Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
101/20.9T9GVA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CAPITOLINA FERNANDES ROSA
Descritores: DESCRIÇÃO DOS FACTOS
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
SANEAMENTO DO PROCESSO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ESPECIFICAÇÃO DAS PROVAS
FUNDAMENTAÇÃO DA DIVERGÊNCIA COM A DECISÃO RECORRIDA
VALORAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE GOUVEIA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 283.º, N.º 3, ALÍNEA B), 311.º, N.º 2, ALÍNEA A), E N.º 3, ALÍNEA B), 374.º, N.º 2, 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), 412.º, N.º 3, ALÍNEAS A) E B), N.º 4 E N.º 6 E 431º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – A conveniente descrição factual, determinada nos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 374.º, n.º 2, do C.P.P., é corolário da estrutura acusatória do nosso processo penal, pela qual o objecto do processo é fixado pela acusação, que delimita o poder de cognição do tribunal, e é garante dos direitos de defesa do arguido.

II – Tendo sido suscitada a nulidade da acusação, por insuficiência da descrição dos factos submetidos a julgamento, depois da fase de saneamento do processo fica precludida a possibilidade da sua rejeição, só podendo o vício ser conhecido na medida em que a alegada insuficiência puder afectar a decisão final.

III – A consequência da detecção de um vício congénito na acusação em sede de decisão final será a absolvição.

IV – A especificação das “concretas provas”, exigida na alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do C.P.P., corresponde à indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova, com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida, pois o recorrente tem que demonstrar que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal a quo não tem suporte, ou seja, tem, à semelhança do que a lei impõe ao juiz, que fundamentar a existência de erro de julgamento.

V – O juízo sobre a valoração da prova incide sobre a credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova, o que depende substancialmente da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha da prova testemunhal e, integrando elementos não racionalmente explicáveis, potencia a adequada apreciação dos depoimentos, nele intervindo as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, baseando-se agora as inferências na correcção do raciocínio que, por sua vez, há-de assentar nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.

VI – Só em caso de inexistência de provas para se decidir num determinado sentido ou de violação das normas de direito probatório pode a decisão da primeira instância ser modificada.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


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I. RELATÓRIO

… sido proferida sentença datada 31.01.2023, que decidiu:

“a) Absolver o arguido (…), da prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal.

b) Condenar o arguido (…), pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 70 (setenta) dias de multa à razão diária de 15,00EUR (quinze euros) perfazendo a quantia global de 1.050,00EUR (mil e cinquenta euros);

d) Declarar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização deduzido pela demandante … e, …, condenar o arguido demandado … no pagamento à demandante da quantia de 750,00EUR(setecentos e cinquenta euros), quantia, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da notificação do arguido da dedução de tais pedidos e às taxas legais desde então em vigor até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se do demais contra si peticionado.

(…)”

…, o arguido interpôs recurso da sentença, …

Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:

1. Deve julgar-se não provada a matéria de facto dos pontos 4 e 8 da decisão sobre a matéria de facto, face aos depoimentos das testemunhas …

5. A assistente declarou ter tido conhecimento das expressões pelas colegas …

6. O arguido negou os factos pelo que, tudo considerado, não deveriam ter sido considerados provados os factos impugnados.

7. Ficou essencialmente provado que, durante o espaço de três meses, algures dentro da instituição (qual instituição?), dirigindo-se a colegas de trabalho não identificadas, o arguido referiu-se à assistente um número indeterminado de vezes como ratazana e ratazana de esgoto, sendo o arguido condenado com base nesta matéria de facto.

8. Tal matéria é tão escassa e pouco circunstanciada que impossibilitou, na prática, uma defesa cabal do arguido: não foram indicadas datas em concreto da prática dos factos, não foram indicados os destinatários dos dizeres difamatórios.

10. Estas insuficiências tornam nula a acusação e, por arrasto, a sentença, ao ter sido violado irreparavelmente o direito de defesa do arguido.

11. A matéria de facto provada não é suficiente para preencher os elementos do tipo do crime de difamação, …

O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

O Ministério Público apresentou resposta, …

A assistente apresentou igualmente resposta, …


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Neste Tribunal da Relação ..., o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer …


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II.  QUESTÕES A DECIDIR

Atentas as conclusões apresentadas, … as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:

● Nulidade da acusação e da sentença condenatória

●Impugnação ampla da matéria de facto – erro de julgamento


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III. Transcrição dos segmentos da decisão recorrida relevantes para apreciação do recurso interposto

Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:

“ (…)

II. FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

2.1 - Factos provados

Produzida a prova e discutida a causa, o Tribunal, com relevância para a decisão, julga provados os seguintes factos:

1. A assistente … trabalha desde 02.12.1999 para a Associação ... – Instituição de Solidariedade Social, na qual o arguido …, desde 2002, detém o cargo de Presidente da Direcção.

2. Na sequência da audiência de discussão e julgamento no processo n.º 105/18.... realizada no dia 10.12.2019 e na qual a assistente prestou depoimento na qualidade de testemunha, o arguido deixou de falar com a assistente, sendo todas as comunicações realizadas entre si por intermédio da Directora Técnica ….

3. O arguido no âmbito do processo referido em 2) veio a ser condenado, por decisão proferida em 17.01.2020 pela prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelos artigos 11º al. d), 87º, n.º 1 e 3 do RGIT na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa por três anos, condicionada ao pagamento da prestação tributária no valor de 50.941,09 euros.

4. Na sequência do julgamento referido em 2), no período compreendido entre 10.12.2019 e Março de 2020, em datas e número não concretamente apurados, no interior da instituição (nomeadamente, na cozinha e nos corredores) o arguido referia-se à assistente, perante as suas colegas de trabalho, como ratazana e ratazana de esgoto.

5. No dia 14.02.2020 a assistente foi confrontada pelo arguido perante o Vice-Presidente, Secretário, Tesoureiro e Directora Técnica da Instituição com carta anónima dirigida à instituição que lhe imputava falta de profissionalismo e que a mesma seria conhecida por frequentar bares e bailes de copo na mão.

6. No dia 26.02.2020, quando o arguido se encontrava juntamente com outras funcionárias à mesa no refeitório da instituição e quando a assistente se aproximou para almoçar, o arguido de imediato se levantou e quando regressado à mesa quando a assistente terminou o seu almoço referindo-se à assistente disse, diante dos presentes “Fodas! Estava a ver que esta gaija não saía daqui”.

7. Na sequência do exposto, a assistente participou os factos à Autoridade para Condições do Trabalho, conforme comunicação junta a fls. 6 a 12, cujo teor se dá por reproduzido.

8. Ao actuar da forma descrita pretendeu o arguido violar a honra e consideração da assistente, nomeadamente, no seu local de trabalho.

9. Os comportamentos levados a cabo pelo arguido consubstanciaram uma actuação livre, voluntária e consciente, bem sabendo o arguido que a sua conduta é proibida e punida por lei e que o faz incorrer em responsabilidade criminal.


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2.2 - Factos não provados


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2.3 – Da convicção do Tribunal

Nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 97º e 374º, n.º 2 do C.P.P., na formação da sua convicção, o Tribunal atendeu, quer ao conjunto de prova produzida em sede de audiência de julgamento [em concreto, declarações do arguido …, declarações da assistente …, depoimentos das testemunhas…, quer na demais prova documental junta aos autos … e, ainda, à reprodução à visualização e reprodução mecânica em audiência de julgamento dos documentos de fls. 307 e 308 …


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(…)”

IV. MÉRITO DO RECURSO

1.

Nulidade da acusação e da sentença condenatória

Alega o recorrente  que “Se tivessem sido identificados na acusação os dias, os locais e as pessoas perante quem teriam sido proferidas as expressões, sendo descrito o modo como foram proferidas, poderia o arguido tentar descobrir o que sucedeu e onde estava nesses dias, sendo identificadas as pessoas em concreto perante quem teria proferido as expressões poderia identificá-las como testemunhas ou indicar outras, que também estivessem presentes.” – cf. nº 9 das conclusões de recurso.

Sustenta que “Estas insuficiências tornam nula a acusação e, por arrasto, a sentença, ao ter sido violado irreparavelmente o direito de defesa do arguido.”  – cf. nº 9 das Conclusões de recurso.

Resulta do artigo 283º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a obrigatoriedade de a acusação conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

 E o artigo 374º, nº2, do Código de Processo Penal determina, como requisito da sentença, a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas.

A não observância destas disposições legais é ferida com o vício da nulidade (artigos 283º, nº 3, 311º, nº 3, alínea b) e 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal).

Do mesmo vício padece a decisão que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora das condições previstas nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal – alínea b), do nº 1 do artigo 379º do Código Processo Penal.

Esta exigência de conveniente descrição factual é corolário da estrutura acusatória do nosso processo penal, pela qual o objeto do processo é fixado pela acusação, que irá delimitar o poder de cognição do Tribunal.

Refere a este propósito Maia Costa[1] “A narração dos factos deve ser tanto quanto possível concreta, em termos de tempo e lugar e, havendo vários agentes, quanto à intervenção particular de cada um, sendo irrelevantes imputações genéricas ou coletivas, a não ser como enquadramento de factos devidamente individualizados.

A indicação rigorosa do tempo e do lugar da infração pode por vezes ser difícil ou mesmo impossível. Essencial é que a referência feita na acusação a esses elementos de facto seja suficientemente precisa que permita ao arguido defender-se adequadamente.”.

E a autossuficiência da acusação importa para salvaguarda do mesmo princípio, garante dos direitos de defesa do arguido, assim como a vinculação temática da acusação irá delimitar a abrangência da cognição do Tribunal.

Mas, tendo a acusação vertida nos autos servido o respetivo propósito, que seja a sujeição do arguido a julgamento, sem que antes tenha sido suscitado o apontado vício, apenas pode o mesmo ser conhecido na medida em que, por vertida a factualidade na decisão final, a venha a afectar, como o arguido alega.

Na verdade, o arguido não suscitou anteriormente a nulidade da acusação. E, tendo os autos sido remetidos à distribuição sem instrução, é no momento previsto no artigo 311º do Código de Processo Penal, no saneamento do processo, que cabe conhecer dos vícios da acusação, entre os quais, se incluí a inexistência de factos que constituam crime - nº 2, alínea a) e nº 3º, alínea b).

Ultrapassado este momento, não pode o Tribunal conhecer da nulidade da acusação, sem prejuízo de, a verificar-se esse vício, o devir processual apenas ser apto a conduzir à absolvição.

Ultrapassado este momento fica precludida a possibilidade de rejeição da acusação e a consequência da deteção de um vício congénito naquela peça processual, em sede de decisão final, será a absolvição[2].

Resta, por isso, concluir que a arguição da nulidade por parte do recorrente se mostra extemporânea.

E não se detecta como pode este entendimento postergar as garantias de defesa do recorrente constitucionalmente consagradas. Em tempo, o recorrente contestou a acusação, negou os factos, afirmou não ter dirigido qualquer das expressões imputadas à assistente e, bem assim, por referência à factualidade nos dias 24 e 26 de Fevereiro de 2020 e 2 de Março de 2020, não se encontrava presente na instituição; arrolou testemunhas e juntou documentos. Não se vislumbra assim que tenha ocorrido qualquer violação das garantias de defesa do arguido.

Com efeito, como refere a Digna Magistrada do Ministério Público sob o nº12 das conclusões de resposta ao recurso “ (…) atenta a unidade da resolução criminosa do arguido, executada em condutas parcelares de forma permanente e continuada o momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se reportar a uma concreta data e sítio, o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação, período temporal que consta da matéria de facto dada como provada, daí decorrendo também de forma clara o local da prática dos factos e os destinatários dos dizeres difamatório em causa.”.

Em suma, a descrição fáctica está suficiente concretizada, delimitada temporalmente, e tem densidade bastante para permitir ao arguido uma defesa eficaz, não tendo ficado coartado o seu direito a uma defesa efectiva.

Mas importa conhecer do eventual vício da decisão final, por ausência de factos que integrem o crime pelo qual o arguido veio a ser condenado, que é de conhecimento oficioso.

Podemos estar aqui perante a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal.

De acordo com o artigo 410º, nº 2, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [alínea a], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [alínea b)] e o erro notório na apreciação da prova [alínea c)].

Estes vícios formais podem ser arguidos pela parte, delimitando o recurso, mas “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2 do Código Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” – cf. AUJ nº 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995.

Na chamada revista alargada, a indagação da existência de vícios tem que resultar da decisão recorrida, em si ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, nomeadamente excertos de prova testemunhal produzida em julgamento.

Tais vícios terão de resultar da mera leitura do texto decisório, à luz das regras de experiência comum, evidentes para o denominado homem médio. …

Estão em causa vícios endógenos, que permitem atacar a decisão na sua regularidade formal (e que não se confundem com o erro de julgamento em matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º do mesmo diploma).

O recorrente não invoca expressamente este vício, mas sustenta que “a matéria de facto provada não é suficiente para preencher os elementos do tipo de crime de difamação, uma vez que se não apurou que o arguido se dirigia às colegas de trabalho da assistente e a quais, que estas ouviram as expressões proferidas pelo arguido, que ele queria que as colegas de trabalho da assistente ouvissem essas expressões e provou sequer a quem, ou perante quem, em concreto, proferiu o arguido essas expressões.”.

O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, verifica-se quando no texto da decisão, os factos dados como assentes são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição; ou seja, quando os factos provados são insuficientes para poderem sustentar a decisão recorrida ou quando o tribunal recorrido, devendo e podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa, o que determina que a matéria dada como assente não permite, dada a sua insuficiência, a aplicação do direito ao caso.

Assim, tal insuficiência – definida por Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in Recursos Penais, 9.ª Edição 2020, Rei dos Livros, página 74, precisamente, como uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” – tem de existir internamente, no âmbito da decisão.

Estão em causa os factos enumerados na decisão acima transcrita nos pontos 4 e 8.

Ora, estes factos são suficientes para integrar a conduta do recorrente no crime de difamação pelo qual veio a ser condenado, resultando da matéria de facto provada que os destinatários dos dizeres difamatórios foram as colegas de trabalho da assistente.

Não padece, por isso, a sentença do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (que não se confunde com a insuficiência probatória para a decisão).

Por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se deteta na decisão recorrida qualquer vício de conhecimento oficioso. A decisão mostra-se, na sua regularidade formal, absolutamente lógica, coerente e racional.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

2.

Impugnação ampla da matéria de facto – erro de julgamento

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: na “revista alargada” de âmbito mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal; através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º nº3, 4 e 6, do mesmo diploma.

No primeiro caso, como já se disse,  estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[3].

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa[4].

Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder à tríplice especificação estabelecida no artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal:

«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

             a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

             b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

             (…)»

A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das “concretas provas” corresponde à indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida.

Relativamente à especificação da alínea b) recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nº 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411º nº4 desse diploma.

Vejamos, então.

Alega o recorrente que “Deve julgar-se não provada a matéria de facto dos pontos 4 e 8 da decisão sobre a matéria de facto”,

A este respeito remete o recorrente, para os seguintes depoimentos:

Porém, como se verá, não assiste razão ao recorrente.

Neste âmbito, ouvidas as passagens indicadas do depoimento das testemunhas …, não resulta demonstrado que tais segmentos probatórios, face aos restantes, coloquem em causa o raciocínio lógico e conviccional do Tribunal a quo, pois não revelem aptidão para refutar os argumentos expendidos pelo julgador.

            Por fim, cumpre dizer, é certo que o arguido e assistente apresentaram nos autos versões diferentes dos acontecimentos, mas daí não resulta que a versão da assistente seja inverosímil. Na verdade, a versão do arguido resulta infirmada pela restante prova produzida nos autos, como, aliás, o Tribunal a quo cuidou de exarar meticulosamente na convicção sobre a matéria de facto.

Efectivamente, não basta afirmar sumariamente que A. ou B. disse isto ou aquilo, que não corresponde ao que foi dado como assente; necessário se mostra que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal a quo se mostra sem suporte, na análise global a realizar da prova, enunciando concretamente as razões para tal.

Na verdade, exige-se que o recorrente – à semelhança do que a lei impõe ao juiz – fundamente a imperiosa existência de erro de julgamento, desmontando e refutando a argumentação expendida pelo julgador.

Sustentando o recorrente que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento, importa referir que se verificará tal erro (a que se reporta o nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal) quando a factualidade julgada provada e não provada não se mostre em consonância com a prova produzida. Tal acontecerá nas situações em que o Tribunal considere provado um facto sem que dele tivesse sido feita prova, ou quando considera não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido dado como provado.

Com efeito, o poder reapreciativo da 2ª instância não é equivalente ao poder original atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo face àquela, pois o poder reapreciativo concedido ao tribunal de recurso não é absoluto nem se reconduz à realização integral de um novo julgamento da matéria de facto, substituto do já realizado em 1ª instância.

A reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.

Assim, o que realmente resulta da motivação do recurso é a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, cumprindo não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos tribunais superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum.

Ora, em matéria de apreciação da prova, rege o artigo 127º, do Código de Processo Penal: …

Tal livre apreciação da prova, não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, objectivável e motivável. Não significando, porém, que seja totalmente objectiva pois, não pode nunca dissociar-se da pessoa do juiz que a aprecia e na qual “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais.[5]

A livre valoração da prova não pode, pois, ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas sim valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão.

O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis.

Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que, por sua vez, há de assentar nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.

Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir que a valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos que é eminentemente subjectiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal, permite, num quadro de emissão e recepção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de acção/reacção, como o próprio silêncio - potenciar a adequada apreciação dos depoimentos[6].

Tal não significa que a apreciação, eminentemente subjectiva, conducente a conferir maior ou menor credibilidade a um depoimento, seja insindicável, pois ao julgador é imposto o dever de explicitar as razões da sua convicção pessoal, na fundamentação da decisão, isto é, que revele não só os motivos por que certo depoimento mereceu maior credibilidade do que outro, mas também que explicite o raciocínio lógico que utilizou na apreciação global e lógica de toda a prova no cumprimento do dispõe o nº 2 do artigo 374º, do Código de Processo Penal.

E se os critérios subjectivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.

Por isso ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente, no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade, verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. E só em caso de inexistência de provas, para se decidir num determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas se incluindo as regras da experiência e/ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão da primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do artigo 431º do Código de Processo Penal.

Face ao que se deixa exposto, haverá que concluir que, em tal matéria, cabe apenas ao tribunal de recurso verificar, controlar, se o Tribunal a quo, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha – ou seja, no cumprimento do disposto no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Para este efeito, como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 11.03.2021[7], “O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado.»

E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os recorrentes.

Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar.”

Temos, pois, que a lei não considera relevante a pessoal convicção de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal – até porque se assim fosse, não haveria, como é óbvio, qualquer decisão final. O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.

No caso sub iudice, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada nos termos supra transcritos, …

Ora, a situação, o contexto e o encadeamento descrito nos factos provados não é contrário às regras da experiência comum, nem se apresenta como ilógico ou descabido face ao normal acontecer das coisas, pelo que não pode censurar-se o Tribunal recorrido ao ter exradado os factos provados sob o nº 4) e 8) como correspondendo à verdade acontecida.

Como se refere no acórdão da Tribunal da Relação de Lisboa de 26.10.2021[8], “apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova por declarações prestada, no seu todo e à luz de regras de experiência comum, pode ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão (…).

As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.

Nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal e durante a audiência, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento. De resto, tal como em relação à prova em geral, especialmente no que toca à prova por declarações e muito particularmente depois a todo o seu caldeamento com a generalidade do material probatório recolhido.

Toda a sensibilidade que ali desfila, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade.

Matéria tão importante quanto impossível de captar para futura reprodução.

Só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.”

Como se apontou neste acórdão de 26.10.2021, este tipo de contacto só existe, de facto, na primeira instância, pois a imediação permite ao julgador ter uma percepção dos elementos de prova que é muito mais próxima da realidade do que qualquer posterior análise, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que se socorra da documentação dos actos da audiência.

Assim, improcede, também, o recurso no que toca à impugnação da matéria de facto.

V. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto por AA e, em consequência, em manter integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.


*

Coimbra, 11 de Outubro de 2023



Capitolina Fernandes Rosa

(Relatora)

Luís Teixeira

(1º Adjunto)

Maria José Guerra

(2ª Adjunta)






[1]Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 4.ª ed. revista, pág. 961.
[2]No sentido que estamos perante vício de conhecimento oficioso que pode ser declarado até ao trânsito em julgado da decisão: Acs. TRC de 25/05/2013, Proc. n.º 368/07.8TALRA.C1 e de 28/11/2018, Proc. n.º 6/17.0IDCTB.C1, ambos relatados por MARIA PILAR DE OLIVEIRA
[3] Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.)
[4] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.307, Proc. 07P21, e de 23.507, Proc. 07P1498, in www. dgsi.pt.
[5] Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 205.
[6] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.02.2008, no processo nº 07P4729, Relator: Pires da Graça, acessível em www.dgsi.pt.
[7] No processo nº 179/19.8JDLSB.L1-9, Relator: Abrunhosa de Carvalho, em www.dgsi.pt.
[8] No processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, Relator: Manuel Advínculo Sequeira, em www.dgsi.pt.