Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
233/19.6GAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: AMNISTIA
EXCEÇÕES
REFERÊNCIA A CONDENADOS
INTERPRETAÇÃO DO ART. 7º DA LEI 38-A/2023
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 4º E 7º DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2.8.
Sumário: O legislador considerou que os crimes enunciados no n.º 1, alíneas a) a h), do artigo 7.º da Lei 38-A/2023 não seriam objecto de clemência independentemente de existir ou não sentença de condenação transitada em julgado.
Decisão Texto Integral:

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Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. Por despacho proferido em 2 de outubro de 2023 foi declarado extinto o procedimento criminal relativo ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado e, por conseguinte, extinto o procedimento criminal.

2. Inconformado, recorre o Ministério Público apresentando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

1. Em 11-07-2022, o Ministério Público acusou em Processo Comum, para julgamento por Tribunal de Estrutura Singular, AA, nascido a ../../1993, a quem imputou a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, reportado a factos praticados em ../../2019.

2. Em 02-10-2023 foi proferido o despacho, sob a ref. el. n.º 104950403, que declarou ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º 2 ambos do Código Penal, amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal.

3. Salvo o devido respeito, que é muito, o Ministério Público não concorda com tal interpretação do artigo 7.º, n.º 1, al. d), ii) da Lei n.º 38-A/2023 e, por esse motivo, vem desta decisão recorrer.

4. As medidas de graça, como providências de exceção, devem ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa, em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo” [ac. do STJ (fixação de jurisprudência) de 25 de Outubro de 2001 (processo n.º 00P3209)].

5. Se atentarmos a todo o percurso da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto constatamos que a redação da norma que consagrou a exceção à aplicação do perdão/amnistia se manteve na sua essência, variando apenas o leque de crimes abrangidos, pelo que, não houve alteração quanto à intenção do legislador.

6. Em nosso entendimento, salvo o devido respeito por opinião contrária, a intenção do legislador, quanto às exclusões que pretendeu fazer, sempre se dirigiu ao tipo de criminalidade e não à situação jurídica do agente do crime.

7. Extraímos tal conclusão da exposição de motivos da Proposta de Lei que esteve na génese da Lei, quando refere, que: «(…) Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende (…) as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa. (…)».

8. E da apresentação da proposta de Lei feita pela Sr. a Ministra da Justiça na A.R., quando expressamente declarou: «(…) A presente proposta de lei define também limites substantivos à sua aplicação. (…) elenca-se, por isso, um conjunto de crimes que não poderá beneficiar destas medidas, como (…) condução de veículo em estado de embriaguez (…)».

9. Ora, estando certos que o pensamento legislativo foi o de excluir a aplicação do perdão e amnistia ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, que é o que nos importa, no caso em concreto, independentemente de o agente ser mero suspeito ou condenado por sentença transitada em julgado, estamos em crer que a interpretação feita, neste sentido, não é contrária à letra da Lei, e nela encontra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

10. Já que, abrangendo a Lei duas medidas de clemência – o perdão e amnistia –, a referência a condenado é feita, por defeito, à primeira medida enunciada pelo legislador, que, na verdade, só se aplica a penas, por isso, à situação de condenados por sentença transitada em julgado, sendo esta a interpretação do texto mais coincidente com a “mens legislatoris”.

11. Se na fixação do sentido e alcance da lei devemos, como seus intérpretes, presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º do Código Civil) então chegamos à mesma conclusão.

12. Com o devido respeito, não faria sentido o legislador diferenciar condenados por sentença transitada em julgado, de condenados por sentença não transitada em julgado ou de meros arguidos ou suspeitos, excluindo a aplicação das medidas de clemência, no caso o perdão, apenas, relativamente aos primeiros, mas, na mesma norma (artigo 7.º, al. l)) excluir a aplicação das medidas de clemência a quem praticar contraordenações sob influência de álcool (independentemente do estado do processo contraordenacional, em concreto, de ter sido proferida decisão pela autoridade administrativa e dessa decisão ter transitado ou não em julgado), que ontologicamente se consubstanciam num comportamento que o próprio legislador considera eticamente menos censurável.

13. Sendo certo que o objeto da Lei vem fixado no artigo 1.º do Diploma em análise – «A presente Lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações».

14. E o seu âmbito subjetivo se encontra delimitado no artigo 2.º da Lei em referência: «Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º», não se fazendo aí qualquer distinção quanto à situação jurídica do condenado.

15. Pese embora, se reconheça a presunção de inocência de que goza qualquer arguido, até ao transito em julgado da sentença condenatória, consagrada na Constituição da República Portuguesa, em concreto no seu artigo 32.º, n.º 2, atento o sobredito, com o devido respeito, parece-nos ilógico admitir que o Legislador tenha afastado do perdão o crime de condução de veículo em estado de embriaguez e, por outro lado, viesse a admitir a amnistia do mesmo ilícito criminal.

16. Se tivesse sido intenção do legislador abranger no leque de infrações penais amnistiadas o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, este teria feito, também, a referência à pena acessória no seu artigo 2.º ou 4.º, não apenas a pena principal (de prisão, ou multa), à semelhança do que fez, a propósito das sanções acessórias aplicáveis às contraordenações, quando o Legislador expressamente consagrou, no âmbito de aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, no seu artigo 2º, nº 2, al. a), que “estão igualmente abrangidas pela presente lei as sanções acessórias (…).”, o que não aconteceu.

17. Pelo que, somos de concluir, com o devido respeito por opinião contrária, que a amnistia não é aplicável ao caso dos autos, por se subsumir à exceção à sua aplicação e a que alude o artigo 7.º, n.º 1, al. d), ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

18. Sendo esta a interpretação que mais se coaduna com o pensamento do legislador, com a coerência sistemática do Diploma e com o elemento histórico, não sendo tal interpretação contrária à letra da lei, antes, nela encontrando um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

19. É nossa convicção que, ao declarar extinto o procedimento criminal, o Tribunal «a quo» violou o disposto no artigo 7.º, n.º 1, al. d), ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

20. Ao decidir-se como decidiu no douto despacho proferido pelo Tribunal a quo nele se violou o disposto nos artigos 9.º, n. º1 a 3, do Código Civil, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, 1, ambos do Código Penal e o disposto no artigo 7.º, n.º 1, al. d, ii) e n.º 3, ambos da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto.

21. Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a Decisão Recorrida, devendo ser substituída por outra que, ordene a prossecução dos autos».

3. Notificado o arguido, não respondeu.

4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto.

5. Cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal e colhidos os vistos nada obsta à apreciação do recurso.

II. ÂMBITO DO RECURSO

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do Código de Processo Penal o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo questões de conhecimento oficioso de que cumpra decidir [Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I. ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005].

No caso em apreço, a questão a decidir consiste em saber se as excepções à amnistia e ao perdão determinadas nos artigos 7.º, n.º 1, alíneas a) a h) da Lei n.º 38.º-A/2023, só abrangem os arguidos condenados pela prática daqueles crimes por sentença transitada em julgado.

III. DESPACHO RECORRIDO

O Despacho recorrido tem o seguinte teor:

«A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, Lei do Perdão de penas e amnistia de infrações, entrou em vigor no recente dia 01 de Setembro de 2023.

A prática do ilícito objeto da Acusação deduzida reporta-se a 9.06.2019 e o arguido AA, nascido em ../../1993, tinha entre 16 e 30 anos àquela data – cfr. o artigo 2.º, n. º1: «estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º».

O Arguido foi acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, correspondendo-lhe a moldura abstrata aplicável de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

Com relevância para o presente caso, há que ter presente que «são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa» (cfr. o artigo 4.º).

Por outro lado, «não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: ii) Crimes de (…) condução de veículo em estado de embriaguez (…), previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal» (cfr. o artigo 7.º, n. º1, d)).

No seguimento do Despacho proferido em 13.09.2023, a Digna Magistrada do Ministério Público, em Promoção de 28.9.2023, fez constar que “o Ministério Público é do entendimento que tal infração penal não foi amnistiada, nos termos dos artigos 4.º e 7.º, n.º 1, alínea d) ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, pelo que se promove que os autos prossigam os ulteriores termos.


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In casu, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, o crime objeto dos presentes autos é elegível para ser alvo da amnistia prevista no artigo 4.º da Lei sob apreço.

Da leitura do, também, citado artigo 7.º, em concreto do seu n. º1, d), ii), decorre a exclusão dos «condenados» pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Em caso, como o dos presentes autos, em que o Arguido se encontra, ainda, e apenas, acusado da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, entender que não pode haver lugar à amnistia da infração por força daquela exceção exige – salvo melhor entendimento, que se admite e respeita, tanto mais no quadro de uma Lei recente como é esta –, uma interpretação contra a própria letra da lei, senão mesmo contra o seu espírito, que se refere, explicitamente, a «condenados».

Uma tal interpretação – contra, pelo menos, a própria letra da lei, senão também contra o seu espírito –, poderá ser defendida argumentando que a ideia do Legislador foi excluir de todo o crime de condução de veículo em estado de embriaguez das medidas de graça concedidas por esta Lei, e que a menção a «condenados» se tratou, por isso, de um lapso de escrita.

Contudo, uma tal interpretação – contra a letra da lei, senão também contra o seu espírito – parece olvidar a diferença entre estas duas medidas de graça – a amnistia e o perdão –, na sua natureza e nas suas consequências.

Deste modo, em sentido contrário a uma tal interpretação, pode contrapor-se que, justamente, foi intenção do Legislador, relativamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, amnistiar as situações em que não há, ainda, uma condenação transitada em julgado, porém já não admitir o perdão das penas aplicadas por uma sentença transitada em julgado.

Nesta ordem de ideias, a menção a «condenados» foi pretendida pelo Legislador, que, então, admitiu, diante do plasmado no artigo 4.º, a amnistia da condução de veículo em estado de embriaguez quando ainda não tenha havido uma condenação transitada em julgado.

Afinal, é princípio constitucionalmente consagrado que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação» (cfr. o artigo 32.º, n. º2 da C.R.P.).

Por conseguinte, uma tal interpretação contrária à (letra e espírito desta) Lei – que se refere apenas e expressamente a «condenados» – afigura-se-me, com o devido respeito por opinião diversa, ser, igualmente, contrária e, mesmo, violadora daquele princípio constitucional, porquanto implica um tratamento dos (presumidos) inocentes como se de condenados (por sentença transitada em julgado) já se tratassem.

Por todo o exposto, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º2 ambos do Código Penal, declaro amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal».

IV. aPRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Em causa está a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (Perdão de Penas e Amnistia da Infrações), diploma a que de ora em diante nos referiremos sem menção do contrário, que aprova um regime de «perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude» [art.º 1.º] para «as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4» [art.º 2.º n.º 1].

Nos termos do artigo 4.º «são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.».

E, sendo o crime dos autos (de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido no art.º 292.º n.º 1 do Código Penal) punível com pena de prisão até um ano de prisão ou com pena de multa não superior a 120 dias, estaria, em princípio abrangido pela amnistia.

Sucede que, sob a epígrafe “Exceções”, dispõe o artigo 7.º:

1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

a) No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por:

i) Crimes de homicídio e infanticídio, previstos nos artigos 131.º a 133.º e 136.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro;

ii) Crimes de violência doméstica e de maus-tratos, previstos nos artigos 152.º e 152.º-A do Código Penal;

iii) Crimes de ofensa à integridade física grave, de mutilação genital feminina, de tráfico de órgãos humanos e de ofensa à integridade física qualificada, previstos nos artigos 144.º, 144.º-A, 144.º-B e na alínea c) do n.º 1 do artigo 145.º do Código Penal;

iv) Crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns, previstos nos artigos 154.º a 154.º-B e 158.º a 162.º do Código Penal;

v) Crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal;

b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados:

i) Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal;

ii) Por crime de extorsão, previsto no artigo 223.º do Código Penal;

c) No âmbito dos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, os condenados por crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência e de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, incluindo na forma grave, previstos nos artigos 240.º, 243.º e 244.º do Código Penal;

d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:

i) Crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, de incêndio florestal, danos contra a natureza e de poluição, previstos nos artigos 272.º, 274.º, 278.º e 279.º do Código Penal;

ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal;

iii) Crime de associação criminosa, previsto no artigo 299.º do Código Penal;

e) No âmbito dos crimes contra o Estado, os condenados por:

i) Crimes contra a soberania nacional e contra a realização do Estado de direito, previstos nas secções i e ii do capítulo i do título v do livro ii do Código Penal, incluindo o crime de tráfico de influência, previsto no artigo 335.º do Código Penal;

ii) Crimes de evasão e de motim de presos, previstos nos artigos 352.º e 354.º do Código Penal;

iii) Crime de branqueamento, previsto no artigo 368.º-A do Código Penal;

iv) Crimes de corrupção, previstos nos artigos 372.º a 374.º do Código Penal;

v) Crimes de peculato e de participação económica em negócio, previstos nos artigos 375.º e 377.º do Código Penal;

f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por:

i) Crimes de terrorismo, previstos na lei de combate ao terrorismo, aprovada pela Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto;

ii) Crimes previstos nos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, que cria o novo regime penal de corrupção no comércio internacional e no setor privado, dando cumprimento à Decisão Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de julho de 2003;

iii) Crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 10.º-A, 11.º e 12.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto, que estabelece um novo regime de responsabilidade penal por comportamentos suscetíveis de afetar a verdade, a lealdade e a correção da competição e do seu resultado na atividade desportiva;

iv) Crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado e de fraude na obtenção de crédito, previstos nos artigos 36.º, 37.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, que altera o regime em vigor em matéria de infrações antieconómicas e contra a saúde pública;

v) Crimes previstos nos artigos 36.º e 37.º do Código de Justiça Militar, aprovado em anexo à Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro;

vi) Crime de tráfico e mediação de armas, previsto no artigo 87.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, que aprova o regime jurídico das armas e suas munições;

vii) Crimes previstos na Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime;

viii) Crime de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional;

ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;

x) Crimes previstos nos artigos 27.º a 34.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança;

g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro;

h) Os condenados por crimes praticados enquanto titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público, no exercício de funções ou por causa delas, designadamente aqueles previstos na Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções;

j) Os reincidentes;

k) Os membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;

l) Os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.

2 - As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções.

3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.

À primeira vista, numa interpretação meramente literal, parece que o legislador só excluiu da amnistia e do perdão os arguidos condenados pela prática de um dos crimes enunciados nas diversas alíneas a) a h) do n.º 1, do citado artigo 7.º, tendo sido este o entendimento perfilhado pelo Tribunal recorrido.

Opinião diferente tem o Recorrente. 

Que decidir?

A resposta a esta pergunta não prescinde da abordagem, ainda que sintética, da amnistia e do perdão e bem assim das regras de interpretação estatuídas no artigo 9.º, do Código Civil.

2. A amnistia, o perdão genérico bem como o perdão individual (indulto e a comutação de penas) integram a medidas de clemência, o direito de graça.   

A diferença entre as várias medidas efectua-se conforme o acto respeite ao facto praticado ou á pena concretamente aplicada, bem consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função as características do facto praticado ou do agente. O que verdadeiramente distingue os institutos é o carácter geral e impessoal da amnistia (dirigido (…) a grupos de factos ou de agentes, em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)[1]..

A amnistia é uma medida objectiva e abstracta, que visa abolir uma determinada incriminação[2]. É uma abolição com carácter geral, impessoal, não se dirige ao indivíduo A ou B e sim a, em princípio todos os que se encontram naquelas condições[3].

A amnistia suprime a infracção criminal. Não apaga o facto ilícito como evento histórico, apenas paralisa a estatuição incriminadora do acto.

«A amnistia tem por efeito a abolitio criminis e anula por isso o próprio crime[4]». Esquece-se o facto e, com ele, apagam-se os seus efeitos (lato sensu). Tudo se passa, como se aos olhos da justiça aquela conduta não tivesse sido criminalizada. A amnistia opera ex tunc incide não apenas sobre a pena, mas também sobre a punição do próprio acto. 

A doutrina e jurisprudência têm distinguido a amnistia própria (em sentido restrito) e a amnistia imprópria[5], distinção que acolhida no artigo 128.º do Código Penal, no seu n.º 2, ao estabelecer que «a amnistia extingue o procedimento criminal e o caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança». 

A amnistia própria reporta-se ao próprio crime é anterior à condenação, faz extinguir a responsabilidade criminal e reporta-se ao procedimento criminal.

A amnistia em sentido impróprio vem depois da condenação, apaga, impede ou limita o cumprimento da pena aplicada. Actua na execução das penas. Não apaga a condenação.

De acordo com o disposto no artigo 128.º, n.º 3, do Código Penal, o perdão extingue a pena no todo ou em parte. Tem efeitos para o passado, mas não extingue a responsabilidade criminal. É aplicável em função da pena 

O perdão genérico aproxima-se da amnistia. É, também, uma medida de clemência de carácter geral. Tem como efeito a extinção de certas penas (pelo que a doutrina a qualifica como verdadeira amnistia imprópria).

Pelo carácter geral e impessoal, a amnistia aplica-se em função de uma estatuição abstratamente cominada na lei para o crime amnistiado e não à pena concretamente aplicável ao agente. Já o perdão genérico é aplicado em função da pena. Por isso, «tem a particularidade de poder ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena[6]».

A amnistia extingue o direito subjectivo que o Estado tem de aplicar a Lei Penal[7]. Por isso, se compreende a forma de lei da competência da Assembleia da República [artigo 161.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa][8]. Já o indulto e a comutação de penas são da competência do Presidente da República, ouvido o Governo. [artigo 134.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa][9]. Pretende-se, assim, assegurar que, por via da amnistia se atinjam situações individuais.

Tem-se questionando a bondade política social das medidas de clemência, do direito de graça. Ao isentar os incumpridores dos deveres jurídico-penais, diz-se que a amnistia acaba por recompensar premiar os criminosos, incutindo a ideia nos que acataram as normas que, afinal, seria melhor não o fazer. As expectativas da amnistia incentivam à prevaricação [10].

O exercício do direito de graça vai constituir, assim, um obstáculo à punição, a contraface do jus puniendi estadual[11],  “ius puniendi” estadual, atingindo a da sanção e não o facto em si mesmo na sua materialidade naturalística.

Por outro lado, a amnistia, «subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.

Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.[12]».

E, porque tais normas são de natureza excepcional, não comportam aplicação analógica (artigo 11.º, do Código Civil), nem admitem interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas.

Uma vez afastado recurso à analogia e, não admitindo interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), nem interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria), só nos resta, uma interpretação declarativa[13], em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo[14].».

4. Como já referiu acima, o art.º 7.º n.º 1, alínea d), ii) estatui que, «não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei, os condenados por crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal.

Tendo por base o argumento literal decidiu o Tribunal recorrido que a referência a condenados só pode significar que o legislador só preveniu a exclusão da amnistia para os condenados por sentença transitada em julgado pelos crimes previstos e punidos pelos artigos 291.º e 292.º, do Código do Penal.

Com o devido respeito, assim, não o entendemos.

Na verdade, na hermenêutica jurídica o sentido da norma não pode deixar de atender ao texto da lei. Mas não só. Importa ter presente os termos e o lugar da regra legal, a correlação directa ou indirecta com outras regras, a razão de ser e a finalidade e bem assim as circunstâncias em que foi elaborada, reportados essencialmente à unidade do sistema jurídico e à justificação social da lei.

Os métodos de interpretação não se bastam com o texto e o espirito da lei, sendo, também essencial a própria ordem social em que o texto se situa.

Como ensina Oliveira Ascensão[15] «As palavras da lei são indecifráveis se não forem integradas naquela ordem social. O espírito da lei é o que resulta dessa integração. Os chamados elementos lógicos da interpretação – histórico, sistemático e teleológico – só têm sentido à luz dessa ordem social. (…)

Há que rejeitar a ilusão positivista de que a lei é autossuficiente, e que a “norma” pode ser vista com abstração da ordem social. Pelo contrário: a lei só logra ganhar sentido se integrada numa ordem social.

O direito é mais que a lei. O direito é a ordem da sociedade. A lei é um texto intencionalmente imposto para inovar a ordem normativa, mas que só se compreende como um trecho da ordem global em que é colocada. O todo repercute-se necessariamente sobre as partes».     

De acordo com o disposto no artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, a interpretação da norma não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. [artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil].

Porém, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. [artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil].

Marca-se, assim, a prevalência do espirito sobre a letra da lei, mas a letra funciona como limite na busca do sentido da lei[16]

O texto da norma, dentro do fim, da ratio e sistema em que se insere, constitui, assim, os limites que o intérprete não pode ultrapassar. «Só até onde chegue a tolerância do texto e a elasticidade do sistema é que o intérprete se pode resolver pela interpretação que dê à lei um sentido mais justo e apropriado às exigências da vida.[17]» .

Dito isto, 

Analisado todo o processo legislativo[18] e a divulgação pública que o mesmo suscitou, não nos restam dúvidas, que uma das preocupações do legislador foi a de excluir da amnistia a criminalidade muito gravidade, incluindo nesta os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez.

Tal resulta da Proposta da Lei n.º 97/XV/1.ª que esteve na base da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto e bem assim da discussão que suscitou no público em geral e, na Assembleia da República[19] em particular.

No Comunicado 19 de junho de 2023[20] o Conselho de Ministros anunciou a aprovação da proposta de lei que estabelece perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens, esclarecendo:

«O diploma estabelece um perdão de um ano a todas as penas de prisão até oito anos, sendo adicionalmente fixado um regime de amnistia que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda €1.000 e as infrações penais cuja pena não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de pena de multa.

A Proposta de Lei compreende ainda exceções ao perdão e amnistia, não beneficiando, nomeadamente, quem tiver praticado crimes de homicídio, de infanticídio, de violência doméstica, de maus-tratos, de ofensa à integridade de física grave, de mutilação genital feminina, de ofensa à integridade física qualificada, de casamento forçado, de sequestro, contra a liberdade e autodeterminação sexual, de extorsão, de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, de tráfico de influência, de branqueamento ou de corrupção.

Estão abrangidas pela presente lei, a submeter à Assembleia da República, as infrações praticadas até 19 de junho de 2023 por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade.

As medidas de clemência propostas, focadas nos jovens, têm lugar no quadro da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, que contará com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal».

Pela falta de menção aos crimes rodoviários, como a condução com álcool, o Ministério da Justiça sentiu a necessidade de, em 28 de junho de 2023[21] esclarecer que (…) a proposta de lei do Governo “contém limites substantivos da sua aplicação", nomeadamente para crimes rodoviários

O Executivo detalha que não beneficiam do perdão e da amnistia os condenados por crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, nem, no âmbito das contraordenações, as que forem praticadas sob influência de álcool ou de drogas. (…)».

E, de facto, a Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª faz referência àquele tipo de ilícito, primeiro na Exposição de Motivos e, depois, no articulado do diploma.

Aí se lê:

 «Uma vez que a JMJ[22] abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda € 1.000, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa». (negrito nosso).

Os casos de criminalidade violenta excluídos do perdão e da amnistia foram identificados no já citado artigo 5.º da Proposta de Lei, contendo, desde inicio a alínea d), ii) a ii) a referência aos condenados por crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal, redacção que viria a figurar na versão final, no artigo 7.º, nº 1, alínea d), ii).

Por outro lado, conforme assinalado pelo Recorrente, a Sr.ª Ministra da Justiça, BB na discussão da generalidade da Proposta de Lei[23], declarou:

«Assim, nesta proposta, visa-se perdoar e amnistiar infrações praticadas por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos, idade limite dos peregrinos desta Jornada. O perdão estabelecido na presente proposta é parcial e, por isso, será abolida uma parte da execução da pena —um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos —, assim como serão perdoadas as penas de multa fixadas até 120 dias, a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa, a pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e as penas de substituição.

Já com a amnistia pretende-se que seja abolida a incriminação e serão amnistiadas as contraordenações cuja coima aplicável não exceda 1000€.

A presente proposta de lei define também limites substantivos à sua aplicação. De forma a evitar o alarme social —e tomando como base a natureza e gravidade de determinados crimes, o bem jurídico que tutelam e as qualidades especiais da vítima ou do agente —, elenca-se, por isso, um conjunto de crimes que não poderá beneficiar destas medidas, como (…) a condução perigosa          de veículo rodoviário, condução de veículo em estado de embriaguez. (…)  

 Nesta lista de exclusões, seguiu-se a bitola já utilizada em amnistias e perdões anteriores, mas foi-se mais além, ampliando o elenco das exclusões.

Também as medidas previstas nesta proposta de lei em sede de contraordenações sofrem exclusões, não se aplicando àquelas contraordenações que sejam praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo. É importante frisá-lo, pelo muito que de irrefletido já se disse sobre o assunto na praça pública».

A redacção final do diploma, no qual artigo 7.º substituía o anterior artigo 5.º, seguiu para a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias,  com a Nota Final de Informação  de 21 de julho de 2023 [24] com o seguinte teor:

«Até ao termo da sessão legislativa, considerando o número de textos que se encontram em fase de redação final, a complexidade e extensão de alguns deles e, ainda, a exiguidade do prazo para a sua elaboração, informamos que remeteremos apenas o texto do projeto de decreto AR com as respetivas sugestões de aperfeiçoamento devidamente realçadas, que, na maioria dos casos, se cingem à confirmação de remissões e referências legislativas, e à correção de lapsos que foi possível detetar (…)

Destacamos as seguintes sugestões:

Artigo 7.º Alínea l) do n.º 1

Considerando que as restantes alíneas do presente número referem sujeitos (condenados, reincidentes, funcionários, membros das forças armadas, das forças policiais e de segurança):

Onde se lê:

«l) No âmbito das contraordenações, as que forem praticadas sob influência de álcool (…)»

Sugerese:

«l) Os responsáveis pelas contraordenações praticadas sob influência de álcool»

Também aqui, evidencia o legislador preocupação em não abranger na amnistia e no perdão, todos os crimes elencados nas diversas alíneas a) a h) independentemente da qualidade do agente, seja, suspeito, arguido ou condenado.

Como e bem assinala o Acórdão desta Relação de 24 de janeiro de 2024[25],  a intenção do legislador foi a de incluir nas excepções do artigo 7.º todos os sujeitos e não apenas os condenados.

«E daí decorre, inclusive a alteração à alínea l). Pelo que, por esta via, entendemos que nem o argumento de que o Legislador pretendeu distinguir arguido e condenado - pois usou nessa alínea o termo responsável - pode ser tida em linha de interpretação quanto à sua concreta intenção».

Aliás, não faria qualquer sentido que os autores (todos eles, tout court) das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo» [alínea l) do n.º 1 do art.º 7.º] não beneficiassem da amnistia e os autores de uma conduta mais grave qualificada como crime viessem a ter a clemência de uma amnistia ou perdão nos casos em que não tenha havido condenação.

A este propósito não podemos deixar de convocar a jurisprudência obrigatória fixada no Acórdão n.º 4/97[26] - pese embora, se reportar a uma situação diferente - artigo 9.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 15/94, de 11 de maio - aplica-se mutatis mutandis à presente.

A mencionada alínea previa a exclusão da amnistia e do perdão «os transgressores ao Código da estrada e seu Regulamento, quando tenham praticado a infracção sob o efeito do álcool ou com abandono do sinistrado, independentemente da pena.

Numa interpretação rigorosamente literal, lê-se no Acórdão, «o autor de um crime de um crime de ofensas corporais por negligência cometido sob a influência do álcool veria a infracção amnistiada, pois a referida alínea só é impeditiva da medida de clemência aos transgressores do Código da Estrada e seu Regulamento.».

Porém, continua o mesmo Aresto «não se pode esquecer o preceituado no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil: na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Assim, logo se vê que seria ilógico excluir da amnistia os transgressores do Código da Estrada e permitir que dela beneficiassem os autores dos crimes de homicídio ou de ofensas corporais por negligência, quando as infracções fossem cometidas sob a influência do álcool.

Como se diz no Acórdão deste Supremo de 19 de junho de 1996, proferido no processo n.º 124/96 (…) «quando é sabido, constituindo até facto notório, que são cada vez mais os acidentes de viação que vitimam anualmente dezenas e dezenas de pessoas, sendo uma das causas mais relevantes a condução sob o efeito do álcool, não faria sentido que o legislador, tendo presente esse circunstancialismo, não quisesse amnistiar a transgressão em si e, portanto, um minus, e quisesse amnistiar o mais, ou seja, o crime resultante da transgressão e envolvente das consequências graves dessa transgressão».       

No mesmo sentido e, embora, numa situação diversa, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto[27] relativamente ao artigo 2.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 29/99, de 12 de maio, alerta para o absurdo de se ter por amnistiável o delito mais grave e ter por não amnistiável um minus desse delito.

E, de facto, nenhum cidadão comum compreenderia porque é que um condutor com a taxa de alcoolémia superior 0,5 g/l (0,2g/l em certos casos) e inferior a 1,2 g/l era julgado e condenado pela prática de uma contraordenação e o condutor com uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,2 g/ (v.g. 2,5g/l) não sofria qualquer condenação.

É igualmente ilógico que o artigo 7.º exclua do perdão as penas pela condenação da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e, por outro lado, viesse a admitir a amnistia do mesmo ilícito criminal.

Como é ilógico beneficiar com a amnistia os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas que ainda não foram julgados, ou cujas sentenças ainda não transitaram em julgado, e não amnistiar, nem perdoar as penas dos crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas já julgados e, portanto já têm sentença, e dos que já têm sentença transitada em julgado.

Tamanha incoerência violaria claramente o principio da igualdade, conforme já decidido no já citado Acórdão desta Relação de 24 de janeiro de 2024.

Com efeito, a prática do mesmo facto ilícito pelos jovens com idades compreendidas entre 16 e 30 anos no mesmo período temporal [artigo 2.º] conduziria à responsabilização penal de uns e à ilibação da mesma responsabilidade penal de outros. O que no limite, poderia exigir a realização de audiência para demonstração da prática do crime e consequente condenação.  A não ser assim, o mesmo evento naturalístico e histórico praticado pelas pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos, durante o mesmo período temporal, era, para uns objecto de incriminação e, para outros não, o que afronta o principio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.   

Vale por dizer que nunca esteve no pensamento legislativo amnistiar ou perdoar os crimes enunciados no artigo 7.º, n.º 1 praticados por pessoas ainda não condenadas, muito menos por sentença transitada em julgado, (expressão nem sequer é mencionada texto do artigo 7.º, em análise).

Note-se, que a condução de veículos automóveis em estado de embriaguez não foi considerada pelo legislador como uma incriminação que possa ser apagada do mundo das infracções rodoviárias, precisamente pelas elevadas exigências de prevenção geral que tal ilícito implica. A sociedade não toleraria um apagão de crimes tão graves como os enunciados no artigo 7.º, tenham sido praticados por pessoas condenadas ou não.

É a gravidade do desvalor da acção, do interesse e bens jurídicos tutelados pela norma incriminadora e não a qualidade da posição processual do agente, suspeito, arguido ou condenado, que impediu a amnistia de determinados crimes.

A interpretação da palavra “condenados” no sentido de exigência de condenação por sentença transitada em julgado não tem o mínimo de correspondência nem no pensamento jurídico nem na justificação social da Lei do Perdão e da Amnistia, em virtude de estender a amnistia a crimes que clara, objectiva e expressamente o legislador, pela sua gravidade, não quis abolir do sistema legal punitivo. 

Assim, com o devido respeito por opinião contrária, parece-nos incontornável que o legislador, embora amnistiando as infracções referidas nos artigos 2.º, 4º e 6.º e perdoando as sanções e penas indicadas no artigo 3.º e 5.º, considerou que os crimes enunciados no n.º 1, alíneas a) a h) do artigo 7.º não seriam objecto de clemência independentemente de existir ou não sentença de condenação transitada em julgado.     

E, por isso, assiste inteira razão ao Recorrente, ao concluir, que a  amnistia não é aplicável ao caso dos autos, por se subsumir à exceção à sua aplicação e a que alude o artigo 7.º, n.º 1, al. d), ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sendo esta a interpretação que mais se coaduna com o pensamento do legislador, com a coerência sistemática do Diploma e com o elemento histórico, não sendo tal interpretação contrária à letra da lei e nela encontrando um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Procedendo por inteiro o recurso, determina-se a revogação do despacho em crise, que declarou extinto por amnistia o procedimento criminal, devendo o processo seguir os seus ulteriores termos.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em revogar o despacho recorrido, determinando o normal prosseguimento autos.

(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo e pela terceira signatários, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09)

Coimbra, 21 de fevereiro de 2024

Relatora: Alcina da Costa Ribeiro

1.º Adjunto: João Novais

2. Ajunto: Cristina Branco


[1] Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 687.
[2] Cf. Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, Volume II, pág. 207 e seguintes, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 16.ª edição, pág.s 429 a 439 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português- As Consequências Jurídicas do Crime -  parte geral II, pág.s 681 a 686. 
[3] Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º  6/95, www.dgsi.pt
[4] Cavaleiro Ferreira, ob. cit. pág. 207.
[5] Esta distinção foi introduzida pela primeira vez em Portugal pela mão do Professor Beleza dos Santos que, por influência clara da doutrina italiana, afirmava que na amnistia própria a medida de clemência respeitava ao próprio crime ou infracção, ao passo que a amnistia imprópria respeitava à consequência jurídica do crime ou infracção.
[6] Mariana Canotilho, Ana Luísa Pinto, As medidas de clemência na ordem jurídica portuguesa, Estudos em memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, págs. 336 e 337.
[7] Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 128.
[8] Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit. pág. 128.
[9] Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit. pág. 128.
[10] Germano Marques da Silva, Amnistia, Enc. Polis, 1.º volume (1983), pág.s 285-286.
[11] Figueiredo Dias, Direito Penal Português- As Consequências Jurídicas do Crime -  parte geral II, pág. 685.
[12] Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001, proferido no processo n.º 3209/00-3, acessível em www.dgsi.pt.
[13] Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001.
[14] Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, pág. 147, apud Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2001, de 25 de outubro de 2001.
[15] Interpretação das leis, integração de lacunas, Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, n.º 57, (dez. 1997) págs. 915 e 916. 
[16] Oliveira Ascensão, ob. cit. pág. 915. 
[17] Manuel de Andrade, Ensaio Sobre A Teoria Da Interpretação Das Leis.
[18] Acessível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf.
[19]  DAR II série A n.º 245, 2023.06.19, que esteve na origem da Lei n.º 38-A/2023, de 2.8
[20] Comunicado electrónico do Conselho de Ministros de 19 de junho de 2023, visualizado em  https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/governo/comunicado-de-conselho-de-ministros?i=558 
[21] Na sequência do alerta do Automóvel Club do Portugal (ACP) à Assembleia da República para o elevado número dos crimes rodoviários praticados pelos jovens até aos 30 anos e para o perigo que implicam para a sociedade, que, por isso, não deviam ser abrangidos pela Lei da Amnistia. Cf. https://www.rtp.pt/noticias/jmj/jmj-governo-esclarece-que-crimes-rodoviarios-estao-entre-as-excecoes-da-amnistia-aos-jovens_n1496399
[22] Jornadas Mundiais da Juventude.
[23] Publicada no DAR I série n.º 149, 2023.07.05, da 1.ª SL da XV Leg (pág. 36-46),
[24] https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf.
[25] Relatora: Desembargadora Alexandra Guiné, em www.dgsi.pt
[26] Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/97 de 19 de dezembro de 1996, publicado DR – I Série A, de 18 de março de 1997.
[27] 12 de janeiro de 2000, em www.dgsi.pt