Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4742/22.1T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA MELO
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
PRINCÍPIO DE IGUALDADE DOS CREDORES
EMPRÉSTIMOS BANCÁRIOS
FACTOS NOTÓRIOS
CREDORES COMUNS
JUROS REMUNERATÓRIOS
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 192.º, N.º 2, 194.º, 195.º, 215.º E 216.º DO CIRE, 5.º, N.º 2, ALÍNEA C), E 412.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Sendo certo que as razões do diferente tratamento dos credores devem constar do plano, sob pena de se ter por injustificado, não cabendo ao juiz, no momento da homologação do acordo, entrar em suposições ou conjeturas sobre as razões do tratamento desigual, tal não obsta a que o julgador possa considerar outras razões, se alicerçadas em factos notórios.
II – Pode ser considerado como facto notório que nos empréstimos bancários, o juro aplicado pela instituição de crédito constituirá a sua remuneração ou lucro pela operação efetuada.

III – Pode ser justificável o pagamento de juros remuneratórios aos credores comuns – sociedades de garantia mútua e bancos – atento o escopo prosseguido por essas instituições, cuja margem de negócio é precisamente o juro, não se mostrando violado o princípio de igualdade dos credores consagrado no art.º 194.º do CIRE, ainda que o Plano não preveja o pagamento de juros vincendos aos demais credores comuns.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Adjuntos: Catarina Gonçalves
Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório[1]

Companhia das Águas Medicinais da Felgueira, S.A., apresentou-se à insolvência e requereu a administração da massa insolvente nos termos do artigo 224.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (diploma a que pertencem as demais normas sem indicação da origem).

Por sentença proferida em 14 de novembro de 2022, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade Companhia das Águas Medicinais da Felgueira, S.A. tendo sido determinada a administração da massa insolvente por parte da devedora, nos termos do disposto no artigo 224.º (ref.ª 91762749).

Realizou-se a assembleia de apreciação do relatório.

A devedora apresentou a versão definitiva do plano de insolvência (ref.ª 5825046 [44996793] de 13-03-2023).

Admitida a proposta de plano de insolvência apresentada com o requerimento de 13-03-2023 (ref.ª 92812333 de 11-04-2023), o administrador da insolvência emitiu parecer favorável ao plano, referindo que, “assim tenha o apoio dos credores reclamantes, é viável e poderá permitir a recuperação da empresa e a satisfação dos credores, na exata medida do plano proposto, cumprindo o mesmo as formalidades legais exigidas” (ref.ª 5893198 [45335245] de 19-04-2023).

Em 13 de junho de 2023 realizou-se a assembleia de credores para discutir e votar o plano de insolvência apresentado em 13-03-2023, que não foi alterado (ref.ª 93248008 de 13-06-2023).

Nesta assembleia, o credor Município de Nelas pronunciou-se pela desigualdade do plano quanto ao pagamento de juros vincendos dos créditos comuns e sugeriu a alteração do plano de forma a ser eliminada a alegada desigualdade, sem que, conforme já se referiu, tenha sido modificado o plano de insolvência.

Por terem estado presentes ou representados na assembleia créditos superiores a um terço total dos créditos e por ter recolhido mais de cinquenta por cento da totalidade dos votos emitidos, sendo mais de metade dos votos de créditos não subordinados, por despacho proferido em 29-06-2023 foi declarado aprovado o plano de insolvência apresentado em 13-03-2023 (ref.ª 93363281 de 29-06-2023).

Foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 213.º e a deliberação de aprovação do plano de insolvência foi objeto de publicação em 3 de julho de 2023 (ref.ª 93397586 e 93397522).

O Município de Nelas, que votou contra o plano de insolvência, com os mesmos fundamentos constantes do requerimento que apresentou com o seu voto por escrito (ref.ª 5998234 [45887256] de 19-06-2023), requereu que o plano de insolvência não fosse homologado, nos termos do artigo 215.º ou 216.º (ref.ª 6028361 [46045315] de 04-07-2023).

Alegou, em síntese, que o plano de insolvência viola o princípio da igualdade entre os credores, referindo que para os créditos garantidos propõe-se o pagamento de 100% do capital e dos juros vencidos em dez anos, bem assim o pagamento dos juros vincendos à taxa Euribor a seis meses com spread de 2%, relativamente aos créditos comuns, os juros vencidos são perdoados em 50% e os juros vincendos são, para alguns créditos comuns, mas não para todos, perdoados a 100%.

Acrescentou que não se apresenta nenhuma justificação para a posição de benefício relativo dos credores com garantia, que a existência de garantia não constitui, por si só, justificação objetiva relevante para a preterição da regra da igualdade, por considerar que já gozam da vantagem inerente à garantia, com “uma certeza ou quase certeza de que, independentemente do cumprimento ou incumprimento do plano, sempre virão a ser cumpridos (no limite, em execução da garantia)” e que “nada justifica que, para além do benefício da garantia, haja também de gozar de um duplo benefício, qual seja o pagamento da totalidade dos juros vencidos e vincendos”.

Referiu ainda que não há qualquer razão para a diferença de tratamento dos credores comuns mencionados em 5.5. do plano – banca e Lisgarante – dos restantes credores, nomeadamente do Município de Nelas, que, ao contrário daqueles, não recebem juros vincendos, sendo também diferentes os prazos de pagamento, por outro lado, que se recebesse juros vincendos à taxa Euribor à data do requerimento, acrescida de 2%, receberia o valor de juros vincendos de €70.000,00.

Foi proferida sentença que homologou o plano de insolvência.

O credor  Município de Nelas  não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação concluindo as suas alegações do seguinte modo:

(…).

            A insolvente contra-alegou, concluindo do seguinte modo:

(…).

II – Objeto do recurso

De acordo com as conclusões da apelação, as quais delimitam o objeto do recurso, a questão a conhecer é a seguinte:

. se o plano de insolvência ao prever o pagamento de juros vincendos apenas aos credores comuns Banco Comercial Português, SA., Novo Banco, SA. e  Lisgarante e ao prever um prazo mais curto para o pagamento do crédito  ao  credor comum Fundo de Imobiliário Fechado – Turismo II, em comparação com os demais credores comuns, viola o princípio de igualdade entre os credores.

III - Fundamentação

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. Companhia das Águas Medicinais da Felgueira, S.A., apresentou-se à insolvência e foi declarada insolvente por sentença proferida em 14 de novembro de 2022, transitada em julgado, tendo sido determinada a administração da massa insolvente pela devedora, nos termos do disposto no artigo 224.º (ref.ª 91762749).

2. No dia 13 de março a devedora juntou aos autos a versão final do plano de insolvência – cujo teor se dá por reproduzido, com os seguintes elementos (transcrição parcial):

2.1. (1.2. Apresentação e caraterização da empresa) A Companhia das Águas Medicinais das Caldas da Felgueira, S.A. (abreviadamente designada por “CAMF”) foi constituída em 07 de agosto de 1882. O Senhor José Maria Marques Caldeira, pediu e obteve da Câmara de Nelas a concessão da exploração das águas, formando-se assim a Companhia das Águas Medicinais das Caldas da Felgueira. A adjudicação das águas medicinais, da casa dos banhos e de todos os terrenos, por noventa e nove anos, foi aprovada em sessão camarária de 23 de novembro de 1882. A CAMF dedica-se atualmente a três áreas principais de negócio: 1. Termalismo terapêutico; 2. Bem-estar, estética e beleza; 3. Alojamento e Restauração. (…) Desde 2015 que a CAMF passou também a explorar o Grande Hotel das Caldas da Felgueira, anteriormente explorado por uma empresa autónoma da qual a CAMF era acionista. A exploração do Grande Hotel é estratégica para a CAMF uma vez que é lá que ficam alojados boa parte dos clientes de termalismo clássico e de bem-estar, sendo que sem esta unidade hoteleira a funcionar seria muito menor a frequência de termalistas no balneário. Sob exploração da CAMF têm sido efetuados avultados investimentos no sentido de melhorar a qualidade da oferta turística, bem como dos serviços de alojamento e restauração prestados. A Companhia das Águas Medicinais da Felgueira tem tido ao longo dos últimos 13 anos resultados operacionais maioritariamente positivos, o que significa que as operações correntes são de um modo geral rentáveis e libertam dinheiro. No entanto, e fruto da estratégia de melhoria contínua da qualidade das instalações, dos equipamentos e dos serviços da empresa, a administração optou por investir anualmente valores muito significativos, que se traduzem depois em amortizações elevadas e encargos financeiros mais altos. Desta forma, os resultados líquidos da empresa têm sido negativos nos últimos anos. Esta estratégia de reabilitação gradual do balneário, do hotel e das zonas envolventes foi subitamente colocada em causa com a pandemia iniciada em março de 2020, tendo sido a Companhia das Águas Medicinais da Felgueira fortemente afetada pela pandemia da Covid 19, à semelhança da generalidade das empresas turísticas e hoteleiras em Portugal. O impacto foi especialmente grave porque os clientes da empresa procuram maioritariamente os serviços da empresa para efeitos de cura, e as termas estiveram legalmente impedidas de trabalhar durantes largos meses entre março de 2020 e junho de 2021. A faturação da empresa caiu cerca de 75% em 2020, em 2021 a faturação anual representou 50% a 60% da faturação de 2019, e em 2022 a expetativa é que se ultrapasse os 1,2 milhões de euros de volume de negócios. Quer isto dizer que apesar da reabertura do hotel e das termas em abril de 2022, este ano será ainda inferior ao de 2019 em termos de receitas para a empresa. Ao longo dos 21 meses de pandemia, com fechos, e reaberturas do hotel e das termas, a empresa teve elevados prejuízos e aumentou o seu passivo em cerca de 1 milhão de euros em 2020, o que fez com que os seus capitais próprios descessem mais de 900 mil euros para cerca de 260.000 euros. O cash flow de exploração não permitirá fazer face aos custos operacionais da empresa e ainda ir satisfazendo o serviço da dívida acumulada pela sociedade. Torna-se assim imprescindível para a sobrevivência desta sociedade que tem quase 140 anos de atividade reduzir alguns passivos e estabelecer planos de carência de capital para a sua dívida financeira. Já em 2021 o acionista principal da empresa converteu 900.000 euros que tinha em suprimentos em Prestações Acessórias de Capital, de modo que os capitais próprios se mantivessem positivos, perdoou mais de 500.000 euros de créditos sobre a CAMF.

2.2. (1.3. Situação atual) Embora os resultados sejam negativos essencialmente por causa das amortizações resultantes dos elevados investimentos efetuados, em 2020 a empresa faturou cerca de 25% do que havia faturado em 2018 e 2019, pelo que, inevitavelmente, o EBITDA e os Resultados Líquidos foram negativos. Em 2021 a faturação cresceu cerca de 100% face a 2020, a performance económica não foi tão negativa como fora em 2020, mas degradou a situação patrimonial da empresa. Apesar destes dois anos extraordinariamente difíceis, os capitais próprios da CAMF permaneceram sempre positivos, para o que contribuiu em muito a conversão de 900.000 euros de suprimentos em Prestações Acessórias de Capital. Verificamos que em setembro de 2022 o volume de negócios já se mostra superior ao alcançado no final de 2021, estando previsto atingir o montante de 1.200.000 euros no final de 2022, o que significa um aumento de 63%.

2.3. (2.1. Situação atual da empresa) Atualmente e após a declaração de insolvência, a “Companhia das Águas Medicinais da Felgueira” mantém a sua atividade diária corrente, mas sujeita a restrições e constrangimentos diversos decorrentes da sua situação financeira. Por seu turno, também a situação reditícia, ou seja, a capacidade que a empresa possui de gerar lucro, de criar riqueza, está também dependente da aprovação do Plano, concluindo-se, sem mais, que atualmente é muito reduzido. Como se verá ao longo do presente documento, é do nosso entendimento que a empresa tem capacidade de recuperação com a aprovação do Plano ora apresentado, podendo vir no futuro gerar lucros e a honrar os seus compromissos, pagando os seus créditos.

2.4. (2.1.3. Recursos humanos) A “Companhia das Águas Medicinais da Felgueira” encontra-se em pleno funcionamento tendo atualmente 62 colaboradores [no quadro apresentado só são indicados 60 colaboradores]. (…) A este nível, a administração da “Companhia das Águas Medicinais da Felgueira” considera estar com o número suficiente e, sempre que necessário, recorrer a outsourcing para colmatar eventuais necessidades.

2.5. (2.1.4. Património) A Companhia das Águas Medicinais da Felgueira detém algum património imobiliário sito nas Caldas da Felgueira, o qual está praticamente todo afeto à exploração termal. Alguns dos imóveis que a sociedade explora não são sua propriedade, tal como o edifício do Grande Hotel (que pertence a um Fundo Imobiliário gerido pela Turismo Fundos) e o Parque Termal e os 7 apartamentos que pertencem à Real Vida Seguros. A esmagadora maioria do equipamento que se encontra no interior das termas e do hotel pertence à sociedade, estando boa parte do mesmo amortizado devido ao facto de já ter sido adquirido há muitos anos.

2.6. (3. Objetivos do plano de insolvência, 3.1. Objetivos e estratégias a implementar) O Objetivo principal deste plano de insolvência é reestruturar todo o passivo da empresa à custa fundamentalmente do ajustamento do ativo, e fazer nascer uma “nova” empresa lucrativa, encaminhando a globalidade dos lucros gerados na satisfação dos credores, ainda não satisfeitos com os serviços já prestados e a prestar, deixando-os numa situação bem mais vantajosa do que ficariam num cenário de liquidação. Relativamente às medidas a levar a cabo pela Administração da sociedade, de forma a inverter a situação negativa dos últimos exercícios, consequentemente das causas antes explicitadas, podemos salientar as seguintes:

• Com a passagem da unidade hoteleira que explora de 3 para 4 estrelas, irá permitir aumentar os valores médios das estadias e aumentar a taxa de ocupação do hotel, contribuindo assim para um aumento das receitas da empresa;

• Reforço da comunicação e da presença digital da estância termal, que se iniciou em 2021 e que deverá crescer de forma substancial em 2022 e 2023;

• Campanha dirigida a clientes que sofreram de Covid, no sentido de tratarem as sequelas nas suas vias respiratórias e melhorar o seu sistema imunitário;

• Ajustamento da estrutura de pessoal da empresa ao nível da atividade existente;

• Renegociação dos custos financeiros existentes, perfeitamente insuportáveis pela exploração existente;

• Rigoroso controlo de custos a todos os níveis, concretamente comunicações, seguros, energia, combustíveis, possibilitando o aumento da competitividade da empresa e possibilitando o incremento das margens libertas (Exemplo: Instalação de painéis solares de modo a reduzir a fatura energética da empresa, que é significativa);

• Concentração da atividade da empresa em 9 meses do ano, não funcionando durante os 3 meses de Inverno em que há poucos clientes e os custos aumentam devido ao consumo energético associado ao aquecimento do Hotel;

• Implementação de rigoroso controlo financeiro no que respeita aos recebimentos e pagamentos, de forma a otimizar a estrutura de custos financeiros existente;

• Definição de management da empresa com atribuição de responsabilidades;

• Reforço do departamento comercial e redefinição da estratégia comercial;

• Desenvolvimento de parcerias estratégicas;

O Plano de insolvência, posto em prática com a implementação destas medidas, tem como principal objetivo fundamentar a viabilidade da “CAMF”, cuja sustentabilidade de médio e longo prazo é indiscutível (trata-se de uma atividade termal com 140 anos de história e que é cada vez mais necessária para a saúde e o bem-estar da população), ora insolvente e o pagamento a credores de forma bem mais vantajosa que a que seria atingida num cenário de encerramento e liquidação.

Um dos principais ativos da empresa, que são o saber fazer e a capacidade técnica dos seus colaboradores, os largos anos de experiência e a consciência do cometimento de alguns erros, são aqueles que, em situação de liquidação, não passam para os cofres dos credores, perdendo-se no mesmo dia em que se decide iniciar a liquidação.

Em termos financeiros manter-se-á a falta de margem de manobra na tesouraria, pois está dificultada a possibilidade de crédito bancário ou mesmo de fornecedores, e terá de ser a própria atividade a auto financiar-se.

Em suma, podemos concluir que a proposta do Plano de Insolvência tem como objetivo a recuperação económica e financeira desta empresa, através da reestruturação do seu passivo, acompanhando com medidas de gestão financeira, comercial, e estratégica, que

irão certamente deixar todos os credores numa situação mais favorável do que aquela que seria conseguida por via da simples liquidação dos ativos da “CAMF”.

Não podemos deixar de referir que esta empresa também sofreu as consequências de uma crise generalizada e irá permanecer em funcionamento unicamente para satisfazer os seus credores, não havendo por parte da estrutura detentora de capital, qualquer perspetiva de distribuição de dividendos, até o plano estar integralmente cumprido, ou seja, o passivo estar integralmente pago. Refira-se que a administração nunca foi remunerada e nunca foram distribuídos dividendos desde que a Patris adquiriu a empresa em 2007.

2.7. (3.2. Medidas necessárias à execução) A execução do Plano de insolvência passa, obviamente, por cumprir o pagamento dos créditos verificados e reconhecidos pela respetiva sentença, encontrando-se, na proposta de pagamento cumprido no Art. 194º do C.I.R.E.

Adicionalmente, é indispensável que as instituições financeiras ora envolvidas mantenham a sua confiança na atividade económica da “CAMF”, respaldando eventuais necessidades pontuais de apoio à tesouraria. De referir que não se pretende que a votação deste Plano sirva de compromisso para esses eventuais apoios de tesouraria.

Cremos ainda que, o estigma da existência de uma empresa declarada insolvente permanecer no mercado, terá uma normal tendência a dissipar-se, não devendo ser esse um fator que deverá condicionar os credores a não acreditar na possível recuperação da empresa.

2.8. (3.3. Alterações decorrentes do Plano de Insolvência, para as posições jurídicas dos credores)

a) A aprovação do Plano de Insolvência implica a derrogação dos seguintes preceitos do C.I.R.E.:

i) Art. 91.º, nº1, na medida em que passa a haver uma moratória para o cumprimento das obrigações da insolvente, admitindo-se o pagamento dos créditos sobre a insolvente em prestações, podendo ainda usar um período de carência;

ii) Art. 172.ºa 184.º, na medida em que passa a vigorar um regime especial de pagamento aos credores, de acordo com o que vier a ser aprovado em Assembleia de Credores e constar da sentença homologatória do Plano nela aprovado.

b) Art. 230.º, n.º1, al. b), atendendo ao conteúdo do presente Plano de Insolvência, a sua homologação não determinará o encerramento do processo, estando, contudo, prevista a fiscalização pelo Administrador de Insolvência, nos termos do Art. 220.º do C.I.R.E.

Com a aprovação e implementação das medidas propostas, a “CAMF” deixará de se encontrar numa situação de insolvência. (…)

Os créditos da sociedade serão pagos tendo em contas as seguintes taxas de recuperação:

• Crédito privilegiado – 100%

• Créditos garantidos - 100%

• Créditos comuns - 100%

• Os créditos subordinados não serão satisfeitos

2.9. (4. Impacto espectável do Plano, por comparação com a situação que interviria na ausência de qualquer plano de insolvência) No quadro do presente plano de insolvência, e da correspondente manutenção da atividade, os credores obterão previsivelmente, maior satisfação dos respetivos créditos, em comparação com um cenário de liquidação. Revela aqui, por um lado, a maior celeridade com que os credores começarão a receber os pagamentos decorrentes do Plano, em comparação com o pagamento após liquidação dos ativos da “Companhia das Águas Medicinais da Felgueira”. Num cenário de liquidação, cumpriria efetuar os pagamentos resultantes da sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado, após liquidação de todo o ativo da insolvente e de percorrido o processo de insolvência, que para os menos familiarizados com este tipo de processos, se informa que seguramente não demoraria menos de 2 a 3 anos. Contudo, e no cumprimento do que se considera fazer parte do conteúdo do plano de insolvência, cumpre elaborar cenários comparativos, ou seja, o que se espera ser efetivamente vantajoso para os credores, na aprovação do plano de insolvência em comparação com um cenário de liquidação. O cenário de liquidação caracterizar-se-á por venda de ativos – imóveis, terrenos e equipamentos. Como se depreende, o cenário de liquidação não deixará de acarretar perdas substanciais na alienação de imóveis e equipamentos, o que se estima em cerca de 20% e de 50% respetivamente. Nesse sentido, os fornecedores e outros credores comuns ou não garantidos com imóveis e equipamentos, receberão uma percentagem reduzida dos seus créditos. Além disso, por um lado, o cenário de liquidação implicaria a rescisão dos contratos de trabalho, cuja continuidade pode ser assegurada, contribuindo para o desemprego. Neste momento a Companhia das Águas Medicinais da Felgueira” tem 30 colaboradores efetivos.

(…) pretende-se com este cenário prever que, numa perspetiva de venda de ativos, o total de créditos a liquidar atinge o montante de 2.122.643,75 euros e os ativos o montante de 865.794,65 euros, pelo que 1.256.849,10 euros (59%) não estão em condições de serem liquidados. Refira-se que o imóvel principal foi dado como garantia ao Novo Banco e Millennium BCP, pelo que os credores comuns receberiam uma percentagem ínfima dos seus créditos. Este é sem dúvida o que de pior poderia acontecer a todos os credores pois, em caso de não aprovação do plano de insolvência, estão a optar pelo quadro mais desvantajoso, além de estarem a liquidar a possibilidade de recuperação de uma empresa. Sublinhe-se ainda que o incumprimento do Plano não comprometerá a posição dos credores, podendo apenas adiar o que quem eventualmente pretende reprovar o Plano, considera mais vantajoso, pois a devedora assume desde já perante os seus credores, neste Plano de Insolvência, que não permanecerá em laboração caso verifique a existência de uma exploração deficitária e não alienará património para financiar a atividade.

2.10. (4.2. Plano de Insolvência) O plano de insolvência proposto prevê o pagamento de forma agregada aos credores de cerca de 3.473.294 euros dos seus créditos.

2.11. (5. Reestruturação do passivo e planos de pagamentos) Embora sejam contempladas no presente plano diferentes soluções de reestruturação consoante a natureza dos créditos, é manifesto que a Devedora tratou de forma equitativa e equilibrada os vários tipos de credores, jogando com o binómio “desconto / prazo de pagamentos”. Acresce que, as diferentes soluções de tratamento propostas têm por base razões objetivas, uma vez que se procurou por um lado, compensar a existência de descontos com prazos de reembolso mais curtos e, por outro lado, compensar prazos de reembolso mais alargados com a ausência de descontos, no que se considera dar integral cumprimento ao princípio da igualdade dos credores. O que se acaba de expor deve ser analisado tendo por referência o quadro comparativo que resultaria de um cenário de liquidação. Esclarece-se que os prazos cujo termo inicial não esteja referido, serão tomados por referência à data de trânsito em julgado da sentença de homologação do presente Plano. O Plano de recuperação pressupõe que todos os atos enquadráveis na previsão legal do artigo 268º, 269º e 270º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresar (C.I.R.E.) beneficiem das isenções fiscais aí previstas. Nos termos do art.º 290º, n.º3 do C.I.R.E., o Plano de Recuperação acautela os créditos eventualmente controvertidos em processo de impugnação de forma que venham a ter o mesmo tratamento que os da classe em que se inserem.

2.12. 5.1. Créditos à Autoridade Tributária e Instituto de Segurança Social – IP

Os créditos serão regularizados no âmbito de execução fiscal, mantendo-se os planos prestacionais em vigor.

2.13. 5.2. Créditos Subordinados (Patris Investimentos, SGPS, S.A.)

Os créditos da Patris Investimentos serão perdoados a 100%, o que representa uma redução de 597.161,58 euros no passivo da “CAMF”.

2.14. 5.3. Crédito Privilegiado (AJP)

O crédito será regularizado a 30 dias após o trânsito em julgado da homologação do Plano.

2.15. 5.4. Créditos Garantidos

Pagamento de 100% do capital e juros vencidos em 10 anos com 120 prestações mensais e sucessivas sendo que serão pagos em ordem cronológica, 10% em 24 prestações constantes 60% em 72 meses e 30% em 24 meses.

• Início do pagamento no último dia do mês seguinte ao trânsito em julgado em homologação do Plano

• Juros vincendos à taxa Euribor a 6 meses com Spread de 2,0%

2.16. 5.5. Comuns (Banca e Lisgarante)

Pagamento de 100% do capital e 50% dos juros vencidos em 10 anos com 120 prestações mensais e sucessivas sendo que serão pagos em ordem cronológica, 10% em 24 prestações constantes 60% em 72 meses e 30% em 24 meses.

• Início do pagamento no último dia do mês seguinte ao trânsito em julgado da homologação do Plano

• Perdão de 50% dos juros vencidos

• Juros vincendos à taxa Euribor a 6 meses com Spread de 2,0%

2.17. 5.6. Créditos Comuns (EDP Comercial, Elis-Spast, Meo, Município de Nelas, Real Vida Seguros) Pagamento de 100% do capital e 50% dos juros vencidos em 10 anos com 120 prestações mensais e sucessivas sendo que serão pagos em ordem cronológica, 10% em 24 prestações constantes 60% em 72 meses e 30% em 24 meses.

• Início do pagamento no último dia do mês seguinte ao trânsito em julgado em homologação do Plano

• Perdão de 50% dos juros vencidos

• Perdão dos juros vincendos

2.18. 5.7. Créditos Comuns (Fundo de Investimento Imobiliário Fechado – Turístico II) Pagamento de 100% do capital e 50% dos juros vencidos até ao fim do contrato de arrendamento que cessa em 31 de dezembro de 2029, em prestações mensais e sucessivas sendo que serão pagos em ordem cronológica, 10% em 24 prestações constantes 90% até ao final de contrato.

• Início do pagamento no último dia do mês seguinte ao trânsito em julgado em homologação do Plano

• Perdão de 50% dos juros vencidos

• Perdão dos juros vincendos

2.19. 5.8. Créditos Comuns sob condição (Unicre – Instituição Financeira de Crédito, S.A.) Caso se verifique a condição, o crédito será pago nos exatos termos dos créditos referidos no ponto 5.6.

2.20. 5.9. Outras Condições

a) Ficam sem efeito quaisquer outros planos de pagamento acordados, relativamente a créditos sobre a insolvência.

b) O Perdão ou a redução de juros previstos no plano de insolvência fica sujeito à clausula “salvo regresso de melhor fortuna”

c) Os credores com garantia real manterão as suas garantias até integral satisfação dos seus respetivos créditos.

d) O presente plano não exonera a devedora das garantias e obrigações assumidas, nem os terceiros responsáveis pelas mesmas.

2.21. 6. Alternativas colocadas à disposição dos credores. Com o objetivo de ir ao encontro de eventuais objetivos estratégicos dos seus credores, a “CAMF” coloca à disposição, daqueles que o desejarem, uma alternativa aos planos de pagamento anteriormente expostos. A opção a esta alternativa deverá ser manifestada durante os primeiros 12 meses a contar do trânsito em julgado da homologação do Plano. A opção é exercida através do envio em carta registada com aviso de receção para o endereço da “CAMF”, da qual deve constar sua intenção.

Caso a mencionada opção não seja expressa, o credor beneficiará do plano de pagamentos previsto nos termos gerais, em função da natureza do seu crédito.

2.22. (6.1. Possibilidade de conversão de créditos em capital)

A “CAMF” oferece a todos os seus credores, a possibilidade de converter a totalidade ou parte dos seus créditos em capital da Empresa.

Montante a converter

A Empresa oferece a possibilidade de conversão total ou parcial dos créditos em capital, sendo também facultada a opção de reforçar a posição acionista através de capitalização adicional, cumprida a seguinte condição:

• A conversão inicial do crédito, bem como o reforço de capital posterior, deve ser efetuada em múltiplos de 10.000,00 euros

2.23. (7. Outros termos e providências)

A Sociedade devedora está impedida de, sem a prévia aprovação do Administrador de Insolvência que fiscaliza o Plano (ou de quem o possa substituir):

a) Remunerar a gerência ou aumentar a remuneração dos seus colaboradores para além dos aumentos previstos anualmente para a função pública;

b) Atribuir qualquer tipo de prémio ou remuneração extraordinária a qualquer membro da administração ou a qualquer colaborador;

c) Efetuar os investimentos para além dos estritamente necessários ao desenvolvimento da atividade;

d) Praticar qualquer ato de gestão considerado não corrente;

e) Adquirir ou subscrever participações no capital social de outras sociedades e, bem assim, participar em associações, cooperativas, bem como celebrar quaisquer acordos ou contratos de subordinação, parceria, associação em participação, consórcio ou outro tipo de joint-ventures;

f) Alterar os estatutos, incluindo quaisquer variações (aumento ou redução) do capital social;

g) Transformar a sociedade, proceder à sua dissolução e liquidação, ou executar quaisquer operações de fusão ou cisão;

h) Prestar o consentimento a qualquer alteração na titularidade do respetivo capital, designadamente através de transmissão de quota, entre vivos ou por morte, bem como à constituição de quaisquer ónus ou encargos sobre a mesma.

2.24. (8. Antecipação do Plano) O Plano de Recuperação fica subordinado à cláusula “salvo regresso de melhor fortuna” aos devedores, que produz efeitos durante o período da sua vigência.

Assim, se a situação económico-financeira da CAMF melhorar e permitir a libertação de meios, que, para além das prestações do Plano, lhe possibilite efetuar pagamentos aos credores sem comprometer o seu regular funcionamento, a Empresa compromete-se a ratear esse excedente por todos os credores, efetuando, assim, reembolso antecipado, total ou parcial dos valores em dívida.

Para este efeito, considera-se que a situação económico-financeira da CAMF permitirá a libertação de meios adicionais em determinado ano caso, no ano anterior, o EBITDA (em euros) seja superior em 50% ao valor que consta do plano de negócios plasmado neste documento. Nesse caso, o valor a ratear por todos os credores deverá corresponder a 20% do excedente do EBITDA face ao valor previsto no plano.

2.25. (9. Fiscalização do Plano de Insolvência) Propõe-se, mesmo prevendo-se que o processo não seja encerrado, conforme referido no ponto 3.3, al. b), que a execução do Plano de Insolvência seja fiscalizada pelo Administrador de Insolvência nomeado, Dr. AA, nos termos do Art.220.º do C.I.R.E., ou por um período superior se for esse o entendimento dos credores, com uma remuneração mensal de 1.000 euros, sendo emitidos relatórios trimestrais, que serão remetidos aos credores até 45 dias após o final de cada trimestre.

3. Não existe qualquer plano prestacional em vigor relativo aos créditos da Autoridade Tributária (requerimento de 15-06-2023).

4. Por decisão transitada em julgado proferida no apenso B, foram reconhecidos os seguintes créditos:

4.1. AA, crédito comum no montante de €4.410,00;

4.2. Autoridade Tributária e Aduaneira, crédito comum no montante de €31.747,22, relativo a impostos;

4.3. Banco Comercial Português SA

4.3.1. Crédito garantido no montante de €200.000,00, com hipoteca sobre o prédio urbano descrito na conservatória do registo predial ... sob o número ...59, relativo a contrato de conta corrente caucionada;

4.3.2. Crédito comum no valor de capital de €100.000,00, juros no valor de €5.473,95 relativo a contrato de financiamento;

4.4. EDP Comercial, S.A. crédito comum no valor de €2.578,94;

4.5. Elis – Spast, S.A. crédito comum no valor de €17.811,93;

4.6. Fundo de Investimento Imobiliário Fechado Turístico II, crédito comum no valor de €156.679,71;

4.7. Instituto da Segurança Social, I.P., crédito comum no valor de €84.801,93 relativo a contribuições;

4.8. Lisgarante, S.A. crédito comum no valor total de €559.597,96 relativo a capital e contratos de garantia;

4.9. MEO, S.A. crédito comum no valor de €799,39;

4.10. Município de Nelas crédito comum no valor total de €233.547,28, sendo o valor de capital de €159.369,60 e de juros o valor de €74.177,68, relativo a contrato de arrendamento;

4.11. Novo Banco, S.A.

4.11.1. Crédito garantido no valor total de €629.051,88, com hipoteca sobre o prédio descrito na conservatória do registo predial ... sob o número ...95, relativo a contrato de financiamento;

4.11.2. Crédito garantido no valor total de €50.581,48, com hipoteca sobre o prédio descrito na conservatória do registo predial ... sob o número ...95, relativo a contrato de financiamento;

4.11.3. Crédito comum no valor de capital de €200.000,00, de juros €6.379,71, relativo a contrato de financiamento;

4.12. Patris Investimentos Sgps, S.A., crédito subordinado no valor de €597.161,58;

4.13. Real Vida Seguros, S.A., crédito comum no valor total de €219.752,00, sendo o valor de capital de €185.927,67 e de juros €33.825,93, relativo a contrato de arrendamento;

4.14. Unicre Instituição Financeira de Crédito, S.A., crédito comum, sob condição, no valor de €372.918,44 relativo a cartão de crédito;

4.15. Spast - Sociedade Portuguesa de Aluguer e Serviço de Têxteis, Lda. crédito comum no valor de €18.937,69 e juros vencidos desde a data da declaração de insolvência até integral pagamento, no montante vencido de €373,31 à data da impugnação da lista de credores reconhecidos, crédito este de natureza subordinada (ref.ª 93214986 de 13-06-2023).

5. Está pendente a impugnação da lista de credores reconhecidos apresentada por BB onde reclama a importância total de €48.364,20, relativa a indemnização pela cessação do contrato de trabalho que tinha celebrado com a insolvente (€46.105,20) e subsídio relativo a isenção de horário de trabalho (€2.259,00 – ref.ª 5783537 [44783898] de 20-02-2023, 93214986 de 13-06-2023 e 93492954 de 19-07-2023).

6. O plano de insolvência foi aprovado com o voto favorável dos seguintes credores: AA, Patris Investimentos Sgps, S.A., Fundo de Investimento Imobiliário Fechado Turístico II, Lisgarante, S.A., Novo Banco, S.A., Real Vida Seguros, S.A., Instituto da Segurança Social, I.P. (ref.ª 93363281 de 29-06-2023).

7. Votaram contra o plano de insolvência os seguintes credores: Banco Comercial Português, S.A., Município de Nelas e Autoridade Tributária e Aduaneira (ref.ªs 93248008 de 13-06-2023, 5998231 [45887167] de 19-06-2023, 6000691 de 20-06-2023).

Do Direito

Nos termos do artº 215º do CIRE o juiz pode recusar, oficiosamente, a homologação do plano de revitalização aprovado na assembleia de credores, no caso em que ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza. Entende-se por regras procedimentais as que visam regular a forma como deverá desenrolar-se o processo, enquanto as segundas se reportarão ao dispositivo do plano  de pagamento, bem como aos princípios que lhe devam estar subjacentes.

A lei não define o que são vícios não negligenciáveis e tem-se entendido que revestem tal natureza todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, diversamente se verificando quanto às infrações que afetem, tão só as regras de tutela particular, que podem ser afastadas com o consentimento do protegido, sem deixar de atender, por razoável, ao critério geral utilizado pela própria lei processual no art.º 195, do CPC.

Dispõe o nº 1 do artº 216º do CIRE que a  homologação deve ser recusada  também quando, a pedido de algum credor, se demonstre em ternos plausíveis, que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência dele ou que o plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.

Por sua vez o nº 2 do artº 192º estabelece uma regra geral de tutela dos interesses dos credores e dos direitos de terceiros ao consagrar que “o plano só pode afetar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados”.

E no que respeita ao conteúdo do plano, o art. 195º do CIRE dispõe que “O plano (…) deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos credores da insolvência” (nº 1) e “o impacto expectável das alterações propostas por situação que se verificaria na ausência de qualquer plano” (nº 2, alínea f).

Estabelece ainda o artº 194º que o plano obedece ao princípio da igualdade dos credores, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas (nº 1 do artº 194º) ou do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável (nº 2 do artº 194º).

No art. 47º distinguem-se três classes de créditos:  créditos “garantidos e privilegiados”, os créditos “subordinados” e os créditos “comuns”. Os créditos “garantidos e privilegiados são aqueles que beneficiam, respetivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes (alínea a) do nº 4 do artº 47º do CIRE. Créditos subordinados são os que se encontram descritos nas diversas alíneas do artº 48º, para o qual a alínea b) do nº 4 do artº 47º remete e créditos comuns, os demais créditos (alínea c) do nº 4 do artº 47º do CIRE.  

Como tem sido entendido “a igualdade dos credores não impede que seja dado tratamento diversificado a credores em função da sua categoria, nem afasta a possibilidade de, mesmo entre credores inseridos na mesma classe e dotados de semelhantes garantias creditórias, se estabelecerem diferenciações desde que a estas não presida a arbitrariedade, por serem justificadas as circunstâncias objetivas” (designadamente, Ac. do TRP de 13.04.2015, proc. 974/13.1TYVNG.P2). Também no Ac. do TRC de 13.09.2022, proc. 3245/21.6T8LRA-C1[2], se defendeu que, mesmo tratando-se de créditos da mesma classe, é admissível um tratamento diferenciado, desde que a desigualdade de tratamento se inscreva em razões objetivas, sujeitas ao crivo daqueles que são princípios estruturantes do nosso direito – os da necessidade, adequação e proporcionalidade. No mesmo sentido igualmente Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, Almedina, 8ª edição, 2022, pág. 368 e 369 que admite também ser possível fazer diferenciações entre os créditos sobre a insolência pertencentes a uma mesma classe, desde que observem o princípio da proporcionalidade, “isto é, sejam necessárias, adequadas e razoáveis, assegurando assim que um tal tratamento diferenciado delas resultante é proporcional ao interesse público na recuperação do devedor e proscrevendo aquelas diferenciações que revistam natureza arbitrária”[3].

E, conforme ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda, entre as circunstâncias que, em concreto, podem ser atendidas para estabelecer justificadas diferenciações, contam-se, para além da distintiva classificação e das categorias hierárquicas dos créditos, a diversidade das suas fontes (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, anotação ao artº 194º).

O plano deve, pois, tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. É, justamente, a perspetiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual que não podem ser arbitrárias. O Tribunal deve limitar-se a analisar se a regulação desigual da situação dos credores é manifestamente desadequada, por inexistência de fundamento razoável e relevante.

No caso foi aprovado um plano tendo em vista a recuperação da devedora.

Entende o apelante que o plano no que concerne ao pagamento dos juros vincendos viola o princípio de igualdade dos credores, não havendo razões para o tratamento diferenciado dos credores comuns. O plano não contém qualquer razão objetiva que justifique o tratamento desigual.  A idêntica natureza dos créditos – todos créditos comuns -   não poderá fundamentar a divisão dos créditos comuns entre créditos mais beneficiados (os referidos no ponto 5.5 do plano – créditos da banca e da Lisgarante) porque são os únicos a quem são pagos juros vencidos, outros mediamente beneficiados (os referidos em 5.7 do plano – crédito do Fundo de Investimento Imobiliário Fechado – Turismo II) que beneficia de um prazo mais curto e, finalmente, os demais créditos, manifestamente prejudicados (os referidos  em 5.6 do plano, entre eles,  os do apelante).

Efetivamente, enquanto que para os primeiros se propõe o pagamento de 100% de capital e 50% de juros vencidos em dez anos e pagamento da totalidade de juros vincendos à taxa Euribor a seis meses com spread de 2%,  para os segundos se propõe o pagamento de 100% do capital até 31.12.2029 e 50% dos juros vencidos e perdão dos juros vincendos, para os últimos a proposta é de pagamento de 100% de capital e 50% de juros vencidos em dez anos, bem assim perdão da totalidade dos juros vincendos.

O apelante defende que a justificação apresentada no plano é genérica para todas as diferenciações existentes, não se debruçando concretamente sobre as diferenças existentes no pagamento aos credores comuns e não podia o tribunal fundar-se noutras razões, sendo que as invocadas na sentença recorrida, não se alicerçam em factos notórios – a diversidade das fontes de financiamento e a diferente função dos juros em cada uma das fontes -  como foi entendido na decisão – e como tal não podiam ser valoradas.

No entender do apelante, quando a banca disponibiliza a um mutuário determinada quantia em dinheiro, fica este obrigado a devolver o capital e remunerá-lo com juros. Preveem os contratos de mútuo bancário a capitalização de juros não pagos, única razão pela qual a relação entre capital e juros vencidos no crédito da devedora à banca é incomparavelmente mais reduzida que a relação entre capital e juros vencidos no crédito de outros credores (designadamente no caso do crédito do Município recorrente). Assim, não é, de todo, possível ao tribunal avaliar, relativamente ao valor global qualificado como capital na relação de créditos admitidos e aprovados, qual a parte que se refere à devolução do valor mutuado e qual aquela que se refere a juros não pagos e entretanto capitalizados, a comissões e a outros encargos. Do mesmo modo que é impossível ao tribunal determinar se, perante uma dada prestação de bens ou serviços, o fornecedor ou prestador teve lucro no negócio e, tendo-o tido, qual o seu peso no total da dívida. Para mais, no caso da recorrente, a renda do imóvel dado de arrendamento não constitui «lucro» (como parece ser entendimento da douta sentença recorrida quando expressa que, «em relação ao restantes credores o pagamento do valor do capital inclui o lucro resultante dos negócios celebrados com a insolvente») mas tão só a remuneração pela cedência das instalações. O que o tribunal sabe – e só – é que, seja no caso do crédito da banca, seja no crédito de fornecedores de bens ou serviços, há um valor em dívida, vencido, a ser pago em x anos, com manifesto sacrifício do credor, não se achando razão justificativa pela qual a banca há-de ver esse sacrifício anulado (já que recebe o juro a taxa semelhante à do mercado) e os demais credores hão-de ver esse sacrifício exclusivamente por si suportado.

E continua o apelante, a  situação é ainda porventura mais evidente relativamente ao credor Lisgarante: esta empresa concedeu garantias à devedora, auferindo remuneração pela assunção desse risco. Fica-se por saber (e o Plano nada esclarece) qual a origem do crédito reconhecido: refere-se ele a remunerações não pagas devidas pelo serviço de risco prestado pela Lisgarante à devedora? Ou refere-se a valores que a Lisgarante haja pago a terceiros em cumprimento das garantias assumidas? Ou refere-se a uma e outra dessas origens? E, se assim for, em que percentagem? Concluindo que não só não é notória a explicação da distinção entre créditos comuns da banca e da Lisgarante vis a vis os demais créditos comuns, como não tem o Tribunal elementos de facto – porque lhe não foram fornecidos pelo Plano – para alcançar tal conclusão, sendo que no que toca ao apelante,  o perdão de juros vincendos – considerando o valor do crédito constante dos autos de 233.547,28 €, o tempo e modo de pagamento previsto no Plano (10% em 24 prestações, 60% em 72 prestações e 30% a 24 prestações) e o valor atual da taxa Euribor a seis meses – significará uma perda superior a 60.000,00 €. Já para os créditos comuns da banca e Lisgarante – considerando o valor dos créditos constantes dos autos de 865.977,67 €, o mesmo tempo e modo de pagamento e a mesma taxa – o pagamento dos juros vincendos significará um embolso superior a 222.000,00 €.

Por sua vez, a apelada defende que o Tribunal a quo apreciou e ponderou, de forma lógica e objetiva, a invocação da violação do princípio da igualdade no tratamento dos credores, apresentada pelo Município de Nelas, tendo vindo a considerar a mesma improcedente.  Mesmo assim, o Município de Nelas não se conformou com a fundamentação apresentada pelo tribunal a quo (nem com o sentido da decisão proferida), tendo vindo a interpor recurso.

No entender da apelada, na fundamentação do recurso o Município de Nelas limitou-se a reproduzir a mesma invocação de violação do princípio da igualdade de tratamento entre credores, invocação que foi já devidamente escalpelizada pelo tribunal de primeira instância. E defende também a apelada que o tribunal podia servir-se de factos notórios, como resulta do disposto no artº 5º, nº 2 do CPC, de aplicação subsidiária ao CIRE. O legislador não quis que o tribunal ficasse refém das alegações pela parte, quanto aos factos notórios, sendo conhecido pela comunidade que os empréstimos são liquidados mediante o pagamento de juros. A fundamentação apresentada pelo tribunal a quo mostra-se, assim,  suficiente, adequada e válida, à luz dos poderes de cognição do tribunal, previsto na alínea c) do n. 2 do artigo 5 do Código de Processo Civil.

O prejuízo invocado pelo apelante é exagerado e inverídico, porquanto o plano de insolvência prevê, no seu ponto 6, a possibilidade dos seus credores, em que se inclui o Município de Nelas, disporem de alternativa aos planos de pagamento ali previstos, bastando  que os credores, em que se incluiu o Município de Nelas, manifestem esse interesse durante os primeiros 12 meses a contar do trânsito em julgado da homologação do plano de insolvência.  Essa faculdade, uma vez espoletada, pode permitir ao credor uma satisfação mais diferenciada aos seus objetivos estratégicos.

Além da faculdade da alternativa colocada à disposição, o plano de insolvência prevê ainda a possibilidade de conversão total ou parcial dos créditos pelos vários credores em capital da empresa insolvente. Mas, mesmo que o Município de Nelas opte por não exercer nenhuma das referidas faculdades, a verdade é que vai, ainda assim, conseguir arrecadar uma receita bem superior a 60.000,00 euros nos próximos anos, se for permitida à insolvente a continuação da sua atividade. O Município de Nelas é, de entre os credores da Insolvente, o principal beneficiário da manutenção da atividade da sociedade comercial “Companhia das Águas Medicinais da Felgueira, S.A.” (CAMF). A Insolvente atrai milhares de turistas ao longo do ano, que gastam e consomem nos restaurantes e no comércio no concelho em causa, o que, por si, permite a fixação de pessoas no concelho (que é de baixa densidade). A manutenção da atividade pela Insolvente não só permite a preservação dos 60 (sessenta) postos de trabalhos diretos (conforme o seu mapa de pessoal), como também garante postos de trabalhos indiretos nos estabelecimentos de bens e serviços que gravitam em torno da atividade da CAMF.

Vejamos:

Na sentença recorrida considerou-se que existia razão para o diferente tratamento entre credores comuns. Consignou-se, a propósito, na sentença recorrida:

“Porém, com o devido respeito por opinião em sentido contrário, a diversidade das fontes dos créditos da banca e da “Lisgarante” justifica a diferença de tratamento.

Com efeito, a taxa de juro corresponde ao lucro obtido pelo empréstimo, sendo certo que os créditos da Banca e da Lisgarante, S.A. dizem respeito a contratos de financiamento e de garantia (em relação a estes últimos só foram reconhecidos créditos de capital).

Já em relação aos restantes créditos comuns o valor de capital incorpora o lucro obtido pelo fornecimento dos bens, pela prestação de serviços ou pela cedência do imóvel a título de arrendamento.

Pelo que, apesar de ambos os créditos assumirem a natureza comum, não se pode considerar que os juros têm a mesma função, já que a restituição do capital acaba por corresponder tão só à restituição do montante mutuado ou garantido, enquanto que em relação aos restantes credores o pagamento do valor do capital inclui o lucro resultante dos negócios celebrados com a insolvente.

O facto desta explicação não constar do plano de insolvência não obsta a que a mesma seja considerada, atento o seu carácter notório.

O princípio da igualdade dos credores “par conditio creditorum” não confere, aos que deles beneficiam, um direito absoluto. Esse direito de crédito pode sofrer afrouxamento ou restrição como decorre do texto constitucional que contempla, a par do princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade e da proibição do arbítrio coenvolvidos na legalidade do exercício de direitos e deveres (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-05-2017, processo n.º 1006/15.0T8LRA-D.C1 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2014, processo n.º 6148/12.1TBBRG.G1.S1).

Acresce que, o que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas (Carvalho Fernandes e João Labardes, CIRE Anotado, pág. 641).

O pagamento dos juros vincendos, atendendo à diferente origem dos créditos, não é arbitrária, nem desproporcional ao ponto de não se ter em consideração a diferenciação e consideração do princípio da prioridade na recuperação económica da devedora (art.º 1.º, n.º 1), já que, atenta a diferente natureza dos contratos celebrados, não “representa uma efetiva, injustificada e desproporcional desigualdade de tratamento entre credores” (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-09-2022, proferido no processo n.º 245/21.6T8LRA-C.C1, situação essa que se verificava no PER anterior ao processo de insolvência – mencionado no plano de insolvência - em que dois dos credores comuns viam intocados os seus créditos, enquanto os demais, viam reduzidos os créditos a 5% do capital, com pagamento faseado a um ano)”.

Que dizer? Pode a sentença recorrida fundamentar-se  noutras razões objetivas que não apenas as constantes do plano?

No caso, no plano apresentando a devedora apresentou as razões para o diferente tratamento de alguns credores, fazendo-o do seguinte modo:

“Embora sejam contempladas no presente plano diferentes soluções de reestruturação consoante a natureza dos créditos, é manifesto que a Devedora tratou de forma equitativa e equilibrada os vários tipos de credores, jogando com o binómio “desconto / prazo de pagamentos”. Acresce que, as diferentes soluções de tratamento propostas têm por base razões objetivas, uma vez que se procurou por um lado, compensar a existência de descontos com prazos de reembolso mais curtos e, por outro lado, compensar prazos de reembolso mais alargados com a ausência de descontos, no que se considera dar integral cumprimento ao principio da igualdade dos credores.

O que se acaba de expor deve ser analisado tendo por referência o quadro comparativo que resultaria de um cenário de liquidação.”

           

Sendo certo que as razões do diferente tratamento dos credores devem constar do plano, sob pena de se ter por injustificado, não cabendo ao juiz, no momento da homologação do acordo, entrar em suposições ou conjeturas sobre as razões do tratamento desigual (cfr. se defende no Ac do TRC de 13.09.2022, proc.4703/21.8T8LRA.C1),  tal não obsta a que o julgador possa considerar outras razões, se alicerçadas em factos notórios. Como se sabe, os factos notórios podem ser considerados pelo julgador, ainda que não tenham sido alegados pelas partes (artº 5º, nº 2, alínea c) do CPC). Dispõe o artº 412º do CPC que não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral. Factos notórios são, assim,  os que sejam do conhecimento e de experiência comum, de acordo com os padrões médios da coletividade de um determinado tempo e lugar. “A exigência do conhecimento geral atua em vários âmbitos: na esfera pessoal, o facto notório tem de constar como certo ou falso para a generalidade das pessoas de cultura média, entre as quais se encontra o juiz; na esfera cognoscitiva, no sentido de que tal conhecimento deve integrar a cultura média, não integrando apenas um saber especializado; na esfera espacial, no sentido de que tal facto deve ser conhecido no território a que respeita” (cfr. defendem Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Almedina, 2019 – Reimpressão, pág. 485).

Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos (cfr. se defende no Ac. do TRC de 22.06.2010, proc. nº 1803/08.3TBVIS.C1).

Ora, afigura-se-nos que pode ser considerado como facto notório que nos empréstimos bancários e outras operações ativas das instituições financeiras, o juro aplicado pela instituição de crédito constituirá a sua remuneração ou lucro pela operação efetuada. Nos contratos de crédito de taxa variável, geralmente indexados à Euribor (a 3, 6 ou 12 meses) a margem de lucro da instituição financeira consistirá, em regra,  no spread que é um valor livremente escolhido pela entidade,  na fixação do qual esta irá ponderar, designadamente, a oferta dos demais bancos, de forma a manter a sua oferta competitiva, o valor mutuado, as garantias existentes e o risco do mutuário.

Assentando que o julgador na fiscalização que lhe é imposta pelo artº 215º se poderá socorrer de factos notórios, analisemos se existe tratamento diferenciador sem razões objetivas que importe a revogação da decisão recorrida.

É inquestionável a existência de tratamento diferente entre os credores comuns. Relativamente aos credores comuns Bancos e Lisgarante e demais credores comuns, com exceção do Fundo de Investimento Imobiliário, não se alcança, a justificação apresentada no plano relativamente  ao cumprimento do princípio de igualdade, “jogando com o binómio “desconto / prazo de pagamentos”, compensando “a existência de descontos com prazos de reembolso mais curtos e, por outro lado, compensar prazos de reembolso mais alargados com a ausência de descontos”. É que, relativamente aos créditos de todos os credores, com exceção do Fundo Imobiliário Fechado, os prazos de pagamento são iguais, e só os credores bancos e Lisgarante é que beneficiam do pagamento de juros vincendos.

A explicação constante do plano apenas poderá justificar a desigualdade, no confronto entre os  credores comuns Lisgarante e Bancos, por um lado, cujo prazo de pagamento é de 10 anos e o credor Fundo Imobiliário Fechado, por outro,  cujo prazo de pagamento é mais curto - até 31.12.2029 -, mas que ao contrário dos primeiros, não irá receber juros vincendos.

Diz o apelante que sendo credora de rendas não se lhe aplica a argumentação expressa na sentença recorrida para não censurar o diferente tratamento de que foi objeto.  Na sentença recorrida entendeu-se que a taxa de juro corresponde ao lucro obtido pelo empréstimo, sendo certo que os créditos da Banca e da Lisgarante, S.A. dizem respeito a contratos de financiamento e de garantia, sendo que em relação a estes últimos só foram reconhecidos créditos de capital. Já em relação aos restantes créditos comuns o valor de capital incorpora o lucro obtido pelo fornecimento dos bens, pela prestação de serviços ou pela cedência do imóvel a título de arrendamento.

Ora, não se vislumbra qualquer erro de julgamento nesta conclusão. Quando é estabelecida uma renda, o locador terá por fim obter um ganho, podendo  obter mais ou menos, em função de diversos fatores, tais como a localização do imóvel, as comodidades que oferece, a procura existente, etc. Não deixará de ser um ganho, ainda que a renda auferida seja apenas suficiente para cobrir as despesas que a permanência do mesmo no seu património lhe dá, nomeadamente despesas fiscais e despesas de manutenção e de administração, quando existam ou ainda que insuficiente.

Em sede de perdão de juros, afigura-se que a justificação para o tratamento privilegiado do Banco Comercial Português e Novo Banco e do credor Lisgarante, é assim de admitir. É que, embora sendo todos os créditos comuns, há que atender às peculiaridades de cada caso, pelo que a consideração dessa diferença no caso concreto, atendendo à diferente origem dos créditos  que se projeta num tratamento não igualitário tem justificação: como se referiu  é o juro que constitui a remuneração das entidades favorecidas. Não se pode concluir, como alega o apelante, que os juros já estão compreendidos na quantia que surge no plano como dívida de capital,  tanto no caso dos bancos como da Lisgarante e que por isso o Banco reclama poucos juros vencidos e a Lisgarante nem reclama nenhuns.            E da análise de todos os créditos reclamados a título de juros vencidos, a  apelante, de todas as entidades credoras que constam do quadro apresentado pelo AJP e que constam no plano final apresentado pela devedora, é aquela que, objetivamente, a título de juros vencidos, irá receber um valor mais elevado.

O tratamento diferenciado apontado pelo Município de Nelas não se mostra assim excessivo, desproporcionado e desrazoável como afirma o apelante, mas antes objetivamente justificado. No mesmo sentido se decidiu, no Ac. do TRG de 14.02.2019, proc. 1761/18.6-A.G118.12.2017,  onde se considerou que não obstava à homologação do plano, a diferença de tratamento entre credores comuns no seguinte circunstancialismo fáctico:

. Todos credores comuns tiveram o mesmo tratamento (na versão definitiva do plano), com perdão de 50% do capital em dívida, carência de 12 meses, contados a partir do mês seguinte ao trânsito em julgado do despacho de homologação, pagamento de 50% do valor em dívida em 132 prestações postecipadas mensais, iguais e sucessivas, iniciadas no mês seguinte ao último mês de carência e possibilidade de regularização do IVA relativo aos créditos perdoados – aqui se incluindo todos os créditos comuns, sejam eles de fornecedores, prestadores de serviços, credores comuns por salários, créditos comuns das instituições financeiras e bancárias e eventualmente outros não discriminados.

. O tratamento diferenciado existiu, unicamente, para créditos vincendos decorrentes de contratos de locação financeira e para instituições financeiras (créditos garantidos por hipotecas) e sociedades de garantia mútua, relativamente ao pagamento previsto para estas de juros remuneratórios e de 64,77% do valor em dívida em 120 prestações postecipadas, mensais, iguais e sucessivas, iniciadas no mês seguinte ao último mês de carência (24 meses de carência), com prestação bullet de 35,23% a pagar no fim do 12.º ano.

A justificação para o tratamento diferenciado apresentada no plano foi a seguinte:

“- quanto aos créditos decorrentes de contratos de locação, uma vez que a propriedade dos bens é dos respetivos credores, devendo os contratos ser integralmente cumpridos para que a devedora possa manter o gozo dos bens em causa e assim continuar com a sua normal atividade;

- quanto aos créditos de instituições financeiras (garantidos por hipotecas) e sociedades de garantia mútua, no que ao pagamento dos juros remuneratórios diz respeito, tal resulta “do escopo prosseguido por essas mesmas instituições, pois a sua margem de negócio é precisamente o juros remuneratório que resulta das operações de financiamento” e quanto ao mais, pela necessidade da devedora manter o imóvel dado de garantia para a sua atividade”.

Assim, entendeu-se, no referido recurso apreciado no TRG,  ser justificável o pagamento de juros remuneratórios aos credores comuns – sociedades de garantia mútua e credores no âmbito dos contratos de locação financeira– atento o escopo prosseguido por essas instituições, cuja margem de negócio é precisamente o juro, assim como, o pagamento de uma percentagem maior do crédito (o que não se verifica nos presentes autos) e a colocação de um prazo mais curto de pagamento relativamente aos demais credores comuns (o que também não se verifica no caso em apreciação neste recurso, em que o prazo de pagamento é o mesmo para todos os credores, com exceção do credor Fundo de Investimento Imobiliário, cujo prazo é mais curto, no qual se fixou como termo final a data de cessação do contrato de arrendamento).

Relativamente ao encurtamento do prazo para pagamento, relativamente ao Fundo de Investimento Imobiliário Fechado – Turístico II, relativamente aos credores Lisgarante e dos bancos, tal encurtamento tem justificação objetiva constante do plano – o termo do contrato de arrendamento em 31.12.2029. O prazo de pagamento é menor, mas não recebe juros vincendos.

Alguns dos imóveis que a sociedade explora não são sua propriedade, tal como o edifício do Grande Hotel (que pertence a um Fundo Imobiliário gerido pela Turismo Fundos), o  Parque Termal e os 7 apartamentos que pertencem à Real Vida Seguros (o que é referido no Plano). Tanto o crédito do Fundo como o crédito do apelante resultam dos contratos de arrendamento celebrados com a devedora. Não alega o apelante que os contratos de arrendamento que celebrou com a devedora terminem na mesma data do ou dos contratos celebrados com o Fundo ou em datas anteriores a esse prazo, pelo que as condições não se afiguram idênticas.  

Mostra-se assim acertada a sentença recorrida. Como se refere nesta, a situação agora em análise é bem diferente da verificada aquando da sujeição do plano, em sede de PER, para homologação. O Plano foi aprovado mas foi recusada a homologação, com base na violação do princípio  da igualdade relativamente aos credores comuns, porquanto dois dos credores comuns viam intocados os seus créditos, enquanto os demais, viam reduzidos os créditos a apenas 5% do capital, com pagamento faseado em um ano. No plano de insolvência todos os credores comuns viram reconhecidos a totalidade do crédito de capital e 50% dos juros vencidos.

A aprovação do plano afigura-se-nos, não obstante algum sacrifício imposto aos credores como é apanágios de todos os planos, tanto os apresentados na insolvência, como em sede de processo especial de recuperação de empresas,  trazer muito mais benefícios para os credores comuns, onde se inclui a apelante,  do que a liquidação imediata da devedora. Além da possibilidade de recuperação desta que o plano se propõe alcançar  e da manutenção de postos de trabalho (à data da apresentação da versão definitiva do Plano a devedora tinha 30 trabalhadores efetivos e outros tanto não efetivos), os bens detidos pela insolvente num cenário de liquidação, seriam insuficientes para o pagamento dos credores comuns nas proporções reconhecidas pelo plano, em que o capital é totalmente satisfeito e são pagos 50% dos juros vencidos. Note-se que a apelante não é dona de muitos dos imóveis que explora, designadamente o Grande Hotel e o  imóvel principal de que é proprietária, foi dado em garantia ao Novo Banco e ao Banco Comercial, pelo que num cenário de liquidação, dar-se ia em primeiro lugar pagamento aos credores garantidos. Aliás, nunca o apelante pôs tal em questão. Embora no requerimento em que requereu a não homologação do plano tenha feito referência ao artº 216º, onde se prevê a não homologação, a pedido de algum credor, se a sua situação ao abrigo do plano for previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano (nº 1, alínea a)) designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas, o apelante apenas se fundamentou na violação pelo Plano do princípio de igualdade dos credores.

Mantém-se, consequentemente, a sentença recorrida.

Sumário:

(…).

IV - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Notifique.

Coimbra, 20 de fevereiro de 2024


[1] O presente relatório reproduz quase na íntegra o relatório da sentença recorrida.
[2] Relatado pelo Sr. Juiz Desembargador, aqui 2º Adjunto.
[3] Citando os Acs.do TRC de de 15.09.2015 (relator Arlindo Oliveira) e Ac. do TRG de 25.05.2017 (relator Fernando Fernandes Freitas).