Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/21.7PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: QUESTÃO PRÉVIA
FALTA DE ELEMENTO SUBJETIVO
MÉRITO DA AÇÃO PENAL
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 308º, N.º 1, 311º, N.ºS 2 E 3, AL. D), 338º, N.º 1, E 123º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: I. Com a prolação do despacho previsto no art.º 311º do CPP esgota-se o poder jurisdicional do Tribunal relativamente às questões ali elencadas.
II. A eventual falta de factos consubstanciadores do elemento subjetivo do crime não pode ser apreciada no momento processual previsto no art. 338º, nº 1, do C.P.P., uma vez que não se trata de qualquer questão prévia ou incidental que obste ao conhecimento do mérito da causa.

Sumário elaborado pela Relatora
Decisão Texto Integral: ***

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1 – A assistente deduziu acusação particular contra AA imputando-lhe a prática em autoria material, de 3 (três) crimes de injúria, p. e p. no artigo 181.º do CP, agravados nos termos do artigo 183.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma legal.

De tais crimes foi a arguida pronunciada por despacho que reproduz os factos constantes da acusação particular de fls. 153 e 154.

Remetidos os autos para a fase de julgamento foi proferido o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal - (ref. 89887860 CITIUS.

No início da audiência de julgamento, foi proferido o despacho recorrido “…para apreciar questão prévia nos termos do artº 338º, nº 1 do Código de Processo Penal.”, que se transcreve:

“Existe questão prévia para apreciar nos termos do artº 338º, nº 1 do Código de Processo Penal.

A arguida AA foi pronunciada pela prática em autoria material e sob a forma consumada, de três crimes de injúrias, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal, e agravados nos termos do artigo 183º, nº1, alínea b) do mesmo diploma legal, com os fundamentos constantes do despacho de pronúncia com a Refº 89545664, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 

Numa análise mais impressiva do teor do despacho de pronúncia que reproduz integralmente os factos constantes da acusação particular de fls. 153 e 154, verifica-se que dele não constam os factos relativos à descrição da voluntariedade e da imputação a título doloso, sendo que tais elementos constituem os pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena, na noção contida no artigo 1º, alínea a) do Código de Processo Penal.

Esta exigência processual é compreensível, pois os poderes de cognição – e, consequentemente, de decisão – do tribunal estão limitados pelo princípio de vinculação temática quanto ao objecto (essencial) do processo, tal como definido, no caso dos autos, na pronúncia.

Como é sabido, no processo penal está em causa não a verdade formal, mas a verdade material, entendida numa dupla perspectiva: por um lado, trata-se de uma verdade subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela; por outro, uma verdade que, não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser, antes de mais, uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida – cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Princípios gerais de processo penal, 193/4.

No caso em concreto, tal desiderato processual é ainda mais premente, dado tratar-se de um tipo legal de crime de natureza dolosa, ou seja, apenas a conduta dolosa é punida e não, já, a negligente, cfr. art 13º do Código Penal, donde o elemento subjectivo, no que à situação interessa, apenas se pode traduzir no dolo.

Ora, não se encontrando descritos na pronúncia os factos integradores do dolo – como é o caso – desconhecendo-se, por um lado o nexo de imputação dos factos, e por outro a modalidade do dolo, que a pronúncia tem por subjacente, a arguida vê-se impedida de exercer de forma cabal, o seu direito de defesa constitucionalmente consagrado.

Com efeito, sem a descrição dos factos, não existe objecto idóneo à actividade do Tribunal.

Em face do princípio geral “nulla poena sine culpa” consagrado no artº 13º do Código Penal, fica demonstrada a necessidade, a imprescindibilidade, mesmo, de os elementos integradores da culpa (do dolo, no caso do crime de injúria), para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena.

“Os elementos da culpa são a imputabilidade do agente, a sua actuação dolosa ou negligente e a inexistência de circunstâncias que tornem não exigível outro comportamento” – cfr. Eduardo Correia, in Direito Criminal, I, 322.

Destarte, conclui-se pela necessidade de a pronúncia dever conter factos que permitam formular um juízo de censura ético-jurídico ao arguido, isto é, factos donde se retire a vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas características fácticas objectivas (o dolo como elemento subjectivo constitutivo do tipo legal do crime de injúria).

De volta à pronúncia, por reporte aos factos descritos na acusação – fls. 153 e 154 - apenas se refere de forma conclusiva e genérica que “11.º Com os referidos comportamentos, a arguida ofendeu a assistente, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe palavras que atentaram contra a sua honra e consideração,” e que “14.º A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

A pronúncia não cuidou de à acção, típica e ilícita, descrever os elementos integradores da vontade e da imputação a título doloso e que, no caso concreto, ficariam satisfeitos, por exemplo, com a seguinte proposta de alegação: “Com os referidos comportamentos, a arguida quis ofender a assistente, e conseguiu, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe palavras que atentaram contra a sua honra e consideração”. 

Ou seja, a pronúncia não contém a narração de todos os factos integradores do elemento do dolo, sendo que já não é possível a sua rectificação ou aperfeiçoamento, seja a convite do tribunal, ou oficiosamente em sede de audiência de julgamento, conforme resulta do Acórdão Uniformizador do STJ nº 1/2015 de 27 de Janeiro, in DR, 1ª série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015, que embora reportado à acusação particular, se entende aqui também aplicável ao caso concreto, uma vez que a pronúncia em exame reproduz integralmente o teor do libelo acusatório particular de fls. 153/154, e que fixou a seguinte jurisprudência: “A falta de descrição, na acusação (leia-se na pronúncia) dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.”. Por outro lado, a falta de narração dessa factualidade leva ainda a que se considere, em consequência, que os factos vertidos na pronúncia não constituem crime. O que determina a conclusão de não serem as condutas descritas na pronúncia subsumíveis nas normas incriminadoras aí identificadas.

Pelo exposto, o tribunal considera não existir objecto processual penal e, consequentemente, declara a ausência de semelhante pressuposto processual, absolvendo a arguida da instância criminal e cível - cfr. artigos 608°, n. ° 1, 576°, n.ºs ° 1 e 2, 578°, 579º e 278°, n. ° 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil “ex vi” do artigo 4° do Código de Processo Penal.

Em consequência, dou sem efeito a audiência de julgamento que se encontrava agendada para hoje.

Notifique.”

*

2 – Deste despacho a assistente interpôs recurso, cuja motivação termina com a formulação das seguintes conclusões:

“1- AA, arguida nos presentes autos vinha acusada (acusação particular) e pronunciada da prática, em autoria material, de 3 (três) crime de injúria, p. e p. no artigo 181.º do CP, agravados nos termos do artigo 183.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma legal, dos quais foi absolvida nos termos do despacho/sentença, ora objecto de recurso, nos termos da qual foi também absolvida a arguida/demandada do       pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante.

2 – Recorre a assistente/ofendida BB por não poder conformar-se com a aliás douto despacho/sentença absolutório proferido, em primeira instância, pelo Juízo Local Criminal – J... da Comarca ....

3 – Manifestando a sua absoluta discórdia pela conclusão do tribunal a quo.

4 – Constata-se pela leitura da fundamentação do despacho/sentença que absolveu a arguida, que a mesma não foi submetida a julgamento pela alegada ausência de factos integradores dos elementos subjectivos do tipo.

5 – Ocorre que nos presentes autos, na acusação particular, a qual foi integralmente reproduzida no despacho de pronúncia, foram alegados esses factos, desde logo nos artigos 11.º e 14.º da acusação particular nos termos dos quais é alegado que “Com os referidos comportamentos, a arguida ofendeu a assistente, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe palavras que atentaram contra a sua honra e consideração,” e que “A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”.

6 – Pelo que, não se poderia estar mais em desacordo com a decisão tomada pelo tribunal a quo, pois o elemento do dolo estava factualmente preenchido, estando assim reunidas as condições para submeter a arguida a julgamento.

7 – Nos termos do despacho absolutório, objecto de presente recurso, foi decidido pelo tribunal a quo inexistir objecto processual penal, em virtude “do teor do despacho de pronúncia que reproduz os factos constantes da acusação particular de fls. 153 e 154, verifica-se que dele não constam os factos relativos à descrição da voluntariedade e da imputação a título doloso, sendo que tais elementos constituem os pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena, na noção contida no artigo 1.º, alínea a) do Código Processo Penal.”

8 – Ocorre que a assistente no seu “libelo” acusatório narrou os factos criminalmente censuráveis, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção da arguida nos mesmos. Como ainda apresentou e requereu a correspondente produção de prova, cumprindo assim, o disposto no artigo 285.º do CPP.

9 – Como ainda concluiu então a ofendida/assistente, aqui recorrente, que, por todos os factos expostos na acusação a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Considerando que a a locução “bem saber o agente ser proibida por lei a sua conduta” decorre do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito típico (dolo do tipo).

10 – Pois no crime doloso – como é o caso do crime objecto dos presentes autos – da acusação ou/e do despacho de pronúncia há-de constar necessariamente pela sua relevância para a possibilidade de imputação do agente ao crime, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão de culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

 11 – Ora, no caso dos presentes autos, não há qualquer margem para dúvida de que, como já supra referido, é alegado na acusação particular, e reproduzido no despacho de pronúncia, que a arguida agiu livre (afastamento das causas de exclusão de culpa – a arguida pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

12 – Pelo que com os elementos supra referidos, e todos presentes no despacho de pronúncia (refira-se por reprodução da acusação particular), não se está então perante insuficiente factualidade, sabendo através da acusação e do despacho de pronúncia quem, quando e de que forma foram praticados os factos, factos que constituem crime, agindo a arguida com dolo. Pois, repita-se é alegado pela assistente, na sua acusação particular que “(...)a arguida ofendeu a assistente, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe palavras que atentaram contra a sua honra e consideração,” (artigo 11.º) e ainda “(...)agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.” (artigo 14.º)

13 – Pois se ofendeu a assistente, é porque conseguiu concretizar os actos injuriosos e se agiu livre e conscientemente, foi porque assim quis livremente actuar, e em plena consciência de que iria concretizar o seu objectivo de ofender a honra e consideração da assistente, bem sabendo que a sua actuação era proibida e punida por lei.

14 – Sufragando o entendimento, como não podia deixar de ser, de que se encontra cabalmente preenchido o elemento subjectivo do tipo, o dolo do tipo, com a alegação supra transcrita dos artigos 11.º e 14.º da acusação particular e dados integralmente por reproduzidos no despacho de pronúncia, objecto dos presentes autos.

15 – Ora, veio o tribunal a quo, em sede de despacho absolutório dizer que “A pronúncia não cuidou de à acção, típica e ilícita, descrever os elementos integradores da vontade e da imputação a título doloso e que, no caso concreto, ficariam satisfeitos, por exemplo, com a seguinte proposta de alegação: “Com os referidos comportamentos, a arguida quis ofender a assistente, e conseguiu, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe palavras que atentaram contra a sua honra e consideração”. Somos do entendimento de que quando a assistente, em sede de acusação particular, diz que a arguida a ofendeu (artigo 11.º da acusação particular) é porque o conseguiu; e ao alegar que a arguida o fez de forma livre e consciente (artigo 14.º da acusação particular), isto significa que a arguida o quis fazer.

16 – Pelo que, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, entendemos que a proposta de alegação feita em sede de despacho, é só uma forma diferente de dizer a mesma coisa. Cumprindo ambas as alegações, a alegação da acusação particular e a alegação proposta em sede de despacho, o propósito de preenchimento do elemento subjectivo do tipo, o dolo do tipo. Assim, não só a assistente, aqui recorrente, descreveu os factos, factos esses, integradores dos elementos objectivos e subjectivos do tipo, como alegou as disposições legais aplicáveis, sendo perfeitamente inteligível o entendimento de quais os factos que estão em causa, e a razão pela qual a recorrente entende que deve a arguida ser submetida a julgamento (entendimento que foi sufragado pelo Juiz de Instrução Criminal em sede de Instrução, tendo sido, nessa sede, proferido despacho de pronúncia).

17 – O Meritíssimo Juiz do tribunal a quo, ao não submeter a arguida a julgamento, violou o disposto nos artigos 283.º e 285.º ambos do CPP. Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser revogado o despacho recorrido e, em consequência, ser a arguida submetida a julgamento, pela prática dos factos constante da acusação e do despacho de pronúncia.

18 – Deve assim ser proferida decisão que revogue o decidido no douto despacho/sentença recorrido, devendo a arguida ser submetida a julgamento por toda a factualidade vertida na acusação particular e no despacho de pronúncia e os mesmos factos serem submetidos à apreciação de mérito pelo Tribunal de Primeira Instância.

Termos em que, no mais de Direito e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve dar-se provimento ao presente recurso e, consequentemente deverão Vossas Excelências Venerandos Juízes Desembargadores,

a) Proferir decisão que revogue o decidido no douto despacho/sentença recorrido, e, em consequência, ser a arguida submetida a julgamento, pela prática dos factos constante do despacho de pronúncia, e consequentemente ser julgado o pedido de indemnização formulado pela demandante.

 Fazendo Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA!”

*

3 – Respondeu ao recurso o Ministério Público, concluindo:

“1. Veio a assistente, não se conformando com a decisão que, em sede de questão prévia, absolveu a arguida da instância, impugnar a mesma, por recurso, alegando que o Tribunal a quo não valorou os factos aduzidos em sede de acusação particular atinentes aos elementos subjectivos do tipo de ilícito em apreço, pugnando pela submissão da arguida a julgamento.

2. Não obstante, entendemos não lhe assistir razão porquanto, atenta a estrutura acusatória do processo penal, impõe-se que o objeto do processo seja fixado na acusação ou, para o que aqui nos atém, no despacho de pronúncia, pois que é este que delimita o thema probandum e fixa o objecto do processo em ordem a permitir a organização da defesa.

3. Apenas com a obediência a tal requisito fica a actividade cognitiva e decisória do tribunal delimitada.

4. Nos termos do artigo 1.º, alínea a), do Código de Processo Penal, considera-se «crime o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais».

5. A concepção pessoal do ilícito assenta na construção dual do tipo na forma objectiva e subjectiva, sendo que, no que concretamente tange a esta última, o tipo subjectivo do ilícito, na sua forma dolosa, inclui o dolo do tipo e os elementos subjectivos do tipo.

6. Por dolo do tipo entende-se o conhecimento (elemento cognitivo ou intelectual do dolo) e vontade (elemento volitivo do dolo) de realização da acção típica.

7. No caso do crime doloso – como aqueles aqui em causa – do despacho de acusação (leia-se: de pronúncia) há-de necessariamente constar que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

8. E, neste particular, no que tange ao elemento volitivo do dolo, não nos poderemos bastar com a alegação de que se tratou de uma actuação deliberada mas, outrossim, com a descrição do que efectivamente foi querido e aceite pelo agente, isto é: que a arguida quis ofender a honra e consideração da assistente ou que sabia que as expressões utilizadas eram susceptíveis de ofender a honra daquela, nisso se traduzindo a vontade de praticar um facto criminoso.

9. Ora, não encontramos tais elementos no despacho de pronúncia proferido nos autos.

10. Ademais, ante a jurisprudência fixada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20.11.2014, in DR, 1.ª série, n.º 18, de 27.01.2015, ainda que em sede de julgamento ficasse provada a factualidade objectiva referente ao tipo em referência, nunca poderia o Tribunal suprir a omissão do elemento subjectivo.

11. Em conclusão, andou bem o Tribunal a quo quando absolveu a arguida da prática dos três indiciados crimes de injúria de que vinha pronunciada.

Posto isto, face a tudo o quanto foi supra exposto, bem como o demais que V.ªs. Exªs. doutamente suprirão, entende-se que não deverá ser dado provimento ao recurso, e que, apenas mantendo-se a douta decisão proferida, se fará INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!”

4 - O recurso foi admitido por despacho.

5 – O Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“1. Recorre a assistente BB do despacho de 19/10/2023, proferido em acta, que absolveu da instância a arguida AA, que vinha pronunciada pela prática de três crimes de injúria qualificada, fundamentando a decisão no facto da pronúncia não conter a narração de todos os factos integradores do elemento do dolo, não sendo já possível a sua rectificação ou aperfeiçoamento, seja a convite do tribunal, ou oficiosamente em sede de audiência de julgamento.

2. Alega a recorrente, em síntese, que ao contrário do decidido, a formulação contida nos pontos 11 e 14 da acusação particular, vertida para o despacho de pronúncia, explicita suficientemente o elemento subjectivo do tipo – o dolo, pelo que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 283.º e 285.º, ambos do Código de Processo Penal, devendo, por isso, ser revogada e, em consequência, ser a arguida submetida a julgamento.

3. O recurso foi admitido de acordo com as normas processuais aplicáveis e não se verificam circunstâncias que obstem ao seu conhecimento, mantendo-se o regime de subida e o efeito fixado.

4. O Ministério Público na 1ª instância apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.

5. Previamente à questão de fundo posta pelo recurso, saber se a acusação particular contem, ou não, todos os elementos de facto e de direito exigíveis para que uma condenação da arguida possa ocorrer, importa aferir da legalidade do despacho, designadamente se o tribunal podia decidir a causa, antecipando um julgamento sem prévia audiência.

6. Com efeito, no caso foi proferido despacho de pronúncia, pelo que a acusação particular foi judicialmente validada e aceite nos termos em que foi deduzida, tendo-se considerado adequada a fórmula utilizada para descrever o elemento subjectivo do tipo legal em questão.  

7. A decisão de pronúncia faz caso julgado formal sobre os pressupostos processuais, nulidades, irregularidades, questões prévias ou incidentais que tenha apreciado ex professu, não podendo o juiz de julgamento reapreciar estas questões e rever aquela decisão (Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Processo Penal em anotação ao art. 311º, p. 783).

8. Ademais, em 29/11/2022, foi proferido o despacho a que alude o art. 311º, do Código de Processo Penal (ref. 89887860 CITIUS), que recebeu a acusação particular, transmudada em pronúncia, e no qual expressamente se consignou o seguinte:

“O tribunal é absolutamente competente.

Não existem nulidades, questões ou exceções que cumpra apreciar e que obstem ao conhecimento do mérito da causa”.

9. É pacífico entendimento que, proferido este despacho, esgota-se o poder jurisdicional do tribunal em relação às questões ali elencadas.

10. Recebida a acusação, não pode depois o juiz proferir despacho a rejeitá-la, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação do despacho de recebimento (Ac. da Relação do Porto de 10/05/2000, C.J. ano XXV, t. 2, p. 224; Ac. da Relação de Lisboa de 24/03/2010, processo n.º 470/04.8TAOER.L1-3, in dgsi.pt; Ac. da Relação do Porto de 22/02/2023, processo n.º 1254/18.1PRPRT-A.P1, in dgsi.pt).

 11. Neste sentido, ver também os comentários de Oliveira Mendes ao artigo 311º do CPP, in “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição revista, Almedina, 2021, e no “Código de Processo Penal – Comentários e Notas Práticas” dos magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, 2009.

12. É, pois, nosso entendimento que, com a prolação do despacho previsto no art.º 311º do CPP, esgota-se o poder jurisdicional do Tribunal relativamente às questões ali elencadas, pelo que, não ocorrendo qualquer delas, lhe está vedado não receber a pronúncia - e, bem assim, alterá-la, quer em tal momento, quer, por maioria de razão, em momento posterior.

13. Pelo que o despacho recorrido viola o disposto no artº 311º, n.º 1, do Código de Processo Penal, procedendo a uma antecipação do julgamento e pondo fim à causa, devendo por isso ser revogado, e substituído por outro que designe data para julgamento e mantenha a pronúncia incólume até ao julgamento e à prolação da sentença.”

*

Sobre o parecer pronunciou-se a assistente nos seguintes termos e com os seguintes fundamentos:

1.º - A assistente BB adere à fundamentação e à posição do douto Ministério Público, constante do Parecer (do douto Ministério Público junto do douto Tribunal da Relação de Coimbra, 4.ª Secção, apresentado em 29/01/2024).

 

2.º - E assim, salvo melhor e douto entendimento, deve merecer provimento o alegado pelo Ministério Público, devendo ser o recurso julgado totalmente procedente por provado, conforme já amplamente fundamentado, e a decisão recorrida ser revogada e alterada em conformidade.”

*

Também a arguida se pronunciou afirmando:

“ 1º. Após uma análise atenta ao teor do douto parecer do Digno Magistrado do Ministério Público, a arguida AA discorda com a posição aí assumida.

2º. A arguida reitera todo o conteúdo que consta do despacho de 19.10.2023 proferido em acta, que absolveu da instância a arguida AA, que vinha pronunciada pela prática de três crimes de injúria qualificada. 

 3º. E por tal facto reitera e dá por inteiramente reproduzidos todas as razões e fundamentos constantes do despacho de 19.10.2023 proferido em acta.

(…)”

*

II – FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o artº 338º, nº 1, do C.P.P:

“O Tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo conhecer”.

É desde logo manifesto que a norma não permite que todas as matérias possam ser objecto de apreciação no momento processual a que alude.

Apenas as mencionadas questões prévias ou incidentais - que sejam susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa - que não constituam o mérito da acusação (questão prevista no nº 2 do artº 311º do C.P.P.) podem ser reavaliadas nesta fase interlocutória.

Questões prévias ou incidentais que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc) ou adjectiva (incompetência do tribunal, ilegitimidade, etc.) e acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer. Crf Ac. REL Ev de 29/3/07, Des. Ribeiro Cardoso.

No que respeita ao dito mérito, ou a acusação já foi anteriormente rejeitada ou a apreciação terá, inevitavelmente, que ser feita em sede de sentença.

 “Não pode é o juiz no início do julgamento ao abrigo deste dispositivo passar a sindicar o mérito da acusação …” – Ac. da Rel. do Porto de 19/9/07, também em www.dgsi.pt.

Como bem se refere no texto do Ac. da Rel Évora, de 29/3/07, em www.dgsi.pt (relatado pelo Des. Ribeiro Cardoso):

“O artº 338º, nº 1, do CPP apenas permite o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa – que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc.) ou adjectiva (incompetência do tribunal, ilegitimidade, etc.) acerca das quais não tenha havido decisão e de que possa desde logo conhecer.

É manifesto que esse conhecimento de questões prévias ou incidentais não passa pelo conhecimento do mérito da causa.”

Ou por outras palavras: “Não pode é o juiz no início do julgamento ao abrigo deste dispositivo passar a sindicar o mérito da acusação …” – Ac. da Rel. do Porto de 19/9/07, também em www.dgsi.pt.

No mesmo sentido ainda o Ac. do S.T.J. de 20/11/07, B.M.J. 471, 156:

“Depois de recebida a acusação ou proferido despacho de pronúncia, com a prolação do despacho respectivo a designar dia para a audiência e antes de ser proferida sentença, actividade a levar a cabo só após ter sido realizada a audiência de discussão e julgamento, não se pode conhecer do mérito da acção. Somente é permitido o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.”

Em suma, impõe-se a conclusão de que a eventual falta de factos consubstanciadores do elemento subjectivo do crime não pode ser apreciada no momento processual previsto no artº 338º, nº 1, do C.P.P., uma vez que não se trata de qualquer questão prévia ou incidental que obste ao conhecimento do mérito da causa.

É certo que no presente caso não foi concretamente apreciada a eventual rejeição da acusação por ser manifestamente infundada, nomeadamente, não foi apreciada a questão suscitada na decisão recorrida: os factos descritos na acusação não constituem crime, por faltarem alguns referentes aos elementos do dolo (cfr. artº 311º, nº 3, al. d, do C.P.P.). Houve apenas uma decisão genérica e não uma apreciação em concreto.

Ainda assim, não são todas as matérias que podem ser objecto de apreciação no momento processual a que alude o artº 338º, nº 1, do C.P.P.

E como supra se referiu trata-se tão só é de apreciar questões prévias ou incidentais.

É pois manifesto que esse conhecimento de questões prévias ou incidentais não passa pelo conhecimento do mérito da causa.

Quanto ao mérito, ou a acusação já foi anteriormente rejeitada, ou a apreciação terá que ser feita em sede de sentença, aí se apreciando o dito mérito da causa.

Seguro é que o Juiz de julgamento de acordo com o artigo 311.º, n.ºs 2 e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, - se não tiver havido instrução, - pode e deve rejeitar a acusação se considerar que os factos nela narrados não constituem crime.

Não tendo exercido tempestivamente esse poder/dever, o juiz não pode apreciar a relevância penal da conduta imputada ao arguido a não ser na sentença depois fixar os factos tidos por provados e não provados e de fundamentar esse segmento da decisão.

No mesmo sentido ainda o Ac. do S.T.J. de 20/11/07, B.M.J. 471, 156:

“Depois de recebida a acusação ou proferido despacho de pronúncia, com a prolação do despacho respectivo a designar dia para a audiência e antes de ser proferida sentença, actividade a levar a cabo só após ter sido realizada a audiência de discussão e julgamento, não se pode conhecer do mérito da acção. Somente é permitido o conhecimento de questões prévias ou incidentais que sejam susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.

Ou por outras palavras: “Não pode é o juiz no início do julgamento ao abrigo deste dispositivo passar a sindicar o mérito da acusação …” – Ac. da Rel. do Porto de 19/9/07, também em www.dgsi.pt.

Por fim, cfr Acórdão n.º 520/2011, D.R. n.º 231, Série II de 2011-12-02, Tribunal Constitucional:

“Não julga inconstitucional a norma constante do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto nos artigos 286.º, 288.º, 308.º, 310.º, n.º 1, 311.º e 313.º, n.º 4, do mesmo Código, quanto interpretadas tais disposições legais no sentido de que, tendo sido proferido despacho de pronúncia, na sequência de instrução, seguido de despacho emitido ao abrigo do artigo 311.º do Código de Processo Penal, está vedado ao Tribunal Colectivo, na fase introdutória da audiência de julgamento, declarar extinto o procedimento criminal.”

Em conclusão, a eventual falta de factos consubstanciadores do elemento subjectivo do crime não pode ser apreciada no momento processual previsto no artº 338º, nº 1, do C.P.P., uma vez que não se trata de qualquer questão prévia ou incidental que obste ao conhecimento do mérito da causa. Antes versa a relevância criminal dos factos imputados à arguida, ou seja, analisa o próprio mérito da causa.

Os Juízes só podem praticar actos permitidos por lei.

O acto praticado pelo Tribunal recorrido é ilegal por violador das disposições concernentes do processo penal.

Não sendo caso de nulidade, o despacho está inquinado de irregularidade, que o afecta na totalidade e constitui causa da sua invalidade.

Assim sendo, fica prejudicada a análise dos elementos do dolo vertidos na pronúncia.

III - Dispositivo

Face ao exposto, acordam os Juízes em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine a realização do julgamento e aprecie a responsabilidade criminal da arguida.

Sem tributação.

Coimbra, 21-02-24

Elaborado e revisto pela relatora, que utiliza a ortografia antiga

Isabel Valongo

Eduardo Martins

Alexandra Guiné