Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
220/22.7PBLMG-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: AUSÊNCIA DE INQUÉRITO
INSUFICIÊNCIA DE INQUÉRITO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 119º, AL. D), 262º, N.º 1, DO CPP
Sumário: I- Quando é evidente e manifesto, para o investigador, que os factos em causa não constituem qualquer crime, deve proferir despacho de arquivamento sem necessidade de realizar quaisquer diligências.
II- Se o inquérito foi autuado e a investigação ficou a cargo da entidade policial, tendo sido tomadas declarações ao ofendido e proferido despacho de arquivamento em que se entende que os factos denunciados não constituem crime, não há ausência de inquérito para os efeitos do art. 119º, al. d), do C.P.P, podendo o assistente requerer a abertura de instrução.
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

         A – Relatório

1. Nos presentes autos de instrução que correm na Comarca de Viseu (Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ...), em que é assistente AA e arguido BB, foi proferida decisão instrutória, a 6.10.2023, decidindo-se, nos termos  do artigo 119º, alínea d), do CPP, declarar a nulidade de falta de inquérito, ordenando-se a remessa dos autos ao Ministério Público.

2. Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“1. O assistente apresentou queixa-crime contra o arguido, por este, alegadamente lhe ter dirigido as expressões: ‘sais daqui da loja sozinho muitas vezes à noite” e “nem imaginas o que te vai aconteceu e imputando-lhe a prática de um crime de ameaça.

2. O Ministério Público, nos termos do artigo 277.°, n.º 1 do CPP, determinou o arquivamento do inquérito, por entender que as referidas expressões não se enquadram na descrição objetiva do tipo legal em questão.

3. Em sede de instrução, a Meritíssima Juiz de Instrução declarou, oficiosamente, a nulidade insanável de falta de inquérito por entender que não é evidente que os factos denunciados não constituem a prática de ilícito criminal, ordenando a remessa dos autos ao MP para reabertura dos mesmos.

4. Ora, nos termos do art. 153.°, n.° 1 do CP, o crime de ameaça tem como elemento objetivo que o agente pronuncie um mal futuro, cuja verificação constitua crime, devendo efetuá- lo de forma propicia a provocar medo ou inquietação à vítima.

5. Não existem duvidas que as expressões imputadas ao arguido não revelam qualquer mal futuro, nem o receio de violação de um bem jurídico pessoal ou patrimonial do assistente.

6. Por outro lado, no auto de denuncia, o assistente apenas revela que o seu receio é que “as ameaças continuem”.

7. Assim, não se verifica o preenchimento do elemento objetivo do crime de ameaça.

8. Pelo exposto, o Ministério Publico, enquanto entidade titular da direção do inquérito andou bem ao arquivar os autos, o que fez ao abrigo dos artigos art. 53.°, 267.° e 277.°, n.° 1 do CPP.

9. Não se verificando qualquer nulidade insanável por falta de inquérito.

10. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 53.°, 267.° e 277.°, n.° 1, do CPP e 153.°, n.° 1, do CP.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão instrutória e ordenando-se o arquivamento definitivo dos autos”.

3. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do mesmo e pela confirmação da decisão recorrida, concluindo que:

“1 - O arquivamento nos termos do artigo 277.º, n.º1, do Código de Processo Penal, exige que haja prova bastante, desde logo, de se não ter verificado crime;

2 - O juízo de prova bastante implica um muito grau elevado de certeza: um muito grau elevado de certeza de que os factos não ocorreram ou de que não constituem crime – no caso em apreço, a certeza de que os factos denunciados não constituem crime;

3 - Seguindo um critério de normalidade, razoabilidade e as regras da experiência, considerando os tipos legais previstos no Código Penal, os factos denunciados, por si mesmos, podem indiciar a prática ou de um crime de ameaça, previsto e punido pelo art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal ou de um crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154-.º - A, n.º1,  também do Código Penal;

4 - Não havendo prova bastante da atipicidade dos factos denunciados, o princípio do acusatório e o disposto nos artigos 48.º, 53.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 262.º, n.º1 e 263.º, ambos do Código de Processo Penal, levavam desde logo o Ministério Público a realizar o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime; 

5 - Não o tendo feito, existe a nulidade prevista no artigo 119.º, d), do Código de Processo Penal;

 6 - A nulidade prevista no artigo 119.º, d), do Código de Processo Penal, não se circunscreve à omissão total de inquérito, também compreende a omissão total de actos de investigação;

7- Nulidade esta que tem como consequência a remessa dos autos ao Ministério Público, a fim de que o mesmo, enquanto titular da acção penal, possa suprir a mesma – artigos 122.º, n.º 2, 262.º e 263.º, todos do Código de Processo Penal;

8- Daí que, face a todo o exposto, deve ser mantida a douta decisão judicial recorrida, assim fazendo Vossas Excelências, como sempre, e mais uma vez, JUSTIÇA”.

4. Também o assistente AA respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do mesmo e pela confirmação da decisão recorrida, concluindo que:

“1.  Pelos factos denunciados pelo assistente não é possível apurar que os mesmos não constituam a prática de ilícito criminal.

2.   O Ministério Público tem o dever de dirigir o inquérito e tomar as diligências necessárias para investigar a existência de crime e recolher provas.

3.   A falta de promoção do processo pelo Ministério Público constitui nulidade insanável nos termos do art. 119º al. b) do CPP.

4.   O Ministério Público, sem efetuar qualquer diligência de prova arquivou os autos, pelo que se verifica a nulidade insanável prevista na norma indicada.

5.   O Ministério Público apesar de considerar que os factos não integravam prática de crime de ameaça, deve averiguar a existência de outro qualquer crime, uma vez que a questão dos autos é controversa.

6.   As expressões proferidas pelo arguido, provocaram medo e receio ao assistente, pelo que nunca mais voltou a sair das suas lojas em ..., sozinho à noite.

7.   Ao proferir as expressões acima descritas, tinha o arguido intenção de intimidar o assistente, de lhe provocar medo, receio e inquietação, assim como prejudicar a sua segurança, liberdade e autodeterminação.

8.   Atentas as circunstâncias e a forma séria e convincente como foram proferidas as descritas expressões, o assistente receou pela sua vida e integridade física.

9.   O arguido ao proferir as descritas frases, atuou com o propósito alcançado de provocar medo, insegurança e intranquilidade no espírito do assistente, tendo este ficado convencido que o arguido era bem capaz de concretizar os males por si anunciados.

10.  Sendo a questão controversa, o Ministério Público devia ter providenciado diligências para apurar a existência de ilícito criminal, pelo que não o fazendo existe nulidade insanável nos termos do art. 119º al b) do Código de Processo Penal”.

5. O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da sua improcedência e manutenção da decisão recorrida, acompanhando a resposta do M.P. junto da 1ª instância.

Em síntese, alega que:

- O teor da denúncia e as expressões alegadamente dirigidas ao assistente, não eram de molde a permitir, de modo liminar e seguro, afastar a prática quer de um crime de ameaça, quer, eventualmente, de um crime de perseguição, p. e p. respetivamente, pelos arts. 153º, n.º 1 e 154º -A, do Código Penal.

- Alguém dizer a outrem que “sais daqui da loja sozinho muitas vezes à noite”, “nem imaginas o que te vai acontecer” pode conter em si uma ameaça futura e próxima para a vida, para a integridade física ou para a liberdade pessoal da pessoa visada, justificando-se, plenamente, a realização de diligências de investigação no âmbito do inquérito (nomeadamente, constituição de arguido, declarações ao mesmo, inquirição do denunciante e de eventuais testemunhas) com vista a determinar o contexto em que as expressões foram proferidas (o relacionamento entre o seu autor e a pessoa visada, eventuais problemas e litígios entre ambos) e a seriedade com que foram proferidas.

- Não o tendo feito e tendo o MP arquivado o inquérito ao abrigo do artigo 277º, n.º 1 do CPP, crê-se que, na esteira da jurisprudência citada, foi cometida a nulidade insanável prevista no artº 119º, n.º 1 al d) do Código de Processo Penal.

- Não se desconhecendo jurisprudência no sentido de que a situação dos autos se reconduz, não a falta de inquérito, enquanto nulidade insanável prevista no artº 119º, n.º 1, al. c) do CP, mas antes, quando muito, a uma insuficiência de inquérito, enquanto nulidade dependente de arguição, prevista no artº 120º, n.º 2, al d) do CP (cfr. Ac. TRP de 07/12/2011, procº 114/10.9TAVLG-A.P1, disponível no site da dgsi) propendemos a considerar como correto o entendimento acima expresso, de que a situação em causa se reconduz a falta de inquérito, enquanto nulidade insanável, prevista no citado artº 119º, n.º 1, al c) do CP”.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentadas respostas ao douto parecer.

7. Respeitando as formalidades aplicáveis, após o exame preliminar e depois de colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

8. Dos trabalhos desta resultou a presente apreciação e decisão.

             *

     B – Fundamentação

 1. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

São, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2, e 410º, nº 3, do mesmo diploma legal).

O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193).

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo arguido, a questão a decidir é a seguinte:

- se se verifica, ou não, a nulidade insanável de falta de inquérito, prevista no artigo 119º, alínea d), do Código de Processo Penal.

3. Para decidir da questão supra enunciada, vejamos a decisão recorrida, que apresenta o seguinte teor:

                

    

I-Relatório:

Iniciaram-se os presentes autos com a denúncia do ora assistente, em que o mesmo refere que o denunciado, o ora arguido, o ameaçou com as seguintes expressões:

“sais daqui da loja sozinho muitas vezes à noite”, “nem imaginas o que te vai acontecer”.

Concluso o processo à Senhora Procuradora, a mesma, sem efetuar qualquer diligência de prova, arquivou os autos, por entender que os factos denunciados não integravam a prática de um crime de ameaças.

Inconformado com esse despacho veio o assistente requerer a abertura de instrução, pretendendo a pronúncia do arguido pela prática de um crime de injúrias, p.p.p artigo 153, do CP.

Foi admitida a instrução.

Foi realizado o debate instrutório.

O Tribunal é competente e as partes são legítimas.

                *

     II

Nos presentes autos, como mencionado, a Senhora Procuradora, sem efetuar qualquer diligência de prova, arquivou os autos, por entender que os factos denunciados não integravam a prática de ilícito criminal.

De acordo com o artigo 119 do CPP:

“Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:

a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;

b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;

c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;

e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;

f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei”.

No mencionado artigo estamos perante invalidades processuais.

A nulidade insanável da falta de inquérito ocorre quando inexiste o conjunto de diligências ou atos referidos no art. 262.º, n.º 1, do CPP

Assim, existe falta de inquérito:

- Quando há ausência absoluta ou total de inquérito;

- Quando há falta absoluta de atos de inquérito.

De facto, estipula o artigo 262 do CPP que:

“1 - O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.

2 - Ressalvadas as exceções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito”.

Na situação concreta foi aberto um inquérito em consequência da denúncia apresentada pelo ora assistente.

Acontece que o MP decidiu não realizar qualquer ato de prova, por entender que os factos não integravam a prática do crime de ameaças, sem questionar, eventualmente, a existência de um outro qualquer crime.

Não cuidou o MP de apurar da existência, ou não, de indícios suficientes da prática dos factos em causa.

Acresce que, e com todo o respeito, não estamos perante uma situação em que manifestamente inexiste a prática de um crime, sendo a questão em análise nos autos controversa.

Na verdade, só pode o MP dispensar a realização de qualquer ato de inquérito, quando os mesmos se revelarem inúteis, porque manifestamente os factos denunciados não consubstanciam a prática de qualquer ilícito criminal.

Neste sentido o ac. da RC de 5.2.2020, onde se escreve: “1- “A falta de inquérito” a que se reporta a alínea d) do artigo 119.º do CPP ocorre quando se verifica ausência absoluta de inquérito ou de actos de inquérito, situação que não se confunde com a “insuficiência de inquérito”, reconduzindo-se esta figura à nulidade relativa prevenida na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do mesmo diploma legal, traduzida, não já na ausência total da dita fase processual, mas, tão só, na omissão de certos actos legalmente obrigatórios.

2-Salvo nos casos em que for evidente, manifesto, em face da denúncia, não serem os factos denunciados – cuja qualificação não se impõe ao denunciante – susceptíveis de integrar qualquer crime ou, sendo-o, a prossecução da acção penal revelar-se, em função v.g. da extinção do direito de queixa, da prescrição do crime, de amnistia, inquestionavelmente comprometida, verifica-se falta de inquérito quando o Ministério Público profere despacho de arquivamento sem que seja realizada qualquer diligência.

     3- Tendo sido proferido despacho de arquivamento – fundado na inadmissibilidade legal do procedimento criminal, sustentada na falta de legitimidade do MP para o exercício da acção penal, em consequência da renúncia ao direito de queixa (cfr. artigo 72.º, n.º 2, do CPP) -, em relação ao qual o assistente se insurgiu, requerendo a abertura da instrução, a ausência de qualquer diligência de inquérito tendente a considerar, à luz das diferentes circunstâncias qualificativas contempladas no artigo 218.º do CP, a existência de suficientes indícios de um crime de natureza pública, consubstancia a nulidade prevista na alínea d) do artigo 119.º do CPP”.

Na situação concreta, como mencionado, não é evidente que os factos denunciados não constituem a prática de um ilícito criminal e inexiste a realização de qualquer diligência probatória.

Acresce que não se pode prescindir do inquérito sob pena de violação do princípio do acusatório.

Logo, não pode a fase de instrução substituir a fase de inquérito, devendo ser declarada a nulidade insanável de falta de inquérito, nulidade essa de conhecimento oficioso.

     Pelo que:

     III- Decide-se:

Nos termos do artigo 119, al.d) do CPP, declara-se a nulidade de falta de inquérito, ordenando-se a remessa dos autos ao MP.

Sem custas.

Notifique”.

                   

             *

             *

  4. Cumpre agora apreciar e decidir.

Como se disse, a questão a apreciar é a de saber se se verifica, ou não, a nulidade insanável de falta de inquérito, prevista no artigo 119º, alínea d), do Código de Processo Penal.

Alega o recorrente que não existem duvidas que as expressões que lhe são imputadas não revelam qualquer mal futuro, nem o receio de violação de um bem jurídico pessoal ou patrimonial do assistente. Não se verifica, assim, o preenchimento do elemento objetivo do crime de ameaça.

Por essa razão, o Ministério Publico, enquanto entidade titular da direção do inquérito andou bem ao arquivar os autos, o que fez ao abrigo dos artigos 53°, 267° e 277°, n° 1, do Código de Processo Penal, não se verificando qualquer nulidade insanável por falta de inquérito.

Vejamos, então.

O ora assistente AA denunciou à entidade policial os seguintes factos:

“Na data de 2022-09-15, cerca das 10h00, o Sr. BB, melhor identificado no item suspeito, estacionou o seu veículo junto do local de ocorrência identificado durante alguns minutos, o suficiente para que o denunciante visse que ele ali estava e após uma conversa sobre o estacionamento no local, colocou as mãos em uns ferros ali existentes e ameaçou o denunciante com a seguinte expressão: " ... sais daqui da loja sozinho muitas vezes à noite”.

Na data de 2022-09-17, cerca das 10h00, o Sr. BB, estacionou novamente um veículo naquele local durante alguns minutos, e após nova conversa devido ao estacionamento de veículos, este ameaçou-o com a seguinte expressão: “...nem imaginas o que te vai acontecer”.

O denunciante referiu ainda que a situação do estacionamento naquele local por parte do suspeito é recorrente e que o mesmo tem pleno conhecimento de que não pode ali estacionar devido a ser um local para cargas e descargas dos estabelecimentos ali existentes, conforme cópia do Contrato de Arrendamento Comercial, que se anexa”.

Consta ainda do auto de denúncia que:

“De referir que na data 2022-09-17, foi solicitada a comparência desta polícia ao local, por terem sido furtados, uma corrente, vários ferros e um cadeado pertencentes ao denunciante, conforme Auto de Notícia com o NUIPC 218/22.5 e NPP ...22.

O denunciante solicitou a junção de oito fotogramas que elucidam a situação do estacionamento de vários veículos por parte do suspeito a dificultar o normal serviço de cargas e descargas no local.

Acresce referir que o denunciante sente medo e consternação, teme que as ameaças continuem, bem como os comportamentos impróprios por parte do denunciado, pois existem constantes tentativas de intimidação e as ameaças do suspeito para com o denunciante e fornecedores que ali estacionam para cargas e descargas. Enfim, o denunciante teme pela sua integridade física e pela sua liberdade de ação.

O denunciante declarou desejar o respetivo procedimento criminal contra o suspeito, pelo que lhe foi prestada informação na qualidade de ofendido nos termos do Art.º 75º e 247º do CPP, que se anexam, bem como foi-lhe atribuído Estatuto de Vítima”.

No dia 28.9,2022, o auto de denúncia foi aditado nos seguintes termos:

“Foi no dia de hoje nesta Divisão Policial ... recebido via email (..........@.....), cuja cópia se anexa e envia, um email em que a vitima identificada nos autos como lesado/ofendido AA refere que no dia 21/09/2022 foi vítima de agressões com uso de um bastão extensível por parte do suspeito identificado nos autos, melhor descrito no email”.

O inquérito foi autuado e a investigação ficou a cargo da entidade policial, tendo a magistrada titular do inquérito, por despacho de 7.10.2022, ordenado que os autos aguardassem por 45 dias.

Procedeu-se à notificação do ofendido AA para, querendo, deduzir pedido de indemnização civil, bem como para comparecer na Esquadra de Investigação Criminal da PSP de ..., para prestar declarações.

Aquando da referida diligência, a entidade policial foi informada da existência de outra denuncia efetuada contra o suspeito, por agressões, as quais ocorreram na área da GNR .... Entendeu o denunciante, na presença da defensora, baseado no artigo 24º do Código Processo Penal, que iriam sugerir a apensação dos inquéritos em curso, que envolvem o lesado/ofendido e o denunciado.

Perante tais informações, a entidade investigante deu conta do sucedido ao M.P. e ficou a aguardar a decisão sobre uma eventual apensação de processos.

O M.P. despachou no sentido de averiguar se existiam outros inquéritos em que fossem intervenientes os mesmos sujeitos processuais e, após receber algumas peças do Processo nº 181/22.... que corria termos na Procuradoria do Juízo de Competência Genérica ..., em que era lesado AA e arguido BB, encontrando-se em investigação os crimes de ofensa à integridade física simples e injúria, proferiu o despacho recorrido.

Entendeu, então, o M.P. proferir despacho de arquivamento com o fundamento de que, face ao teor do artigo 153º, nº 1, do Código Penal, resulta da letra da lei que é elemento objetivo do crime de ameaça que o agente anuncie que pretende infligir a outrem um mal que constitua crime e as expressões em análise não se enquadram na descrição objetiva do tipo legal em causa, pois são demasiado genéricas, de significado dúbio, e não anunciam ou concretizam o mal que futura e eventualmente irá ser provocado, pelo que não é possível determinar se se referem a qualquer dos crimes acima enunciados ou, se sequer, se referem a algum crime.

Pois bem.

Com a epígrafe Nulidades insanáveis, estipula o artigo 119º, alínea d), do Código de Processo Penal, que constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.

É esta uma nulidade que se refere à falta do conjunto de diligências ou actos compreendidos no artigo 262º, nº 1, do Código de Processo Penal e ocorre quando se verifica ausência absoluta ou total de inquérito ou falta absoluta de actos de inquérito (cfr. Ac. da RP de 15.6.2011, in www.dgsi.pt).

Como se afirma no Ac. da RL de 6.11.2007, in www.dgsi.pt, “A lei processual penal vigente não impõe a prática de quaisquer actos típicos de investigação.

A titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, pertencem ao Ministério Público, ex vi dos art.°s 262° e 263° do Código Processo Penal, sendo este livre — dentro do quadro legal e estatutário em que se move e a que deve estrita obediência, por força dos artigos 53° e 267° do Código Processo Penal, de promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com excepção dos actos de prática obrigatória no decurso do inquérito.

Só a ausência absoluta de inquérito ou a omissão de diligências impostas por lei determinam nulidade daquele.

Assim, a omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, em levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei”.

Também a Relação de Coimbra, no seu Ac. de 5.2.2020, in www.dgsi,pt, já afirmou que:

“A falta de inquérito” a que se reporta a alínea d) do artigo 119.º do CPP ocorre quando se verifica ausência absoluta de inquérito ou de actos de inquérito, situação que não se confunde com a “insuficiência de inquérito”, reconduzindo-se esta figura à nulidade relativa prevenida na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do mesmo diploma legal, traduzida, não já na ausência total da dita fase processual, mas, tão só, na omissão de certos actos legalmente obrigatórios”.

Ora, apesar da tramitação levada a cabo e supra referenciada, a revelar a existência de inquérito, no presente caso a circunstância primordial é a do M.P. entender que os factos denunciados não se subsumem no crime de ameaça, ou melhor, não constituem crime. Daí ter proferido despacho de arquivamento.

A ser assim, quando é evidente, manifesto, para o investigador que os factos em causa não constituem qualquer crime, deve proferir despacho de arquivamento sem necessidade de realizar quaisquer diligências, por se revelarem inúteis (neste sentido veja-se o Ac. da RC supra mencionado).

De facto, se nos termos do artigo 262º, nº 1, do Código de Processo Penal, a finalidade e âmbito do inquérito é investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, naturalmente, que se os factos denunciados não constituírem crime, nada há que investigar.

Como se refere claramente no Ac. da RP de 7.12.2011, in www.dgsi.pt, “não pode considerar-se que exista falta de inquérito quando o mesmo é aberto e autuado, mas o MP, por entender que os factos denunciados não são crime, não faz diligências tendentes a averiguar a veracidade desses factos, declara encerrado o inquérito e profere despacho de arquivamento”.

Neste aresto, que trata de uma situação em tudo semelhante à dos presentes autos e que se acompanha, pode ler-se que:

“Não faria sentido que o MP, por exemplo, perante uma queixa sem indícios e contra incertos, fizesse diligências inúteis.

O que pode ser questionado, nestes casos, é o juízo sobre a necessidade de diligências perante os indícios existentes, nomeadamente através da intervenção hierárquica (art. 278º, 2 do CPP), ou da arguição da nulidade de insuficiência de inquérito (art. 120º, 2, d) e c) do CPP). Ora, a possibilidade de, nestes casos, ser questionada a exactidão do entendimento subjacente ao despacho de encerramento do inquérito e, desse modo, fazer intervir o superior hierárquico do MP, ou o Juiz de Instrução Criminal, mostra-nos que houve um inquérito e que a actividade aí desenvolvida pode ser sindicada.

Deste modo, e perante a situação em apreço, impõe-se concluir que houve efectivamente inquérito que foi declarado encerrado, pelo que não ocorreu a nulidade (insanável) prevista no art. 119º, d) do CPP (falta de inquérito)”.

Refere-se na decisão recorrida que “o MP decidiu não realizar qualquer ato de prova, por entender que os factos não integravam a prática do crime de ameaças, sem questionar, eventualmente, a existência de um outro qualquer crime”.

Ora, o inquérito é dirigido pelo Ministério Público, não cabendo ao Juiz de instrução definir ou mesmo sugerir os crimes que devem ser investigados.

O que fica dito, revela-se suficiente para se concluir que, no caso concreto, não se verifica a referida nulidade de falta de inquérito, prevista no artigo 119º, alínea d), do Código de Processo Penal.

A ser assim, deve ser concedido parcial provimento ao recurso do arguido, com a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que aprecie as questões suscitadas no RAI do assistente.

De facto, a consequência de tal revogação não é o arquivamento dos autos como defende o arguido/recorrente, mas sim a remessa dos autos à 1ª Instância para que a Exma. Juiz de Instrução Criminal aprecie as questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução.

             *

         C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido BB e, em consequência, decidem revogar a decisão recorrida, devendo esta ser substituída por outra que aprecie as questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução.

              *

Sem custas em relação ao arguido – face à parcial procedência e ao disposto no artigo 513º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal, a contrario sensu.

Custas pelo assistente, face à oposição efectuada, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça devida – artigos 515º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

            *

Notifique.

            *

                          

               Coimbra, 24 de Abril de 2024.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

               Rosa Pinto – Relatora

               Helena Lamas – 1ª Adjunta

               Cândida Martinho – 2ª Adjunta