Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/23.5YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
SENTENÇA JUDICIAL INGLESA
REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
CONVENÇÃO DA HAIA DE 1996
PRINCÍPIO DO INTERESSE DA CRIANÇA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL DO ESTADO PORTUGUÊS
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: PROCESSO ESPECIAL DE REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 978.º E 980.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 8.°, N.° 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA E 1879.° DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – Com a saída do Reino Unido da União e com o termo do período de transição, ocorrido em 31 de Dezembro de 2020, a aplicação da Convenção da Haia relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças (Convenção da Haia de 1996), celebrada no quadro da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, foi repristinada na totalidade nas relações dos Estados-Membros da União com o Reino Unido, a partir de 1 de Janeiro de 2021;

II – As medidas tomadas por um Estado contratante da Convenção da Haia de 1996, designadamente em matéria de responsabilidade parental, são reconhecidas por força de lei em todos os outros Estados contratantes; a Convenção consagra, assim, o princípio do reconhecimento de pleno direito em qualquer Estado contratante das medidas adoptadas por outro Estado contratante, pelo que as decisões proferidas por um Estado contratante são reconhecidas ipso iure noutro Estado contratante, portanto, sem necessidade do recurso a qualquer procedimento: o reconhecimento é, por isso, automático;

III – A Convenção da Haia de 1996 admite, todavia, o reconhecimento ou não reconhecimento expresso – e autónomo – uma vez que qualquer interessado pode solicitar às autoridades competentes de qualquer outro Estado contratante o reconhecimento ou o não reconhecimento das medidas tomadas noutro Estado subscritor, através de um procedimento de reconhecimento regido pela lei do Estado requerido;

IV – Os fundamentos de recusa do reconhecimento admitidos pela Convenção da Haia de 1996 obedecem a um princípio de numerus clausus: os fundamentos de recusa, pelo Estado contratante requerido, do reconhecimento são apenas os taxativamente especificados na Convenção, sendo certo que qualquer dos fundamentos individualizados pode autorizar a recusa, pelo Estado requerido, do reconhecimento - mas não a impõe.

V – Nos termos da mesma Convenção, o reconhecimento de uma sentença proferida em matéria de responsabilidade parental por um Estado contratante pode ser recusado por outro Estado contratante se esse reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado requerido, mas na apreciação da violação da ordem pública importa considerar o superior interesse da criança, motivo pelo qual há que proceder a uma análise integrada da ordem pública e do interesse proeminente da criança; a manifesta contrariedade com a ordem pública do Estado requerido não é, por isso, suficiente para se excluir o reconhecimento, uma vez que é preciso ponderar a situação, tomando em consideração, cumulativamente, o superior interesse da criança;

VI – O recurso à cláusula de ordem pública só deve admitir-se quando o reconhecimento – ou a execução – da decisão proferida noutro Estado contratante da Convenção da Haia de 1996 viole de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por atentar contra um princípio fundamental; de modo a respeitar a proibição expressa de revisão de mérito da decisão estrangeira, contida na Convenção da Haia de 1996, esse atentado deve constituir uma violação manifesta de uma regra de direito considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica;

VII – De harmonia com a Convenção da Haia de 1996 o único caso em que a existência de decisões concorrentes que obstam ao reconhecimento é o da decisão posterior de um Estado não contratante da residência habitual da criança, desde que a decisão deste último Estado reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado requerido;

VIII – A proibição de révision au fond não contende, evidentemente, com a possibilidade de uma autoridade que seja competente regular de novo a responsabilidade parental, sempre que se tenha verificado uma alteração das circunstâncias, alteração que pode consistir na mudança da residência habitual da criança;

IX – A concessão do exequatur à sentença estrangeira deve ser pedida expressamente pelo interessado.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Relator: Henrique Antunes
1.ª Adjunta: Cristina Neves
2.ª Adjunta: Teresa Albuquerque

Proc. n.° 4/23.5YRCBR



Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:   
Relatório.     
AA propôs contra BB acção de revisão de sentença estrangeira, com processo especial, pedindo a confirmação da sentença do Tribunal de Família, do Tribunal Central de Londres, proferida no processo ZC..., para que as responsabilidades reguladas que a mesma decreta produza os seus efeitos em Portugal.              
Fundamentou esta pretensão no facto de a requerida ter proposto acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais, que corre termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., no âmbito da qual, tendo em consideração a existência de decisão jurisdicional de responsabilidades já reguladas em Inglaterra, relativamente ao menor, filho de ambos, CC, lhe foi determinado que comprovasse a instauração da presente acção, de, após requerimento para o efeito, na data do qual o menor e os pais tinham residência fixada em Inglaterra, ter sido determinado os termos das responsabilidades a regular no Tribunal de Família Central de Londres, de a decisão em causa constar de documento sobre cuja autenticidade e inteligência não deve haver dúvidas, provir de tribunal competente e não versar sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, e de a acção ter sido julgada de acordo com a legislação nacional do Reino Unido e Inglaterra, não contendo decisão contrária aos princípios da ordem pública
internacional do Estado Português.
A requerida opôs-se alegando que a sentença é contrária à ordem pública internacional do Estado Membro requerido, tendo em conta o superior interesse da criança, conforme dispõe a al. a) do art.° 23.° do Regulamento n.° 2201/2003, de 27 de Novembro, dado que é omissa quanto ao exercício das responsabilidades parentais e à fixação da pensão de alimentos, tendo decidido autorizá-la a mudar-se, definitivamente, para Portugal, e fixado as datas em que o pai poderá visitar o menor, antes da mudança, as épocas em que pode visitar o menor e este estar com o pai, após a mudança, e de no âmbito do processo n.° 446/22...., que corre termos no Juízo de Competência Genérica ..., terem acordado quanto ao exercício das responsabilidades parentais da criança, não tendo, porém, acordado quanto à questão das saídas para o estrangeiro, acordo com alcance diferente daquele que consta do processo cujo reconhecimento o requerente pretende, pelo que estamos perante um conflito da decisão cujo reconhecimento se requer com uma decisão posterior, em matéria de responsabilidade parental do Estado Membro requerido.
O requerente respondeu que estão integralmente cumpridos os requisitos legais, nos termos previstos no art.° 980.° do Código de Processo Civil, para que a sentença estrangeira seja revista e confirmada.
Por não ter sido requerida nem o relator ter julgado indispensável ou sequer necessária qualquer diligência, facultou-se o processo às partes e ao Ministério Público para, querendo, alegarem por escrito. A requerida reiterou, na sua alegação, o conteúdo da contestação; o Ministério Público concluiu que não se vê obstáculos a que a decisão estrangeira seja revista; por último, o requerente declarou acompanhar as alegações do Ministério Público, pelo que a revisão/confirmação que pediu deve proceder.
1. Pressupostos processuais.
O tribunal é competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
O requerente, AA, e a requerida, BB, são dotados de personalidade e capacidade judiciárias, de legitimidade ad causam e estão regularmente patrocinados.
Inexistem nulidades, questões prévias ou outras excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto da causa.
2.1. Factos provados.
Consideram-se assentes os factos seguintes:
3.1. CC, nascido no dia .../.../2017, é filho do requerente e da requerida.
3.2. A decisão estrangeira cuja revisão é pedida tem o conteúdo seguinte:
NoTribunal de Família no TRIBUNAL DE FAMÍLIA CENTRAL
(ln the Family Court in the Central Family Court)
Número do Caso ZC...
Ordem
Disposições Relativas às Crianças e Ordem Específica de Emissão
989
Nome completo da criança                                                                                        Rapaz ou Rapariga
CC                                                                                                                               Rapaz
ALTERADO EM CONFORMIDADE COM AS REGRAS PROCESSUAIS FAMILIARES 2010 REGRA
29.16 EM 5 DE JANEIRO DE 2022
Antes da audiência do Recorder Fletcher em privado no Tl,e Family Court no Central Family Court, ... nos dias 14, 15 e 16 de dezembro de 2021
As partes e a representação
1. A requerente é DD, a mãe, instruída pelo advogado EE, representada pelo advogado FF cujos dados de contacto são ...
O primeiro requerido é AA, o pai, representado pela advogada GG, instruído numa base de acesso direto pelo primeiro requerido. Cujos dados de contacto fornecidos são .... uk.
NOTAS IMPORTANTES
Aviso de confidencialidade
O nome da criança e das partes não devem ser divulgados publicamente sem a autorização do tribunal.
CONSIDERAÇÕES
2. Esta ordem destina-se a cumprir os requisitos da Convenção de Haia de 1996 para efeitos de reconhecimento e execução em Portugal.
3. Entende-se por "ordem de acordos dos filhos" uma ordem que regula o tempo que urna criança passa com cada progenitor, incluindo disposições relativas à custódia e ao acesso, nos termos da Convenção da Haia de 1996.
4. Os parágrafos 15 a 18 deste despacho são ordens finais e são plenamente executáveis nos Tribunais de Inglaterra e do País de Gales.
C43 Medidas a favor da criança/Emissão específica/Medidas proibidas
5. As questões que o Tribunal tinha de decidir eram as seguintes:
a. A proposta de mudança permanente pela mãe, requerente, com a criança para Portugal.
b. O tempo que a criança deve passar com o pai arguido, se o tribunal conceder autorização à mãe requerente para se mudar permanentemente para Portugal.
c. Se o tribunal recusar à mãe requerente autorização para se deslocar de forma permanente para Portugal, quanto tempo CC deve passar com o pai.
Outras considerações
6. Após o tribunal ter ouvido as provas orais da mãe requerente, do pai requerido e da agente HH do Children and Family Court Advisory and Support Service (Cafcass) (Serviço de Assessoria e Apoio ao Tribunal da Criança e da Família).
7. E após a mãe requerente confirmar ao tribunal que ela se esforçará para prestar assistência prática ao pai requerido quando este visitar Portugal, tal como alojamento e transporte e que incluiu provas de que ela está, neste momento, em condições de oferecer ao pai um carro para usar, sujeito a ele estar apto para conduzir naquele momento.
8. E após a mãe Requerente confirmar que concorda, em princípio, que o pai pode levar CC para outros países durante as férias de verão, desde que ele forneça informações sobre os seus planos propostos e ela confirme o seu acordo.
9. E de o pai Requerido informar ao tribunal a sua intenção de se vacinar contra o Covid19 para ajudar na sua viagem a Portugal, na sequência da mudança definitiva da mãe requerente.
10. E após as partes concordarem que, no Natal de 2021, a criança passe aproximadamente das 23h às 15h com o pai no dia de Natal, conforme acordado na ORA em 1 de dezembro de 2021.
11. E de que as partes concordem, sempre que possível, em se organizar para que a criança passe tempo com o seu pai no aniversário da criança e no aniversário do pai.
12. E após o pai inquirido confirmar que trabalha aos domingos e, portanto, solicitar que a mãe requerente deixe o CC mais cedo numa sexta-feira e o recolha no domingo de manhã até à sua mudança permanente para Portugal, o que é acordado pela mãe requerente.
13. E após o tribunal observar que os acordos de contato abaixo são mínimos e que se espera muito que os pais possam acordar mais períodos de tempo.
É ORDENADO QUE:
Jurisdição
14. O tribunal declara que tem competência em relação à criança com base na residência habitual.
Permissão para a mudança permanente
C43 Medidas a favor da criança/Emissão específica/Medidas proibidas
15. A mãe requerente DD obtém autorização para se mudar definitivamente para Portugal com o filho CC (Nasc. a .../.../2017) a partir de 6 de março de 2022.
16. Caso o pai respondente confirme que se recusa a passar algum tempo com a criança, durante o período previsto no parágrafo 17b abaixo, a mãe requerente tem permissão para se mudar definitivamente para Portugal a partir de 14 de fevereiro de 2022
Ordem de Medidas para a Criança
17. A criança deve viver com a mãe requerente DD e passar algum tempo com o pai requerido AA antes da mudança permanente da mãe para Portugal, como se segue:
a.

Data do fim de semanaDescrição
18 de dezembro de 2021l Noite de Sexta a Sábado
1 de janeiro de 20221 Noite de Sexta a Sábado
15 de! janeiro de 20221 Noite de Sexta a Sábado
29 de janeiro de 2022l Noite de Sexta a Sábado + Domingo
12 de fevereiro de 20222 Noites de Sexta a Domingo
26 de fevereiro de 20222 Noites de Sexta a Domingo
12 de fevereiro de 20222 Noites de Sexta a Domingo
26 de fevereiro de 20222 Noites de Sexta a Domingo


b. Numa data entre 24 de fevereiro de 2022 e 5 de março de 2022 um mínimo de 4 noites e um máximo de 7 noites a acordar entre os pais.
c. Mais adiante, alternativa, ou tempo adicional que possa ser acordado entre os pais.
d. Tempo adicional de videochamada que possa ser acordado entre os pais, que se enquadrar em torno dos compromissos de trabalho do pai inquirido.
18. pós a mãe requerente DD se deslocar permanentemente para Portugal, deve permitir que o pai requerido AA passe algum tempo com a criança, como se segue:
a.
Férias/ Período                                                                                             Localização
C43 Medidas a favor da criança/Emissão específica/Medidas proibidas
O Family Co t at Central Family Court First Avenue House, 42-49 High Holboro, Londres, WCIV 6NP. Por favor, dirija-se ao Presidente do Tribunal l e cite o número do processo.

Fevereiro/Até uma semana para coincidir com Férias PortuguesasPortugal
Abril/Uma semana na PáscoaEm 2022 Portugal, posteriormente no Reino Unido
Férias de Verão/3 semanasPortugal ou outro país alternativo que seja previamente         acordado         pela mãe
requerente.
Semana de Natal/ano alternando a Semana de Natal e a Semana de Ano NovoReino Unido


Caixa de texto: e.Videochamada, duas vezes por semana, em horários a combinar entre os pais.
f. Outras alternativas, ou tempo adicional que possa ser acordado entre os pais, para incluir ocasiões especiais como o aniversário do CC, aniversário do pai, Dia do Pai e ocasião em que a mãe requerente regressa ao Reino Unido para visitar.
Custas
19. Não ordem de custas.
Onde
(a) não há processos pendentes ao abrigo da Parte 2 da Lei de Crianças de 1989; um oficial de serviço/agente de procedimentos familiares que permanece envolvido no caso é dado motivo
(b) para suspeitar, enquanto esta ordem estiver em vigor, que a criança em questão está em risco de ser prejudicada;
(c) e como resultado, o oficial faz uma avaliação de risco ao abrigo da secção 16A dessa lei, o oficial pode requerer ao tribunal que reavive os procedimentos anteriores e considere essa avaliação de risco e dê as instruções que o tribunal considere necessárias.
Aviso
Sempre que estiver em vigor uma ordem de disposições relativas à criança e as disposições por ela reguladas consistirem em, ou incluírem, disposições relacionadas com uma ou ambas (a) com quem a criança em causa viverá e (b) quando a criança viverá com qualquer pessoa, nenhuma pessoa pode fazer com que a criança seja conhecida por um novo apelido ou retirar a criança do Reino Unido sem o consentimento escrito de todas as pessoas com responsabilidade parental pela criança ou sem a licença do tribunal.
Contudo, isto não impede o afastamento da criança, por um período inferior a 1 mês, por uma pessoa indicada na Ordem dos Acordos com Crianças como uma pessoa com quem a criança deve viver (Secções 13(1), (2) e (4) da Lei da Criança de Jl989).
Pode ser um delito penal no âmbito da Lei sobre Rapto de Crianças de 1984, retirar a criança do Reino Unido sem a utorização do tribunal.
Se uma ordem de disposições relativas a crianças estiver em vigor: se não cumprir uma disposição desta ordem de disposições relativas a crianças:
(a) pode ser detido por desacato ao tribunal e ser condenado a uma pena de prisão ou multa; e/ou
(b) o Tribunal pode emitir uma ordem que exija a realização de trabalho não remunerado ("uma ordem de execução") e/ou uma ordem de pagamento de umacompensação financeira.
C43 Medidas a favor da criança/Emissão específica/Medidas proibidas
O Family Court at Central Family Court First Avenue House, 42-419 High Holborn, Londres, WClV 6NP. Por favor, dirija -se ao Presidente do Tribunal e cite o número do processo.
AVISO
Qualquer pessoa com responsabilidade parental pela criança pode obter aconselhamento sobre o que deve ser feito para evitar a emissão de um passaporte para a criança. Devem escrever para London Passport Office, Globe House, 89 Eccleston Square, LONDON SWJ V JP .
Ordenado por
Escrivão Fletcher
Em 16 de dezembro de 2021
3.3. À data do pedido, o requerente, o requerido e o menor tinham residência fixada em Inglaterra.
3.4. O requerente e a requerida acordaram, em conferência, realizada no dia 7 de Outubro de 2023, no âmbito da providência tutelar cível de regulação das responsabilidades parentais, com processo especial de jurisdição voluntária, que sob o n.° 446/22...., corre termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em regular as responsabilidades parentais relativas a CC, nos seguintes termos:
1.
(Questões de particular importância)
1.1. Compete a ambos os pais o exercício das responsabilidades parentais quanto às questões de particular importância da vida da criança (nomeadamente, as respeitantes a matérias consideradas fundamentais para o seu desenvolvimento, segurança, saúde, educação e formação, tais como, a título exemplificativo, escolha de escola pública/privada, de médico público/privado, de actividades extracurriculares, intervenções cirúrgicas não urgentes, opções religiosas até aos 16 anos, alteração da localidade de residência da criança, etc.), salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos pais pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
1.2. A criança fica a residir com a mãe, na seguinte morada: Rua ..., ... ....
1.3. O exercício das responsabilidades parentais quanto aos atos da vida corrente da criança compete à mãe com quem esta reside habitualmente, ou ao pai quando com ela se encontrar temporariamente, o qual, ao exercer essas responsabilidades, não deve contrariar as orientações educativas mais relevantes tal como elas são definidas pela mãe com quem a criança reside habitualmente.
2. -
(Convívios)
2.1. O pai pode contactar com o filho por videochamada, duas vezes por semana.
3. -
(Períodos festivos e férias escolares de Verão)
3.1. O pai comunicará o seu período de férias à mãe até o mês de março.
3.2. A mãe marcará as suas férias, considerando as férias do pai e de modo a não fazer coincidir os seus períodos de férias com o filho com os períodos de férias do pai com o filho.
3.3. A criança passará um período de férias de 3 semanas seguidas com o pai, no verão, e um período de uma semana ao longo do ano com a mesma, sem prejuízo das suas atividades escolares e períodos de descanso.
3.4. Este ano, a criança passará o período de Natal com a mãe e o Ano Novo com o pai.
3.5. Este ano, o pai irá buscar o filho no dia 27 de dezembro, às 10:00 horas, a casa da mãe e entregá-la-á no dia 2 de janeiro, pelas 20:00 horas, no mesmo lugar.
3.7. Na semana de férias deverá respeitar o que foi estabelecido quanto ao período do dia de Natal e Passagem de Ano.
3.7. Para o próximo ano, a criança passará o Natal com o pai e a Passagem de Ano com a mãe;
3.8. durante o período de ferias de natal da criança que são:
1.° dia útil de férias de Natal até dia 26 de Dezembro, pelas 10:00;
Dia 26 de Dezembro pelas 10:00 horas, até 2 de janeiro, pelas 20:00 horas, inicia-se em 2023, sendo o pai a beneficiar do primeiro período, alternando nos anos seguintes.

4. -
(Períodos de férias da Páscoa)
4.1. A criança passará a primeira semana de férias da Páscoa com um dos pais e a segunda com o outro alternadamente, começando este ano de 2023, com o pai.
5. -
(Prestação de alimentos)
5.1. O pai pagará a título de alimentos devidos ao filho, doze vezes ao ano a quantia mensal de 200,00 € (duzentos euros), a entregar à mãe até ao dia 8 de cada mês, por transferência bancária, através do IBAN:  ...05.
4.2. Cada um dos pais suportará metade das despesas escolares, extracurriculares previamente acordadas, médicas, medicamentosas e outras de saúde, na parte não comparticipada.
A mãe efetuará o pagamento de tais despesas e enviará, ao pai, via e-mail, através dos abaixo indicados, para efeitos de pagamento, no prazo máximo de 30 dias após a realização das mesmas, devendo o pai no mesmo prazo, efetuar o pagamento.
4.5. A apresentação e entrega de tais documentos será efetuada via e-mail para os seguintes e-mail: da mãe: ...; do pai: ...
3.5. A requerida declarou, na conferência, que quer evitar a saída do filho para o estrangeiro, pelo tempo máximo de 3 anos, alegando motivos de saúde/alergias; pelo Exmo. Mandatário do requerente, em representação deste, foi dito que, quanto a esta questão entende que poderá já levar o filho de férias consigo, para o estrangeiro; disse ainda que também pretende que a mãe do CC comparticipe em igual proporção nas despesas relacionadas com as viagens de avião para Inglaterra.
3.6. O acordo referido em 3.4., foi objecto de homologação por sentença proferida, pela Sra. Juíza de Direito, no dia 19 de Outubro de 2022.
3.7. A mesma Magistrada, proferiu acto contínuo à sentença homologatória, a decisão seguinte:
Quanto à questão de o menor poder se ausentar para o estrangeiro na companhia do pai nos períodos de férias que cabem a este e até completar o menor completar os 7 anos de idade, questão que não se logrou qualquer entendimento entre as partes:
Resulta do requerimento inicial que o exercício das responsabilidades parentais, em parte, foram reguladas pelo Tribunal de Família Central de Londres, nos termos que melhor se descrevem a fls. 9 a 14 dos autos, nomeadamente e no que aqui está em causa, foi regulado que nos períodos de férias, a partir de 2022, o menor poderia passar tais períodos de tempo com o pai no estrangeiro, sem que haja qualquer limitação de idade do menor para o efeito. Pretende agora a mãe do menor, aqui requerente, que o menor não se ausente de Portugal, até completar os 7 anos de idade.
Nos temos do disposto no artigo 978°/ do Código de Processo Civii, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada, sem prejuízo do que se achar estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais.
No caso, estamos na presença de matéria de reconhecimento de decisão judicial estrangeira cujo objeto incidiu sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais, e no confronto dos vários instrumentos internacionais vigentes na Ordem Portuguesa e Reino Unido, certo é que, cremos, não existe nenhum que estabelece um processo de reconhecimento automático (veja-se que não sendo o Reino Unido Estado-membro da União Europeia, não se aplica o Regulamento N.° 2201/2003, do Conselho de 27 de Novembro de 2003 (Bruxelas I bis), entretanto reformulado pelo Regulamento EU 2019/1111 de 25 de junho de 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental) e, em consequência, cremos ser de aplicar a Convenção de Haia relativa à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento, à execução e à cooperação em matéria de responsabilidade parental e medidas de proteção de crianças (1996), de que o Reino Unido já era anteriormente signatário, nos termos da qual o procedimento de reconhecimento e confirmação de decisão etrangeira é o estatuído no direito interno, no caso, previsto nos artigos 978° a 985° do Código de Processo Civil
Cremos que urge esclarecer se o requerido pretende ver reconhecida a sentença de exercício das responsabilidades parentais em Portugal e na afirmativa a questão controvertida acima concretizada configurará uma Alteração de Regulação das Responsabilidades Parentais, que terá de ser instaurado oportunamente, acaso venha a ser reconhecida, pelo Tribunal da Relação, a sentença proferida pelas Autoridades Inglesas.
Destarte, determina-se a que se notifique o requerido para que, no prazo de dez dias, esclareça se pretende ver reconhecida a sentença de regulação das responsabilidades parentais proferida pelo Tribunal de Família Central de Londres, Inglaterra nos termos do disposto no artigo 978° do Código de Processo Civil, sob pena do prosseguimento destes autos para o conhecimento do demais controvertido.
3.1.2. Motivação.
O Tribunal fundamentou a sua convicção nos seguintes meios de prova:
Relativamente ao facto referido em 3.1. na certidão do assento do registo do nascimento da criança;
No tocante ao facto mencionado em 3.2., no documento, em língua inglesa - e na respectiva tradução - oriundo do Tribunal inglês;
Quanto ao facto contido em 3.3. no acordo das partes;
No que concerne aos factos insertos em 3.4. a 3.7. na certidão emitida pelo Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ....
Nenhum dos documentos nos quais este Tribunal fundou a sua convicção sofreu a mínima impugnação.
4. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos.
4.1. Enunciação da questão concreta controversa.
A questão concreta controversa que importa decidir é a de saber se a sentença proferida pelo Tribunal de Família do Tribunal de Família Central de Londres deve ser revista e confirmada e, portanto, se deve produzir na ordem jurídica portuguesa os efeitos que produziu no ordenamento jurídico do Reino Unido. Dito doutro modo: o objecto do processo é constituído apenas pelo reconhecimento - expresso e autónomo - da sentença estrangeira. Salienta-se este ponto, em vista do necessário distinguo entre o reconhecimento da decisão estrangeira e a concessão de executoriedade a essa mesma decisão. O reconhecimento consiste, genericamente, na extensão a um segundo Estado dos efeitos processuais que a decisão estrangeira produz no Estado de origem; o exequatur consiste na atribuição de executoriedade a essa mesma decisão, num segundo Estado, i.e., na concessão da qualidade de título executivo à decisão estrangeira no último Estado.
A concessão do exequatur a uma decisão estrangeira num segundo Estado pressupõe que essa decisão satisfaz as condições para ser reconhecida neste mesmo Estado, dado, evidentemente, que um Estado só pode atribuir exequibilidade a uma sentença estrangeira que ele próprio pode reconhecer. Quer dizer: a concessão do exequatur a uma decisão estrangeira implica, em regra, o reconhecimento desta decisão; mas este reconhecimento - seja ele expresso ou automático - não importa a concessão do exequatur. a atribuição deste há-de ser pedida expressamente pelo interessado e exige, em regra, o preenchimento de requisitos específicos, que transcendem os exigidos para o simples reconhecimento.
No caso, apenas é pedida a confirmação ou o reconhecimento expresso da decisão do tribunal do Reino Unido e não, também, a concessão, a essa mesma decisão, do exequatur. Por força da vinculação temática desta Relação ao pedido do requerente - que decorre do princípio da disponibilidade das partes sobre o objecto do processo, que determina que lhes incumbe a definição desse objecto, desde logo, a definição do pedido, não podendo o tribunal conhecer de pedido diverso do formulado - apenas há que decidir se a decisão estrangeira deve, ou não, ser objecto de simples reconhecimento expresso autónomo (art.°s 552.°, n.° 1, e), e 609.°, n.° 1, do CPC).
A resolução deste problema exige, desde logo, a determinação da fonte definidora dos requisitos de que depende, no caso, o reconhecimento da decisão estrangeira.
4.2. Fonte do reconhecimento.
As decisões dos tribunais estaduais são actos de soberania, pelo que só podem produzir efeitos fora do Estado no qual são proferidas através de um acto de reconhecimento por um outro Estado - reconhecimento que outra coisa não é que a aceitação por este outro Estado - Estado do reconhecimento ou Estado requerido - dos efeitos que as decisões produzem no Estado de origem. O reconhecimento da decisão estrangeira evita a repetição de processos e previne o proferimento de decisões contraditórias e pode ser automático - quando se realiza ope legis, sem que tenha de ser requerido por qualquer interessado - ou expresso - quando tem de ser pedido por um interessado e é concedido por uma autoridade do Estado requerido. Este distinguo releva para a determinação do momento da produção dos efeitos da decisão estrangeira no Estado do reconhecimento: no caso de reconhecimento automático aqueles efeitos produzem- se no segundo Estado no mesmo momento em que são produzidos no Estado de origem; no reconhecimento expresso, a decisão estrangeira só produz efeitos, no Estado do reconhecimento, no momento em que este tiver lugar - mas produz neste Estado os mesmos efeitos que realiza no Estado de origem: verifica-se aqui uma extensão dos efeitos que a decisão estrangeira produza no Estado de origem, segundo o seu direito, embora não possa produzir, no Estado do reconhecimento, efeitos que o ordenamento do Estado de origem desconheça.
Se, porém, apesar do reconhecimento automático da decisão estrangeira, for admissível a formulação de um pedido, pela parte interessada, da declaração de que não há motivos para a recusa do reconhecimento - apreciação negativa - ou de que há razões para essa recusa - apreciação positiva - deve entender-se, no caso de procedência do pedido de apreciação negativa, que o momento da produção dos efeitos da decisão estrangeira, no Estado requerido, continua a coincidir com o momento no qual esses efeitos são produzidos no Estado de origem.
Em regra, a decisão estrangeira aprecia o mérito da acção através de uma regra que pertence ao seu próprio ordenamento ou que é determinada pelas normas de conflito do Estado de origem ou constantes de instrumento internacional convencional.
Problema particularmente delicado é o representado pela existência de decisões concorrentes.
Em geral, o reconhecimento deve, evidentemente, ter presente a existência de decisões concorrentes, de modo a prevenir a coexistência, na mesma ordem jurídica, de decisões incompatíveis, pelo que, em princípio, se justifica que um obstáculo ao reconhecimento seja constituído pela eficácia, no ordenamento do Estado do reconhecimento, de uma decisão incompatível com a decisão estrangeira, decisão incompatível que tanto pode ser uma decisão do próprio Estado requerido, como uma decisão de um outro Estado. Mas este ponto - sem prejuízo de regime específico diverso - merece alguns esclarecimentos complementares.
Em primeiro lugar, a contradição relevante, neste plano, é a contradição de decisões e não de fundamentos: se as decisões não forem incompatíveis quanto aos seus efeitos, não importa que os seus fundamentos sejam contraditórios. As decisões contraditórias são, portanto, aquelas que produzem efeitos jurídicos incompatíveis, i.e., efeitos jurídicos que se mutuamente se excluem. Essa incompatibilidade deve, todavia, julgar-se não verificada se a decisão posterior se fundar numa alteração superveniente das circunstâncias em que se baseou a decisão anterior, dada a eficácia ex nunc da decisão posterior sobre os efeitos decorrentes do reconhecimento entretanto verificado.
Depois, se a decisão estrangeira se mostrar transitada em julgado, a decisão nacional ou a decisão de um terceiro Estado só podem constituir obstáculo ao seu reconhecimento se também elas forem definitivas: uma decisão nacional não transitada em julgado não constitui obstáculo ao reconhecimento de decisão estrangeira - embora o trânsito em julgado da decisão nacional destrua, com efeitos ex-tunc, os efeitos que decorrem do reconhecimento da decisão estrangeira.
Por último, se a contradição da decisão estrangeira com a decisão nacional for meramente parcial, só relativamente ao segmento em que são inconciliáveis é que se deve recusar o reconhecimento.
Os requisitos de que depende o reconhecimento da decisão estrangeira podem ser definidos, de modo unilateral, por um Estado, mas podem também constar de um acto jurídico europeu ou de uma convenção internacional.
A requerida opôs-se ao reconhecimento da decisão do tribunal do Reino Unido alegando o não preenchimento dos requisitos de que esse reconhecimento depende definidos no Regulamento (CE) n.° 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, entretanto revogado, a partir de 1 de Agosto de 2022, pelo Regulamento (CE) n.° 2019/1111, do Conselho de 25 de Junho de 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças (reformulação), aplicável, com algumas excepções, desde 1 de Agosto de 2022 ( art.°s 104.°. n.° 1, e 105.°, n.° 2).
O Regulamento (CE) n.° 2201/2003, substituiu, entre os Estados-Membros, as Convenções existentes, à data da sua entrada em vigor, celebradas entre dois ou mais Estados Membros, relativas às matérias nele reguladas (art.° 59.°, n.° 1, e 62.°, n.° 1). No tocante, especificamente, à Convenção da Haia de 19 de Outubro de 1996, relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças (Convenção da Haia de 1996), celebrada no quadro da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado,[1] o Regulamento era aplicável: quando a criança tivesse a sua residência habitual no território de um Estado-Membro; em relação ao reconhecimento e à execução de uma decisão proferida pelo tribunal competente de um Estado-Membro no território de outro Estado Membro, mesmo se a criança residisse habitualmente no território de um Estado não membro que fosse parte contratante da Convenção (art.° 61.°). Convenção que continuava a produzir efeitos nas matérias não reguladas no Regulamento (art.° 62.°, n.° 1).
De harmonia com o Acordo sobre a Saída do Reino Unido e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia de Energia Atómica (2019/C 384 1/01), o Reino Unido deixou de ser membro da União Europeia no dia 31 de Janeiro de 2020, sem prejuízo de um período de transição que terminou no dia 31 de Dezembro de 2020 (art.° 126.°). No Reino Unido, bem como nos Estados-Membros em situações que envolvam o Reino Unido, são aplicáveis, no que respeita a processos judiciais intentados antes do termo do período de transição e a processos ou acções com eles relacionados, as disposições do Regulamento (UE) n.° 2201/2003, relativas à competência e, no tocante ao reconhecimento e execução de decisões, as disposições do mesmo Regulamento, desde que tivessem sido proferidas antes do termo do período de transição (art.°s 67.°, n.°s 1, c) e 2, b)).
Com o termo do período de transição, ocorrido em 31 de Dezembro de 2020, a aplicação da Convenção da Haia foi repristinada na totalidade nas relações dos Estados-Membros da União com o Reino Unido, a partir de 1 de Janeiro de 2021.
Ora, vê-se pelos termos da decisão cuja revisão e confirmação é pedida que o processo em foi proferida foi instaurado depois do fim do período de transição, pelo que ao seu reconhecimento não são aplicáveis as disposições do Regulamento (UE) n.° 2201/2003 - nem, evidentemente, as disposições do Regulamento (UE) n.° 2019/1111, que entrou em vigor em data posterior à da saída do Reino Unido da União.
A esse reconhecimento é, isso sim, aplicável a Convenção da Haia de 1996, da qual Portugal e o Reino Unido são partes. Foi, aliás, esse o instrumento internacional convencional aplicado, expressamente, pelo tribunal britânico como linearmente decorre deste passo do texto da respectiva sentença: esta ordem destina-se a cumprir os requisitos da Convenção de Haia de 1996, para efeitos de reconhecimento e execução em Portugal.
Todavia, o erro ou equivoco da requerida sobre o acto jurídico definidor ou conformador dos requisitos do reconhecimento é, no caso, irrelevante. Por duas razões, de resto. De um aspecto, porque a verificação dos requisitos necessários ao reconhecimento deve ser oficiosamente realizada pelo tribunal requerido (art.° 984.° do CPC); de outro, porque existe uma fundamental homogeneidade dos requisitos de reconhecimento, v.g., no domínio sensível do respeito da ordem pública, constantes da Convenção da Haia de 1996 e do Regulamento (UE) 2201/2003[2].
4.3. Requisitos do reconhecimento.
A Convenção da Haia de 1996, que visa proteger internacionalmente a criança até aos 18 anos de idade, define (art.° 2.°):
- O Estado competente para tomar medidas de protecção da criança ou do seu património que é, em regra, o da sua residência habitual (art.°s 1.°, a) e 5.°, n.° 1). As medidas de protecção referem-se, designadamente, à responsabilidade parental (art.° 3.°, a)).
- A lei aplicável ao exercício dessa competência que é, em regra, a legislação interna do Estado que a exerce (art.° 1.°, b), e 15.°, n.° 1).
- A lei aplicável às responsabilidades parentais, que é a lei do Estado da residência habitual da criança (art.° 1.°, c), e 17.°). Se, porém, a residência habitual da criança mudar para outro Estado contratante, a lei deste último passará a reger, desde a data da mudança, as condições para a aplicação das medidas tomadas pelo Estado da residência habitual anterior (art. 15., n.° 3). A alteração da residência habitual da criança importa a modificação das autoridades com jurisdição para tomar as medidas para a sua protecção, depois da mudança de residência, deixa intocada a subsistência das medidas anteriormente tomadas - mas afecta as condições da sua aplicação (art°s 5.°, n.° 2, e 14.°). Correspondentemente, a regulação das responsabilidades parentais operada por aplicação da lei da residência habitual anterior da criança subsiste depois da mudança, mas aquelas responsabilidades são exercidas a partir daí de acordo com a lei da nova residência habitual (art.° 17.°). Dito doutro modo: a regulação anterior subiste, apesar dessa mudança, mas o modo como as responsabilidades parentais são exercidas é regido, a partir da alteração da residência habitual da criança, pela lei do Estado - contratante - da nova residência habitual;
- O reconhecimento e a execução das medidas de protecção (art.° 1.° d), e 23.° a 26.°). A Convenção não é aplicável, designadamente, a obrigações alimentares (art.° 4.°, e)). A decisão que pode ser objecto de reconhecimento - e execução - abrange a decisão relativa à atribuição e ao exercício das responsabilidades parentais (art.° 3.°, a)).
O regime instituído pela Convenção da Haia de 1996 para o reconhecimento - e, se for caso disso, para a execução - da decisão proferida por um Estado subscritor tem por base o princípio da confiança mútua, motivo pelo qual os fundamentos de não reconhecimento são reduzidos a um mínimo indispensável. Dado que se visa a liberdade e a facilidade de circulação das decisões entre os Estados contratantes, o tribunal do Estado requerido deve presumir - presunção que se alicerça no reconhecimento automático da decisão estrangeira - que estão preenchidos os requisitos exigidos para o reconhecimento de uma decisão proveniente de um desses Estados, pelo que recai sobre a parte demandada o ónus da prova de um qualquer fundamento que obste ao reconhecimento.
A Convenção proíbe, expressamente, a révision au fond, pelo que o reconhecimento da decisão estrangeira proferida por um Estado subscritor da Convenção decorre do simples preenchimento de certos requisitos formais, excluindo-se qualquer reapreciação do mérito da causa pelo tribunal do reconhecimento (art.° 27.°). Esta proibição, muito comum, aliás, na generalidade dos regimes de reconhecimento, compreende-se com facilidade, dado que, doutro modo, o reconhecimento da decisão estrangeira nenhuma vantagem traria porque equivaleria à propositura no segundo Estado, de uma nova acção. Por força desta exclusão da révision au fond, o tribunal do Estado requerido só pode verificar se se verifica algum impedimento ou fundamento de não reconhecimento, não podendo recusar o reconhecimento com a justificação de que a decisão estrangeira é, por um qualquer erro de facto ou de direito, incorrecta.
Portanto, o reconhecimento da decisão proferida num Estado contratante não permite a revisão ao fundo e o tribunal do reconhecimento também não pode controlar a lei aplicada pelo tribunal de origem, e o modo como o foi, na acção de regulação da responsabilidade parental. No entanto, a proibição de révision au fond não contende, evidentemente, com a possibilidade de uma autoridade que seja competente regular de novo a responsabilidade parental, sempre que se tenha verificado uma alteração das circunstâncias.
Segundo a Convenção, a decisão tomada pelo tribunal da residência habitual da criança, continua em vigor, de acordo com as suas condições, mesmo que uma alteração das circunstâncias eliminar o fundamento sobre o qual essa competência foi estabelecida, desde que as autoridades com competência ao abrigo da Convenção não tenham modificado, substituído ou anulado as medidas tomadas (art.° 14.°). A alteração das circunstâncias contemplada na disposição consistirá na alteração do Estado da residência habitual da criança ou somente da residência dessa mesma criança.
No caso de a criança mudar de residência habitual, as autoridades do Estado da nova residência habitual, adquirem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da criança e, portanto, para regular as respectivas responsabilidades parentais (art.° 5.°, n.° 2). Todavia, com o propósito de assegurar a continuidade da protecção da criança, a decisão proferida antes da mudança da residência mantém a sua eficácia até que essa decisão seja destruída, substituída ou modificada: patentemente, julgou- se que o princípio do reconhecimento automático da decisão proferida por um Estado contratante em todos os outros Estados contratantes não era suficiente para conseguir esse resultado.
Uma excepção à proibição da révision au fond é constituída, como é, aliás, também comum, pelo respeito da ordem pública - internacional - do Estado do reconhecimento; mas dado justamente o seu carácter excepcional, o reconhecimento só pode ser recusado - como melhor se detalhará - se esse reconhecimento contrariar os princípios fundamentais daquele Estado. A ofensa da ordem pública internacional é material se estiver em causa a violação de princípios ou normas de direito material ou de direito internacional privado.
Os fundamentos de recusa do reconhecimento admitidos pela Convenção obedecem a um princípio de numerus clausus: os fundamentos de recusa, pelo Estado contratante requerido, do reconhecimento são apenas os taxativamente especificados na Convenção, sendo certo que qualquer dos fundamentos individualizados pode autorizar a recusa, pelo Estado requerido, do reconhecimento - mas não a impõem (art.° 23.°, n.° 2, a) a f)). De resto, a relativa igualdade, cultural e civilizacional, entre Portugal e o Reino Unido - até há muito pouco tempo Estado-Membro da União - inculca que serão muito pouco frequentes as situações em que uma decisão proferida por um desses Estados viole a ordem pública internacional do outro.
As medidas tomadas por um Estado contratante são reconhecidas por força de lei em todos os outros Estados contratantes (art.° 23.°, n.° 1, da Convenção). A Convenção consagra, assim, o princípio do reconhecimento de pleno direito em qualquer Estado contratante das medidas adoptadas por outro Estado contratante. As decisões proferidas por um Estado contratante são reconhecidas ipso iure noutro Estado contratante, portanto, sem necessidade do recurso a qualquer procedimento: o reconhecimento é, por isso, automático[3]. Admite-se, todavia, o reconhecimento ou não reconhecimento expresso - e autónomo - uma vez que qualquer interessado pode solicitar às autoridades competentes de qualquer outro Estado contratante o reconhecimento ou o não reconhecimento das medidas tomadas noutro Estado subscritor, através de um procedimento de reconhecimento regido pela lei do Estado requerido (art.° 24.°). Este procedimento é, entre nós, a acção especial de revisão de sentença estrangeira (art.°s 978.° e ss. do CPC). Note-se que a Convenção não faz depender o interesse para a correspondente acção de qualquer impugnação do reconhecimento da decisão pela outra parte, pelo que há que entender que tem legitimidade para requerer a declaração de que não há fundamento para a recusa do reconhecimento qualquer sujeito que pretenda fazer valer os efeitos decorrentes da decisão estrangeira.
Nos termos da Convenção, o reconhecimento de uma proferida em matéria de responsabilidade parental por um Estado contratante pode ser recusado por outro Estado contratante se esse reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado requerido. Contudo na apreciação da violação da ordem pública importa considerar o superior interesse da criança. (art.° 23.°, n.° 2, d)). Reclama-se, assim, uma análise integrada da ordem pública e do interesse proeminente da criança, pelo que não é suficiente a manifesta contrariedade com a ordem pública do Estado requerido para se excluir o reconhecimento, uma vez que é preciso ponderar a situação, tomando em consideração, cumulativamente, o superior interesse da criança[4]. Assim, v.g., ainda que a atribuição, pela Estado de origem, das responsabilidades parentais a um dos pais assente comprovadamente numa discriminação inaceitável do outro, a decisão estrangeira deve, ainda assim, ser reconhecida se essa atribuição corresponder ao interesse superior da criança.
Nos termos da Convenção o reconhecimento da decisão estrangeira deve ser recusado se esse reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública internacional material do Estado requerido, o que sucederá - mas só sucederá - se aquele reconhecimento determinar a violação evidente de uma norma jurídica material considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental pela ordem jurídica do último Estado, devendo ter-se presente que o que é relevante não é se a decisão revivenda ofende a ordem pública do Estado requerido - mas se o seu reconhecimento importa essa violação.
Em face da Convenção, a circulação de decisões entre os Estados subscritores não deve ser dificultada o que vincula a que reserva de ordem pública deve ser aplicada em casos excepcionais, não se devendo qualificar como ofensa da ordem pública uma qualquer inobservância do direito do Estado requerido, ainda que imperativo ou injuntivo - mas apenas a violação que atinja princípio essenciais estruturantes do seu ordenamento jurídico, como sucederá, por exemplo, com o princípio da não discriminação, que deve ter-se como concepção fundamental do direito interno português.
Reconhecidamente, o conceito de ordem pública não deixa encerrar-se numa qualquer definição: a ordem pública é conceitualmente indefinível e, por isso, a noção de ordem pública não é unívoca, embora o seja a sua função[5]. Apesar da sua indeterminação e imprecisão, doutrina e jurisprudência convergem na conclusão de que a ordem pública internacional de um Estado é constituída pelos princípios estruturantes da respectiva ordem jurídica, como são os que integram a Constituição, em sentido material, dado que as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, não só informam, mas também conformam aquela ordem pública[6]. A Constituição reflecte, indubitavelmente, os valores mais importantes que conformam, no plano estrutural, a ordem jurídica fundamental de uma comunidade, pelo que é nas normas constitucionais que a ordem pública internacional deve assentar, o mesmo sucedendo, entre nós, com os princípios do Direito da União Europeia. São comummente apontados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, entre outros, os princípios fundamentais como o da boa fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade e da não discriminação.
De outro aspecto, a cláusula só intervém como limite ao reconhecimento da decisão estrangeira quanto a solução dada a caso for, não apenas divergente da que resultaria da aplicação do direito interno do Estado do reconhecimento, v.g., o português - mas manifestamente incompatível com os princípios fundamentais da respectiva ordem jurídica. O recurso á cláusula de ordem pública só deve admitir-se quando o reconhecimento - ou a execução - da decisão proferida noutro Estado contratante viole de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por atentar contra um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, esse atentado deve constituir uma violação manifesta de uma regra de direito considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica, o que só sucederá se o reconhecimento conduzir a um resultado intolerável[7], absolutamente intolerável[8], ou chocante[9].
Simplesmente, como se notou, a Convenção vincula a que, na apreciação da violação da ordem pública se considere o superior interesse da criança, pelo que a contrariedade da decisão proferida por um Estado contratantes não é o único parâmetro a considerar para recusar o seu reconhecimento, sendo necessário considerar, naquela aferição, cumulativamente, o interesse proeminente da criança.
A dimensão fundante da dignidade da pessoa da criança e do desenvolvimento da sua personalidade coloca o interesse da criança como parâmetro material básico das decisões que lhe digam respeito. Por isso que a decisão, por exemplo, sobre a regulação do desempenho da função parental deve ser actuada sobre o signo estrito do princípio do interesse da criança[10] (art°s 3.°, n.° 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990, 1906.° n.° 7, do Código Civil, 40.° n.° 1 do RGPTC, e 4 a) da LPCJP, aprovada pela Lei n.° 147/99, de 1 de Setembro ex-vi art.° 4.° do último daqueles diplomas legais).
Desse princípio, juridicamente consagrado, pode-se inferir um determinado conceito. Mas o conceito extraído do princípio é, por natureza, indeterminado. Dada a fluidez que informa o princípio jurídico, não é possível, através dele confeccionar um conceito rigidamente determinado, mas tão só um conceito de contornos, com um interior em aberto. Por tudo isto, pode-se dizer que, no Direito dos Menores, em particular, como de resto, no Direito da Família, em geral, reina uma indeterminação conceptual[11].
O interesse da criança, enquanto princípio regulativo ou critério essencial de decisão, é, assim um conceito indeterminado, i.e., um conceito cujo conteúdo e extensão são, em larga medida, incertos, e carece, portanto, de um preenchimento valorativo[12]. Apesar da densificação do interesse da criança não se traduzir num juízo silogístico-formal de subsunção, mas antes numa valoração de critérios jurídicos de decisão, deve acentuar-se que se trata de actividade juridicamente vinculada que constitui estruturalmente aplicação do direito, não estando, por isso, na dependência de um liberum arbitrium indifferantiae, de uma discricionariedade livre ou desvinculada. Consequentemente, essa valoração deve ser reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo.
O princípio do interesse da menor constitui, porém, um simples princípio regulativo e, por isso, não é apto, por si só, para declarar o que, em cada caso, é e o que não é do interesse da criança. Para esse efeito, outros critérios são necessários.
In veritas, a densificação do conceito de interesse da criança, enquanto princípio regulativo da decisão sobre a regulação do respectivo cuidado parental, deve operar através de critérios ou de factores, de dimensão eminentemente prospectiva, que sejam neutros em relação ao género e que, portanto, sejam, não só harmónicos com o princípio, de matriz constitucional, da igualdade dos pais, mas que a promovam, que encorajem a contratualização, por estes, da regulação, e a sua adesão consistente a esta, reduzindo a conflitualidade parental, actual e futura, que sejam atentos aos direitos da criança e à sua vontade ou preferência, que não sejam intrusivos relativamente à autonomia da família, e, por essa via, conformes com o princípio da proporcionalidade e que se mostrem exequíveis, i.e., de aplicação ágil e fácil, evitando, por exemplo, o recurso a teorias psicológicas e a avaliações e perícias psicológicas e psiquiátricas, quer sobre as diferenças da relação afectiva da criança com cada um dos pais quer sobre a capacidade educativa destes, bem como a juízos de prognose sobre o comportamento ulterior dos pais e adaptação da criança à nova forma de organização da família.
Falar no interesse do menor equivale hoje a falar de direitos do menor. Esses direitos, sem prejuízo daqueles que devem reconhecer-se aos pais - que exercem poderes funcionais para desempenharem deveres no interesse do filho - reclamam que a função parental, seja qual for a vertente considerada, se coloque ao serviço do desenvolvimento, são e harmonioso, da personalidade da criança e do seu bem-estar moral e material e da regular evolução do seu processo de socialização. E entre esses direitos conta-se, nomeadamente, o de manter um relacionamento pessoal e directo com ambos os pais e, no caso de dissociação parental, uma relação de grande proximidade com o progenitor com quem não resida habitualmente, que lhe garanta a presença, na maior extensão e intensidade possível, desse mesmo progenitor, na sua vida.
O reconhecimento deve, evidentemente, ter presente a existência de decisões concorrentes, de modo a prevenir a coexistência, na mesma ordem jurídica, de decisões incompatíveis, pelo que justifica que um obstáculo ao reconhecimento seja constituído pela eficácia, no ordenamento do Estado do reconhecimento, de uma decisão incompatível com a decisão estrangeira, decisão incompatível que tanto pode ser uma decisão do próprio Estado requerido, como uma decisão de um outro Estado.
De harmonia com a Convenção, a decisão estrangeira não deve ser reconhecida se ele for inconciliável com uma decisão proferida posteriormente num Estado não contratante da residência habitual da criança, desde que a decisão deste último Estado reúna as condições necessárias para ser reconhecida no
Estado requerido (art.° 23, n.° 1, e), da Convenção). Este é o único caso em que a existência de decisão concorrente releva expressamente como causa de não reconhecimento. Assim, uma vez que, segundo a Convenção, os motivos de recusa do reconhecimento obedecem a uma tipologia taxativa fechada - o que impõe que devam ser objecto de uma interpretação restritiva, na medida em que constituem obstáculo à livre circulação de decisões - não obsta ao reconhecimento a existência de uma decisão concorrente proferida num Estado contratante. De resto, esta conclusão sempre se imporia, no caso de a decisão proferida no Estado requerido se fundar numa alteração das circunstâncias no contexto das quais foi proferida a decisão estrangeira, dado que se deve entender, nesta hipótese, que as decisões não são incompatíveis, dado que a destruição, pelo caso julgado da decisão posterior, dos efeitos decorrentes do reconhecimento, entretanto verificado, apenas opera ex nunc. Aliás, desde que a decisão posterior em matéria de responsabilidade parental se fundamenta numa alteração das circunstâncias e, portanto, se resolve numa nova regulação dessa responsabilidade, ela pressupõe a produção, no Estado requerido, dos efeitos que a decisão estrangeira produziu no Estado de origem.
Este viaticum é suficiente para decidir a questão concreta controversa objecto da causa.
4.4. Concretização.
Patentemente, esta acção de revisão e confirmação da sentença estrangeira tem por causa próxima uma decisão de um tribunal nacional: a proferida, no dia 19 de Outubro de 2022, pelo Tribunal de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca .... Realmente, em decisão complementar à decisão homologatória do acordo parcial de regulação do exercício das responsabilidades parentais do requerente e da requerida, relativas ao filho menor de ambos, aquele tribunal, observou, com correcção, que ao reconhecimento da decisão do tribunal de família inglês não era aplicável um acto normativo da União - mas a Convenção da Haia de 1996. Simplesmente, aquele tribunal equivocou-se, manifestamente, ao concluir que, em face daquela Convenção, o reconhecimento daquela decisão não é automático, sendo, por isso, exigível o reconhecimento expresso através de acção de reconhecimento de sentenças estrangeiras regulado pela lei interna portuguesa.
Nada de menos exacto. Como se observou a Convenção da Haia de 1996, de que o Reino Unido e Portugal são subscritores, consagra o princípio do reconhecimento automático das decisões proferidas por um Estado contratante em todos os outros Estados subscritores, portanto, evidentemente também em Portugal, embora, como também se apontou, a automaticidade do reconhecimento não obste à formulação, pelo interessado, de um pedido, no Estado requerido, para que se decida, negativamente, sobre esse reconhecimento.
A requerida opôs-se ao reconhecimento da sentença estrangeira, objecto da causa, por um duplo fundamento: pela violação, pela sentença do tribunal do Reino Unido, da ordem pública do Estado Português, por ser omissa quanto à regulação das responsabilidades parentais e quanto à prestação alimentar devida à criança; por ser incompatível com a decisão de regulação posteriormente contratualizada, ou negociada, em tribunal nacional.
Temos estes dois fundamentos de oposição ao reconhecimento por manifestamente improcedentes.
Desde logo, porque é evidente que a decisão do tribunal inglês estatuiu, por aplicação do seu direito interno - lei material designada pela Convenção - sobre o exercício das responsabilidades parentais relativas à criança. Patentemente, aquela decisão fixou quer a residência da criança - a criança diz-se expressamente naquele acto decisório deve viver com a mãe - quer o regime dos contactos pessoais da criança com o pai, designadamente os períodos de tempo que o último pode ter o filho consigo, designadamente no Reino Unido.
A decisão estrangeira não contém qualquer estatuição sobre a obrigação parental de alimentos. Mas essa omissão não contraria qualquer princípio essencial da ordem pública internacional do Estado Português, nem sequer uma norma injuntiva de direito interno e, muito menos, o interesse superior da criança.
Em primeiro lugar, por força do instrumento convencional internacional aplicável - a Convenção da Haia de 1996, que, por força da cláusula constitucional de recepção automática, embora condicionada, das normas de direito internacional público convencional, vigora como tal, i.e., enquanto normas de direito público convencional, na ordem jurídica interna, nos mesmos termos e relevância das normas de fonte interna - é admissível uma regulação das responsabilidades parentais que não compreenda a obrigação parental de alimentos, dado que, por força de norma de exclusão expressa, a Convenção não é aplicável a obrigações alimentares (art.° 8.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa). Dito doutro modo: o direito interno português, embora de fonte internacional convencional, permite a regulação, no todo ou em parte, das responsabilidades parentais sem a fixação do quantum dos alimentos, do modo de os prestar e do seu devedor.
Depois, mesmo à luz do direito interno português, de fonte também interna, nem sempre se impõe na decisão da regulação das responsabilidades parentais, a fixação dos alimentos devidos à criança, o que sucederá, tanto nos casos em que a criança esteja em condições de suportar, com os seus rendimentos os encargos com o seu sustento e segurança e, bem assim, nas hipóteses em que o devedor da obrigação alimentar não está em condições de a prestar ou, segundo certo entendimento do problema, mesmo, simplesmente, nos casos em que se desconhecem os parâmetros dessa fixação, designadamente as possibilidades dos obrigados a essa prestação, designadamente, dos pais (art.° 1879.° do Código Civil)[13]. Do que decorre que, mesmo na lógica da argumentação da requerida, a decisão do tribunal inglês só seria contrária á norma de direito interno, caso estivesse demonstrado que os alimentos devidos ao filho não foram regulados apesar de a criança deles carecer e de serem conhecidas as possibilidades de qualquer dos pais em os prestar e de qualquer deles estar em condições de os prestar - ponto que a requerida nem sequer alegou. Neste plano, convém recordar, por um lado, que ao exercício, pelo tribunal inglês, das competências relativas às responsabilidades parentais era aplicável a legislação inglesa, por outro, que ao tribunal do reconhecimento é vedado o controlo da lei aplicada e do modo com o foi pelo tribunal de origem na acção de regulação do cuidado parental e, por último, que a violação de uma qualquer norma do ordenamento jurídico do Estado requerido, ainda que injuntiva, não se pode qualificar como ofensa da ordem pública internacional, ofensa ou transgressão que se só deve ter-se por verificada se atingir princípios essenciais ou nucleares daquele ordenamento
Por último - mas não de somenos - porque, apesar de não ter estatuído sobre a obrigação alimentar de que a criança é credora relativamente a ambos os pais, o reconhecimento da decisão do tribunal inglês não contraria antes é conforme com o seu interesse, objectivamente apreciado, dado que regulou as questões, sempre espinhosas, especialmente, num contexto de um conflito plurilocalizado de dissociação e de desacordo parental, da mudança de residência da criança e, bem assim, do regime de visitas do requerente, progenitor com quem o menor não ficou a residir. Comprovadamente, é do interesse da criança a definição da sua residência, e a licitude da sua modificação, e bem, assim, do seu direito de manter contactos, presenciais e não presenciais, com o progenitor com quem não reside habitualmente.
Portanto, quanto a este fundamento da oposição, a conclusão a tirar é a de que a decisão do tribunal inglês não ofende qualquer princípio estruturante da ordem jurídica portuguesa e, além disso, é inteiramente conforme com o direito da criança, designadamente com o direito a manter com o progenitor com quem não reside uma relação de grande proximidade.
Como se sublinhou, a existência de uma decisão concorrente num Estado subscritor da Convenção, não constitui, nos seus termos, fundamento de recusa do reconhecimento.
De resto, a igual conclusão se chegaria por aplicação das normas de reconhecimento de direito interno.
Assim, a sentença estrangeira só é confirmada se não puder invocar-se a excepção da litispendência ou do caso julgado, com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se tiver sido o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição, ou seja, salvo se acção tiver sido proposta em primeiro lugar no tribunal estrangeiro (art.° 980.°, d), do CPC). A mesma solução deve valer se uma decisão anterior já se encontrar reconhecida ou se for susceptível de ser reconhecida em Portugal[14].
A confirmação da sentença estrangeira deve ser negada quando, perante o tribunal português está a correr ou já foi decidida acção idêntica à julgada pela sentença cuja revisão se pede, salvo se antes da acção ser proposta em Portugal, já havia sido intentada perante o tribunal estrangeiro. Se a acção foi proposta em primeiro lugar no tribunal estrangeiro, que seja internacionalmente competente, e só depois foi afecta a tribunal português, diz-se que o tribunal estrangeiro preveniu a jurisdição. Sendo assim, o facto de a mesma acção estar pendente em tribunal português ou já estar decidida por sentença do tribunal português passada em julgado não obsta a que a sentença estrangeira, quando pedida a revisão, seja confirmada. Portanto, o caso julgado, formado em Portugal, não pode ser alegado como fundamento de oposição ao reconhecimento da sentença estrangeira, quando o tribunal estrangeiro era competente para a acção e preveniu a jurisdição. Não é outra a situação jurídica objecto da acção.
Aliás, como a sentença do tribunal inglês transitou em julgado, para que a decisão nacional pudesse constituir obstáculo ao seu reconhecimento sempre seria de exigir que, também ela, tivesse transitado, facto que não se mostra adquirido para a causa e nem sequer foi alegado. Trânsito em julgado que seria lícito presumir no tocante à decisão estrangeira, mas não no tocante à decisão nacional.
De resto, a relevância de decisões concorrentes, enquanto fundamento de recusa do reconhecimento, total ou meramente parcial, da decisão estrangeira, exige a sua incompatibilidade. Abstraindo da circunstância de a providência de regulação do cuidado parental pendente no tribunal nacional se fundar numa alteração das circunstâncias - a mudança da residência habitual da criança - há, decerto, um ponto em que as decisões do tribunal britânico e do tribunal nacional não são incompatíveis ou inconciliáveis: o relativo às deslocações da criança para Inglaterra para exercer o seu direito de contactar presencialmente com o pai.
Realmente, a decisão do tribunal inglês reconheceu ao requerente o direito de ter o filho consigo no Reino Unido uma semana na Páscoa e, alternadamente, na semana do Natal e do Ano Novo, ao passo que a decisão do tribunal nacional é omissa sobre o ponto: os pais não conseguiram contratualizar a questão das deslocações do menor para país estrangeiro, maxime, para o Reino Unido e o tribunal português não regulou, por decisão heterónoma, esse ponto, julgando mesmo necessário, para essa regulação, o reconhecimento expresso da sentença do tribunal britânico e a ulterior instauração de providência tutelar cível de alteração da regulação das responsabilidades parentais, i.e., uma nova regulação dessas responsabilidades. Julga-se incorrecto este ponto de vista: dado que a decisão do tribunal inglês foi, por força da Convenção, objecto de reconhecimento automático, ipso iure, em Portugal, e portanto, já produzia, na ordem jurídica interna os efeitos que produzia na ordem jurídica britânica, ao tempo da propositura da providência de regulação do cuidado parental pendente no tribunal nacional, esta providência configura, necessariamente, uma providência de alteração dessa regulação e, portanto, uma nova regulação da responsabilidade parental, fundada numa alteração das circunstâncias - a mudança da residência habitual da criança - relevante nos termos da Convenção.
A apontada não decisão exclui, evidentemente, quanto ao ponto relativamente ao qual se mantém o conflito parental - as deslocações da criança para o Reino Unido para estar com o requerente - qualquer incompatibilidade entre ambas as decisões.
Nestas condições, há que considerar improcedente a oposição deduzida pela requerida ao reconhecimento da sentença do tribunal inglês e, consequentemente, que julgar procedente a acção, reconhecendo ou confirmando aquela sentença. Pelas razões apontadas, i.e., por não ter sido pedido, apenas há que conceder o reconhecimento - mas não o exequatur a essa mesma sentença (art.° 26.°, n.° 1, da Convenção).
Do conjunto da argumentação expedida, extraem-se, como proposições mais salientes as seguintes:
(…).
A decisão a rever ou a reconhecer versa sobre interesses imateriais, i.e., foi proferida em acção cujo objecto não tem valor pecuniário, em que se fizeram valer direitos a que não pode atribuir-se valor pecuniário, em que declarou ou efectivou um direito extrapatrimonial. O valor processual da causa deve, por isso, determinar-se de harmonia com o carácter do objecto da decisão cujo reconhecimento se pede: € 30 000,01 (art.°s 303.°, n.° 1, e 306.°, n.°s 1 e 2, in fine, do CPC, e 44.°, n.° 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.° 62/2013, de 26 de Agosto).
A requerida sucumbe na acção. Esta sucumbência torna-a objectivamente responsável pelas respectivas custas (art.° 527.°, n.°s 1 e 2, do CPC).
5. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, julga-se procedente a acção de revisão de sentença estrangeira, com processo especial, intentada por AA contra BB e, consequentemente, reconhece-se, expressamente, a sentença, proferida, no dia 16 de Dezembro de 2021, pelo Tribunal de Família do Tribunal Central de Londres, que regulou as responsabilidades parentais relativas ao menor filho de ambos, CC.
Fixa-se à causa o valor processual de € 30 000,01.
Custas pela requerida.
Registe.
Transitada em julgado a decisão, comunique-a, no prazo de 5 dias, contado desse trânsito em julgado, ao registo civil.
2023.10.24





[1] Dado que só Estados soberanos podem ser partes da Convenção de Haia de 1996 e, por isso, não podia ser subscrita pela Comunidade Europeia, a Decisão 2003/93/CE, do Conselho, autorizou os países da União a assiná-la.
[2] Sobre a articulação da Convenção da Haia de 1996 e o Regulamento 2201/2003, cfr. Luís de Lima Pinheiro, Competência Internacional em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção de Crianças Perante o Regulamento Bruxelas II Bis e a Convenção da Haia de 1996, portal.oa.pt.
[3] Rapport explicatif de Paul Lagarde, disponível em https.//asset.hcch.net/upload/expl34.pdf.
[4] Assim, para a disposição homótropa contida no art.° 23, a), do Regulamento n.° 2201/2003, Borrás, Relatório,
n.° 73.
[5]  Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3.^ edição, 1992, pág. 359.
[6] Acs. do STJ de 14.03.2017 (103/13.1YRLSB.S1) e da RL de 16.01.2014 (103/12.4YRLSB-8), Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, I, 2014, pág. 663 e Apontamentos sobre a impugnação da decisão arbitral, ROA, Ano 2007, vol. III, Dez. 2007, Moura Ramos, Direito Internacional Privado e Constituição, 1991, págs. 251 e 252, Ferrer Correia, A revisão do Direito Internacional Privado, Estudos Vários de Direito, Coimbra, 1982, pág. 300
[7] Baptista Machado, cit. pág. 32.
[8] Ferrer Correia, Direito Internacional Privado, Alguns Problemas, 1991, pág. 126.
[9] Oliveira Ascensão, Parecer, CJ, X, 4.°, 23 e ss.
[10]  Note-se que o princípio não é meramente sindicante, no sentido de, em vez de se aplicar a um caso concreto, apenas realizar uma função de controlo ou sindicância sobre os resultados obtidos da directa aplicação de outras normas. Decerto que os princípios, pela sua própria natureza, tendem a ser sempre sindicantes, no sentido de afastarem soluções a que, de outra forma se chegaria, mas, além disso, quando tal seja o caso, o mais sindicante dos princípios aplica-se directa e imediatamente ao caso concreto. Cfr. sobre a existência de princípios sindicantes, Mota Pinto, Direito das Obrigações, Coimbra 1973-74, págs. 45 e ss. Sobre a função do princípio do interesse da criança como critério de controlo, cfr. Maria Clara Sottomayor, Exercício do Poder Paternal, Porto, 2003, PUC, págs. 69 a 72.
[11] Hélder Roque, Os Conceitos Indeterminados em Direito da Família e sua Integração, Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Centro de Direito da Família, Ano 2, n° 4, 2005, págs. 93 a 98. A indeterminação conceptual traduz, no fundo, a resignação do legislador face à impossibilidade de, através de um texto legal, apreender o fenómeno familiar na sua infinita variedade e imensa complexidade e Hélène Guademet-Tallon, De quelques paradoxes en matiére de droit de la famille, R.T.D.C, 1981, pág. 731.
[12] Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico, Fundação Calouste Gulbenkian, 5^ edição, Lisboa, págs. 173 a
177.
[13] Acs. da RL de 06.12.2011 (3463/08.0TBAMD.L1-6) e de 04.12.2008 (8155/2008-6).
[14] Gomes de Almeida, in Rui Pinto/Alves Leal, Processos Especiais, I, pág. 327 e ss.