ou de raciocínio a respeito da valoração da prova nela analisada e/ou inexistência da visão global da fundamentação, enquadráveis no referido vício decisório.

E, do que se mostra consignado a respeito dessa convicção assim alcançada, partindo do texto da decisão recorrida - único a ter em conta para aferição da existência do vício decisório apontado - por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, este Tribunal da Relação não vislumbra nele juízos ilógicos, tradutores de uma apreciação à revelia das regras da experiência comum, susceptíveis de poderem configurar o vício decisório que vem apontado à decisão recorrida.

E, uma vez balizada a densificação normativa da previsão do mesmo contida na alínea c) do nº2 do art. 410º do CPP, fácil é de concluir, face à argumentação esgrimida pelo recorrente, pela sua inexistência.

Na verdade, a admitir-se a existência de erro, ele seria, em termos processuais, um erro de julgamento, na medida em que não tem a característica imprescindível para o colocar ao abrigo do referido regime legal, a sua notoriedade, com o sentido supra definido, e necessariamente revelado no texto da decisão.

            Pois, como ressuma de toda a densificação recursiva a tal propósito exarada no corpo da motivação e nas conclusões dos recursos, a existência do erro decisório que naquelas se assaca à sentença recorrida assenta na incorrecta valoração dos meios de prova carreados para os autos, os quais, na perspectiva dos recorrentes, sustentam a prova da matéria de facto que o tribunal recorrido considerou não resultar demonstrada, por força do que concluiu pela não condenação do arguido CC pelos crimes de violência doméstica de que vinha acusado. 


*

      c. … da análise da argumentação recursiva exarada na motivação e nas conclusões dos recursos apresentadas pelos recorrentes resulta patente que os mesmos enveredam pela impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na incorrecta análise e valoração dos elementos probatórios carreados para os autos, os quais, em seu entender deveriam conduzir à prova de alguns dos factos constantes da acusação a cuja concreta indicação procedem …

      Sendo esse, como é, o desiderato dos recorrentes, incumbia-lhes o cumprimento dos ónus de impugnação especificada previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputam incorrectamente provados e a alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida - als. a) e b) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4).

      E, essa especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da decisão recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.

      Diz, a propósito, o Sr. Desembargador Sérgio Gonçalves Poças, «como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas (…) apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo (…).

      Assim, nesta especificação – as palavras valem – serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão» - in Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 10, Janeiro-Abril de 2010, págs. 31 e 32.

      …

      A concreta indicação feita pelos recorrentes em relação à factualidade que entendem ter sido incorrectamente apreciada, quer no corpo da motivação, quer nas conclusões do recurso, respeita:

      - na perspectiva do recorrente Ministério Público, aos factos vertidos nas alíneas d), f, m, n, cc, ee, ff, gg, hh, ii, jj, kk, ll e mm, do elenco dos factos não provados constante da sentença recorrida:

      - na perspectiva da recorrente …, aos factos vertidos nas alíneas d), f), m), n), cc), ee), ff), gg) e hh), do elenco dos factos não provados constante da sentença recorrida.  

     

Quanto à exigência de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, convocam os recorrentes os mesmos meios de prova, a saber:

- as declarações prestadas pela assistente …

- o depoimento prestado pela testemunha BB prestado perante a Procuradora da República, em 19.02.2020 e lido na audiência de julgamento, …

- o depoimento prestado pela testemunha DD na audiência de julgamento.

Procedendo os recorrentes, em relação a tais meios de prova, à transcrição de algumas passagens dos mesmos, indicando, ainda, os momentos dos ficheiros do registo da respectiva gravação, conexionando, com maior ou menor acuidade, o conteúdo desses meios de prova especificados com o teor dos pontos de facto impugnados, entendendo que os mesmos impõem decisão diversa.

Tal pressuposto de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida só se encontra preenchido ou observado se, para além da especificação das provas, os recorrentes explicitarem os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal recorrido.

Ou seja, importa fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente, exigência esta que, de algum modo, corresponde àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, pois, do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, esse dever de fundamentação é igualmente exigido aos recorrentes. Só deste modo se perceberá ou entenderá qual o raciocínio destes para, em seu entender, dizerem ou afirmarem que determinado depoimento impõe decisão diversa da recorrida.

E, tal assim é, porque, como se salienta no Ac. do STJ, de 19.05.2010 ( processo nº 696/05....), disponível in www.dgsi.pt, “(…) não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina. Por aí, se limita, ainda, o recurso em matéria de facto aos casos de valoração de provas proibidas ou de valoração das provas admissíveis em patente desconformidade com as regras impostas para a sua valoração.”

Havendo, ainda, que considerar, como aspecto relevante na apreciação da impugnação da matéria de facto, a que vem estando atenta a jurisprudência, que a apreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, se destina, apenas, a remediar erros pontuais de procedimento ou de julgamento, pois, tal como se salienta no Ac. do STJ de 15.12.2005, ( Proc.  05P2951), igualmente disponível in www.dgsi.pt, “O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Donde, como bem se sintetiza, no Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra de 30.04.2008, proferido no proc. nº 105/06.4GCPMS.C, disponível in www.dgsi.pt., “O recurso da matéria de facto não pressupõe portanto, uma reapreciação pelo tribunal superior dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida – o tribunal de recurso não efectua um novo julgamento nem forma uma nova convicção –, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera determinarem uma diversa decisão (cfr. Ac. do STJ de 19/12/2007, processo nº07P4203, em http://www.dgsi.pt).

Por isso, como neste se adianta, no que concerne à valoração da prova testemunhal e da prova por declarações, existe uma enorme diferença entre a apreciação e valoração feita na 1ª instância e a que pode ser efectuada pelo tribunal de recurso, com base na transcrição dos depoimentos ou mesmo, na audição das respectivas gravações.

É que a impressão produzida no julgador pela prova testemunhal e por declarações, e que se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e análise psicológica que traçam o perfil de cada testemunha ou declarante, só alcança a sua plenitude através da imediação ou seja, do contacto próximo entre o tribunal e as testemunhas e outros intervenientes processuais.

Daí que, quando o julgador atribui ou não, credibilidade a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, porque a opção tomada se funda na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador fundada naquela prova, quando for feita a demonstração de que aquela opção viola as regras da experiência comum. De outra forma, seriam violados os princípios da imediação e da oralidade.

Neste sentido, aliás, se pronunciou já o Tribunal Constitucional, ao aceitar que o verdadeiro julgamento da causa é o realizado na 1ª instância, onde regem os princípios da imediação e da oralidade, onde são produzidas todas as provas e o tribunal contacta directamente com os intervenientes processuais (Ac. nº 59/2006, de 18/01/2006, proc. nº 199/2005, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).

Nada impedindo, pois, o conhecimento da impugnação deduzida, por via do recurso amplo ou efectivo, com o objecto e limites que lhes assinalou e que acabamos de explanar, vejamos, pois, os factos dados como não provados relativamente aos quais os recorrentes MºPº e Assistente discordam do juízo de valoração das provas feito pelo Tribunal recorrido para o efeito.

     

                   

A factualidade que vem impugnada pelos recorrentes abarca, como se vê, parte da factualidade em que a acusação sustenta a imputação ao arguido … da prática dos dois crimes de violência doméstica pelos quais nela vem acusado, …

            Sendo certo que da audição da gravação das declarações e dos depoimentos convocados pelos recorrentes – a que este Tribunal de recurso procedeu, na sua íntegra e não apenas nas passagens assinaladas pelo mesmo - resulta, efectivamente, o conteúdo probatório que o mesmo deles extrai em sede recursiva, a verdade é que o Tribunal a quo não deixou de o levar em conta na ponderação da factualidade que vem posta em causa pelos recorrentes, conjugando-os entre si e com os demais elementos probatórios  carreados para os autos, concluindo da respectiva análise crítica pela não demonstração da factualidade que os recorrentes pretendem ver alterada para provada. 

            E, adiantando já, a valoração que deles se impõe fazer não poderá ser diferente da que foi feita pelo Tribunal recorrido à luz das regras da experiência comum como impõe o princípio da livre apreciação da prova, previstos no art. 127º do CPP.

            É que, correspondendo, embora, o conteúdo probatório dos meios de prova convocados pelos recorrentes ao que por eles foi deles extraído em sede recursiva, correspondendo ao que efectivamente neles se contém, a verdade é que os mesmos não têm a virtualidade de impor decisão diversa em relação à factualidade que por eles vem impugnada.

            …

  E a convicção alcançada pelo tribunal recorrido em relação a todos esses elementos de prova – e não apenas aos convocados pelos recorrentes - não merece censura, porquanto, se mostra sustentada nos meios probatórios por aquele valorados e mencionados na motivação da decisão de facto, os quais, no seu conjunto, sedimentam, à luz do princípio da livre apreciação da prova, a convicção que o tribunal recorrido alcançou ao dar como não provados os factos que agora os recorrentes vieram impugnar.

            Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, ela não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.” Cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.

            Na livre apreciação da prova o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Observa, a este respeito, o Prof. Germano Marques da Silva, que «Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão de basear-se na correção do raciocínio, que há de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.». Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186.

            O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal. É aí, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º 5.

            Reportando-se aos princípios da oralidade e imediação diz o Prof. Figueiredo Dias, que «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.». Obra citada, páginas 233 a 234.

            Na verdade, a convicção do Tribunal é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

            Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova resulta o acerto dessa opção sobre a matéria de facto impugnada, nos termos do art.127.º do C.P.P., por não impor decisão diversa, deve manter a decisão recorrida.

Ora, na motivação da decisão de facto que fez constar na fundamentação da sentença recorrida, o Tribunal a quo elencou as razões da valoração que efectuou, identificando a prova que relevou na formação da sua convicção a respeito da factualidade que considerou não demonstrada e que os recorrentes vêm pôr em causa, indicando os aspectos da mesma que, conjugadamente, o levaram a concluir no sentido de a considerar não provada, para além de ter assinalado de forma lógica e racional os fundamentos que, no seu entendimento, justificam a credibilidade que reconheceu e a força probatória que conferiu a esses elementos de prova, beneficiando, como já referido, da oralidade e da imediação que o julgamento em primeira instância lhe permitiu.

E, tal raciocínio analítico da 1ª instância feito com base nos elementos probatórios que para o efeito valorou,  como já se adiantou, não nos merece reparo, bem pelo contrário, mostra-se suportada plenamente pelos elementos probatórios para o efeito valorados, de forma segura, devidamente fundamentada, estando explicada de forma lógica e racional, não se vislumbrando também que tenha sido violada uma qualquer regra da experiência comum, tendo sido estritamente observado o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do C.P.P.

            Para além disso, também quanto à prova dos factos atinentes ao elemento subjectivo, lançando mão das presunções judiciais assentes nas regras da experiência comum, a partir da objectividade da acção desencadeada, não deixou o tribunal recorrido de explicitar como estas não são de molde a sustentar a factualidade não provada que, a esse respeito, vem posta em causa pelos recorrentes.

            …

            E, como resulta da motivação de facto exarada na sentença recorrida, foi precisamente a partir dos factos objectivos que o tribunal recorrido considerou demonstrados e não demostrados no acervo factual dado como provado e como não provado, cuja análise em sede de reapreciação este Tribunal de recurso vem de sindicar, que o mesmo inferiu, através da conjugação da prova dos mesmos, a demonstração da vontade do arguido quanto à realização de alguns de tais factos mas já não quanto à realização de outros e  à previsão e/ou representação da personalidade contrária ao direito ou da atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada nessa realização, inferindo a prova e a não prova dos mesmos a partir da demonstração e indemonstração daqueles factos objectivos.

            E, com base em tal inferência, com recurso a presunções naturais e às regras da experiência, também não nos merece reparo a decisão do tribunal recorrido a respeito da indemostração, igualmente, da factualidade que integra os pontos da factualidade não provada que vêm impugnados.

            Concluindo-se, assim, pela improcedência da impugnação da matéria de facto e dos recursos de ambos os recorrentes neste segmento recursivo.


*

            -Da verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de violência doméstica imputado ao arguido

            … mantendo-se, por isso, inalterada a factualidade considerada provada na sentença recorrida, não merece também censura a ponderação do enquadramento jurídico-penal do factos nela considerados provados, …

            Nesta parte, improcedendo, também, os recursos interpostos por ambos os recorrentes.


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            - Da verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de injúria e das condições de procedibilidade para a condenação do arguido pela prática do mesmo

            Resta, por último, a apreciação da questão suscitada pelo Ministério Público no recurso por este interposto respeitante à condenação do arguido pela prática do crime de injúria, por, segundo o mesmo, resultarem da factualidade provada constante da sentença recorrida os elementos constitutivos – objectivos e subjectivos – do mesmo.

            A este propósito, discorreu-se na sentença recorrida no sentido de que, com reporte à conduta praticada pelo arguido sobre a Assistente …, tal factualidade integra a prática pelo aarguido de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº1 do C. Penal, enquadramento jurídico-penal este, que, tendo sido perspectivado no decurso da audiência de julgamento e considerado como mera  alteração da qualificação jurídica dos factos, foi objecto de comunicação ao arguido, nos termos do disposto no art. 358º, nº3 do CPP.

            Concordando-se com adiantado na sentença relativamente ao facto de nela vir considerado que a conduta do arguido descrita nos pontos 7., 17., 18. e 19. do elenco factual provado preenche os elementos – objectivos e subjectivos – do  crime se injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº1 do C. Penal, aduziremos, apenas, que, não se tendo provado a frequência com que as expressões em causa foram proferidas e a data em que o foram, não temos elementos que nos permitam considerar com certeza que estamos perante mais do que uma resolução criminosa, pelo que a condenação do arguido apenas poderá ser pensada à luz do cometimento  de apenas um crime de injúria (e não vários).

            Ocorre que, a sentença recorrida não seguiu o caminho da condenação do arguido pela prática do referido crime de injúria.

            Ao invés, fazendo apelo ao normativo legal em que tal crime se mostra contemplado [art. 181º do C. Penal]  e, também, ao disposto no art. 188º, nº 1 do mesmo C. Penal, enveredou pelo entendimento de que, não estando reunidas as condições de procedibilidade,  havia que determinar a extinção do procedimento criminal deduzido contra o arguido relativamente a tal factualidade.

            Decisão esta que ancorou na seguinte argumentação: “o procedimento criminal pelo ilícito referenciado – injúria – depende de acusação particular, o que condiciona o exercício da acção penal pelo MINISTÉRIO PÚBLICO relativamente à promoção do procedimento pela sua autoria, constituindo, por seu turno, a legitimidade do Ministério Público requisito de validade do processo (cfr. disposições conjugadas dos artigos 48º, 49º e 50º do Código de Processo Penal) (…) a ofendida, …, não só não se constituiu assistente, como também não deduziu acusação particular. Encontrando-se a legitimidade do MINISTÉRIO PÚBLICO para o exercício da acção penal condicionada à prévia constituição de assistente e apresentação da sobredita acusação particular, face à sua inexistência (e à semelhança, aliás, do oportunamente decidido quanto ao procedimento criminal deduzido pelo aqui arguido contra a aqui ofendida …).

            Diferente entendimento sufraga o recorrente Ministério Público, …

           

A questão assim equacionada prende-se com a de saber se a mudança da natureza do crime (no caso de crime público para crime particular), poderá colocar em causa a legitimidade do Ministério Público para iniciar e promover a acção penal, e ainda se essa mesma alteração da natureza do crime  implicará  ab initio a verificação dos requisitos exigidos para a verificação do novo crime com essa diferente natureza, designadamente, a apresentação de queixa-crime relativamente a todos os factos considerados como provados, a constituição de assistente por parte do apresentante da queixa e a dedução da respectiva acusação particular, atenta a natureza do crime de injúria.

            Antes de respondermos a qual questão, convirá reter que nos presentes autos a denunciante …, na qualidade de titular do direito de queixa relativamente aos factos investigados nos presentes autos - nos quais se compreendem os descritos nos pontos 7., 17., 18. e 19. do elenco factual provado –  manifestou o desejo de procedimento criminal contra o arguido, ao qual imputou a prática dos mesmos, conforme resulta de fls. 302-304, devendo, pois, entender-se que exerceu o seu direito de queixa.

            E, também, quanto à sua constituição como assistente nos autos, que a mesma só veio a assumir tal estatuto já depois de neles ter sido proferida a sentença, uma vez que apenas requereu a sua constituição como assistente no decurso do prazo para interposição do recurso da sentença, conforme se colhe de fls.762-763, vindo a ser constituída como tal por despacho proferido em 7.07.2023 ( fls. 773), limitando-se o exercício das atribuições previstas no art. 69º do CPP por parte da mesma, à interposição do recurso da sentença.

               Neste contexto, é correcta a asserção considerada na sentença recorrida quando nela se refere que “ a ofendida, AA, não só não se constituiu assistente, como também não deduziu acusação particular.”, sem prejuízo de, dever considerar-se que, posteriormente à prolação a sentença veio a constituir-se assistente nos autos, podendo fazê-lo, nos termos do disposto no art. 68º, nº3 alínea c) do CPP, …

            Dito isto.

            Sendo certo que o crime de injúria tem natureza particular (artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal) e não foi deduzida qualquer acusação pela assistente, até porque esta só assumiu tal posição nos autos já depois de proferida a sentença, é também verdade que, mesmo que antes tivesse assumido este estatuto, a dedução de acusação por banda mesma apenas poderia cingir-se aos termos previstos no art. 284º do CPP.

            Como se salienta do Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 9 de março de 2020 (in C.J. 2020, II, pg. 264), citado no Ac. do mesmo Tribunal da Relação, datado de 13.01.2021: «Os pressupostos processuais em geral, de que os atinentes à procedibilidade são uma espécie, só podem estar ao serviço da justiça do caso concreto, se assim não for, é a própria verdade que não se atinge.

            O Estado não pode assumir-se como desleal para com o ofendido nos casos em que tudo indicava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto de alteração de qualificação jurídica, um dos factos que não tinha que ser previsto pelo ofendido, dizer-lhe que, por uma questão formal de ausência de queixa, não mais se pode continuar com o processo»

            O que nesse acórdão se afirma quanto a uma ausência de queixa, poderá dizer-se da ausência de acusação particular no caso em apreço. Impedir neste caso a condenação pela prática de crimes de injúria e difamação por ausência de acusação particular quendo essa ausência se ficou a dever à dedução de uma acusação pública pela prática de crime de violência doméstica que englobava tais crimes numa relação de concurso aparente, acusação que a assistente acompanhou, frustraria as legítimas expetativas da assistente e representaria uma inaceitável injustiça e uma inaceitável (embora não propositada) “deslealdade processual”.»

            Nele vêm citadas, no mesmo sentido, outras decisões do mesmo Tribunal da Relação do Porto, uma delas datada de 30 de janeiro de 2013, proc. n.º 1743/11.9TAGDM.P1 e  outra de 27 de abril de 2016, proc. n.º 780/13.3GALSD.P1; do Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 17 de junho de 2015, proc. n.º 48/13.5PFPDL.L1-3 e o do Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 25 de setembro de 2017, proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

               Afirma-se nesse acórdão da Relação de Lisboa de 17 de junho de 2015 que:

            «A exigência de dedução de queixa-crime e de constituição de assistente, nos crimes particulares, reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efectivação da punição pelos crimes de que foi vitima. Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de persecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular. Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito, quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação, seria impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão. Manifestando-se a vontade de persecução penal, inequivocamente, por outra via - a única compatível com a indiciação processual à data da acusação - não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade – processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluíam a possibilidade de dedução de uma acusação particular».

            Afigura-se-nos que tal argumentação vale para casos como o presente, em que a ofendida apresentou queixa pelos factos que o Ministério Público entendeu serem integradores do crime de violência doméstica, não se tendo aquela constituído assistente até à prolação a sentença e não tendo deduzido acusação, por entendermos que a ratio da exigência, nos crimes de natureza particular, de uma iniciativa do/a assistente como a dedução de acusação particular é satisfeita nestes casos pela circunstância de ter apresentado queixa por esses factos onde se integram, numa relação de concurso aparente, crimes particulares, como, no caso, é do de injúria, porque à assistente não era processualmente exigível fazer mais do que isso.

            A este propósito, pode ver-se, também neste sentido, André Lamas Leite. «A falta de condições de procedibilidade para a ação penal e verdadeiras “decisões surpresa”; interrogações e propostas de iure condendo, in Revista do Ministério Público, ano 39, 155, julho-setembro de 2008, pgs. 83 e 84.

            Aderimos, assim, à jurisprudência que se vem firmando no sentido de que uma vez iniciado o procedimento por um crime público, a constatação, após o julgamento, de que os factos integram a prática de um crime de natureza particular, a não constituição do ofendido como assistente e a não dedução por este de acusação particular, não tem qualquer efeito sobre o procedimento iniciado de forma válida, para além de, por ser favorável ao arguido, se admitir a possibilidade de desistência da queixa, ou seja, iniciando-se validamente o procedimento sem necessidade de constituição de assistente e de dedução de acusação particular, vindo a questão a colocar-se apenas na sequência de alteração ocorrida na sequência da prova produzida em julgamento não renasce, em tal fase, a matéria relativa à procedibilidade do procedimento ou legitimidade do Ministério Público para a prossecução do processo - até porque a imputação criminosa inovatória não resulta de acto próprio deste, mas antes de actividade cometida ao tribunal - pelo que o curso normal do processo apenas poderá ser impedido pelo surgimento de um obstáculo, como seja a apresentação de desistência de queixa pelo ofendido, circunstância que no presente caso não se verificou.

            Adiantando-se, ainda, que tal situação não tem qualquer paralelismo com a ocorrida nos autos relativamente aos factos pelos quais o ora arguido apresentou queixa contra a ora assistente, porquanto, em relação a essa factualidade, uma vez investigada, o Ministério Público, no final do inquérito, entendeu que a mesma, apesar de criminalizável, não atingia o patamar específico exigido pelo art. 152º do C. Penal, e, por isso, em relação às expressões injuriosas com que, alegadamente, a AA visou o ora arguido integradas nessa queixa, ordenou a notificação do arguido ( constituído assistente nos autos ) para, querendo, deduzir acusação particular por tal factualidade, conforme decorre do despacho proferido em 21.07.2022 (fls. 644). E, na decorrência de tal notificação, uma vez que por aquele não foi deduzida acusação particular, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 277º, nº1 do CPP, por despacho proferido em 31.10.2022 (fls. 662-663).

            De tudo o que vem dizer-se se conclui não poder deixar de responsabilizar-se criminalmente o arguido CC relativamente à factualidade provada integradora do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº1 do C. Penal, em relação à qual se não verifica qualquer causa de extinção da responsabilidade criminal.


*

            Importa, então, determinar a pena e sua medida, correspondentes ao crime de injúria cometido pelo arguido, punível com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

            À luz do disposto no artigo 70.º do Código Penal, e considerando, sobretudo, o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, deverá optar-se pela pena de multa.

            Na determinação da medida dessa pena de multa, à luz do disposto no artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código, há que considerar, como agravantes, a pluralidade das expressões injuriosas, a intensidade do dolo com o que o arguido actuou, na sua modalidade mais intensa ( directo),  a circunstância de a vítima ser casada com o arguido e ser mãe das suas filhas, o que lhe impõe um dever de particular respeito.

            E, como atenuantes, as circunstâncias do arguido estar inserido social e profissionalmente e de não ter antecedentes criminais.

            Assim, entende-se adequada a pena de 50 ( cinquenta ) dias de multa.

            Na fixação da taxa diária correspondente à pena de multa, há que considerar o disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, entendendo-se adequado, face à situação económica do arguido que deflui da factualidade provada, fixar o respectivo quantitativo diário em € 6,00 ( seis euros).


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            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em:

            1. Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência:

            a) Manter a sentença recorrida na parte em que nela se decidiu a absolvição do arguido pela prática dos (2) dois imputados crimes de violência doméstica de que vinha acusado;

            b) Revogar a sentença recorrida na parte em que nela se julgou extinto o procedimento criminal pela prática de 1 (um) crime de injúria, condenando o arguido …, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº1 do C. Penal, na pena de 50 ( cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 ( seis euros), o que perfaz o montante global de  € 300,00 ( trezentos euros ).

            c) Condenar o arguido nas custas do recurso, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs ( artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).

            2. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela Assistente AA. 

      3. Recursos sem tributação, por não ser devida.


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                                    Coimbra, 11 de outubro de 2023


                    ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – art. 94º, nº2 do CPP )

(Maria José Guerra – relatora)

(Rosa Pinto – 1ª adjunta)

(João Abrunhosa – 2º adjunto)