Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
49/22.2GBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
REPRODUÇÃO
EM JULGAMENTO
DAS DECLARAÇÕES DE ARGUIDO PERANTE OPC
CONVERSAS INFORMAIS
REQUISITOS DA CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
RECONSTITUIÇÃO DOS FACTOS
CRIME DE INCENDIO FLORESTAL
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 274.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 55.º, N.º 2, 58.º, 150.º, 249.º E 250.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – As declarações de arguido só ocorrem após a constituição do suspeito como tal e desde que sujeitas ao formalismo do respectivo interrogatório, pelo que a proibição de “conversas informais” só deve abranger afirmações posteriores à constituição de arguido.
II – As declarações do agente do crime a um OPC antes de instaurado o respectivo inquérito e no decurso deste é meio de prova lícito, dada a sua conformidade com o comando do artigo 249.º do C.P.P., não sendo, por isso, proibido o seu relato em audiência.
III – A constituição de alguém como arguido depende, nos termos do artigo 58.º do Código de Processo Penal, da verificação de fundada suspeita da prática de crime, não bastando para tal que a pessoa se afirme autora.
IV – A diligência de reconstituição dos factos baseada no depoimento do arguido assistido por defensor é meio de prova válido.
V – O incêndio previsto no n.º 1 do artigo 274.º do Código Penal é um crime de perigo abstracto, punível quer a título de dolo, quer a título de negligência, e as modalidades do crime de incêndio previstas nos n.ºs 2, alínea a), 3 e 5, segunda parte, são crimes de perigo concreto e de resultado.
VI – A norma incriminadora do n.º 2 do artigo 274.º do Código Penal exige o perigo concreto e a conformação do elemento subjectivo quanto à circunstância contida na sua alínea a) abrange um nexo de imputação a título doloso, tanto na conduta, quanto na criação do perigo, enquanto no n.º 3 esse nexo de imputação verifica-se com fundamento no dolo reportado à acção, mas na negligência em relação ao perigo.
Decisão Texto Integral: *


1. … foi acusado da prática, em autoria material, um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), por referência ao art. 202.º al. a), ambos do Código Penal, pelos factos constantes da acusação …

2. Na sequência do julgamento, a acusação foi julgada procedente e, em consequência, o arguido condenado como autor de um crime de incêndio, p. e p. pelo art. 274.º, n.os 1 e 2 al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, cuja execução foi suspensa, por igual período, com sujeição a regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, … que contemple, entre o mais, a sensibilização para a problemática do alcoolismo.

*

3. Não se conformando, recorre para a Relação de Coimbra, com fundamento da motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões:

“1.ª/ O tribunal recorrido utilizou prova proibida para fundamentar a matéria de facto dada como provada.

2.ª/ O arguido foi abordado na sua habitação por um agente da GNR que o inquiriu sobre os factos que investigava, suscetíveis de integrar a prática de um crime de incêndio florestal, tendo alegadamente o arguido (na altura mero suspeito) confessado ao agente da GNR a autoria dos factos.

3.ª/ Perante isto, o agente da GNR pediu ao suspeito para lhe mostrar como a situação tinha decorrido, continuando a sua inquirição e apenas no final é que accionou a entidade competente para investigação, a Polícia Judiciária.

4.ª/ A atuação do agente da GNR extravasou as medidas cautelares previstas no art. 249.º do CPP, pois aquele agente tinha já fundada suspeita que o suspeito tinha cometido um crime e portanto deveria ter constituído o mesmo como arguido nos termos do art. 59.º, n.º 1 ou contactado de imediato a entidade competente para o fazer.

5.ª/ Por ter sido violado o art. 59.º, n.º 1, as declarações prestadas pelo arguido na qualidade de suspeito constituem prova proibida nos termos dos arts. 58.º, n.º 6 e 125.º a contrario do CPP.

6.ª/ A reprodução ou leitura daquelas declarações está ainda vedada pelos arts. 356.º, n.º 1 e 357.º do CPP, de onde decorre que o militar da GNR … que recebeu aquelas declarações estava impedido de prestar depoimento na qualidade de testemunha sobre o conteúdo das mesmas, como resulta claramente do art. 356.º, n.º 7.

7.ª/ No entanto, o tribunal recorrido admitiu a inquirição do militar GNR … e utilizou o depoimento desta testemunha para dar como provada matéria de facto e condenar o arguido.

9.ª/ Uma interpretação do art. 356.º, n.º 7 do CPP no sentido em que é admitido que um órgão de polícia criminal possa prestar depoimento na qualidade de testemunha acerca de declarações prestadas por suspeito, antes da sua constituição de arguido, no momento em que já existia fundada suspeita de prática de crime pelo mesmo, é inconstitucional por violação das garantias de defesa no processo criminal previstas no art. 32.º da CRP.

10.ª/ O tribunal recorrido julgou mal os factos dos pontos n.ºs 2., 3., 4., 8., 10., 11., 12., 13., 14. e 15. (na parte em que diz “após o momento referido em 4.”) do acórdão recorrido ao dá-los como provados.

15.ª/ Para além disso, os inspetores da PJ que procederam à inspeção do local e reconstituição, foram peremptórios ao afirmar que não podiam dizer se as habitações estariam em risco …

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4. A magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu …

*
5. Na Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu … parecer:

*

6. O tribunal colectivo julgou provada a seguinte matéria de facto:


“…

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E julgou não provados os seguintes factos:

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E expôs a seguinte motivação da decisão de facto

 

“…

Da arguida nulidade

Invocou o arguido, em sede de contestação, a nulidade da prova obtida através das declarações prestadas pelo arguido perante a GNR antes ainda de ter sido constituído nessa qualidade, bem como da prova por reconstituição feita pela P.J. com base naquelas declarações.

Em sede de audiência de julgamento, estendeu a arguição de nulidade ao depoimento prestado pelo militar da GNR, na parte em que reproduziu as declarações prestadas perante si pelo arguido.

Cumpre apreciar.

Resulta do auto de notícia de fls. 144 (lavrado em 20/07/2022) que o incêndio a que se reportam os autos foi comunicado ao militar da GNR autuante, via telemóvel pelas 19:00 horas do dia 14/07/2022, tendo-se realizado inspecção ao local no dia 16/07/2022. Mais resulta que após exame do local e na sequência das diligências de investigação, o ora arguido foi contactado pelas 09:50 horas do dia 20/07/2022, assumiu a autoria dos factos, entregou um isqueiro … e indicou aos militares da GNR o percurso efectuado e o local onde ateou o fogo, ….

Por sua vez, a fls. 24 consta a comunicação da notícia de crime por parte da P.J., da qual se extrai que a GNR contactou a P.J. pelas 10:25 horas do dia 20/07/2022, dando-lhe conta de que, …, o ora arguido teria assumido a autoria do mesmo, mediante actuação dolosa, …

Decorre ainda do auto de diligência de fls. 25, que os elementos da P.J. fizeram deslocação ao local …, inquirição de 4 testemunhas e constituição do arguido nessa qualidade, para o que foi nomeado defensor. A nomeação de defensor, … ocorreu entre as 12:03 e as 12:21 horas do mesmo dia 20/07/2022 …

Pelas 15:20 horas do mesmo dia, na presença da Ilustre Defensora nomeada ao arguido, procedeu-se à recolha de prova por reconstituição, …

Não consta dos autos qualquer auto de inquirição/tomada de declarações ao ora arguido perante a GNR, mas apenas perante a Polícia Judiciária, pelas 16:09 horas do dia 20/07/2022, …

Os termos em que se procedeu à recolha de prova foram também descritos em audiência de julgamento, pelas testemunhas …

Invoca o arguido que se impunha aos militares da GNR que, logo que o arguido confessou (às 09:50 horas do dia 20/07/2022) tivessem interrompido a inquirição para o constituir arguido.

Sucede que o arguido não estava a ser formalmente inquirido, antes se tratando de uma conversa dos militares da GNR com a pessoa que teria sido a primeira a aperceber-se do fogo, no âmbito das diligências cautelares a que alude o art. 249.º, n.º 2 al. b) do Código de Processo Penal, para apuramento das circunstâncias em que eclodiu o incêndio.

E nem se diga que a GNR estava obrigada a constituir o arguido nessa qualidade logo que o mesmo afirmou ter sido ele a atear o fogo.

Desde logo porque, sem prejuízo das diligências cautelares que lhe cabe assegurar (art. 2.º, n.º 3 da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto), não é à GNR que cabe a investigação de incêndios dolosos, antes sendo competência reservada da Polícia Judiciária – art. 7.º, n.º 3 al. f) da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto.

E depois, porque a constituição de alguém como arguido depende, nos termos do art. 58.º do Código de Processo Penal, da verificação de uma fundada suspeita da prática de crime. E para tal não basta que a pessoa se afirme autora de determinado crime, necessário se tornando que os termos em que o faz apresentem credibilidade em face das demais circunstâncias do caso. Na situação concreta dos autos, a suspeita contra o ora arguido acabou por ter-se como fundada mediante a entrega por este do isqueiro …

E só então existindo razões para a GNR ter por fundadas as suspeitas contra o arguido, porque as mesmas apontavam para um acto doloso, comunicou à P.J., a quem cabia a competência para a investigação.

Conclui-se pois que não pode deixar de ser tido com válido, em termos probatórios, o depoimento prestado pelo militar da GNR …, no tocante à reacção e atitude do ora arguido quando abordado no âmbito das diligências cautelares ou de polícia que inicialmente levou a cabo, …

Após recolha inicial de informações … e ainda no âmbito das diligências destinadas a apurar das circunstâncias do incêndio, previamente à instauração formal do inquérito (só autuado em 21/07/2022, conforme fls. 108), os militares da GNR contactaram novamente o arguido para lhe exporem as dúvidas que o relato por aquele feito na primeira abordagem, havia suscitado. Contacto que teve lugar às 09:50 horas, no decurso do qual, afirmando a autoria do incêndio, o arguido entregou o isqueiro e indicou aos militares da GNR o ponto onde tinha ateado o fogo. E só então, por ser tal relato credível e compatível com a observação feita na inspecção ao local, pôde aquela força militar concluir pela existência de indícios de actuação dolosa, crime cuja competência de investigação cabia à P.J., que foi de imediato accionada, pelas 10:25 horas do mesmo dia.

De onde se conclui não ser, de todo, passível de crítica, a actuação dos militares da GNR, …

Por seu turno, também nenhum vício se encontra na diligência de reconstituição que foi levada a cabo pela polícia judiciária.

…, a Polícia Judiciária teve conhecimento, pelas 10:25 horas, de que o arguido se encontraria no Posto da GNR, após ter afirmado a autoria de um incêndio …

Mostra-se documentada nos autos a nomeação de defensor ao arguido …, a constituição do arguido nessa qualidade e prestação de TIR … e a realização da diligência de reconstituição … já na presença da Ilustre Defensora nomeada. Diligência que teve por base, não as indicações prestadas pelo arguido à GNR, como invoca a Defesa, mas as indicações que, na presença de defensora, o arguido deu ao inspector … e especialista …, ambos da Polícia Judiciária, esclarecendo o último que o arguido reconstituiu a sua actuação desde o momento em que saiu de casa até ao momento do combate ao incêndio, …

Ora, sobre a possibilidade de se atender às declarações prestadas pelo arguido no decurso da diligência de reconstituição, tem-se pronunciado por diversas vezes a jurisprudência, sempre no sentido da sua admissibilidade, …

Verifica-se, pois, que quer o teor do auto de reconstituição, quer os depoimentos dos elementos da Polícia Judiciária quanto à atitude assumida pelo arguido, versam unicamente sobre as indicações estritamente necessárias à realização da diligência de reconstituição. Diligência em que o arguido, já então assistido por defensora, aceitou participar.

No tocante à prova produzida em audiência, verificou-se que o arguido optou por não prestar declarações, no uso legítimo do direito ao silêncio.

II. Cumpre conhecer.

A - …

Importa então decidir as seguintes questões:

- Valoração de prova proibida;

- Inconstitucionalidade, por violação das garantias de defesa no processo criminal previstas no art. 32.º da CRP, da interpretação do art. 356.º, n.º 7 do CPP no sentido em que é admitido que um órgão de polícia criminal possa prestar depoimento na qualidade de testemunha acerca de declarações prestadas por suspeito, antes da sua constituição de arguido, no momento em que já existia fundada suspeita de prática de crime pelo mesmo.

- Erro de julgamento - impugnação dos FP nºs 2., 3., 4., 8., 10., 11., 12., 13., 14. e 15. (na parte em que refere “após o momento referido em 4.”)

- Enquadramento jurídico - no pressuposto da procedência da impugnação ampla da matéria de facto.

*

B - Da violação da proibição de valoração de prova

No início da motivação o tribunal recorrido conheceu da nulidade invocada na contestação do recorrente, concluindo pela validade do depoimento do militar da GNR …, da diligência de reconstituição efectuada pela polícia judiciária e dos depoimentos do inspector e especialista da Polícia Judiciária, quanto aos termos em que esta decorreu, qualificando-os como meios probatórios válidos e livremente valoráveis pelo Tribunal, em conjugação com os demais.

Assim, importa apreciar a validade da prova que teve origem nas declarações dos elementos policiais, no que se reporta à culpabilidade do recorrente, que este entende constituírem prova proibida.

Desde logo a invocada “nulidade das declarações do arguido” na fase inicial da investigação, incorre no equívoco de considerar as afirmações do então mero suspeito em “declarações de arguido”, que como é sabido só ocorrem após a constituição de arguido e sujeitas ao formalismo do respectivo interrogatório.

Lembrar que a proibição de “conversas informais” só deve abranger afirmações posteriores à constituição de arguido e nunca antes da sua constituição pois aí nem existem propriamente “conversas informais”, mas sim afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso.

Decorridas quase duas décadas sobre a divergência jurisprudencial referente à validade como meio de prova das declarações do agente de um crime a um OPC, antes de instaurado o respectivo inquérito e no decurso deste, tem-se como pacífico que:

- o suspeito não goza do direito ao silêncio, razão por que a prova produzida pelas suas declarações é válida, desde que ainda não houvesse a obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais tivessem agido no quadro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241º e 242º) e de medidas cautelares e de policia (artigos 248º e segs., designadamente o artigo 250º do C.P.P.)

- ponto é que os OPC actuem sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, quando o suspeito se afirma autor de um crime,

- o que não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.” - Ac Rel Lisboa, de 22-06-2017, relatora Des Filipa Costa Lourenço, Proc320/14.7GCMTJ.L1-9.

São afinal diligências de aquisição e conservação de prova, lícitas, dada a sua conformidade com o comando legal prescrito no art. 249º do CPP, não sendo, por isso, proibido o seu relato em audiência.

Isso mesmo se defende também no acórdão da Rel de Evora, de 04 de Junho de 2013, relator Des João Gomes de Sousa:

“7. Quando o ainda não arguido não foi constituído arguido, podendo considerar-que que há motivo para tal, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal qualquer declaração daquele não pode ser utilizada como prova.

8. Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido, antes de este o ser ou haver obrigação de constituição, se não houver culpa das forças policiais no atrasar da formalização daquela constituição.”

No mesmo sentido, quanto ao caso do depoimento dos OPC’s, veja-se o sumário a seguir parcialmente transcrito do Ac STJ 15.02.2007, disponível em www.dgsi.pt.

IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP).

V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.

VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.

VII - O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249.º do CPP””.

Posto isto e revertendo aos autos, da audição dos depoimentos dos elementos policiais, conjugados com a cronologia das ocorrências documentadas nos autos e resumidas na motivação acima transcrita, que nos dispensamos de repetir dando-as como aqui reproduzidas, concluímos tal como o tribunal recorrido, que as declarações da testemunha … apenas se reportam às afirmações de um então mero suspeito, (alínea e) do nº 1 do art. 1º do C. Processo Penal) produzidas sem qualquer prévia manipulação e no âmbito de diligências realizadas no local, inseridas no âmbito das diligências cautelares de prova que lhe estão acometidas por força dos artºs 55º nº2, 249º.e 250º do CPP.

Não há qualquer sinal ou evidência de que o OPC referido haja retardado com má fé o momento da constituição de arguido ou sequer que haja utilizado métodos capciosos com a finalidade de obter uma confissão não formalizada.

Ora, tal como conclui o tribunal recorrido, conclusões que validamos por correctas, “sem prejuízo das diligências cautelares que lhe cabe assegurar (art. 2.º, n.º 3 da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto), não é à GNR que cabe a investigação de incêndios dolosos, antes sendo competência reservada da Polícia Judiciária – art. 7.º, n.º 3 al. f) da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto.

E depois, porque a constituição de alguém como arguido depende, nos termos do art. 58.º do Código de Processo Penal, da verificação de uma fundada suspeita da prática de crime. E para tal não basta que a pessoa se afirme autora de determinado crime, necessário se tornando que os termos em que o faz apresentem credibilidade em face das demais circunstâncias do caso. Na situação concreta dos autos, a suspeita contra o ora arguido acabou por ter-se como fundada mediante a entrega por este do isqueiro que afirmou ter usado, e a identificação da forma como procedeu no local, corroborando os dados já anteriormente recolhidos através da análise dos vestígios no local, quanto ao ponto de início do incêndio. E só então existindo razões para a GNR ter por fundadas as suspeitas contra o arguido, porque as mesmas apontavam para um acto doloso, comunicou à P.J., a quem cabia a competência para a investigação.”

Notar que “A diferença entre arguido e suspeito será portanto, de grau ou intensidade dos indícios, ainda que, em bom rigor, não seja exactamente assim pois mesmo que existam indícios suficientemente sólidos de que um determinado cidadão praticou ou se prepara para praticar um crime, este não adquire sem mais a qualidade de arguido, pois é a lei do processo quem estabelece quem e em que condições passa a arguido.2 - Ac Rel Coimbra, de 25-09-2019, relator Des Vasques Osório.

Nenhuma dúvida pois quanto à validade do depoimento de ….

Assim, também é válido o auto de reconstituição de fls. 77 a 88. O recorrente havia já sido constituído arguido e estava assistido por defensora.

Ao contrário do que afirma o recorrente, a reconstituição não teve por base as indicações prestadas pelo arguido à GNR, antes se baseou nas indicações que - na presença de defensora - o arguido forneceu ao inspector … e ao especialista …, ambos da Polícia Judiciária.

Basta ver que logo no inicio do auto de fls 55 se regista “ tendo em vista o cabal esclarecimento dos factos, foi solicitado ao arguido que descrevesse as circunstancias e o modo em que ocorreram os factos, com indicação de todos os pormenores de que se recorda, tendo dito que:”

As testemunhas …, da Polícia Judiciária esclareceram que o arguido reconstituiu a sua actuação desde o momento em que saiu de casa até ao momento do combate ao incêndio, tendo apontado o local onde terá ateado o fogo. Além do mais os referidos depoimentos dos elementos da Polícia Judiciária quanto à atitude assumida pelo arguido, versam unicamente sobre as indicações estritamente necessárias à realização da diligência de reconstituição.

Com efeito, do auto de reconstituição consta a descrição feita pelo arguido do percurso efectuado, a menção do local onde ateou o incêndio, do uso do isqueiro para o atear por chama directa e do  percurso efectuado após aquele momento, … o arguido, já então assistido por defensora, aceitou participar na dita diligência de reconstituição.

Em suma, a diligência foi realizada no respeito dos pressupostos e procedimentos a que está vinculada, - art 150° do Código de Processo Penal - e “vale como meio de prova, processualmente admissível, sobre os factos a que se refere, isto é, como meio válido de demonstração da existência de certos factos, a valorar, como os demais meios, «segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» - artigo 127° do CPP. - Ac STJ de 05-01-2005 www.dgsi.pt. E seguindo a tese deste aresto, é de atender às declarações prestadas pelo arguido no decurso da diligência de reconstituição. Sobre a questão aí se defende que “ Vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o processo, e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre os modo e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto, não estando abrangidas na proibição do artigo 356º, nº 7 do CPP.” No mesmo sentido ac STJ de 12/12/2013, Relator Cons. Santos Cabral, www.dgsi.pt.

Em conformidade, nenhum vício afectou quer a diligência de reconstituição, quer os depoimentos dos elementos da Polícia Judiciária, quanto aos termos em que decorreu, por isso que são meios probatórios válidos e livremente valoráveis pelo Tribunal, em conjugação com os demais.

Improcede assim este segmento do recurso porque não foi valorada prova proibida.

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C - E não ocorre a invocada inconstitucionalidade, por violação das garantias de defesa no processo criminal previstas no art. 32.º da CRP, da interpretação do art. 356.º, n.º 7 do CPP no sentido em que é admitido que um órgão de polícia criminal possa prestar depoimento na qualidade de testemunha acerca de declarações prestadas por suspeito, antes da sua constituição de arguido, atento que no momento em que firam prestadas ainda não era fundada a suspeita de prática de crime pelo recorrente.

Aliás, a interpretação das normas referenciadas a propósito das enunciadas questões não é inconstitucional, por não afectar qualquer direito fundamental do recorrente.

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D - Erro de julgamento - …

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E - Enquadramento jurídico

A pretensão de absolvição do recorrente da prática de um crime de incêndio florestal decorre do êxito da impugnação da matéria de facto e consequente da respectiva alteração para não provada.

Finalidade que não alcançou.

Sempre se dirá que o enquadramento jurídico dos factos provados está correcto.

No que se refere a incêndio em floresta, o art. 274º nº 1, do CP pune quem provocar incêndio em floresta, mata, arvoredo ou seara, próprias ou alheias, com prisão de um a oito anos, agravando o nº 2 a moldura abstracta da pena de prisão, para três anos, quanto ao limite mínimo e para dez anos, quanto ao limite máximo, se se verificar alguma das circunstâncias previstas nas als. a) a c), ou seja, a criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, colocação da vítima em situação económica difícil ou, ainda se a deflagração do incêndio tive prosseguido fins de obtenção de benefícios económicos.

O nº 3 prevê a negligencia na criação do perigo previsto na al. a) do nº 2 e o nº 4 prevê a negligencia na conduta prevista nº nº 1 do art 274.

Assim, tendo a consideração as previsões contidas nos nºs 3 e 4 do citado art. 274º, com referência aos nºs 1 e 2 a) e por comparação com estes, bem como em face da distinção entre perigo concreto e abstracto, é lícito concluir, por um lado, que o incêndio previsto no nº 1 é um crime de perigo abstracto, punível, tanto com base no dolo, mas também, dada a disposição legal contida no nº 4, com fundamento na negligência, ao passo que a norma incriminadora do nº 2 já exige o perigo concreto e, por outro lado que, tal como na Lei antiga, também, a conformação do elemento subjectivo do tipo de incêndio florestal do art. 274º nº 2, quanto à circunstância contida na sua al. a) abrange um nexo de imputação a título doloso, tanto na conduta, quanto na criação do perigo, enquanto no nº 3 do mesmo preceito, esse nexo de imputação verifica-se com fundamento no dolo reportado à acção, mas na negligência em relação ao perigo.

E o n.º 5 dispõe «Se a conduta prevista no n.º1 for praticada por negligência grosseira ou criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos».

Percebe-se pois que as modalidades do crime de incêndio previstas nos nºs 2, al. a), 3 e 5 ( segunda parte) constituem crimes de perigo concreto e de resultado.

Ainda com pertinência, haverá que considerar que o elemento subjectivo, por referência ao artigo 274.º, n.º 4, do Código Penal, admite a negligência em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 15.º do mesmo diploma legal ( isto é cria-se um crime de dano negligente - cfr PPAlbuquerque obra cit. pág 709.)

Face à matéria de facto provada, integra o elemento objectivo e o elemento subjectivo do tipo legal de crime pp art. 274.º, nº 1, al. a), do CP nos termos assinalados no acórdão recorrido que nesta parte se transcreve:

“…os elementos objectivos do tipo legal de crime do art. 274.º, nº 1, do Código Penal, são:

- que o agente provoque incêndio (por oposição ao conceito de fogo também previsto na legislação referida) em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou terreno agrícola próprios ou alheios;

- que assim crie perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado,

- o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, que abarcará todos os elementos objectivos do tipo e portanto, a criação do perigo.

Revertendo estas considerações ao caso dos autos, verifica-se ter resultado provado que o arguido, munido de um isqueiro, ateou fogo a um molho de palha (erva seca) que existia no terreno agrícola pertencente a …, o qual de imediato se propagou à restante vegetação, que ficou a arder em combustão auto-sustentada, altura em que o arguido se ausentou do local.

Não restam, pois, dúvidas, de que se mostra preenchida a conduta típica do crime de incêndio, na medida em que o arguido ateou fogo (provocando, mediante chama directa, um incêndio), em terreno correspondente a uma área agrícola (terreno agrícola) e em formações vegetais espontâneas (os molhos de palha/ervas secas cortadas e as ervas e fetos que entretanto haviam crescido), em termos integralmente correspondentes ao objecto típico.

Mais ficou provado que colocou ainda em perigo 2 barracões, um espigueiro e uma casa de habitação existentes nos terrenos imediatamente confinantes, bem como outras casas de habitação e barracões, todos localizados nos terrenos agrícolas contíguos ao terreno agrícola onde eclodiu o incêndio, a uma distância não superior a 200-300mt do local onde o arguido ateou o fogo

Finalmente, provou-se ainda que o arguido conhecia as características dos terrenos, da vegetação e das construções ali existentes, que sabia que ao atear fogo punha em risco aquelas construções e as casas de habitação existentes nas imediações, e ainda assim quis provocar o incêndio e incorrer nesse perigo.

Mostram-se, por isso, integralmente preenchidos os elementos típicos objectivo e subjectivo do tipo penal em apreço, pelo que, não ocorrendo qualquer causa de justificação da ilicitude ou da culpa, impõe-se a condenação do arguido pelo crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.”

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Improcede, portanto, o recurso na totalidade.

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III - Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC´s.

Texto processado e revisto pela relatora

Coimbra, 08-11-2023

Isabel Valongo

Paulo Guerra

Jorge Jacob