Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/18.7JAGRD-H.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: LEVANTAMENTO DE SIGILO
ADVOGADO CONSTITUÍDO MANDATÁRIO JUDICIAL
DEPOIMENTO COMO TESTEMUNHA
INVALIDADE DE TRANSAÇÃO
DEVER PREVALECENTE
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: LEVANTAMENTO DE SIGILO
Decisão: INDEFERIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 417.º, N.º 5, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 135.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E 97.º, N.ºS 1 E 2, DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Sumário: I – Nunca pode ser autorizado o depoimento de advogado em processo principal ou em processo apenso, em que esteja, ou tenha sido, constituído mandatário judicial e ainda que tenha havido revogação ou renúncia ao mandato.
II – A incompatibilidade de papéis mais se agudiza quando é a parte contrária que pretende a sua audição, em conflito aberto contra os interesses do seu ex-cliente.

III – Consistindo o objeto do litígio averiguar da nulidade ou anulabilidade da transação celebrada no processo apenso, com fundamento na existência de erro do A./recorrente provocado pelo advogado, então seu mandatário e com quem se incompatibilizara, e indicado o mesmo como testemunha pela parte contrária, o dever de sigilo profissional deverá prevalecer sobre o interesse na descoberta da verdade, sendo de indeferir o pedido de quebra de tal sigilo formulado por esta.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: José Avelino Gonçalves

2º Adjunto: Arlindo Oliveira

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Instaurada execução em que era exequente AA e executado BB, penhorados que foram bens comuns, foi pelo cônjuge do executado, CC, requerida a Separação Judicial de Pessoas e Bens, e o correspondente processo de inventário para separação da meação nos bens comuns (Apenso D)

No decorrer do processo de inventário, no qual AA (exequente) constituiu seu mandatário o Dr. DD, e designada audiência prévia, pelos interessados foi apresentado um acordo e elaborado o Mapa da partilha, tendo sido proferida sentença homologatória.

Tendo-se, entretanto o credor AA desentendido com o seu advogado Dr. DD, constituiu novo mandatário instaurando, por apenso, Recurso Extraordinário de Revisão, em que são demandados CC e BB, requerendo a nulidade da transação homologada no inventário para separação de meações que constitui o Apenso D.

Vieram os demandados CC e BB, indicar como testemunha o ilustre Advogado, Dr. DD, que se escusou a depor com fundamento nas alíneas a) a c) do artigo 417º do Código de Processo Civil.

 

 O juiz a quo proferiu despacho a considerar legítima a escusa em depor, uma vez que tendo sido Mandatário do Requerente “torna-se por demais evidente que as declarações a ser prestadas dirão respeito, senão única e exclusivamente, pelo menos parcialmente, a factos ou documentos que tenha tido conhecimento no exercício das suas funções de mandatário e ao abrigo da relação profissional que manteve com o aqui requerente”, pelo que tais declarações sempre estariam cobertas pelo sigilo profissional a que alude o artigo 92º do EOA.

CC veio, então, suscitar o presente Incidente para quebra ou levantamento do sigilo profissional, relativamente à testemunha por si arrolada, Dr. DD, nos termos do nº3 do artigo 135º, do CPP, por força do nº5 do artigo 417º do NCPC.

A solicitação deste tribunal, pelo Conselho Distrital da Ordem dos Advogados foi emitido parecer nos termos previstos no art. 135º, ns. 3 e 4, do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 417º, nº4 do Código de Processo Civil, tendo-se o mesmo pronunciado pela impossibilidade de o Dr. DD depor como testemunha – e, portanto, impossibilidade de quebra de sigilo –, pelo facto de “o exercício de funções de mandatário/patrono nomeado e de testemunha, num mesmo processo (ainda que em momentos diferentes) e/ou processos conexos, como é o caso, é considerado uma real incompatibilidade.”

Dispensados os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4, do artigo 657º do CPC, há que decidir.


*

II. INCIDENTE

A questão em apreço consiste em decidir se deve ser ordenada a quebra do sigilo profissional do Dr. DD, que tendo sido mandatário do aqui Requerente no processo cuja decisão se pretende rever e, tendo sido indicado como testemunha pelos Requeridos, se escusou a depor com fundamento nas als. a) a c) do artigo 417º do CPC.

Segundo o nº1 do artigo 417º do NCPC (anterior 519º), que concretiza do dever de cooperação com o tribunal, “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.

Contudo, o nº3 da citada norma prevê como legítima, na sua alínea c), a recusa a tal colaboração, se a obediência importar, nomeadamente, a violação do sigilo profissional.

Quando tal ocorra, o tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, pode decidir pela quebra do sigilo profissional sempre que este se mostre justificado face às normas e princípios aplicáveis, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante, parametrizado pela imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e pela necessidade de proteção de bens jurídicos[1]  – nº 3 do artigo 135º do CPP, aplicável por força do nº4 do artigo 417º do NCPC.

A legitimidade da escusa e a dispensa do dever de segredo profissional em processo civil encontra-se prevista por remissão para o disposto no processo penal, “com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa”.

 Dispõe a tal respeito o artigo 135º do Código de Processo Penal:

Segredo profissional

1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.

Aplicando-se tal procedimento a todos os casos de existência de sigilo profissional, com exceção do segredo religioso, relativamente ao qual se encontra expressamente afastada a possibilidade de o tribunal decretar a sua quebra, haverá que efetuar uma leitura de tais normas, adaptada à natureza do processo civil, e tendo em consideração o regime legal da ordem profissional a que a testemunha pertença.

No anterior Código de Processo Civil, e até à revisão de 1995-1996, eram consideradas inábeis para depor como testemunhas as pessoas vinculadas ao segredo profissional (al. a) do artigo 618º-1, na redação dada pelo DL 47.690, de 11 de maio de 67).

Tal revisão, introduzindo o regime ainda hoje vigente, veio reforçar o principio da cooperação para a descoberta da verdade, permitindo que as pessoas vinculadas ao segredo profissional sejam ouvidas como testemunhas, impondo-lhes apenas o dever de escusa a depor relativamente aos factos sujeitos a sigilo (nº3 do artigo 417º).

A reforma do processo civil introduzida pelo Dec. Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, procurou reforçar a concretização do princípio da cooperação, delimitando as hipóteses de recusa de colaboração em matéria probatória, acentuando-se “a vertente pública da realização da justiça e a permanência desse valor, na tutela dos interesses particulares atendíveis dos cidadãos”, como expressamente consta do preâmbulo de tal diploma:

“O mesmo interesse público, conatural à função de administração da justiça, como valor intersubjetivo e de paz social, legitimará que o interesse de ordem pública que também preside à estatuição de tais sigilos ceda em determinados casos concretos, mediante a respetiva dispensa, e isso mesmo exatamente se consagra, admitindo a aplicação, ponderada em função da natureza civil dos interesses conflituantes, do regime previsto na legislação processual penal para os casos de legitimação de escusa ou dispensa do dever de sigilo”.

“O tribunal superior, ao realizar o juízo que ditará qual o interesse que, em concreto, irá prevalecer, carece de atuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevante interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, “maxime, o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão[2]”.

O dever de segredo profissional do advogado encontra-se consagrado no artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados:

“Segredo profissional

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

Se o dever de colaboração com a administração da justiça tem por fim a satisfação de um interesse público – o de uma boa administração da justiça, como bem essencial numa sociedade – também o dever de sigilo do advogado reveste natureza de ordem pública.

O sigilo profissional assume uma dupla vertente, destinando-se, por um lado, a garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente (principio da confiança), e por outro lado, afiançando o interesse público do advogado fundado na função social da advocacia e no interesse público de um exercício digno da função[3].

“Casuisticamente há que determinar se prevalece o direito à prova ou as razões que justificam a invocação do sigilo, sendo que tal ponderação se rege necessariamente pelo princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade (artigo 18º, nº2, da CRP), o qual se desdobra nos subprincípios da adequação da idoneidade, da exigibilidade ou necessidade ou justa medida ou proporcionalidade no sentido estrito[4]”.

Mas se o direito à escusa a depor com fundamento no segredo profissional do advogado não é um direito absoluto, só em casos muito excecionais deverá ser quebrado e quando estejam em causa interesses altamente relevantes que não possam ser satisfeitos por outra via[5].

Devendo o conflito entre o interesse na descoberta da verdade e o dever de sigilo ser resolvido à luz do interesse preponderante ligado ao conceito de imprescindibilidade para a descoberta da verdade, ter-se-á de demonstrar que o interesse que se pretende proteger supera, de forma clara, o interesse fiduciário que se irá quebrar com a exigência de um depoimento forçado do advogado[6].

Sendo o apuramento de qual seja o interesse preponderante feito mediante a apreciação dos contornos do litígio em concreto, e atendendo-se a que o princípio da cooperação com o tribunal se destina aqui a acautelar interesses privados patrimoniais das partes (e não interesses públicos como sucede necessariamente em processo penal) analisemos o caso em apreço.

A parte que indicou o Dr. DD e que, face à escusa por parte deste em depor, invocando o sigilo profissional, veio deduzir incidente de quebra do sigilo, alegando, quanto à imprescindibilidade deste depoimento para a descoberta da verdade, o seguinte:

consistindo o objeto do litígio averiguar da nulidade ou anulabilidade da transação celebrada a 02-02-2022 nos autos de inventário que correm termos no apenso D, pretendem a sua audição quanto aos temas de prova indicados sob as als. b) e c) (existência de erro do A/recorrente provocado pelo então mandatário, Dr. DD e pelos Réus, e aproveitamento da situação de inexperiência e dependência do A, pelo seu mandatário, Dr. DD e pelos RR/recorridos);

tais temas de prova são demonstráveis, apenas e tão só, por prova testemunhal por parte do Dr. DD, uma vez que tal matéria é apenas conhecida pelas partes e pelos seus advogados, designadamente o Dr. DD, ao tempo mandatário do recorrente e do advogado signatário, enquanto mandatário dos recorridos aqui requerentes;

pretendem os recorridos ouvir o Dr. DD quanto aos termos desse acordo.

Relativamente à imprescindibilidade do depoimento de tal testemunha, a confirmar-se, a sua não audição levaria à não prova dos factos em que se fundamenta o recurso de revisão, uma vez que, é sobre o recorrente, e não sobre os recorridos que incumbe o ónus da prova de tais factos; de qualquer modo, sempre se poderá afirmar que os recorridos têm direito à contraprova; no entanto, a audição do advogado, então mandatário da parte contrária, não seria o único meio de prova, uma vez que poderiam requerer o depoimento de parte do autor, bem como as suas próprias declarações de parte.

Por outro lado, ainda que reconhecêssemos tal imprescindibilidade, não se vê como sustentar, num processo cível, a quebra do sigilo com a finalidade de depor contra o seu próprio cliente e num apenso de um processo onde o advogado, aí seu mandatário, se incompatibilizou com o cliente.

Com efeito, o advogado indicado como testemunha foi mandatário do exequente (agora requerente no recurso de revisão), com o qual se incompatibilizou, vindo o exequente/recorrente a constituir novo advogado, e a instaurar o presente recurso de revisão com vista à anulação da transação homologada na execução e, quem vem requer a quebra do segredo profissional é a parte contrária (executados e requeridos no recurso de revisão), pretendo que aquele deponha contra o seu cliente, precisamente sobre os factos no qual ele participou enquanto mandatário do recorrente.

Como se fez constar do Parecer do Conselho Distrital da AO emitido no âmbito do presente incidente, “estamos perante a – insólita e, veremos inadmissível – situação em que o Advogado se prestaria a ser testemunha da parte contrária, assumindo posição diversa/divergente daquela que defendeu em nome e em representação de um seu ex-cliente, quando teve, ademais, intervenção direta e ativa em questões conexas com as que agora se discutem”.

A situação em apreço suscita duas questões, quanto aos interesses que subjazem ao sigilo profissional: i) se o mandatário ou ex-mandatário pode ser testemunha no processo/apensos em o mandato foi exercido; ii) em caso afirmativo, se o mesmo pode ser autorizado a depor contra o seu ex-cliente.

E tais questões têm vindo a obter resposta negativa, de forma unânime e vigorosa por parte da Ordem dos Advogados, e também pela doutrina e jurisprudência dominantes.

Nas palavras de Augusto Lopes Cardoso é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído, ou em qualquer apenso da ação principal: “É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha[7]”.

Tal era já defendido por Orlando Guedes Costa, na vigência do anterior EOA, aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de janeiro: “Cumpre salientar que nunca pode ser autorizado o depoimento de advogado em processo principal ou em processo apenso, em que esteja ou tenha sido constituído mandatário judicial, mesmo depois de substabelecer sem reserva ou de renunciar ao mandato, pois quem é ou foi participante na administração da justiça, como decorre do art. 6º, nº1, da LOFTJ, em determinado processo, não pode nele ser testemunha, como igualmente não pode o advogado aceitar mandato em processo em que já tenha intervindo noutra qualidade, como impõe o art. 94º, nº1, do EOA[8]”.

Na jurisprudência, sem que se encontre vozes dissonantes, igualmente se assume que “O estatuto da testemunha em processo cível é incompatível com o estatuto da ordem dos advogados, pelo que o advogado não pode ser testemunha num processo em que intervenha ou tenha intervindo nessa qualidade, nem num processo em que seja parte um sem cliente[9]”.

“A função da testemunha no processo, com o dever de comunicar ao tribunal, de forma isenta, objetiva e verdadeira, todos os factos acerca dos quais seja inquirida (cfr. al. d) do nº1 do art. 132º), não se coaduna com a do advogado que, não obstante participe na realização da Justiça, se encontra sempre condicionado pelo interesse da parte que representa e ao qual em muitos casos, tem de dar prevalência. Nessa medida, os deveres processuais do advogado – que não raro implicam o dever de preservar factos de que tenha conhecimento quando esteja em causa o interesse do seu constituinte –, não lhe permitem desempenhar as funções de testemunha de acordo com o figurino traçado na lei para quem ocupa esta posição processual[10]”.

Tal incompatibilidade de papéis mais se agudiza quando, no caso em apreço, é a parte contrária que pretende a sua audição, em conflito aberto com os interesses do seu ex-cliente, com vista a contraprova de uma alegada existência de erro do A/Recorrente, provocada precisamente pelo Dr. DD, então seu mandatário, e pelos RR., e que constituiu a causa de pedir do recurso de revisão.

Fundando-se a relação entre o advogado e o cliente na confiança reciproca, um dos deveres primordiais do advogado é, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas, agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente (artigo 97º, ns.1 e 2, OEA).

Como se sustenta no Parecer emitido pela Ordem dos Advogados, seguindo a posição defendida por Augusto Lopes Cardoso, “condição determinante para a análise de pedido de dispensa/quebra de segredo profissional é a verificação da defesa exclusiva do cliente. Nunca poderá um advogado prestar-se a depor contra anterior cliente e, com tal depoimento, prejudicá-lo”.

Concluindo, no conflito entre o dever de sigilo – cujos interesses no caso em apreço surgem em toda a sua dimensão, uma vez que, a par do interesse de interesse público relacionado com a função do advogado, surge aqui como premente a necessidade de proteção dos interesses do seu cliente – e o dever de cooperação com o tribunal, para apuramento de questões de carater patrimonial entre as partes, deverá prevalecer o dever de sigilo profissional.


*
 III – DECISÃO
Pelo exposto, nos termos do nº4 do artigo 417º, do NCPC, julga-se improcedente o incidente de quebra do dever de sigilo, não dispensando a testemunha Dr. DD do cumprimento do dever de sigilo profissional por si invocado nos autos.
 Custas do incidente nos termos que venham a ser determinados na decisão final a proferir nos autos principais.

                                                                                           Coimbra, 07 de maio de 2024

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

(…).

                                                                                             


[1] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p.492.
[2] Carlos Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Almedina, pags.363 e 364.
[3] Catarina Luísa Pires, “Deontologia Profissional”, p.5,
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 491.
[5] Acórdãos do TRP de 10-05-2024, relatado por Sousa Peixoto, e de 11-05-2011, relatado por Joaquim Gomes, disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] João Fernandes Moreira, “Múltiplas Implicações Legais e Práticas do Segredo Profissional”, Ab Instancia Ano V, nº7, 2017, 179.
[7]“O Segredo Profissional na Advocacia”, 2ª ed., Almedina, pp. 142-143, e, em igual sentido,  Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova Testemunhal”, Almedina, 2107-reimpressão, p.259.
[8] “Direito Profissional do Advogado, 3ª ed. – 2005, Almedina, p. 342, e, no mesmo sentido, Acórdão do TRL de 15-02-2018, relatado por Cristina Neves, https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/bde5bf88b401774c802582640049d071?OpenDocument.
[9] Acórdão do TRG de 16-01-2020, relatado por Margarida Almeida Fernandes, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Acórdão do TRP de 07-02-2007, relatado por Maria Leonor Esteves, in www.colectaneadejurisprudencia.com, e ainda Acórdão do TRP de 30.01.2017, relatado por Carlos Gil https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/1b7671a798bc9c87802580c000388136?OpenDocument.