Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
193/23.9YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE SENTENÇA EUROPEIA
EXTINÇÃO DA PENA PELO CUMPRIMENTO
VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE SENTENÇA PENAL EUROPEIA
Decisão: RECONHECIDA A SENTENÇA E DECLARADA EXTINTA A PENA
Legislação Nacional: ART. 250º, N.º 6, DO CÓDIGO PENAL; 3º, N.º 2, 15º, N.º 1, 16º, N.ºS 1 E 4, E 17º DA LEI N.º 158/2015, DE 17 DE SETEMBRO.
Sumário: Embora a lei luxemburguesa não contemple para o crime de abandono familiar uma norma equivalente ao artigo 250, nº6 do Código Penal português, pelo que, mesmo paga a pensão devida após sua condenação, tal pagamento não conduza à extinção da pena, tal não impede que o Estado português, na sua qualidade de Estado de execução, conceda ao recluso em causa uma adaptação favorável da pena, dentro dos limites das possibilidades previstas na lei portuguesa em matéria de execução de penas, considerando extinta a pena pelo cumprimento da obrigação.
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães


I. Relatório

O Exmo. Procurador da República, a exercer funções neste Tribunal da Relação de Coimbra, ao abrigo da DECISÃO-QUADRO 2008/909/JAI do CONSELHO de 27 de novembro de 2008 e dos artigos 3.º, n.º 2, 13.º, 14.º, 16.º, 16.º-A e 17.º, todos da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, veio requerer o reconhecimento e a execução em Portugal, a fim de ser cumprido neste país, do acórdão (837/2023), em matéria penal, proferido a 22 de março de 2023, pela 19ª secção penal do Tribunal Correcional do Luxemburgo, no âmbito do Processo nº7263/21/CD, transitado em julgado a 15 de maio de 2023, relativamente ao Requerido, ali condenado, AA, solteiro, nascido no dia ../../1985, em ... (...) – ..., filho de BB e de CC, portador do CC ...26, e ..., ..., ... e ..., ... – ..., formulado pelo GRÃO-DUCADO DO LUXEMBURGO.

Para tanto, alegou o seguinte [transcrição]:

- Pela 19.ª seção penal do Tribunal Correcional do Luxemburgo, no  âmbito do processo n.º 7263/21/CD, por acórdão proferido em 22 de março de 2023 (acórdão 837/2023), transitado em julgado no dia 15 de maio de 2023, foi o requerido condenado numa pena de nove (9) meses de prisão (a que corresponde uma pena de 270 dias de prisão) e  numa pena de multa de mil (1.000) euros, pela prática de um crime de abandono da família, previsto e punido pelo artigo 391.ºbis, do Código Penal Luxemburguês, por não ter cumprido as suas obrigações alimentares para com o seu filho, por força de uma decisão judicial irrevogável, quando estava em condições de o fazer.

- Vem, pois, solicitada a execução de nove (9) meses de prisão em Portugal, nos termos do art. 13.º, n.º 1 e ss. da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, por o arguido ser cidadão português e ter residência em Portugal, residindo atualmente na Rua ..., ... e ..., ... – ..., podendo tal facto apresentar-se como um fator favorável à sua reinserção social.

-  A pena em que o arguido foi condenado, e que tem ainda por cumprir, consta da certidão e da sentença juntas e foram transmitidas a este tribunal para reconhecimento e execução em conformidade com o disposto na Decisão-Quadro 2008/909/JAI de 27 de novembro de 2008, transposta para o direito interno pela Lei n.º 158/2015, de 17 de novembro, não oferecendo, por isso, dúvida a autenticidade dos documentos remetidos.

-  A certidão foi emitida de acordo com o formulário cujo modelo constitui o anexo I deste diploma, encontrando-se devidamente preenchida, estando assegurada a sua tradução

(cf. os artigos 16.º, n.º 1 e 19.º, n.º 2, da Lei n.º 158/2015).

- Este tribunal é o territorialmente competente para reconhecer a sentença condenatória, de acordo com o disposto no artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 158/2015, com base na certidão emitida pela autoridade de emissão, devendo ser tomadas as medidas necessárias ao seu reconhecimento (artigo 16.º, n.º 1, do mesmo diploma).

- Dos elementos documentais remetidos pelas autoridades luxemburguesa, à partida, nenhuma causa de recusa de reconhecimento e de execução da sentença, designadamente das que são mencionadas no art. 17.º da citada Lei n.º 158/2015.

- De resto, os factos que justificaram o pedido de reconhecimento e execução da sentença, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação, constituem, em Portugal, o crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punível pelo artigo 250.º do Código Penal.

Em conformidade com o alegado e considerando o disposto na Decisão-Quadro  2008/909/JAI de 27 de novembro de 2008, transposta para o direito interno pela Lei n.º 158/2015, de 17 de novembro, requereu que seja proferida decisão de reconhecimento da sentença condenatória proferida pelo Tribunal Correcional do Luxemburgo em conformidade com o disposto nos artigos 16.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, da Lei n.º 158/2015, a fim de ser executada em Portugal, e, consequentemente, seja o arguido determinado a cumprir em Portugal a pena de nove (9) meses de prisão (270 dias) que tem ainda por cumprir;

O Digníssimo Requerente juntou o pedido de execução da pena formalizado pelo Grão-Ducado do Luxemburgo; certificado emitido ao abrigo da Decisão-Quadro 2008/909/JAI de 27 de novembro de 2008, devidamente traduzido; cópia do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Correcional do Luxemburgo, devidamente traduzida e demais expediente recebido da autoridade judiciária Luxemburguesa – Delegada do Procurador do Ministério Público.

Nomeado defensor oficioso e cumprido o disposto no art. 16ºA, nº1 da Lei n.º 158/2015, de 17.09, o Requerido veio deduzir oposição, defendendo, em suma:

- por um lado, existe o motivo de recusa de reconhecimento e de execução a que alude o artigo 17º, nº1,al.c), da referida Lei - “Num caso do nº2, do artigo 3º, a sentença disser respeito a factos que não constituam uma infração, nos termos da lei portuguesa”- por inexistir ofensa ao bem jurídico tutelado pela incriminação.

 Segundo o Requerido, a justificação politico-criminal subjacente à tipificação do crime é a de proteger o titular dos alimentos face aos perigos de não satisfação das suas necessidades fundamentais e, paralelamente, de onerar instituições da segurança social com prestações que, em princípio, caberiam legalmente a particulares. Desse modo, só as obrigações de alimentos cujo não cumprimento poderiam implicar um ónus para as instituições de segurança social portuguesas devem estar sujeitas à tutela da lei penal portuguesa.  Assim, nas obrigações de alimentos com conexão com o estrangeiro, e em particular no presente caso, a violação de alimentos ao seu filho DD no Luxemburgo, não implicando a oneração das instituições de segurança social portuguesas, não constitui crime em Portugal por inexistir ofensa ao bem jurídico tutelado pela incriminação. 

-por outro lado, que já efetuou o pagamento das quantias que se encontravam em dívida, a saber:

- €10.844,57 relativos ao período de 1 de setembro de 2012 a 1 de julho de 2017;

- €19.056,02, relativos ao período de agosto de 2017 a fevereiro de 2023;

- a que acresce ainda o pagamento de €1.000,00, relativos à indemnização por danos morais em que foi condenado – cfr. comprovativo de transferência junto, tendo ainda procedido ao pagamento das pensões de alimentos que entretanto se venceram, juntando também o respetivo comprovativo.

Face a tal  pagamento,  invocando o artigo 250º,nº6, do Código Penal, de acordo com o qual “se a obrigação vier a ser cumprida, pode o tribunal dispensar de pena ou declarar extinta, no todo ou em parte, a pena ainda não cumprida”, e ainda o disposto nos artigos 15º,nº1  e 16º,nº4, da Lei 158/2015, de 17/9 e no artigo 238º do CPP, requer que se negue força executiva à sentença revidenda, atenta a causa de extinção da pena, devendo ser proferida decisão que adapte a sentença a rever à “medida prevista na lei interna para infrações semelhantes”, declarando extinta a pena, conforme previsto no n.º 6 do art.º 250.º CPenal.

 Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.

Cumpre apreciar e decidir, sendo este Tribunal territorialmente competente para o efeito, por ser o tribunal da Relação da área da residência habitual em Portugal do condenado, sita em ..., ..., ... e ..., ... – ... (cf. art. 13º, n.º 1, da Lei n.º 158/2015, de 17.09).

Não se verificam nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.




II. Fundamentação

A)

Face ao teor dos documentos juntos aos autos, designadamente, da certidão emitida pela autoridade de emissão, da cópia do acórdão condenatório em apreço e do demais expediente recebido da autoridade judiciária luxemburguesa, ressuma provado o seguinte:

1) Pela 19.ª seção penal do Tribunal Correcional do Luxemburgo, no  âmbito do processo n.º 7263/21/CD, por acórdão proferido em 22 de março de 2023 (acórdão 837/2023), transitado em julgado no dia 15 de maio de 2023, foi o requerido condenado numa pena de nove (9) meses de prisão (a que corresponde uma pena de 270 dias de prisão) e  numa pena de multa de mil (1.000) euros, pela prática de um crime de abandono da família, previsto e punido pelo artigo 391.ºbis, do Código Penal Luxemburguês, por não ter cumprido as suas obrigações alimentares para com o seu filho, por força de uma decisão judicial irrevogável, quando estava em condições de o fazer.

            2) AA foi condenado com base nos seguintes factos:

            “Por a partir do trânsito em julgado da sentença nº2737/14, de 18/11 de 2014, até 8 de dezembro de 2022 (dia da citação), em ..., L-4331 Esch/Alzette, como pai,  não ter cumprido as suas obrigações alimentares para com o filho, por força de uma decisão judicial irrevogável, quando estava em condições de o fazer, neste caso, de se ter subtraído às obrigações alimentares de DD, apesar da sentença nº2737/14, de 18 de novembro de 2014 do Tribunal de Esch/Alzette”.

3) Os pagamentos em atraso eram relativos ao período de 1 de setembro de 2012 a 1 de julho de 2017, no montante de €10.844,57 e ao período de agosto de 2017 a fevereiro de 2023, no montante €19.056,02.

4) A pena em que o arguido foi condenado, e que tem ainda por cumprir, consta da certidão e da sentença juntas e foram transmitidas a este tribunal para reconhecimento e execução em conformidade com o disposto na Decisão-Quadro 2008/909/JAI de 27 de novembro de 2008, transposta para o direito interno pela Lei n.º 158/2015, de 17 de novembro, não oferecendo, por isso, dúvida a autenticidade dos documentos remetidos.

5)  A certidão foi emitida de acordo com o formulário cujo modelo constitui o anexo I deste diploma, encontrando-se devidamente preenchida, estando assegurada a sua tradução

(cf. os artigos 16.º, n.º 1 e 19.º, n.º 2, da Lei n.º 158/2015).

            6) O Requerido não esteve presente na audiência realizada em 1 de março de 2023, nem se fez representar, apesar da notificação para comparecer ter sido feita pessoalmente.

            7) O acórdão de 22 de março de 2023, considerado contraditório por falta de comparência, apesar de a notificação para comparecer ter sido feita pessoalmente, bem como uma nota explicativa sobre eventuais recursos, foram notificados por correio para o seu domicílio em 4 de abril de 2023.

            8) O Requerido não contestou a decisão, que se tornou definitiva após 40 dias, ou seja, em 15 de maio de 2023.

            9) O Requerido tem nacionalidade portuguesa, possui residência em Portugal, tendo a autoridade de emissão considerado que a execução da condenação em Portugal contribuirá para atingir o objetivo de facilitar a reinserção social do condenado.

B)

A transmissão do acórdão  a este tribunal da Relação para o seu reconhecimento foi efetuada com base em pedido para tanto formulado pela competente Autoridade Central -  Ministério Público do G.D. Luxemburgo, visando que seja reconhecido e executado em Portugal o acórdão proferido em 22 de março de 2023 (acórdão 837/2023), transitado em julgado no dia 15 de maio de 2023, nos termos do qual o requerido foi condenado numa pena de nove (9) meses de prisão (a que corresponde uma pena de 270 dias de prisão) e  numa pena de multa de mil (1.000) euros, pela prática de um crime de abandono da família, previsto e punido pelo artigo 391.ºbis, do Código Penal Luxemburguês, por não ter cumprido as suas obrigações alimentares para com o seu filho, por força de uma decisão judicial irrevogável, quando estava em condições de o fazer.

A sobredita pretensão estriba-se na Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, na redação que lhe foi introduzida pela Lei nº 115/2019, de 12 de setembro, que aprovou o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade, para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia, bem como o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças e de decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas.

O petitório consubstancia-se no reconhecimento e execução em Portugal da sentença em matéria penal que impôs ao Requerido uma pena de prisão, proferida pela autoridade competente de outro Estado membro da União Europeia (Luxemburgo), com o objetivo de facilitar a reinserção social do condenado - cf. art. 1º, n.º 1, 2ª parte, da Lei n.º 158/2015, de 17.09. Esta Lei nº 158/2015, transpondo a Decisão-Quadro 2008/909/JAI, de 27 de novembro, do Conselho, veio substituir o regime de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, previsto e regulado nos arts. 234º a 240º do Código de Processo Penal, estabelecendo para estes casos um procedimento específico mais simples e célere, que se insere no âmbito da cooperação internacional em matéria penal, visando concretamente o reconhecimento da sentença penal estrangeira e a execução, em Portugal, da condenação. Com efeito, de acordo com o disposto no art. 229º do referido código, os efeitos das sentenças penais estrangeira são regulados pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial e ainda pelas disposições do seu Livro V (Relações com autoridades estrangeiras e entidades judiciárias internacionais).

            Preceitua o artigo 16º, n.º 1, da Lei nº 158/2015 [diploma legal a que nos referimos sempre que outro não seja invocado], que “Recebida a sentença, devidamente transmitida pela autoridade competente do Estado de emissão e acompanhada da certidão emitida de acordo com modelo que consta do anexo i à presente lei, o Ministério Público promove o procedimento de reconhecimento, observando-se o disposto no artigo seguinte.”

Por      seu turno, dispõe o artigo 17º [com a epígrafe "Causas de recusa de reconhecimento e de execução"]:

“1-A autoridade competente recusa o reconhecimento e a execução da sentença quando:

a) A certidão a que se refere o artigo 8.º for incompleta ou não corresponder manifestamente à sentença e não tiver sido completada ou corrigida dentro de um prazo razoável, entre 30 a 60 dias, a fixar pela autoridade portuguesa competente para o reconhecimento;

b) Não estiverem preenchidos os critérios definidos no n.º 1 do artigo 8.º;

c) A execução da sentença for contrária ao princípio ne bis in idem;

d) Num caso do n.º 2 do artigo 3.º, a sentença disser respeito a factos que não constituam uma infração, nos termos da lei portuguesa;

e) A pena a executar tiver prescrito, nos termos da lei portuguesa;

f) Existir uma imunidade que, segundo a lei portuguesa, impeça a execução da condenação;

g) A condenação tiver sido proferida contra pessoa inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos pelos quais foi proferida a sentença;

h) No momento em que a sentença tiver sido recebida, estiverem por cumprir menos de seis meses de pena;

i) De acordo com a certidão, a pessoa em causa não esteve presente no julgamento, a menos que a certidão ateste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos na lei do Estado de emissão:

i) Foi atempada e pessoalmente notificada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto e que foi atempadamente informada de que podia ser proferida uma decisão mesmo não estando presente no julgamento;

ii) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor por si designado ou beneficiou da nomeação de um defensor pelo Estado, para sua defesa, e foi efetivamente representada por esse defensor; ou

iii) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso que permita a reapreciação do mérito da causa, incluindo a apresentação de novas provas, que pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, declarou expressamente que não contestava a decisão ou não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável;

j) Antes de ser tomada qualquer decisão sobre o reconhecimento e execução da sentença, Portugal apresentar um pedido nos termos do n.º 4 do artigo 25.º, e o Estado de emissão não der o seu consentimento, nos termos da alínea g) do n.º 2 do mesmo artigo, à instauração de um processo, à execução de uma condenação ou à privação de liberdade da pessoa em causa devido a uma infração praticada antes da sua transferência mas diferente daquela por que foi transferida;

k) A condenação imposta implicar uma medida do foro médico ou psiquiátrico ou outra medida de segurança privativa de liberdade que, não obstante o disposto no n.º 4 do artigo anterior, não possa ser executada em Portugal, em conformidade com o seu sistema jurídico ou de saúde;

l) A sentença disser respeito a infrações penais que, segundo a lei interna, se considere terem sido praticadas na totalidade ou em grande parte ou no essencial no território nacional, ou em local considerado como tal.”

Urge ainda trazer à liça o artigo 3º, n.º 2, que prescreve que “No caso de infrações não referidas no número anterior, o reconhecimento da sentença e a execução da pena de prisão ou medida privativa da liberdade, da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas, bem como o reconhecimento da decisão relativa à liberdade condicional pela autoridade judiciária portuguesa competente, ficam sujeitos à condição de a mesma se referir a factos que também constituam uma infração punível  pela lei interna, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação na legislação do Estado de emissão”.

No caso vertente, a sentença objeto de reconhecimento condenou o ora Requerido pela prática de um crime de “abandono da família”, p. e p. pelo artigo 391º do Código Penal Luxemburguês, constituindo os factos pelos quais foi condenado ( elencados supra no ponto 2), independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação, o crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punido pelo artigo 250º do Código Penal), pelo que verifica condição da dupla incriminação.

Não pugnamos do entendimento do requerido quando defende que a sentença diz respeito a factos que não constituem ofensa ao bem jurídico tutelado pelo tipo legal de crime a que alude o citado artigo 250º.

Como já referimos, segundo o Requerido, trazendo à liça o entendimento perfilhado por Damião da Cunha, in Comentário Conimbricense, Tomo II, pág. 624, §11 e §12, a justificação politico-criminal subjacente à tipificação do crime é a de proteger o titular dos alimentos face aos perigos de não satisfação das suas necessidades fundamentais e, paralelamente, de onerar instituições da segurança social com prestações que, em princípio, caberiam legalmente a particulares. Desse modo, só as obrigações de alimentos cujo não cumprimento poderiam implicar um ónus para as instituições de segurança social portuguesas devem estar sujeitas à tutela da lei penal portuguesa.  Assim, nas obrigações de alimentos com conexão com o estrangeiro, e em particular no presente caso, a violação de alimentos ao seu filho DD no Luxemburgo, não implicando a oneração das instituições de segurança social portuguesas, não constitui crime em Portugal por inexistir ofensa ao bem jurídico tutelado pela incriminação.

Tal restrição, de acordo com o mencionado autor, justifica-se não só em função do bem jurídico em causa, mas também pelo facto de o direito penal português não ter por tarefa zelar pelos interesses fiscais de outros Estados.

Não pugnamos, porém, desse entendimento.

Temos para nós que o bem jurídico protegido pela incriminação é a satisfação das “necessidades fundamentais” do titular do direito a alimentos, e não também os “interesses fiscais” do Estado português.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ªEd.atualizada, pág.918, em anotação ao artigo 250º, esta disposição legal inclui a obrigação de alimentos do estrangeiro relativamente a pessoa residente no estrangeiro, considerando, sem razão, os “interesses fiscais” do Estado português como um bem jurídico implicitamente protegido, tal como defendido por Damião da Cunha.

Em suma, mostra-se verificada a dupla incriminação, ficando afastada a invocada causa de recusa de reconhecimento e execução.

Prosseguindo, mostram-se também preenchidos todos os pressupostos de que depende o reconhecimento da sentença estrangeira em questão e a execução, em território português, da pena aplicada ao requerido, conforme é solicitado.

Com efeito, desde logo, a sentença foi transmitida a Portugal para esses efeitos, pela autoridade competente do Estado de emissão (Luxemburgo), acompanhada da certidão cujo modelo consta do anexo I à Lei n.º 158/2015, a qual se mostra devidamente preenchida e traduzida para a língua portuguesa, correspondendo à decisão judicial (cf. arts. 8º, n.º 1, 16º, n.º 1, 17º, n.º 1, als. a) e b), e 19º, n.ºs 1 e 2, desse diploma). Por outro lado, não se verifica qualquer outra das causas de recusa de reconhecimento e de execução previstas nas restantes alíneas do n.º 1 do artigo 17º, nem qualquer dos motivos de adiamento dos mesmos nos termos do seu artigo 19º.

Particularmente, não há notícia de que a execução contrarie o princípio ne bis in idem, nos termos da lei portuguesa a pena não se mostra prescrita, não existe uma imunidade que impeça a execução da condenação, o condenado mostra-se imputável em razão da idade (nasceu a ../../1983,  sendo que os factos foram perpetrados desde 1 de setembro de 2012 a fevereiro de 2023) e estão por cumprir mais de seis meses da pena [cfr. als. c), e), f), g) e h) do artigo 17º].

Acresce que, embora o Requerido não tenha estado presente na audiência realizada em 1 de março de 2023, nem se feito representar, foi notificado pessoalmente para comparecer. Já o acórdão de 22 de março de 2023, considerado contraditório por falta de comparência, apesar de a notificação para comparecer ter sido feita pessoalmente, bem como uma nota explicativa sobre eventuais recursos, foram notificados por correio para o seu domicílio em 4 de abril de 2023, não tendo aquele contestado a decisão [cfr. al. i) do artigo 17º], e a infração em causa foi praticada em território nacional ou em local considerado como tal [cfr. al. l) do artigo 17º].

Mais se constata que o requerido tem nacionalidade portuguesa e residência em Portugal, tendo a autoridade de emissão considerado que a execução da condenação neste país contribuirá para atingir o objetivo de facilitar a reinserção social do condenado, prescindindo a lei do consentimento do requerido para o efeito – cf. arts. 10º, nº5 e 17º, nº1, al. b).

Por último, dir-se-á, para efeitos do disposto no art. 16º, nº3, que a duração da pena aplicada (9 meses) não se mostra incompatível com a lei portuguesa, não excedendo a pena máxima prevista no nosso ordenamento jurídico-penal para infrações semelhante: até 2 anos (artigo 250º, do Código Penal).

Por conseguinte, nada obsta ao reconhecimento da sentença condenatória proferida pelo Tribunal Correcional do Luxemburgo.

E nada impediria a sua execução também se não se tivesse demonstrado, como veio a ocorrer, que a obrigação de alimentos violada pelo requerido, foi, entretanto, cumprida, cumprimento posterior este que conduzindo, efetivamente, nos termos da legislação penal portuguesa, à extinção da pena aplicada nos termos do artigo 250º,nº6, do Código Penal, tem reflexos na sua própria execução, a qual se rege pela legislação nacional do Estado de execução, no caso pela lei portuguesa (art.15,nº1) .

Na sequência de informação por nós solicitada, vieram as autoridades luxemburguesas informar que embora a lei luxemburguesa não contemple para o crime de abandono familiar uma norma equivalente ao artigo 250, nº6 do Código Penal português, e daí que mesmo paga a pensão devida após  sua condenação, este pagamento não conduza à extinção da pena, nem à retirada da certidão 909/2008, tal, porém, não impede que o Estado português, na sua qualidade de Estado de execução, conceda ao recluso em causa uma adaptação favorável da pena, dentro dos limites das possibilidades previstas na lei portuguesa em matéria de execução de penas. 

Ora, de acordo com a sentença estavam em dívida, a título de alimentos, a quantia de € 10.844,57, relativa ao período de 1/09/2012 a julho de 2017, e a quantia de € 19.056,02, relativa ao período de agosto de 2017 a fevereiro de 2023 (cfr. referência 225795).

E de acordo com os comprovativos juntos com o requerimento apresentado pelo requerido a 3/10/2023 (cfr. referência 226533), conjugados com a informação prestada pela mandatária de EE – pessoa à qual os alimentos eram  devidos – (cfr. referência 231586), conclui-se que efetivamente os valores que estiveram subjacentes à condenação do requerido se encontram, atualmente, completamente liquidados e integralmente pagos.

Em face do exposto, face a tais elementos e atenta a posição assumida pelas autoridades luxemburguesas (cfr. referência 227746, de 10/11/2023, e referência 228248, de 28/11), impõe-se, ao abrigo do disposto nos artigos 15º,nº1, 16º,nº4, aplicando o disposto no art. 250.º, n.º 6 do C.P., declarar extinta a pena aplicada ao requerido.


III. Dispositivo:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

Reconhecer o acórdão em matéria penal proferido em 22 de março de 2023 pela 19ª secção penal do Tribunal Correcional do Luxemburgo, no âmbito do Processo nº7263/21/CD, transitado em julgado a 15/05/2023, que condenou o Requerido AA, na pena de 9 meses de prisão, declarando-se porém extinta a pena por cumprimento da obrigação, nos termos do artigo 250, nº6, do Código Penal Português.

Sem custas.


*

            Após trânsito:

            - Comunique a presente decisão ao Estado emissor - art.° 21, al. c), da Lei. n° 158/2015, de 17.09;

- Informe-se a autoridade competente do Estado de emissão e ao membro nacional de Portugal junto da EUROJUST a instauração deste procedimento de cooperação judiciária penal – artigo 21, al. a) da Lei n.º 158/2015.

                              


                    Coimbra, 24 de abril de 2024

  Cândida Martinho

 (Juiz Desembargadora Relatora)

Capitolina Fernandes Rosa

(Juiz Desembargadora 1ªAdjunta)

  Maria José Guerra

   (Juiz Desembargadora 2ªAdjunta)