Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1416/22.7T8SRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
NULIDADE DA SENTENÇA
DECISÃO-SURPRESA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
DEVOLUÇÃO DOS AUTOS À PRIMEIRA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 11/21/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SOURE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 5.º, N.º 3, E 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O reconhecimento da existência de uma servidão de passagem com base em usucapião, quando tinha sido pedido o reconhecimento da mesma servidão de passagem com base na destinação de pai de família, não constitui condenação em objecto diverso do peticionado.
II – O reconhecimento da existência de uma servidão de passagem com base em usucapião, quando tinha sido pedido o reconhecimento da mesma servidão de passagem com base na destinação de pai de família, sem prévia audição das partes sobre a nova fundamentação jurídica, não anteriormente discutida no processo, não sendo expectável a sua utilização, constitui uma «decisão-surpresa», proferida em violação do art. 5º n.º 3 do CPC e nula por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º n.º1 al. d), 2ª parte, do CPC.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator: António Fernando Silva
Adjuntos:
Sílvia Pires
Cristina Neves

Proc. 1416/22.7T8SRE

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. AA intentou a presente ação contra BB e sua mulher CC pedindo que:

- seja reconhecida a servidão legal de passagem, pré constituída, nos termos do disposto no artigo 1549.º do Código Civil, entre o prédio da Autora (artigo 870) e o prédio dos Réus (artigo 655), de aproximadamente 15m de comprimento por 2 m de largura, partindo da Rua ..., no lado nascente dos prédios, aí se desenvolvendo para poente ao longo das suas estremas até ao poço sito no prédio da autora, por forma a permitir a circulação de forma cómoda e segura, a pé, de uma carrinha (para transporte de cargas e trabalhadores agrícolas) e/ou máquinas agrícolas, veículos automóveis e ambulância, em fiel reprodução da serventia que foi constituída na origem dos supra aludidos prédios,

- sejam os Réus condenados a demolir/retirar a vedação que, colocaram, a meio e ao longo de toda a serventia supra descrita, porquanto, a mesma impede o uso normal e reiterado que sempre foi feito de tal serventia ao longo de mais de 30 anos,

- sejam os Réus condenados a reconhecer tal direito de servidão legal de passagem,

- sejam os Réus condenados a manter o trajeto desta servidão livre e desimpedido de qualquer obstáculo,

- sejam os Réus condenados a pagar uma indemnização por danos morais, no valor de 1.000 euros, e

- sejam os Réus condenados a pagar à Autora por cada dia de atraso no cumprimento da decisão judicial que se vier a ser proferida uma sanção compulsória, à razão diária, de 25 euros.

Alegou para tanto, no essencial, que:

- é proprietária de prédio urbano que adquiriu por partilha da herança da sua mãe.

- os RR. são proprietários de prédio que confina a norte com o seu prédio.

- entre esses prédios existe uma serventia de acesso a ambos os prédios que a A. e antepossuidores têm vindo a usar há mais de 30 anos, de forma livre, ininterrupta, sem quaisquer restrições, à vista de toda a gente, sem oposição, na convicção de poder fazê-lo e de boa fé.

- ambos os prédios são provenientes de prédio ...58, propriedade da mãe da A., a qual neste edificou duas casas, constituindo os prédios artigo 870 e artigo 655.

- tendo ficado constituída nesse momento uma serventia de acesso a estes dois prédios e a um terceiro prédio ...58 (hoje artigo ...70 rústico).

- essa serventia está delimitada por um caminho entre a Rua ... e o poço existente no prédio da Autora (artigo 870), sendo tal faixa de terreno inclusive propriedade da Autora.

 - tal caminho sempre deu acesso da via pública aos três prédios (958, 870 e 655), permitindo a entrada de tractores, carros, ambulâncias e máquinas agrícolas.

- posse que se manteve exercida pela Autora desde a data de aquisição do referido imóvel, continuando a posse iniciada pelos seus antecessores (a mãe da Autora).

- em 2022 os Réus edificaram uma vedação que impede a entrada de tractores, carros, ambulâncias e máquinas agrícolas.

- a serventia foi constituída, pela mãe da Autora quando no prédio único (958), edificou duas casas (artigos 870 655), constituindo tal serventia para acesso a ambos os prédios, sendo impossível o acesso ao prédio da A. (habitação e logradouro) sem aquela serventia.

- a situação criou à Autora tristeza e angústia.

Os RR. contestaram, alegando no essencial que:

- os RR. são proprietários do prédio urbano com o art. ...55 e ainda do prédio rústico com o art. ...58, comprados em 17.02.2014 e sempre pretenderam vedar os seus prédios, ao que a A. se opunha.

- no âmbito de um processo crime chegaram a acordo, tendo, nomeadamente, acordado que a «Assistente aceita que as Arguidas coloquem uma rede nos termos em que vem descrito no licenciamento para o efeito, da Câmara Municipal ...», o que fizeram – tal acordo constituiria excepção que deveria conduzir à sua absolvição dos pedidos.

Impugnaram depois a versão da A., mormente afirmando a existência apenas de dois prédios confinantes que não estavam murados nos seus limites.

Invocaram ainda a litigância de má fé da A..

A A. respondeu, pugnando pela improcedência da excepção e do pedido de litigância de má fé, requerendo por sua vez a condenação dos RR. como litigantes de má fé.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador no qual, considerando a excepção invocada quer enquanto excepção dilatória quer enquanto excepção peremptória, se julgou improcedente a exceção dilatória de caso julgado e a exceção inominada de autoridade de caso julgado, e se relegou para a sentença o conhecimento da exceção peremptória.

A final, foi proferida sentença na qual, em especial, se considerou não estarem verificados os pressupostos da aquisição da servidão por destinação de pai de família mas estarem verificados os pressupostos da aquisição da servidão de passagem por usucapião, tendo daí retirado as demais consequências (avaliando ainda a defesa dos RR quanto ao acordo, que considerou não proceder).

Assim, decidiu-se nos seguintes termos:

7.1. Reconhece-se a servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do prédio registado a favor da Autora, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., da Freguesia ..., sob o n.º ...35, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...70, onerando o prédio registado a favor do Réu, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., da Freguesia ..., sob o n.º ...02, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...55, com uma área (inserta no prédio registado a favor do Réu) correspondente a 52,64 metros quadrados, partindo da Rua ..., no lado nascente dos prédios, aí se desenvolvendo para poente ao longo das suas estremas até ao poço sito no prédio da Autora, por forma a permitir a circulação de forma cómoda e segura, a pé, de bicicleta, motociclo, ou com máquinas agrícolas de pequenas dimensões, em fiel reprodução da serventia que foi constituída na origem dos supra aludidos prédios, que deverá ter, essencialmente, a seguinte configuração (traçado a vermelho):


7.2. Condenam-se os Réus a demolir/retirar a vedação construída no decurso da servidão descrita no ponto 7.1.;

7.3. Condenam-se os Réus a manter o trajeto da servidão descrita no ponto 7.1. livre e desimpedido de qualquer obstáculo;

7.4. Condenam-se os Réus a pagar por cada dia em que, por algum meio, estorvem, perturbem ou impeçam o trajeto da servidão de passagem descrita em 7.1., uma sanção pecuniária compulsória à razão diária de 25,00€ (vinte e cinco euros), sendo 50% para a Autora e 50% para o Estado;

7.5. Julga-se improcedente, por não provado, o pedido de litigância de má fé deduzido contra os Réus, absolvendo-se os mesmos de tal pedido;

7.6. Julga-se improcedente, por não provado, o pedido de litigância de má fé deduzido contra a Autora, absolvendo-se a mesma de tal pedido;

7.7. No restante, julga-se a presente ação improcedente, por não provada, absolvendo-se os Réus do demais peticionado.

Desta decisão interpuseram os RR. recurso no qual formularam as seguintes conclusões:

1 – O presente tem por objecto a douta sentença que, com recurso à via da usucapião, julgou a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, reconheceu a servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do prédio registado a favor da Recorrida, condenando os Recorrentes nos termos que nela vêm descritos, sendo que a sentença recorrida errou na aplicação das normas subjacentes a tal decisão e, também, na apreciação dos pressupostos de facto, em ordem a realizar o direito.

2 – A discordância dos Recorrentes prende-se com o facto de na sentença recorrida (em «5.3. Da servidão de passagem constituída por usucapião») ter sido considerado que «(…) apurar se a servidão cujo reconhecimento a Autora peticiona foi, ou não, constituída, por via da usucapião, não configura uma violação do princípio do pedido, estabelecido legalmente no artigo 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, na medida em que tal norma deve ser interpretada conjuntamente com a prevista no artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, que dispõe que o tribunal não se encontra sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, comportando, assim, o princípio do jura novit curia.».

3 – Resulta do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que a actividade judicativa, com excepção das questões que o julgador deva conhecer oficiosamente, mostra-se confinada ao objecto do litígio, sendo o objecto do processo integrado pela causa de pedir e pela pretensão formulada pelo autor.

4 – Na verdade, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: «O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.».

5 – Em homenagem ao princípio do pedido, não pode a condenação ter objecto diverso do que haja sido pedido e o pedido deve entender-se como a função processual requerida para uma individualizada (pela causa de pedir) pretensão processual.

6 – Não deixa de ser verdade que, ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino iura novit curia – actualmente consagrado no artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o tribunal pode apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram concitadas pelas partes.

7 – Sobre as limitações impostas pelo pedido à liberdade de qualificação jurídica, a propósito do efeito de caso julgado, diz-se em acórdão do STJ, de 18/09/2018, prolatado no processo 21852/15.4T8PRT.S1: «(…) ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”.».

8 – Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no artigo 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa.

9 - A aqui Recorrida pediu a condenação no reconhecimento de servidão legal de passagem, pré constituída, por destinação do pai de família, direito que decorre de um acto voluntário.

10 – Porém, a sentença recorrida constitui, não reconheceu, servidão de passagem por usucapião, pedido com base em facto não voluntário, diverso do constante dos articulados da Recorrida.

11 – Os pressupostos e os efeitos jurídicos das servidões constituídas por destinação do pai de família e por usucapião são diferentes, ainda que ambas, como as legais, possam permitir a passagem para determinado prédio, sendo esse o respectivo objecto.

12 – Daí que a acção tenha de ser balizada pelo fio lógico determinado entre a concreta causa de pedir e o pedido realizado e não um outro qualquer ainda que com efeito similar.

13 – O artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, apenas permite que o tribunal possa considerar o pedido formulado procedente com base em diferente qualificação jurídica dos factos constantes da causa de pedir.

14 – Mas, in casu, o pedido não é o de se poder passar, efeito comum a servidões legais de passagem, às constituídas por usucapião ou por efeito de destinação do pai de família: é o de reconhecimento desta última.

15 – Esta foi a questão submetida à decisão do tribunal a quo, não a constituição de servidão de passagem por usucapião.

16 – Não podem confundir-se, como ocorreu na sentença recorrida, pedidos materialmente diferentes com efeitos práticos deles resultantes ainda que, neste caso, similares.

17 – Assim, a sentença recorrida enferma de uma clara violação do princípio do pedido, ínsito no artigo 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ainda que a sua interpretação seja feita conjuntamente com a prevista no artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

18 – Errou o tribunal a quo na interpretação do artigo 609.º, n.º 1, conjugado com artigo 5.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, ao considerar que apurar se a servidão cujo o reconhecimento a Recorrida peticionou foi, ou não, constituída, por via da usucapião, não configura uma violação do princípio do pedido.

19 – Deveria tal normativo ter sido interpretado no sentido de se considerar que este reconhecimento configura uma violação do princípio do pedido.

20 – A sentença recorrida incorre, assim, na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil, por ter condenado em objecto diverso do peticionado.

21 – Mas ainda que assim não seja, subsidiariamente, a sentença recorrida violou, também, o princípio do contraditório, ínsito no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

22 – Este princípio assume-se como corolário ou consequência do princípio do dispositivo, emergente, para além de outras disposições, do n.º 1 deste preceito, destinando-se a proteger o exercício do direito de acção e de defesa, sendo um dos princípios basilares que enformam o processo civil, e, na estrita perspectiva das partes, talvez o mais relevante.

23 – Na realidade, «quer o direito de acção, quer de defesa, assentam numa determinada qualificação jurídica dos factos carreados para o processo, que as partes tiveram por pertinente e adequada quando procederam à respetiva articulação. Deste modo qualquer alteração do módulo jurídico perfilhado, designadamente quando assuma um grau particularmente relevante, é suscetível de comprometer a posição das partes… e daí a proibição imposta pelo n.º 3.» - Abílio Neto in Breves Notas ao CPC, 2005, p.10.

24 – Isto é, estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela, ou ainda quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente e razoavelmente imprevisível daquele em que a parte o havia feito.

25 – Resulta que, in casu, a Recorrida, baseada em determinados factos alegados, fundou, de jure, a sua pretensão numa servidão legal de passagem, pré constituída, por destinação do pai de família, nos termos do disposto no artigo 1549.º, do Código Civil.

26 – Sendo que, na sentença recorrida, o tribunal a quo não deu razão à Recorrida com base neste fundamento/subsunção jurídico/a.

27 – E, sem que em momento algum do processado, tivesse sido aflorada a possibilidade do chamamento da usucapião para a constituição da servidão legal de passagem.

28 – Pelo que apenas esta subsunção jurídica – por destinação do pai de família – poderia ser atendida/perspectivada e, com base nela, a acção proceder ou improceder.

29 – Donde decorre que é inexigível às partes, máxime aos Recorrentes, que previssem/perspectivassem que o tribunal a quo pudesse – na sentença recorrida – reconhecer a servidão de passagem, constituída por usucapião, condenando os Recorrentes nos termos que nela vêm descritos.

30 – Assim sendo, o mínimo que o tribunal a quo teria de fazer era notificar as partes para a possibilidade de a acção ser decidida com base em tal figura (usucapião), de molde a que estas, no exercício do seu direito ao contraditório, se pronunciassem sobre a sua presença ou não presença em sede do decurso do respectivo julgamento.

31 – Ao assim não actuar, o tribunal a quo violou o aludido artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, cometendo, por omissão, uma nulidade processual, a qual influiu no exame e decisão da causa e produziu uma decisão surpresa, pois que, no mínimo, é alheia ao, ou se situa fora do, módulo ou plano jurídico perfilhado pelas partes.

32 – Até porque, como alegado no seu articulado de contestação, entre outros factos e uma excepção peremptória (impeditiva), os aqui Recorrentes adquiriram os seus imóveis livres de ónus ou encargos.

33 – O que, por si só, obsta à constituição da servidão por destinação do pai de família.

34 – Facto, esse, que se apresentava como fundamental na sua defesa processual, não perspectivando outro “caminho” possível.

35 – Como o diferente enquadramento jurídico só foi encontrado pelo tribunal a quo quando se propôs proferir a sentença final, deveria ter sobrestado na decisão, confrontando as partes com a possível e inovatória solução de direito e convidando-as a deduzir sobre tal matéria os argumentos que considerassem pertinentes, só depois proferindo decisão.

36 – Assim, a sentença recorrida enferma de uma clara violação do princípio do contraditório, ínsito no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, tornando a própria sentença final – aqui recorrida – nula, conforme o disposto nos termos gerais do artigo 195.º, do Código de Processo Civil.

37 – Errou o tribunal a quo na interpretação do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, por omissão, ao não convidar as partes para aquele efeito – do contraditório.

38 – Deveria tal norma ter sido interpretada no sentido de o tribunal a quo ter confrontado as partes com a possível e inovatória solução de direito, convidando-as a deduzir – sobre tal matéria (servidão de passagem constituída por usucapião) – os argumentos que estas considerassem pertinentes.

39 – A sentença recorrida incorre, assim, na nulidade prevista no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por omissão da observação e cumprimento do princípio do contraditório.

40 – Mas, ainda que assim não seja, também, subsidiariamente, com o presente recurso, visam os Recorrentes, questionar a apreciação da prova feita para efeito da fundamentação de facto por parte do tribunal a quo.

41 – Nomeadamente, nos factos provados, em «4.1.13.», onde se diz: «A Autora e, antes desta, os seus ante possuidores, têm vindo, há mais de 15, 20, 25, 30 anos, a utilizar a serventia descrita em 4.1.11. de forma livre, à vista dos Réus, dos seus ante possuidores, e de toda a gente, na convicção de poder fazê-lo e de não estar a lesar seja quem for, convencida de que sempre assim seria.».

42 – Constituiu inequívoco elemento de desconsideração pelo tribunal a quo, isto é, houve uma clara má apreciação da prova produzida em relação à posse (por e para os efeitos da usucapião), do que é extraído dos documentos com o n.º 4 e n.º 5, juntos com a douta petição inicial – Certidão do Registo Predial e Procedimento Simplificado de Partilha e Registos.

43 – Assim, por partilha de herança com o n.º 6999/2014, ocorrida no dia 17/02/2014, a aqui Recorrida adquiriu o prédio urbano sito na Rua ..., na ..., mediante a Ap. ...84 de 17/02/2014 (12:09:30 UTC).

44 – Esta partilha de herança, que ocorreu no dia 17/02/2014, foi realizada para que, nesse mesmo dia, fosse possível vender os imóveis que os aqui Recorrentes adquiriram livres de ónus ou encargos, como resulta do extraído dos documentos com o n.º 3, n.º 1 e n.º 2, juntos com articulado de contestação dos aqui Recorrentes – Certidão de Título de Compra e Venda e Certidões do Registo Predial, nestas últimas mediante Ap. ...95 de 17/02/2014 (16:24:53 UTC).

45 – Ora, mesmo quando na sentença recorrida o tribunal a quo diz que «Quanto à concreta proveniência e destino dos prédios descritos em 4.1.1. e 4.1.2. (…), tal foi devidamente explicado, (…) pela testemunha DD, irmã da Autora, (…).», e que «Quanto à concreta servidão, explicou que a mesma foi construída com vista a dar passagem para as duas casas e que sempre foi assim, sendo que o caminho era apenas utilizado pela família para acesso aos prédios.», deveria o tribunal a quo ter considerado que, pelo menos desde 17/02/2014, para efeitos da usucapião, a posse encontra-se interrompida.

46 – Isto é, desde a escritura de partilhas.

47 – Pelo que, nesta matéria, se impunha ao tribunal a quo não ter dado como provado o facto 4.1.13. da sentença recorrida.

48 – Razões pelas quais deverá ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogada a douta sentença recorrida, assim não sendo reconhecida a servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do prédio registado a favor da Recorrida, absolvendo-se os Recorrentes das condenações que nela vêm descritas.

Foi apresentada resposta, na qual a A., atendendo-se aos termos da sentença recorrida, pugnou pela improcedência do recurso.

A Mma. Juíza pronunciou-se sobre as invocadas nulidades, considerando não ocorrerem.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, as questões a tratar consistem em avaliar:

- se a sentença é nula, por ter condenado em objecto diverso do peticionado, ou por ter violado o princípio do contraditório.

- se foi indevidamente julgado o facto impugnado.

III. Estão assentes os factos constantes da sentença recorrida, para a qual se remete (art. 663º n.º6 do CPC), atendendo aos termos da decisão que se segue.

IV.1. Os RR. começam por invocar a nulidade da sentença por ter condenado em objecto diverso do peticionado: alegando que «o pedido não é o de se poder passar, efeito comum a servidões legais de passagem, às constituídas por usucapião ou por efeito de destinação do pai de família: é o de reconhecimento desta última», consideram que tal impediria o reconhecimento da constituição da servidão por usucapião.

2. Estando em causa na acção matéria inserida na livre disponibilidade das partes, vale irrestritamente o princípio do dispositivo na modalidade do princípio do pedido, significando que cabe exclusivamente às partes delimitar os seus interesses e em função deles fixar a actividade decisória requerida ao tribunal, delimitada pelo pedido formulado. Tal pedido representa o limite, quantitativo e qualitativo, da decisão do tribunal (art. 609º n.º1 do CPC). Além disso, o pedido contribui também para definir o âmbito da discussão e por isso condiciona o exercício do contraditório, o qual também concorre, assim, para fundar o princípio do pedido (embora em termos secundários).

Em caso de excesso, a sentença incorre em nulidade (art. 615º n.º1 al. e) do CPC), justamente por não se ater à vontade manifestada pelo A. e também porque, por essa via, afronta o exercício do contraditório, em princípio limitado à pretensão efectivamente apresentada na acção.

3. No caso, o vício reportar-se-ia a uma condenação em objecto diverso do pedido, por ultrapassagem do primeiro pedido formulado. Tal radicaria na circunstância de a A. ter pedido que «seja reconhecida a servidão legal de passagem, pré constituída, nos termos do disposto no artigo 1549.º do Código Civil, entre o prédio da Autora (artigo 870) e o prédio dos Réus (artigo 655), (…)» e ter sido decidido que «Reconhece-se a servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do prédio (…)».

4. O pedido consiste, em termos processuais ou funcionais (aqueles que para aqui interessam), no efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, e assim no tipo de providência jurisdicional pretendida (v. art. 552º n.º1 al. e) do CPC). Distingue-se das razões de direito e bem assim da causa de pedir, que também devem ser alegadas (art. 552º n.º1 al. d) do CPC). A causa de pedir será constituída pelos factos que preenchem a hipótese da norma que sustenta a pretensão, e a qualificação jurídica estabelece as regras que, na perspectiva do autor (ou do tribunal, quando actua oficiosamente), fundam a pretensão. Estabelece-se uma relação directa entre a causa de pedir e a qualificação porque os factos que integram aquela são factos jurídicos, que devem preencher uma certa previsão legal[1]. São assim as razões de direito que condicionam os factos a alegar, mas não se confundem entre si[2]. Por sua vez, o pedido é o produto da conjugação da causa de pedir e do direito, numa lógica de «causa-efeito» (na formulação de Paula Costa e Silva) que já revela a diferenciação formal e funcional entre as figuras referidas.

5. Neste sentido, o pedido, embora podendo ter uma coloração jurídica, define-se essencialmente pelo carácter prático-jurídico do efeito que se pretende ver afirmado, imposto ou reconhecido, por consistir num certo resultado prático que não é irrelevante para o direito. No caso, esse efeito reconduz-se no essencial à afirmação da servidão de passagem com as características alegadas. É esta a imposição judicial requerida. As menções legais envolvidas no pedido não são necessárias e são em rigor indevidas no sentido de que elas matizam assim o pedido mas não o integram, pois fazem antes parte da alegação de direito que precede e sustenta o pedido, e porque a afirmação do direito é factor da decisão mas não elemento do dispositivo (do que é imposto pela decisão). Por isso refere A. Anselmo de Castro que, no objecto mediato do pedido (a consequência jurídica material que se pede ao tribunal), o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendem alcançar, não se integrando no pedido a qualificação jurídica[3].

Aliás, de outro modo poderia afrontar-se a regra do art. 5º n.º3 do CPC que garante ao tribunal liberdade na indagação e aplicação do direito[4]. Poderia era colocar-se a questão de saber se a parte pretenderia restringir os fundamentos admissíveis da sua pretensão; esta questão não foi colocada e já intersecta os fundamentos jurídicos da decisão; de qualquer modo, o que importa reiterar aqui é que esta seria uma restrição dos fundamentos (mormente jurídicos) do pedido, e não propriamente do pedido, pois, repete-se, este restringe-se ao efeito pretendido, não incluindo a sua qualificação [sendo que a A. também não manifestou aqui, naturalmente, qualquer oposição].

Assim, o que a A. fez foi apenas transferir para o pedido, ou nele reflectir, parte da alegação jurídica, o que não será o procedimento formal mais correcto, mas não concorre para delimitar aquele pedido de forma estanque. Veja-se que a A. refere, no pedido, que pretende ver reconhecida uma servidão legal de passagem. Como se sabe (e a sentença recorrida refere), discute-se se a servidão constituída por destinação de pai de família tem natureza legal ou voluntária. Levando à letra a menção, teríamos então que, caso se afirmasse que a servidão tem natureza voluntária, e tal se afirmasse no dispositivo da sentença (substituindo a menção à servidão legal pela menção à servidão voluntária), ocorreria uma mutação do pedido. O que não se mostra obviamente ajustado. O mesmo vale para a menção «nos termos do disposto no art.º 1549 do CC»: a sua substituição não altera os contornos da tutela judiciária pretendida; muda, isso sim, o seu suporte jurídico. Continua a ser o mesmo o pedido, mas com diferente fundamento jurídico. E a modificação deste não constitui modificação do pedido, mesmo quando, como no caso, se mencione esse suporte jurídico no pedido. Aliás, se a sentença proferida apenas deixasse cair a menção jurídica referida[5], e decidisse com base na usucapião, não era possível afirmar que condenara em coisa não pedida. Ao invés, tornava-se era evidente que a questão não tem a ver com a decisão, mas com o conhecimento de uma nova base jurídica (qualificação) em função de outra causa de pedir (que a sentença recorrida considerou ter sido também alegada) para sustentar o mesmo pedido, o que remete justamente para uma alteração da qualificação jurídica (e dessa forma para o segundo vício invocado pelos recorrentes), e não para um vício do dispositivo, por condenar em objecto distinto. Em termos materiais, isto é, em termos de tutela concreta requerida, de efeito prático-jurídico visado, o pedido e o decidido coincidem. O que difere são os seus fundamentos. Como se refere em Ac. do STJ, «o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico»[6]. E é esta distinção entre o pedido e o seu suporte jurídico que permite, aliás, que o pedido, sem perda da sua identidade, seja adaptado àquele fundamento (na correntemente denominada convolação do pedido), assim como permite que ele se mantenha mas com o suporte de diferente enquadramento jurídico.

Aliás, e por isso, a não ser assim existiria quando muito uma lícita convolação da pretensão [na convolação «altera-se o efeito jurídico-material ou uma forma de tutela não inteiramente coincidente com o conteúdo da pretensão deduzida»; é também essencialmente uma questão de qualificação jurídica – V M. Mesquita, RLJ143/144] – o que parece, contudo, forçado afirmar no caso porque o efeito visado é idêntico na pretensão e na decisão (reconhecimento da servidão); esta identidade exclui a existência de verdadeira convolação reportada ao pedido.

É certo que um e outro fundamento da pretensão podem conhecer diferenciações de regime (v.g. a questão da extinção, ou não, da servidão constituída por destinação de pai de família por desnecessidade) mas também aqui se trata de questão distinta da discutida (questão de regime, não de identidade do pedido, e questão aliás que também se coloca nas alterações apenas da qualificação jurídica, ou da convolação, sem que tal constitua obstáculo quer ao poder de conhecimento do tribunal, quer à licitude da convolação).

Em suma, a miscigenação do pedido e dos argumentos jurídicos que o sustentam não deve conduzir a ver nestes ainda um elemento do pedido, já que estão sujeitos a regimes diversos e têm funções igualmente distintas. O que também se comprova pelo facto de tal qualificação jurídica não condicionar a litispendência ou o caso julgado: seria a causa de pedir e o pedido, mas este despido de qualificações jurídicas, que condicionariam aqueles institutos. Por isso que se a acção fosse repetida com pedido idêntico mas a autora eliminasse a menção, nesse pedido, ao fundamento jurídico (ou aditasse um outro fundamento jurídico), não deixaria de ocorrer a identidade do pedido relevante para o art. 581º n.º3 do CPC, e se simultaneamente mantivesse a causa de pedir, existiria caso julgado[7].

Mesmo quando se refere que o pedido pressupõe uma situação jurídica subjectiva não se pretende impor a qualificação jurídica no próprio pedido mas apenas reportar qual o suporte da providência prática requerida ao tribunal.

Já saber se a modificação do suporte legal da pretensão se mostrava ajustada aos termos da alegação e aos contornos do direito afirmado é outra questão (não colocada, aliás, no recurso), que não interfere com este juízo de identidade do pedido

Donde não ocorrer a nulidade invocada quanto ao objecto da condenação.

6. Em segunda linha, invocam os recorrentes a violação do princípio do contraditório por a sentença ter conhecido um fundamento de procedência da acção sem previamente ter garantido a actuação do contraditório, constituindo-se assim numa decisão-surpresa.

O tribunal tem liberdade para qualificar os factos alegados e decidir de acordo com o direito, sem subordinação às alegações das partes (art. 5º n.º3 do CPC). Tem, contudo, que simultaneamente garantir o respeito pelo contraditório, entendido aqui como o direito a discutir qualquer questão de direito que possa repercutir-se na decisão de mérito, e assim no direito a influenciar licitamente o desenvolvimento do processo e o sentido da decisão, e que funciona como garantia da igualdade das partes (de meios, máxime de armas, e de posições) e da disponibilidade de uma defesa efectiva (art. 3º n.º3 do CPC)[8] - implicando aquele contraditório a obrigação de o juiz facultar às partes a possibilidade de aduzirem as suas razões perante uma situação e/ou enquadramento legal com que não tivessem podido razoavelmente contar.

Conhecendo o tribunal uma «questão de direito» (no sentido das normas jurídicas que aplica ou, em certos casos limite, da interpretação normativa que adopta) oficiosamente, e portanto sem que tal questão tenha sido colocada por uma (ou ambas) das partes, se não tiver previamente adoptado conduta ajustada a permitir às partes discutir tal questão, estas serão, em princípio, surpreendidas pela decisão. Donde a decisão-surpresa, obtida sem contraditório.

Não obstante, são ainda possíveis duas formas de entender a violação do contraditório (ou o alcance do conceito de decisão-surpresa). Para uma, só haveria decisão inovatória surpreendente (com inerente violação do contraditório) quando a questão, além de não ter sido expressamente suscitada, também não fosse previsível, não sendo possível à parte que dela se apercebesse e a discutisse, ou não lhe sendo exigível antecipar a possibilidade de tal questão ser equacionada (mormente pela sua originalidade ou radical diferenciação face à perspetiva expressa no processo). Para outra, e para além dos casos de manifesta desnecessidade a que se refere o art. 3º n.º3 do CPC (residuais e restritos), qualquer questão de direito não suscitada e discutida pelas partes só poderia ser conhecida pelo juiz depois de este admitir as partes a sobre ela se pronunciarem, como garantia mínima e máxima do contraditório, independentemente do carácter inovador ou não expectável, ou não, da questão[9].

7. No caso, entende-se que existe uma decisão-surpresa. Com efeito, a questão da aquisição por usucapião reconduz-se à invocação de novas regras jurídicas que, ajustadas aos factos já alegados (não há alteração de factos, pelo que o problema aqui em discussão não supera os limites da «questão de direito»), permitem o reconhecimento da existência da servidão de passagem. Essas novas regras (ou o instituto jurídico em causa) surgem pela primeira vez na sentença, sem terem sido objecto de discussão prévia a essa sentença, como deriva do teor dos articulados e das posições que foram sendo assumidas no processo pelas partes, e sem que às partes tenha sido dada a possibilidade expressa de a discutir. E surge de forma surpreendente, no sentido de não expectável, porque, a partir da posição da A. (e pese embora esta tenha alegado factos possessórios), não era antecipável ou expectável que a decisão se desviasse do fundamento jurídico invocado. A partir apenas da referência aos factos possessórios na petição inicial, e tendo em conta o estreitamento da alegação jurídica da A. (sempre direcionada em sentido diverso ao da usucapião), a relevância jurídica de tais factos não parece antecipável. Ponto onde a circunstância de a A. ter repetido esse fundamento no próprio pedido (indevidamente mas de forma que condiciona o destinatário do acto postulativo[10]) constitui dado que tende a condicionar e consolidar a perspectiva das partes (sobretudo dos RR.) sobre o assento jurídico da pretensão, e tende dessa forma a revelar o carácter inusitado e não antecipável (não previsível) da inovação jurídica empreendida.

Existe assim uma inovação jurídica tardia, lícita em si face às regras processuais (citado art. 5º n.º3 do CPC ) mas que não parece ajustar-se ao respeito pelo contraditório (ou ao menos pela audição) imposto pelo também referido art. 3º n.º3 do CPC – mesmo do ponto de vista da concepção mais restritiva da decisão-surpresa, e que se julga mais ajustada [sendo que também não ocorrem outros limites externos por vezes invocados contra o exercício do contraditório, a saber, ter a audição já sido assegurada de outra forma, ou não poder essa audição influir na decisão[11]].

8. Cabe ainda fixar o enquadramento jurídico do vício, questão sobre a qual são possíveis essencialmente três posições[12]. Uma primeira, tende a evidenciar o vício processual e a sujeitá-lo às regras da patologia do próprio procedimento: existiria a omissão de um acto legalmente devido (que podia influir na decisão da causa), que a decisão-surpresa permite revelar mas que existiria antes e com independência dela, sujeitando-se assim ao regime do art. 195º n.º1 do CPC, devendo ser o vício invocado no prazo geral (10 dias) e nos termos do art. 199º n.º1 do CPC. Uma segunda posição continua a partir da afirmação da existência de um vício processual prévio à decisão, nos termos do citado art. 195º n.º1 do CPC, mas considera existir uma conexão directa entre o vício e a decisão (é esta que desencadeia o vício) de modo que aquela nulidade fica coberta ou sancionada pela decisão (mormente pela existência de um «julgamento implícito») e assim deverá ser invocada no recurso da decisão e no prazo de interposição deste recurso. Uma terceira posição considera que o vício só surge com a decisão (ou porque esta está viciada, ou porque consome o anterior vício) e, sendo esta que está viciada (por excesso de pronúncia, conhecendo questão que, sem o contraditório prévio, não poderia conhecer), fica subordinada ao regime do art. 615º n.º1 al. d) do CPC. O desvalor existente radicaria no acto (a decisão), não na omissão (da audição)[13] [apenas a título exemplificativo, para dar conta da dissensão existente, a favor da primeira solução podem ver-se Acs. do TRP proc. 14227/19.8T8PRT.P1, do TRC proc. 3550/17.6T8CBR.C1 ou 1250/20.9T8VIS.C1ou do TRL 286/09.5T2AMD-B.L1-1; também J. L. de Freitas e I. Alexandre parecem inclinar-se neste sentido (CPC Anotado, Vol. 1º, Almedina 2021, pág. 32[14]); a favor da segunda, Ac. do STJ proc. 5384/15.3T8GMR.G1.S1, do TRG proc. 533/04.0TMBRG-K.G1 ou 1299/17.9T8CHV-A.G1 ou do TRP 1378/14.4TBMAI.P1 ou do TRL 2898/17.4T8CSC-B.L1-7, e ainda R. Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL 2020, pág. 91, no que à decisão-surpresa atinente à qualificação jurídica, como ocorre no caso, respeita; a favor da terceira, e para além dos escritos do Prof. T. de Sousa (disponíveis no blog do IPCC, incluindo no CPC anotado que ali disponibiliza), Ac. do STJ 1937/15.8T8BCL.S1, 2019/18.6T8FNC.L1.S1, 392/14.4T8CHV-A.G1.S1, 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1 ou 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, ou do TRL 6141/17.8T8ALM.L1.L1-6 (todos os Ac. em 3w.dgsi.pt), ou A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 25 e ss., e A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, CPC Anotado, Almedina 2023, pág. 792].

9. Entende-se, neste momento, que esta última solução é a que melhor corresponde ao sentido do vício diagnosticado. A ênfase estará não na omissão prévia mas na impropriedade da decisão ao conhecer do que, nas condições em que é editada, lhe estava vedado. Será um vício genético, que surge com a decisão e se esgota nela. Com efeito, na omissão típica, o acto omitido é revelado pelo acto seguinte, dado aquele acto omitido constituir acto legalmente imposto: a mera prática do acto seguinte demonstra que faltou um momento prévio na lógica legal do procedimento (enquanto sequência de actos). Em situações como a vertente, não é a decisão, como acto do processo, que revela a omissão, mas o conteúdo da decisão (ou melhor, um certo conteúdo da decisão) que revela o desrespeito pelas regras. Neste sentido, o desvalor insere-se na própria decisão dado o concreto conteúdo adoptado. Ou seja, como a audição das partes neste caso não constitui um acto típico do procedimento (ele é meramente eventual), não é tanto a sua falta como a decisão indevida que suporta o vício. Por outro lado, o vício só se torna patente pelo conteúdo da decisão, que o constitui. Nesse sentido, a decisão conforma o vício, por ser surpreendente para as partes, não por ter prescindido do contraditório. O exercício do contraditório exclui o carácter surpreendente da decisão, e assim o vício que a afecta.

A afirmação de que é a própria lei a impor o conhecimento oficioso da questão; que não é o conteúdo deste conhecimento oficioso que se questiona no recurso; e que a decisão, considerada nos seus elementos estritamente formais, é irrepreensível, corresponde a final a uma questão de perspectiva. Porque se se considerar que «o perfil de garantia» do art. 3º n.º3 do CPC vincula o juiz e integra o âmbito da decisão (delimitando a sua extensão sem contraditório), então já não se pode falar da imposição do conhecimento oficioso per se (porque esta imposição não é absoluta em si), e o conteúdo da decisão não é irrepreensível.

Admite-se que a solução não é inteiramente à prova de reparo. O desacerto entre as várias soluções propostas e a divisão da jurisprudência e da doutrina comprova-o. E bem assim a forma como L. Correia de Mendonça, excluindo todas as soluções referidas, propõe um quarto caminho que reconduz a uma nulidade extraformal da sentença por violação do contraditório enquanto direito processual fundamental – que se reputa desnecessária, dada a solução formal encontrada, sem necessidade de novas vias dogmáticas. Mas entende-se que esta é a solução que melhor se ajusta aos termos da questão.

Tal solução não acolhe o fundamento legal invocado pelo recorrente mas pode ser aqui conhecida, ao abrigo do citado art. 5º n.º3 do CPC – e nesta sede sem violação do contraditório porque, de um lado, os recorrentes colocaram a questão logo no âmbito da nulidade da sentença (e não da omissão prévia) e, de outro lado, a extensão e actualidade da controvérsia (e a sua visibilidade) tornava inevitável a discussão da questão e claramente antecipável a possibilidade de ocorrer diferente enquadramento jurídico.

10. Resta apreciar os efeitos da nulidade diagnosticada.

Pese embora o art. 665º n.º1 do CPC contenha uma regra de substituição, impondo ao tribunal de recurso avaliar o mérito da apelação em caso de verificação de nulidade da sentença, a solução não pode ser uniforme, havendo que avaliar os contornos do caso, pois o objecto da nulidade ou o seu fundamento podem impor solução diversa. Aquele regime pressupõe que o vício só afecta a decisão e que, afirmado tal vício, se retoma o procedimento corrente, com o conhecimento do mérito[15], o que nem sempre se verifica. E é o que se entende ocorrer com a nulidade derivada da decisão-surpresa, ao menos nos casos como o vertente em que o recorrente prescindiu de discutir os contornos jurídicos do caso no recurso (impugnando apenas, de forma que disse ser subsidiária, certo facto provado), pois prosseguir com o conhecimento do mérito equivaleria a manter a omissão do exercício do contraditório, mostrando-se tal incoerente com o vício encontrado: censurando-se o acto por não ser precedido de contraditório, prossegue-se na avaliação continuando a desse contraditório se prescindir. De certo modo, o vencedor continuava vencido. Ora, «não sendo de exigir à parte interessada que alegue as concretas deduções defensivas que teria utilizado se o acto omitido (de actuação do contraditório) tivesse sido praticado e que se tivessem sido devidamente levadas em conta pelo juiz teriam podido razoavelmente conduzir a uma decisão diversa daquela que foi realmente tomada», nem o tendo feito os RR. no seu recurso como se disse, tem que se lhes garantir a possibilidade de o fazer no momento processual adequado para assim eliminar o juízo negativo oposto ao procedimento adoptado.

A única forma de recuperar a regularidade processual e material consiste em manifestar a nulidade da sentença, sem substituição, impondo-se o cumprimento do regime do art. 3º n.º3 do CPC antes de nova decisão de mérito. É a própria natureza e fundamento do vício diagnosticado que impõe esta solução.

11. Assim, fica prejudicada a avaliação do restante fundamento (também tido por subsidiário pelos recorrentes) do recurso (fundamento este que supunha a subsistência da sentença).

12. Atendendo a que os recorrentes também decaem, e atendendo ao relevo relativo das pretensões (que também não são redutíveis a nenhuma expressão aritmética imediata), considera-se ajustado distribuir as custas pelos recorrentes e pela recorrida na proporção de 30%-70%, respectivamente (art. 527º n.º1 e 2 do CPC) – embora sem prejuízo do decidido em sede de apoio judiciário (que dispensa o pagamento mas não isenta da responsabilidade tributária).

V. Pelo exposto, decide-se:

- julgar improcedente a invocação da nulidade da sentença recorrida por condenar em objecto diverso do peticionado;

- julgar verificada a nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia (art. 615º n.º1 al. d), 2ª parte, do CPC), que se declara, determinando-se que, antes de ser proferida nova sentença, se proceda à audição das partes imposta pelo princípio do contraditório;

- julgar prejudicada a apreciação do fundamento sobrante invocado no recurso.

Custas pelos recorrentes e pela recorrida na proporção de 30 (trinta) por cento – 70 (setenta) por cento – sem prejuízo do decidido em sede de apoio judiciário.


«VOTO DE VENCIDO»

Discordo da decisão que fez vencimento e que decidiu ter existido excesso de pronúncia do tribunal a quo por violação do princípio do contraditório e, em consequência, anulou a sentença recorrida, para que a primeira instância cumprisse o contraditório prévio a nova decisão.

Em primeiro lugar, não se aceita que a decisão proferida nos autos constitua uma decisão surpresa, com fundamento na diversa qualificação jurídica dos factos pelo tribunal recorrido (permitida pelo artº 5, nº3 do C.P.C.).

Denote-se que a A. intentou esta acção com vista ao reconhecimento de uma servidão legal de passagem, invocando para o efeito duas causas de pedir: a primeira vertida nos artºs 8 a 13 e 19 da sua p.i., elencando actos possessórios sobre a aludida servidão; a segunda, vertida nos artº 14 a 18 da sua p.i., elencando a existência de uma serventia já existente em prédio do mesmo dono, posteriormente separado em dois prédios propriedade da A. e do R. Pese embora a A. tenha concluído pelo pedido de “reconhecimento de uma servidão legal de passagem, pré constituída, nos termos do disposto no art.º1549 do C.C., entre o prédio da autora (artigo 870) e o prédio dos réus (artigo 655)”, deve entender-se incluído no pedido formulado o reconhecimento de uma servidão legal de passagem, constituída também com base no primeiro fundamento, não existindo, conforme reconhece a decisão que fez vencimento, decisão ultra petitum.

A necessária observância do princípio do dispositivo, não obsta a que em determinados casos sejam apreciados pedidos implícitos[16], ou seja, que o tribunal atenda à real pretensão deduzida nos autos, embora imperfeitamente expressa. A pretensão deduzida nos autos é manifestamente o reconhecimento de uma servidão legal de passagem, entre o prédio da autora (artigo 870) e o prédio dos réus (artigo 655).  

Por assim ser, foram estes factos alegados pela A. e expressamente impugnados pelo R., incluídos no primeiro tema de prova e equacionado como objecto do litígio a “existência de uma servidão predial de passagem a favor do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da freguesia ..., sob o n.º ...35 (Autora), situada entre este prédio e o prédio urbano dos Réus, descrito na Conservatória do Registo Predial da freguesia ..., sob o n.º ...02, onerando este;”.

Sobre estes factos incidiu a prova produzida pelas partes, são estes os factos (parcialmente) impugnados pelo apelante na sua alegação de recurso e sobre estes factos se pronunciou o tribunal a quo, deferindo o reconhecimento de uma servidão de passagem constituída por usucapião, sem que se veja que a decisão efectue uma diversa qualificação jurídica dos factos que apurou nos autos, não equacionada, nem prevista pelas partes.

Com efeito, a existência de uma decisão surpresa pressupõe que o magistrado judicial adoptou solução que não é conforme ao alegado “pelas partes na sua substancialidade ou na sua adjetividade, isto é, se a decisão não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos – novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão – que poderiam trazer alguma luz sobre a “questão nova” oficiosamente assumida pelo tribunal, então as mesmas terão o direito de tentar refazer a atividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório”[17], por forma a cumprir o imperativo constitucional da proibição da indefesa.

Mas já não se pode considerar que uma decisão constitui decisão-surpresa quando a decisão e os seus fundamentos estejam contidos no pedido formulado e se situem dentro do abstratamente permitido pela lei, que possa ser admitido como possível e em relação ao qual, consequentemente, a parte podia ter-se pronunciado. Ou seja, só constitui decisão surpresa aquela em que o magistrado efectua uma “qualificação substancialmente inovadora que as partes não pudessem ter considerado”.[18]

No caso em apreço, tendo em conta a configuração fáctica e jurídica dada à causa, não se vislumbra que o tribunal tenha considerado uma qualificação substancialmente inovadora, não considerada pelas partes, em relação à qual não tivessem podido exercer o contraditório e que, nessa medida, se impusesse que, previamente à decisão, fossem as partes ouvidas nos termos previstos no artº 3, nº3 do C.P.C.

Não existe assim, em nosso entender, qualquer decisão surpresa, não sendo nula a sentença proferida nos autos por excesso de pronúncia, como o considerou a posição que fez vencimento.

Mas, ainda que assim não fosse e, admitindo como possível que a decisão proferida se pudesse considerar como decisão surpresa, nula por via do disposto no artº 615, nº1, al. d), 2ª parte do C.P.C., impunha-se a este tribunal que, em cumprimento do imperativo decorrente do artº 665, nº1 do C.P.C., conhecesse do objecto da apelação.

A parte recorrente veio, para além da arguição da nulidade, impugnar a constituição de uma servidão de passagem por usucapião, com impugnação da matéria de facto (conclusões 41 a 45). Entende-se assim, em consonância com posição por nós já defendida nos procs. 577/13.0TNLSB.L1 e 23267/17.0T8LSB.L1 do Tribunal da Relação de Lisboa que mesmo em caso de nulidade da decisão recorrida, tendo existido já pronúncia das partes nas suas alegações recursórias, a devolução dos autos à primeira instância, para proferir nova decisão como consequência da nulidade (inexistente em nosso entender), constituiria em si a prática de um acto inútil, em violação do preceito previsto no artº 130 e 665 do C.P.C., sem salvaguarda do necessário princípio da celeridade e aproveitamento dos actos processuais que este último preceito visou salvaguardar.

Nesta medida, apreciaria o mérito do recurso, conhecendo da impugnação da matéria de facto e dos demais termos da apelação.

Cristina Neves

(2ª adjunta)


***


Notifique-se.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).

           

Datado e assinado electronicamente

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.


[1] Esta é o correspondente abstracto da causa de pedir.
[2] Discute-se se a qualificação jurídica integra a causa de pedir, mas a questão não foi colocada (embora também se considere que a resposta ajustada é negativa) nem de todo o modo impede a diferenciação exposta.
[3] In Direito Processual Civil Declaratório, Almedina 1981, vol. I, pág. 203.
[4] Falando-se a propósito num princípio de exaustão (Teixeira de Sousa), impondo ao tribunal o dever de esgotar todas as possíveis qualificações dos factos alegados pelas partes.
[5] Como era manifestamente lícito fazer, dado que a menção não estaria fundada nos factos apurados e no direito aplicado, nos termos em que a sentença os avaliou (e que aqui se não discutem, sendo tomados em si).
[6] Proc. 842/10.9TBPNF.P2.S1in 3w.dgsi.pt.
[7] Como refere T. de Sousa, «o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado» (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex 1997, pág. 576.
[8] Embora, para outros, esteja em causa antes (ou também) o dever de colaboração, na vertente do dever de consulta (e na verdade o direito ao contraditório leva envolvido um direito à audição e assim um dever funcional do tribunal em ouvir as partes; mas em situações como a vertente parece ser o princípio do contraditório que avulta, sendo o direito de audição apenas seu reflexo ou seu aspecto executivo).
[9] Sobre isto, por todos, v. Luís Correia de Mendonça, in O Contraditório e a proibição das decisões-surpresa, pág. 198 e ss. (ROA, disponível online em https://portal.oa.pt/media/135588/luis-correia-de-mendonca.pdf).
[10] Como acto formal (e sujeito às regras de interpretação do acto jurídico negocial e formal), os termos da alegação tornam-se em princípio determinantes na interpretação do acto, por tender a prevalecer o seu sentido objectivo.
[11] Em rigor, o primeiro caso consiste no exercício, alternativo, do contraditório, e o segundo integra-se no conceito da manifesta desnecessidade.
[12] Que transcendem a situação das decisões-surpresa, cobrindo o campo mais amplo da decisão emitida sem cumprimento de acto prévio devido ou imposto (que tem na omissão do despacho de aperfeiçoamento ou na indevida omissão da audiência prévia outros casos de avaliação, estes mais próximos da violação do dever de colaboração).
[13] A exposição é intencionalmente sintética, ajustada aos termos da presente decisão, não atendendo assim às especificidades de entendimentos dentro de cada grupo, nem à forma como a natureza do acto viciado pode impactar o seu regime.
[14] Embora no vol 2º já pareçam admitir outra solução (pág. 739).
[15] Embora prescindindo por vezes, por razões de economia, da pronúncia do tribunal de primeira instância.
[16] No que se reporta à usucapião vide o Ac. do STJ de 08/11/2018, proferido no proc. nº 48/15.0T8VNC.G1.S1, de que foi relatora Rosa Ribeiro Coelho, onde se considerou que a não formulação de pedido de reconhecimento da aquisição por usucapião, não obsta ao seu conhecimento, uma vez que nada obriga a que “a invocação judicial da usucapião tenha de ser feita através de uma ação onde, concomitantemente, se formule o pedido do seu reconhecimento, pois não há razões para excluir a possibilidade de essa invocação ser feita apenas através da alegação dos factos que a revelem e para servir como causa de pedir de um outro pedido que a pressuponha ou como elemento integrador da legitimidade de quem na ação a invoca.”
[17] Ac. do STJ de 27/09/2011, proferido no proc. nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1, de que foi relator Gabriel Catarino.
[18] Ac. do STJ de 08/09/2020, proferido no proc. nº 602/18.9T8PTG.E1.S1, de que foi relator Jorge Dias.