Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
656/04.5JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
REINCIDÊNCIA
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Legislação Nacional: ARTS. 21º, N.º 1, DO DEC.-LEI N.º 15/93, DE 22.1; 75º, 76º DO CÓDIGO PENAL;
Sumário: I- A renovação da atividade criminosa infringindo norma que tutela os mesmos bens jurídicos (reincidência homótropa) permite a lógica constatação de que ao arguido foi indiferente a advertência resultante da anterior condenação.
II- Na reincidência polítropa ou heterogénea importa considerar uma base factual alargada, demonstrativa da relação entre a sucessão de crimes de natureza diversa e da possibilidade de a imputar a uma especial propensão criminosa ou, pelo menos, a circunstâncias que evidenciem uma maior culpa referida ao facto, justificativa da agravação da pena.
Decisão Texto Integral: Relator: Jorge Jacob
Adjuntos: Helena Lamas
João Abrunhosa

*

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

No âmbito destes autos de processo comum que correram termos pelo Círculo Judicial da ..., após julgamento foi proferido acórdão pelo tribunal colectivo de cujo dispositivo consta o seguinte:

 (…)

Consequentemente, o Tribunal Colectivo julga provada e procedente a douta pronúncia e decide:

Condenar o arguido AA na pena de oito (8) anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art. 21º, nº 1, do D.L. n° 15/93, de 22/1, agravado por reincidência.

Condenar este arguido na pena de três (3) anos de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelos artigos 275°, n° 1 do Código Penal e 3°, n° 1, al. a) do DL n° 207-A/75, de 17 de Abril, agravado por reincidência.

Condenar o mesmo arguido na pena de nove (9) meses de prisão, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma de caça, previsto e punido nos termos do artigo 6°, nº. 1, do DL n° 22/97, de 27 de Junho, agravado por reincidência.

Condenar ainda o arguido na pena de um (1) ano e seis (6) meses de prisão, pela prática de um crime continuado de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art° 3°, n° 2, do D.L. n° 2/98, de 3/1, agravado por reincidência.

Em cúmulo jurídico, fixamos ao arguido AA a pena única de nove (9) anos e seis meses de prisão.

O Tribunal Colectivo decide também:

Condenar a arguida BB, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art° 21°, nº 1, do D.L. nº 15/93, de 22/1, na pena de cinco (5) anos de prisão.

Suspender a execução da pena de prisão aplicada a esta arguida pelo prazo de cinco (5) anos, sob condição de não frequentar locais onde se faça tráfico ou consumo de drogas e de cumprir um plano de reinserção social definido e controlado pela D.G.R.S.

(…)

Inconformado, recorre o arguido AA, formulando as seguintes conclusões:

(…)

64. Dispõe o artigo 25º do Decreto-lei 15/93 de 22 de Janeiro dispõe o seguinte: “Se nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; prisão até dois anos ou multa até 240 dias, no caso de substancias ou preparações compreendidas na tabela IV;

65. A norma pune o tráfico de menor gravidade, (tipo privilegiado) – após nos artigos antecedentes se punir o crime base e o agravado – definido como aquele em que a ilicitude se mostrar consideravelmente diminuída e sendo referentes dessa diminuição da ilicitude, entre outros, «nomeadamente», os meios utilizados, a modalidade ou circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade dos produtos ilegais;

66. Assim, o artigo 21º do referido Decreto-lei dispõe o seguinte: n.º 1 “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”;

67. Fundamenta-se tal regime – trafico menor gravidade, artigo 25º do DL 15/93 de 22 de Janeiro – na diminuição considerável da ilicitude do facto, revelada pela ponderação e valoração conjunta dos diversos factores apurados, considerados na globalidade circunstancial da conduta dos infractores;

68. Ora, como de seguida se procurará demonstrar, a conduta do Recorrente AA, sem prescindir o supra referido, seria, quanto muito – e não abordando aqui a questão do consumidor e traficante-consumidor, p. e p. pelos artigos 40º e 26º respectivamente do DL 19/93, a qual tem que ser devidamente ponderada pelo Tribunal em decisão a preferir –, subsumível naquele previsão do artigo 25º, resultando desproporcionada e pouco conforme com o espírito que enferma a legislação penal, a condenação proferida pelo Tribunal a quo pela pratica do crime p. e p. pelo artigo 21º;

69. Ora, passando a analisar sistematicamente os vários aspectos da conduta do arguido CC tendo em atenção a sistematização empregue pelo insigne Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça conclui-se que: 1- Quanto à intenção lucrativa, admitindo-se para este efeito a prova produzida e que ao recorrente não são atribuídas quaisquer vendas ou vantagens económicas de qualquer índole ou proveniência, é imperativo concluir que aquele nunca teve como escopo o lucro; 2 - Quanto à personalidade do arguido e quanto às condições pessoais e económicas, nada resulta dos autos, uma vez que o mesmo foi julgado na ausência, contudo foi referido pelas testemunhas que o mesmo fazia a Feira em ..., tendo inclusivamente lá sido detido; 3 - Quanto ao quantitativo e qualidade da droga detida, admitindo-se para efeito de raciocínio a factualidade dada como provada, esta, tendo em conta o supra referido quanto ao princípio ativo, não se pode concluir, como concluir erradamente Tribunal a quo que se tratava de facto de 118,88 gramas de cocaína, uma vez que na generalidade dos casos de droga traficada, a percentagem de produto ativo é muito reduzida; 4 - Quanto aos meios utilizados, não foi dado como provados quaisquer factos a respeito, uma vez que o recorrente, e face à prova validamente produzida não se dedicava à compra e venda de produtos estupefacientes, contudo e a entender-se que o produto apreendido se destinava à venda, sempre seria forçoso concluir que o mesmo utilizava recursos básicos, elementares e pouco sofisticados, pelo que não indicia um tráfico com carácter sistemático e organizado, desde logo porque da busca à habitação onde residia o arguido nada foi encontrado, nomeadamente balanças, plásticos para acondicionamento, entre outros; 5 - Acresce ainda que, reitere-se, não existia qualquer tipo de organização empresarial por parte do aqui recorrente;

70. Ora, face a tudo o que vem sendo exposto, afigura-se-nos suficientemente claro, se se entender não ABSOLVER o arguido, que a conduta do Recorrente AA deverá quanto muito ser subsumida, salvo melhor opinião, no tipo legal do crime previsto no artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1, ou seja, de tráfico de menor gravidade, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos;

71. Acresce que, a não se entender assim, estar-se-ia a “meter no mesmo saco” os grandes traficantes ou todos aquele cujo principal móbil é o lucro e que transacionam grandes quantidades de estupefacientes, e aqueles que “apenas” adquiriram em conjunto cerca de 100 gramas, visando, única e exclusivamente conseguir manter os seus consumos e satisfazer a sua dependência ou visando vender a terceiros, não tendo contudo feito qualquer venda e desconhecendo-se sequer quanto corte tinha aquele produto estupefaciente e qual o respetivo principio ativo;

72. Aliás, no que respeita às quantidades de produto estupefaciente que foram apreendidas na revista a co-arguida BB, não querendo menosprezar a quantidade de cocaína apreendida ela é reduzida, sendo certo que sem se saber o grau de pureza e qualidade, esta poderia inclusivamente ter um valor de mercado muito reduzido;

73. O crime do art. 25.º é para o pequeno tráfico, onde se inclui o pequeno armazenista que apenas se dedicava a acomodar o produto estupefaciente sob directriz de outrem, não realizando quaisquer vendas nem obtendo qualquer vantagem económica – à exceção do seu consumo – da sua atuação – cfr. no mesmo sentido Eduardo Maia Costa, Direito penal da droga, RMP 74-103, ps. 114 ess. E por exemplo jurisprudência do STJ in www.stj.pt que supra se transcreveu;

74. Acresce que, a não se entender assim, a atenuante prevista no artigo 25º do citado diploma, ficaria desprovida de qualquer aplicação prática, não se logrando alcançar a “maleabilidade eventualmente desejada pelo legislador”, a que faz referência Lourenço Martins, in ob. citada, pág. 146;

75. Pelo exposto e atendendo a factualidade dada como provada nos presentes autos, o arguido terá necessariamente de ser absolvido, e sem prescindirem a ser condenado por crime de tráfico é nosso entendimento que a conduta dada por assente se subsume à previsão do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1;

76. Acresce ainda que, não deveria, nem poderia, face a insuficiência da matéria de facto dada como provada, ser o arguido condenado, como o foi, como reincidente, nos termos e pelas razões que infra referiremos e que aqui damos desde já por reproduzidas para todos os efeitos legais;

77. O Recorrente AA foi condenado da pratica de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 275º, n.º 1 do CP e 3º, n.º 1, al. a) do DL n.º 207-A/75, de 17 de Abril, agravado por reincidência – sendo que quanto a esta reincidência existe uma insuficiência para a decisão da matéria dada como provada, o que aqui se alega para os devidos e legais efeitos – e ainda de um crime de detenção ilegal de arma de caça, agravado pela reincidência – sendo que quanto a esta reincidência existe uma insuficiência para a decisão da matéria dada como provada, o que aqui se alega para os devidos e legais efeitos – isto apesar de inexistir qualquer prova segura e inequívoca que a armas em causa eram de sua propriedade ou estivessem na sua disponibilidade, as quais (propriedade e disponibilidade) não se pode presumir, até porque, como supra referimos não era a única pessoa que residia na habitação onde aquelas foram encontradas e apreendidas, pelo que deveria o aqui recorrente ter sido absolvido;

78. O Recorrente foi ainda condenado pela prática de um crime continuado de condução sem habilitação legal, agravado pela reincidência;

79. Ora, se concordamos que o crime em causa é um crime continuado, face a factualidade dada por assente, sendo manifesto constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente;

80. Agora não se deveria, tal como quantos aos demais crimes em que o aqui Recorrente AA foi condenado, aquele ter sido condenado como reincidente, tendo sido agravadas as respetivas penas;

81. De acordo com o disposto no artº 75º, nº 1, do CP, é punido como reincidente quem, por si ou sob qualquer forma de participação, cometer crime doloso que venha a ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime, o fundamento da agravação da pena;

82. São pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, «por si só ou sob qualquer forma de participação»: - ser o crime agora cometido doloso; - ser este crime,  sem a incidência da reincidência, punido com pena de prisão efectiva superior a 6 meses; - que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efectiva superior a 6 meses, por outro crime doloso; - que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos (prazo que se suspende durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coacção, de pena ou de medida de segurança);

83. Além destes pressupostos formais, a verificação da reincidência exige ainda um pressuposto material: - que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime;

84. Assim, a qualificativa em apreço não opera por mero efeito das condenações anteriores, porquanto a reiteração criminosa pode resultar de causas fortuitas ou exclusivamente exógenas – caso em que não há fundamento para a especial agravação da pena, por não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto;

85. A íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, antes exige uma ...específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuador (ver neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de: 28.02.2007, Proc. nº 9/07 – 3ª; 16.01.2008, Proc. nº 4638/07 – 3ª; 26.03.2008, Procs nºs 306/08 – 3ª e 4833/07 – 3ª do qual foi retirado o excerto supra);

86. No caso vertente, não resultaram provados quaisquer factos atinentes à prática dos crimes que determinaram as anteriores condenações dos arguidos em questão, nem outros de que resulte que a sua recidiva decorre da falta de interiorização, por estes, da censura penas subjacentes ao primeiro crime (aspecto motivacional das suas condutas);

87. Por isso, tem-se por não preenchida a agravante da moldura penal decorrente da reincidência, relativamente aos arguidos em apreço;

88. A escolha da pena reconduz-se, numa perspectiva politico-criminal a um movimento de luta contra a pena de prisão. A este propósito dispõe o art.º 70º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades dapunição”. Assim exprime, o legislador, a preferência pelas penas não privativas da Liberdade;

89. É certo que a única vantagem que a pena de prisão pode apresentar face a qualquer outra pena não privativa da liberdade, reside precisamente na circunstância de corresponder, ainda hoje, ao sentimento generalizado da comunidade a convicção de que, em muitos casos criminais, a privação de liberdade é o único meio adequado de estabilização contrafáctica das suas expectativas, se em seu entender “fazer-se justiça”, abaladas pelo crime, na vigência da norma violada, podendo ao mesmo tempo servir a socialização do transgressor;

90. Todavia não se poderá corresponder a tal sentimento generalizado da comunidade, condenando em penas de prisão efectiva. Antes de mais há que atender às constatações da moderna criminologia tendentes à afirmação de que “aquele que cumpre uma pena de prisão é desinvestido profissional e familiarmente, sofre o contágio prisional, fica estigmatizado com o labéu de ter estado na prisão e não é compensado, muitas vezes, com uma efectiva socialização”. Para além de que a privação da liberdade pode representar um peso diferente consoante a personalidade de quem a sofre sem que essa diferente “sensibilidade à privação da liberdade” possa ser adequadamente levada em conta na medida da pena. Não se olvidem, por fim, embora num plano diferente, os elevadíssimos custos financeiros públicos do sistema Prisional;

91. Por conseguinte, a opção pela pena de prisão só se justificará quando tal for imposto pelos fins das penas – previstos no art.º 40º, n.º 1 do Código Penal: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (sublinhado nosso);

92. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção conforme dispõe o art.º 71º, n.º 1 do Código Penal. Na determinação concreta da pena devem ponderar-se todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente as referidas no n.º 2 da mesma disposição legal;

93. Resulta do douto acórdão, nomeadamente da fundamentação relativa à medida da pena o seguinte: “De acordo com o disposto genericamente no artigo 71º do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido há-de atender-se à culpa do agente., às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal, possam depor a favor do agente ou contra ele. A culpa do arguido é elevada, dado que tem cadastro pelo mesmo tipo de crime de tráfico de estupefacientes, tendo cumprido 8 anos de prisão. A culpa da arguida é mediana por ser companheira do arguido e por isso andar conluiada com ele. É elevada a intensidade do dolo de ambos, que é direto. É elevada a ilicitude dos factos, por se tratar da posse, para venda, de uma droga “dura”, tendo o arguido na sua posse duas armas de fogo ilegais, além de conduzir sem carta, tudo numa atuação global que aparece ligada ao tráfico de droga, embora, olhada isoladamente, a ilicitude da condução ilegal seja menos grave que a dos demais crimes; São consideráveis as razões de prevenção especial quanto ao arguido, dado o seu passado delituoso, sendo médias quanto à companheira, atendendo a que a arguida não tem antecedentes criminais. São superiores à média as razões de prevenção geral, ada a frequência com que estes tipos de ilícito são praticados na região”;

94. Ora, desde logo, e salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não deu cabal cumprimento o disposto no n.º 2 do artigo 374º do Código Processo Penal, uma vez que, não fez uma exposição completa dos motivos de facto e direito que fundamentaram a concreta decisão aqui posta em crise, nomeadamente no que à medida da pena diz respeito;

95. Ora, ao não fundamentar suficientemente a sua decisão, nem esclarecer o processo lógico mental de convicção que lhe permitiu condenar o arguido como o fez, e da forma que o fez, ao recorrer a formulações genéricas, o douto Acórdão aqui posto em crise não habilita ou possibilita ao tribunal superior – no caso este Tribunal da Relação de Coimbra –, nem sequer ao recorrente, fazer uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório;

96. Pelo exposto o douto acórdão é nulo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea a) e 374º, n.º 2 do Código Processo Penal, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos;

97. Acresce que, sem prescindir, o citado Acórdão também viola a obrigação de fundamentar, de facto e de direito, todo e qualquer acto decisório proferido no decurso do processo (art. 97º, n.º 5 do Código Processo Penal e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), bem como, viola as garantias de defesa do processo criminal (art. 32º da Constituição da República Portuguesa), o que aqui também se invoca para os devidos e legais efeitos;

98. Pelo exposto deve o Acórdão aqui posto em crise ser declarado nulo e ordenada a sua reforma;

99. Contudo, sem prescindir a crítica e respectiva impugnação de parte da matéria de facto dada como provada, atendendo apenas e exclusivamente a matéria efectivamente dada como provada pelo Tribunal a quo no seu douto Acórdão, é nosso entendimento que decisão concretamente proferida contraria o objectivo da política criminal que a lei perspectiva e que a justiça não pode subtrair-se, que é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e da primazia e preferência da lei pelas penas não privativas da liberdade, uma vez que condenou o arguido, sem que tal o justificasse em concreto as necessidades de prevenção geral e especial e a própria culpa, em pena de prisão superior a cinco anos, com a agravante resultante da reincidência, quando poderia e deveria, tendo em conta as concretas necessidades de prevenção geral e especial, admitindo para efeito de raciocínio a prática de um crime de tráfico, p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93, ser o aqui recorrente, e não operande qualquer agravante, ser condenado em pena de prisão de 4 anos, e ser esta suspensa na sua execução, conforme infra demonstraremos;

100. O conteúdo reeducativo das penas consagra, além do aspecto punitivo a reintegração social do delinquente na sociedade. A matriz humanista do nosso direito penal não bloqueia esta realidade, antes a promove. O Recorrente, admitindo-se a autoria do crime para efeitos de raciocínio, terá necessariamente de ser punido. Mas esse castigo não lhe pode nem deve fechar as portas de uma ulterior vida honesta;

101. No caso em apreço, o Recorrente tem 60 anos de idade, os factos remontam aos anos de 2004 e 2005, e volvidos 18 anos após a prática não há qualquer notícia de que o arguido tenha praticados qualquer facto ilícito de idêntica natureza. O arguido encontra-se inserido social e familiarmente, tem apoio da família e é bem vista na freguesia onde reside;

102. O arguido merece uma nova oportunidade para continuar o seu percurso um caminho de rectidão e honestidade que pretende determinadamente prosseguir em sociedade, sendo que nesta altura tomar contacto com a realidade das prisões, poderá vir a ter uma influência perniciosa e contrária aos interesses de reinserção social que o nosso ordenamento institui;

103. Se não se entender absolver o arguido dos crimes de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93, o que se espera, deverá acontecer, e se se entender que a conduta do mesmo se enquadra na previsão do artigo 25º do DL 15/93, ou seja, no crime de tráfico de menor gravidade previsto, sendo que nesse caso a pena a aplicar ao aqui arguido não deverá ser superior a 2 anos, e ser suspensa na sua execução, por igual período e ainda sujeito a regime de prova, nos termos e pelas razões que infra referiremos;

104. No que aos crimes de detenção de arma proibida e detenção ilegal de arma de caça e de consução sem habilitação legal, sem prescindir tudo aquilo que referimos supra quanto à absolvição do arguido, deveria o mesmo, se se entender condenar pela prática dos crimes em causa, o que só se refere para mero efeito de raciocínio, ser condenado em penas no mínimo legal, ainda que em pena de prisão, face aos antecedentes do arguido, mas sempre suspensa na sua execução e sem se operar a agravação por força da reincidência nos termos supra referidos, sendo que as penas em que aquele foi condenado por estes crimes são excessivas, desadequadas e foram inclusivamente agravas pela reincidência, quando o não deveriam ter sido;

105. Em cúmulo jurídico destas penas, sem prescindir tudo o que explanamos supra, deveria o aqui recorrente AA ter sido condenado numa pena única de 5 anos, suspensa na sua execução por igual período;

106. No douto Acórdão recorrido e uma vez que o ora recorrente foi condenado na pena única de 9 anos e 6 meses prisão, não foi colocada a questão da suspensão, uma vez que tal só acontecia no caso do mesmo ter sido condenado em pena de prisão até 5 anos conforme dispõe o artigo 50º do Código Penal;

107. Todavia, nos termos e pelos argumentos supra aduzidos e que aqui se dão por reproduzidos, deverá o recorrente ser condenado em cúmulo em pena inferior a 5 anos nos termos supra preconizados ou se assim não se entender em pena de 5 (cinco) anos, e pelos motivos também aduzidos, ser a mesma pena suspensa na sua execução por igual período, uma vez que claramente a simples ameaça da mesma será manifestamente suficiente;

108. Ora, em nosso entendimento, quer de acordo com a prova produzida em julgamento, quer de acordo com a evolução da personalidade demonstrada pelo arguido, era e é possível de realizar esse juízo de prognose social favorável ao arguido;

109. Sem prescindir, é nosso entendimento que o Tribunal a quo não averiguou suficientemente e devidamente as condições pessoais e sociais do recorrente, o que permitiam ao Tribunal a quo elaborar um juízo de prognose que permitisse, com propriedade, concluir ou não por uma conduta futura de estrito cumprimento das normas sem nova prática de quaisquer novos crimes. Elementos esses essenciais nos termos do disposto no artigo 71º, n.º 2, d), do Código Penal e art. 369º do Código Processo Penal. Ora, a jurisprudência considera esta falha como integrando o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito (art. 410º, n.º 2 do Código Processo Penal), o que aqui se alega e invoca para os devidos e legais efeitos. E essenciais para se aquilatar da eventual prognose favorável ao arguido;

110. Pelo exposto, e sem prescindir o supra referido e alegado, nomeadamente quanto à absolvição do arguido quanto ao crime de tráfico p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93 de 22 de Janeiro, e quanto aos crimes de detenção de arma proibida p. p. pelos artigos 275º, n.º 1 do Código Penal e 3º, n.º 1, al. a) do DL n.º 207-A/75, de 17 de abril, e quanto ao crime de detenção ilegal de arma de caça, p. e p. pelo art. 6º, n.º 1 do DL 22/97 de 27 de junho, agravado por reincidência, deveria o mesmo ser, admitindo a prática dos factos dados como provados para efeito de raciocínio, ser condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º do DL 15/93 de 22 de Janeiro, deverá aquele ser punido na pena de 2 anos de prisão, ou no limite na pena de 4 anos de prisão, e ser essa pena suspensa por igual período, e ser condenado pela prática dos crimes de detenção de arma proibida p. p. pelos artigos 275º, n.º 1 do Código Penal e 3º, n.º 1, al. a) do DL n.º 207-A/75, de 17 de abril, e de detenção ilegal de arma de caça, p. e p. pelo art. 6º, n.º 1 do DL 22/97 de 27 de junho, nas penas de 8 meses e 3 meses, respetivamente, ainda que com sujeição a regime de prova, uma vez que entendemos que a reprovação e ameaça contida naquela pena, e tendo em conta o atual comportamento do arguido, permitiam à data da realização do julgamento, uma prognose favorável e realizam (a reprovação e ameaça) de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;

111. Disposições violadas: Foram violados, o artigo 21º, 25º, 26º e 40º do Decreto-Lei n.º15/93, de 22 de Janeiro e 86º, n.º 1, alínea c) da Lei 5/2006, de 23/02, artigos 275º, n.º 1 do Código Penal e 3º, n.º 1, al. a) do DL n.º 207-A/75, de 17 de abril, art. 6º, n.º 1 do DL 22/97 de 27 de junho, e os artigos 40º, 50º, 70º e 71º do Código Penal e artigos 62º, 63, 64º, 113º, 119º 120º, n.º 2, d), 125º, 126º, 127º, 147º, 340º, 369º, 374º, 379º, 410º, n.º 2 do Código Processo Penal e 32º da Constituição da República Portuguesa e as demais disposições que V. Exias suprirão.

Termos em que, se deverá revogar o douto Acórdão nos termos, com os efeitos e pelas razões supra expendidas, absolvendo-se o arguido/recorrente AA da prática dos crimes de trafico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93 de 22/01, de detenção de arma proibida p. p. pelos artigos 275º, n.º 1 do Código Penal e 3º, n.º 1, al. a) do DL n.º 207-A/75, de 17 de abril, e de detenção ilegal de arma de caça, p. e p. pelo art. 6º, n.º 1 do DL 22/97 de 27 de junho, pelo qual foi o mesmo condenado, e se assim não se entender, ou se se entender que a sua conduta preencheu os crimes pelos quais vinha acusado sempre a pena deve ser reduzida, nos termos propugnados, suspendendo-se sempre a sua execução por igual período, não operando também quanto a todos os crimes a agravação pela reincidência, nos termos e pelos fundamentos supra aduzidos.

            O M.P., na sua resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso concluindo pela forma seguinte [1]:

            (…)

            Nesta instância a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta, acompanhando genericamente a posição do M.P. em primeira instância, pronunciou-se também pela improcedência do recurso.

            O recorrente respondeu, mantendo o anteriormente alegado.

            Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, sendo as seguintes, no caso vertente, as questões a conhecer:

(…)

- Ou, no que ao crime de tráfico de estupefacientes respeita, quando muito, condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. art. 25º, n.º 1, do Dec. Lei 15/93, de 22/01;

            - Nulidade do acórdão, nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea a) do CPP, por violação do nº 2 do artigo 374º do mesmo diploma, por falta de uma exposição completa dos motivos de facto e direito que fundamentaram a concreta decisão relativa à pena, com violação , ainda, e pelos mesmo motivos, da obrigação de fundamentar, de facto e de direito, todo e qualquer acto decisório proferido no decurso do processo (art. 97º, n.º 5 do Código Processo Penal e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), bem como, violação das garantias de defesa do processo criminal (art. 32º da Constituição da República Portuguesa);

            - Excesso da pena imposta pelo crime de tráfico de estupefacientes;

            - Suspensão da execução da pena de prisão.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos [2]:

            1 - Os arguidos deslocavam-se à cidade de Lisboa, na viatura de marca ..., modelo ..., de matrícula 4l-..-RT, sendo que se deslocavam igualmente aos acampamentos de ciganos nesta zona, referenciados pela polícia como locais de venda de produtos estupefacientes.

            2 - O arguido AA conduzia esta viatura, bem como o veículo ... de matrícula ..-..-AP que lhe foi apreendido, sem ter habilitação legal para o efeito.

            Designadamente:

            a) No dia 26 de Outubro de 2004, cerca das 16hOO, o arguido conduziu a viatura ... acima referida nesta cidade ..., dirigindo-se com ela desde a sua residência na Rua ..., ..., ..., até ao café “F...”.

            b) No dia 10 de Novembro de 2004, cerca das 8h25, o arguido AA saiu da sua residência na Rua ..., nesta cidade, entrou na viatura ..-..-RT, conduzindo a mesma no sentido de ....

            c) No dia 11 de Novembro de 2004, cerca das 17h10, o arguido conduzia a mesma viatura ..., saindo com ela de um acampamento de indivíduos de etnia cigana sito na Quinta ..., nesta cidade ..., acampamento onde se dirigiu novamente, cerca das 18hOO desse mesmo dia, conduzindo a mesma viatura.

            d) No dia 22 de Novembro de 2004, cerca das l4h30, o arguido dirigiu-se para a viatura ..-..-RT, que se encontrava no recinto da feira de ..., conduzindo-a até à sua residência na Rua ..., .... Nesse mesmo dia, voltou ainda a conduzir uma outra viatura ..., de matrícula ..-..-AP, na qual se dirigiu, pelas 16 horas, à Quinta ...

            e) No dia 3 de Novembro de 2004, cerca das 10h28, o arguido, conduzindo a viatura de matrícula ..-..-AP, dirigiu-se na companhia da coarguida e de três crianças, da residência sita na Rua ..., nesta cidade ..., em direcção à A1 entrando naquela auto-estrada e saindo em Alverca, tomando depois a direcção de Vialonga e

            f) No dia 17 de Novembro de 2004, cerca das l5h10, o arguido AA chegou à sua residência na Rua ..., nesta cidade, acompanhado da sua companheira e coarguida BB, e a conduzir a viatura ..., ..-..-AP, voltando depois, cerca das 17h10 desse mesmo dia, a conduzir a mesma viatura desde a Quinta ... novamente até à sua residência, e igualmente na companhia da coarguida.

            3 - Entre os dias 10 e 19 de Janeiro de 2005, os arguidos mantiveram-se na cidade de Lisboa, sendo que, face às suspeitas da Policia Judiciária de que estariam na posse de produto estupefaciente, decorrente das operações de vigilância e das intercepções telefónicas no âmbito do presente processo, foram abordados, no seu regresso a esta cidade ... por agentes da Polícia Judiciária ..., junto aos CTT desta cidade, no dia 19 de Janeiro de 2005, cerca das 15h30.

            4 - Na altura, os arguidos deslocavam-se na viatura ... ..-..-AP e transportavam consigo 118,88 gramas de cocaína.

            5 - Embora das revistas realizadas aquando da abordagem nada tenha sido encontrado com os arguidos de imediato, tal produto estava, na ocasião, com a arguida BB, a qual foi levada para a esquadra da Polícia de Segurança Pública da ... para ser revistada por uma agente numa pequena sala de arrumos. Aproveitando um momento de distracção daquela agente da PSP, que vendo a porta voltar a ficar aberta quando largada, forçou-a para a fechar de vez, de modo a evitar que a arguida fosse avistada do exterior e esta atirou um saco de plástico contendo dois pacotes daquela substância para um recanto da sala, onde havia uns lavabos, por detrás de uma pilha de cobertores, só vindo tal facto a ser detectado dois dias mais tarde, na sequência das intercepções telefónicas de que o arguido AA estava a ser alvo.

            6 - Os arguidos destinavam a substância apreendida, que a ambos pertencia, por ter sido adquirida pelos dois, e da qual ambos tinham a disponibilidade, à venda a terceiros, bem conhecendo as suas características e que a sua detenção e cedência, a qualquer título, era proibida e punida pela lei penal.

            7 - Os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e consciente.

            8 - No dia 4 de Março de 2005, na busca efectuada pela Polícia Judiciária à residência dos arguidos, sita na Rua ..., ..., ..., foi encontrada e apreendida uma pistola automática de calibre 7,65 mm, de marca ..., bem como dois carregadores e munições para a mesma.

            9 - Foi ainda apreendida, na mesma ocasião, uma espingarda caçadeira de marca ... Y II modelo ..., com o número de série ...99, acompanhada de 33 cartuchos de calibre 12 mm e de um estojo camuflado para o seu transporte.

            10 - Tais pistola e espingarda pertenciam ao arguido AA, o qual sabia que a sua detenção era proibida, a primeira por exceder o calibre autorizado para as pistolas pelo DL 207-A175, de 17 de Abril, e a segunda por o arguido não possuir a necessária licença de uso e porte de arma.

            11 - Não obstante, guardava-as em sua casa, bem como aos carregadores e munições respectivos, actuando em relação a esta posse também de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

            12 - O arguido AA sabia que não podia conduzir qualquer veículo automóvel sem a necessária carta de condução, efectuando no entanto essa condução de forma livre, voluntária e consciente, e com a regularidade que resulta dos factos anteriormente relatados, bem sabendo igualmente que essa sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

            13 - O arguido AA foi condenado por crime de tráfico de estupefacientes, em Abril de 2000, numa pena de 8 anos de prisão, no Processo Comum Colectivo n° 343/99.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., por factos praticados em Outubro de 1995, tendo estado preso entre 7 de Março de 1996 e 3 de Janeiro de 1997, e ainda entre 19 de Fevereiro de 1998 e 15 de Outubro de 2002, data em que foi libertado condicionalmente.

            14 - Nada consta do certificado de registo criminal da arguida.

(…)

(Conhecimento do recurso)

Prossegue o recorrente, insurgindo-se contra a sua condenação como reincidente pelos crimes de tráfico de estupefacientes, crime de detenção de arma proibida e crime de detenção ilegal de arma de caça, e ainda pelo crime continuado de condução sem habilitação legal, como reincidente, alegando que não estão verificados os pressupostos da reincidência e que, de todo o modo, quanto aos crimes de detenção de arma proibida e de detenção ilegal de arma de caça existe uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

            Atentemos então no regime da reincidência, vertido nos arts. 75º e 76º do Código Penal:

            Segundo o nº 1 do primeiro daqueles artigos, é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. Acrescenta o nº 2 que o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

            Temos assim como pressupostos da reincidência os seguintes requisitos formais:

            - Comissão de crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses;

            - Condenação anterior, transitada em julgado, em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso;

            - Decurso de prazo não superior a cinco anos entre o cometimento dos dois crimes, descontado o tempo de cumprimento de medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade;

            A que acresce um pressuposto de ordem material:

            - Pertinência, segundo as circunstâncias do caso, de um juízo de censura ao agente, por a condenação ou condenações anteriores não terem servido de suficiente advertência contra o crime.

            O recorrente questiona a verificação deste último requisito, sendo pacífico o preenchimento dos demais.

            O juízo de censura postulado pela lei como condicionante do funcionamento do instituto da reincidência implica uma apreciação subjectiva da personalidade do arguido em ordem a determinar se o novo crime cometido é fruto de uma personalidade intimamente refractária aos valores postulados pela ordem jurídica e displicente no que concerne ao cumprimento dos comandos vertidos nas normas que tutelam bens jurídico-criminais, ou se resulta de mera pluriocasionalidade, reflexo de circunstâncias exógenas que verdadeiramente não radicam na personalidade do agente, mas em circunstâncias que constituíram causa excepcional determinante da prática da infracção. No primeiro caso, verificados os demais pressupostos, haverá lugar à punição do agente como reincidente, incorrendo este numa pena mais gravosa por força da elevação de um terço do respectivo limite mínimo, nos termos previstos no art. 76º, nº 1, do Código Penal. Na segunda hipótese não haverá reincidência, mas mera sucessão de crimes, ainda que a condenação anterior possa implicar um juízo de desvalor com reflexos na medida da pena.

            O juízo de censura a que nos reportamos deverá resultar da matéria de facto comprovada nos autos, uma vez que a questão da reincidência começa por ser uma questão-de-facto, só depois disso, por subsunção ao critério legal, se convertendo numa questão de direito.

            É verdade que o tribunal recorrido foi parco na fundamentação da reincidência, como se pode verificar pelo segmento em que aprecia a sua verificação no que concerne ao crime de tráfico de estupefacientes:

            «Como se referiu supra, a pena a aplicar ao arguido é agravada de um terço no seu limite mínimo, por reincidência, pois provou-se que foi condenado por crime de tráfico de estupefacientes, em Abril de 2000, numa pena de 8 anos de prisão, por factos praticados em Outubro de 1995, tendo estado preso entre 7 de Março de 1996 e 3 de Janeiro de 1997, e ainda entre 19 de Fevereiro de 1998 e 15 de Outubro de 2002, data em que foi libertado condicionalmente.

            Ora, os períodos de cumprimento de pena não contam para o prazo de cinco anos previsto no nº 2 do art.º 75° do Código Penal, não tendo corrido mais de cinco anos de tempo "útil" entre aqueles factos de Outubro de 1995 e os ora julgados, que ocorreram entre Outubro de 2004 e Março de 2005.

            Deste modo, a moldura para o arguido pele crime de tráfico vai de 5 anos e 4 meses a 12 anos de prisão, entendendo-se fixar a pena em 8 anos de prisão».

            O que está em causa, porém, é saber se esta fundamentação, apesar de exígua, cumpre, ainda assim, as exigências apontadas pela jurisprudência.

            Quanto a esse aspecto, chamaremos à colação as impressivas palavras vertidas no Acórdão do STJ de 29/02/2012 [3]:

            (…) Como refere Figueiredo Dias [4] «é no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e portanto para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente». E, continua o mesmo Mestre, «o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa [homogénea ou específica], exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (…) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza [reincidência polítropa, genérica ou heterogénea] será muito mais difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível. Desta maneira, …, é… a distinção criminológica entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que continua aqui a jogar o seu papel».

            Esta doutrina tem obtido acolhimento uniforme na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Argumenta-se no sentido de que, podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas, ou exclusivamente exógenas, – caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por, então, não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto – e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da intima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, antes exige uma «específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor» (cfr. entre outros, os Acórdãos de 28.02.07, Pº 9/07-3ª, 16.01.08, Pº 4638/07-3ª, de 26.03.08, Pºs 306/08-3ª e 4833/07-3ª, de que foi retirado o trecho transcrito, de 04.06.08, Pº 1668/08-3ª e de 04.12.08; Pº 3774/08-3ª).

Sem colocar em causa tal posição unânime é evidente que, estando em causa uma reincidência homogénea, ou especifica, é lógico o funcionamento da prova por presunção em que a premissa maior é a condenação anterior e a premissa menor a prática de novo crime do mesmo tipo do anteriormente praticado. Se o arguido foi condenado anteriormente por crimes do mesmo tipo e agora volta a delinquir pela mesma prática é liminar a inferência de que lhe foi indiferente o sinal transmitido, não o inibindo de renovar o seu propósito de delinquir.

           Na verdade, se o que se pretende são provas que permitam fundamentar a convicção de que a condenação anterior não teve qualquer relevância na determinação posterior do arguido, então é perfeitamente legitimo o apelo a uma regra de experiência comum que nos diz que a condenação anterior não produziu qualquer inflexão na opção pela prática de crimes do mesmo tipo. Se em relação a uma criminalidade heterogénea ainda se pode afirmar a possibilidade de uma descontinuidade, ou fragmentação do sinal consubstanciado na decisão anterior, pois que o contexto em que foi produzida pode ser substancialmente distinto, provocando a falência das premissas para o funcionamento da presunção, não se vislumbra onde é que a mesma afirmação se possa produzir perante crimes do mesmo tipo.

           Aliás, em face de uma actuação duplicada na prática do mesmo tipo de crime por agente empenhado numa criminalidade homogénea, que outros factos se podem invocar em vista da afirmação de uma conexão entre os crimes praticados que não a prática dos mesmos crimes?

            A afirmação contida na decisão de primeira instância de que “Porém tais condenações não foram suficientes para impedir os arguidos AA de praticar novos factos puníveis criminalmente com pena de prisão, nos cinco anos seguintes ao cometimento do anterior crime, descontado o tempo em que esteve preso, mantendo a prática deste tipo de ilícitos como meio de vida” constitui fundamento bastante para o funcionamento da agravante da reincidência.

            Tudo isto, mutatis mutandis, tem plena aplicação ao caso de que agora cuidamos. Assim, no que concerne ao crime de tráfico de estupefacientes imputado ao ora recorrente, dúvidas não há de que estamos no domínio da reincidência homótropa, estão verificados todos os requisitos formais da reincidência e o requisito material decorre sem margem para dúvidas da verificação da existência de uma condenação pelo mesmo crime, cometido dentro do período de cinco anos anterior à comissão do novo crime, descontado o tempo de cumprimento da pena privativa da liberdade que por esse crime lhe foi imposta. Esta renovação da actividade criminosa infringindo norma que tutela os mesmos bens jurídicos permite a lógica constatação de que ao arguido foi indiferente a advertência resultante da anterior condenação, evidenciando a sua insensibilidade à pena que lhe foi imposta e o fracasso da vertente ressocializadora da pena, de tal modo que aquela pena não o demoveu de repetir a sua actuação ilícita. Revelou, assim, uma total indiferença pelo sentido da anterior condenação penal sem que tenha resultado da prova a evidência de uma qualquer circunstância excepcional, capaz de fazer claudicar a dedução lógica em que se firma a presunção que permite ter por verificado o elemento material da reincidência.

            Já no que tange à reincidência polítropa ou heterogénea não vemos que esta possa subsistir. Remetendo de novo, quanto à fundamentação exigível, para o Acórdão do STJ que antes mencionámos, realçaremos que a mera referência à existência de um passado criminal, só por si, é totalmente insuficiente para estabelecer o nexo exigido pelo requisito de ordem material na medida em que a reiteração criminosa poderá resultar de circunstâncias fortuitas ou de causas não diretamente respeitantes à personalidade do agente, mas de natureza exógena. Se assim for, ficará bloqueada a possibilidade de formulação de um juízo de censura ao agente com fundamento na constatação da insuficiência das condenações anteriores, pressuposto para o funcionamento da qualificativa em questão. Contrariamente ao que sucede na reincidência homótropa, em que a renovação de uma actividade criminosa de contornos bem definidos, só por si, já permite consolidar a formulação daquele juízo de insuficiência relativo à advertência resultante da condenação anterior, na reincidência heterogénea sobrepõe-se a necessidade de uma base factual alargada, demonstrativa da relação entre a sucessão de crimes de natureza diversa e da possibilidade de a imputar a uma especial propensão criminosa ou, pelo menos, a circunstâncias que evidenciem uma maior culpa referida ao facto, justificativa da agravação da pena.

Sendo o acórdão em recurso totalmente omisso quanto a essa vertente, a agravante da reincidência deverá decair quanto aos crimes de detenção de arma proibida, de detenção ilegal de arma de caça e quanto ao crime continuado de condução sem habilitação legal, com reflexos óbvios na determinação das penas correspondentes e na pena do concurso.

***

De todo o modo, haverá que analisar cada uma das penas de per se, na medida em que o recorrente, dando sequência às suas alegações, a todas questiona, arguindo ainda a nulidade do acórdão do tribunal colectivo nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea a) e 374º, n.º 2 do Código Processo Penal, apelando ainda à violação do dever de fundamentar resultante dos arts. 97º, n.º 5, do Código Processo Penal e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, assacando-lhe violação das garantias de defesa do processo criminal, com tutela no art. 32º da Lei fundamental.

O tribunal a quo determinou as penas reportando-se ao critério geral do art. 71º do Código Penal, por apelo à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal, possam depor a favor do agente ou contra ele. No desenvolvimento do seu raciocínio considerou que a culpa o arguido é elevada dado que tem cadastro pelo mesmo tipo de crime de tráfico de estupefacientes, tendo cumprido 8 anos de prisão; ponderou a existência de um dolo directo, de elevada intensidade; valorou a ilicitude dos factos, considerando tratar-se de posse para venda de uma droga “dura”, considerando evidenciarem os vários ilícitos uma actuação global determinada pela ligação ao tráfico de droga. Valorou ainda as consideráveis razões de prevenção especial decorrentes do passado delituoso do arguido e considerou serem superiores à média as razões de prevenção geral por força da frequência com que se sucedem ilícitos desta natureza na região.

Não estamos perante um caso de falta de fundamentação da pena, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, porquanto foi explicitado, ainda que sem grande detalhe, o critério seguido. Vejamos, ainda assim, como se traduz em termos práticos o funcionamento do critério legal à luz das normas aplicáveis e ponderando os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência sobre o tema, antes de nos debruçarmos sobre a concretização de cada uma das penas:

            Numa primeira nota haverá que realçar que no direito penal português contemporâneo, sobretudo desde a revisão do Código Penal operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, o fundamento legitimador da pena, qualquer que ela seja, reside na prevenção. A aplicação das penas e das medidas de segurança assenta em finalidades exclusivamente preventivas, cabendo à culpa o papel de pressuposto da pena e de limite máximo da sua medida, consagrando-se assim uma concepção preventivo-ética da pena (preventiva, por ser a prevenção o fim legitimador da pena; ética, por esse fim preventivo ser condicionado e limitado pela exigência da culpa) [5].

            Em consonância com essa opção, dispõe o art. 40º, nº 1, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A determinação da medida da pena, por força do estatuído no art. 71º, há-de fazer-se dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com ponderação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As exigências de prevenção afirmam-se numa dupla vertente, as de prevenção geral e as de prevenção especial, assumindo cada uma delas uma específica função.

Destinatários da prevenção geral são todos os membros da comunidade jurídica, (excluído o arguido, especificamente visado pela prevenção especial) e é por recurso às exigências decorrentes da prevenção geral positiva[6] que se determina o limite mínimo da pena admissível para o caso concreto, visto que a garantia da manutenção da confiança da comunidade na validade da norma (a sua eficácia para salvaguardar os bens jurídicos que tutela) e a dissuasão de potenciais infractores exige um mínimo de punição [7], variável em função do contexto e do momento histórico, capaz de satisfazer aquela dupla função.

Por seu turno, a prevenção especial, respeitante ao próprio arguido, acumula uma função de ressocialização do delinquente a uma outra, de dissuasão da prática de futuros crimes[8]. Intervém na graduação da pena, funcionando entre o mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral e o máximo consentido pela culpa (cfr. arts. 40º, nº 2 e 71º, nº 1), como factor de determinação do quantum [9] de pena necessário à ressocialização (entendida como adesão do agente aos valores comunitariamente postergados) e à prevenção da reincidência (que se atinge através duma pena doseada em moldes de representar um sacrifício de tal forma penoso que o agente não quererá repetir).

Já vimos que estão verificados os pressupostos da reincidência, enquanto circunstância modificativa agravante, relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes p. p. pelo art. 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-B anexa àquele diploma.

Conforme resulta do art. 76º, nº 1, do Código Penal, o regime da reincidência implica a elevação de um terço do limite mínimo da pena aplicável ao crime, permanecendo inalterável o limite máximo, sem que a agravação possa exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. Assim, cabendo ao crime do art. 21º, nº 1, a pena de 4 a 12 anos de prisão, a agravação por força da reincidência fornece uma moldura penal de 5 anos e 4 meses a 12 anos de prisão.

Sendo a culpa a “razão de ser” da pena [10], mas também o factor determinante do seu limite, haverá que estabelecê-la antes da ponderação das razões de prevenção, que só se colocam depois da sua determinação.

A culpa consiste essencialmente num juízo (ético-jurídico) de censura dum facto típico por referência à pessoa do seu agente [11] por não ter actuado de forma diversa, podendo e devendo tê-lo feito. O grau de culpa do agente, que determina o limite máximo e intransponível da pena, avalia-se pela ponderação de todos os elementos que na culpa se projectam. Desde logo, avulta o dolo, que no caso revestiu a modalidade de dolo directo; e assume ainda carácter predominante a ilicitude do facto [12], que encontra eco na gravidade objectiva da conduta, reflexo do carácter altamente danoso da substância traficada, da quantidade de estupefaciente detida e do modo de actuação do agente. Uma culpa assim caracterizada é compatível com uma pena que não exceda os 3/5 da moldura penal, ponto em que se situará idealmente o limite imposto pela culpa.

Ponderando de seguida as exigências de prevenção geral que, como antes se referiu, deverão salvaguardar o mínimo irrenunciável de punição, capaz de satisfazer a confiança comunitária na validade da norma e, simultaneamente, garantir a dissuasão de potenciais infractores, diremos que o mínimo de punição exigido é conformado pela crescente necessidade de combate ao tráfico de estupefacientes imposta pela dimensão que este tipo de crime atingiu e pela expectativa comunitária de que o Estado seja capaz de combater eficazmente os agentes deste tipo de ilícito, mitigando por via desse combate as dramáticas consequências sociais resultantes do consumo de estupefacientes. Em função da dimensão assumida pelo tipo de crime e vista a forma como as consequências a ele associadas são socialmente percepcionadas, as exigências de prevenção geral devem afastar-se significativamente do mínimo legal. Esse mínimo estabelecer-se-á numa linha situada nas imediações do 1/6 da moldura penal.

Dentro dos apontados limites impostos pela culpa e pela prevenção geral, funcionarão as exigências de prevenção especial, que são elevadas por força dos antecedentes criminais do arguido, devendo notar-se que da ponderação deste histórico criminal não resulta violação da proibição da dupla valoração por já ter sido ponderado para determinação da reincidência.  Na verdade, a proibição de dupla valoração, enquanto afloramento do princípio ne bis in idem, só se verifica se a apreciação de uma mesma circunstância modificativa for feita mais do que uma vez sob a mesma perspectiva qualitativa ou quantitativa em prejuízo do arguido [13], o que não sucede quando se valoram numa perspectiva de prevenção (especial) factos que determinaram o enquadramento penal da conduta na moldura da reincidência. A avaliação é necessariamente distinta, porquanto nesta última trata-se de verificar a existência de requisitos pré-definidos para operar o funcionamento de uma circunstância agravante que determina a alteração do mínimo da moldura penal, enquanto na perspectiva da prevenção especial se analisa a eficácia das condenações anteriores para salvaguarda dos bens jurídicos tutelados pelas normas violadas, em ordem a determinar o quantum de pena dentro da faixa balizada pela culpa e pela prevenção geral.

No caso vertente, a ponderação das exigências de prevenção especial permite estreitar ainda mais a faixa penal obtida por recurso à culpa e à prevenção geral. Estaremos ainda no domínio da pluriocasionalidade, mas a exigir já uma pena que funcione como efectiva advertência para a gravidade da actuação prosseguida, deslocando o mínimo da pena aceitável para a orla do 1/3 da moldura penal.

Dentro destes limites funcionarão, por fim, as demais circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo legal de crime e que, ainda não tendo sido consideradas, todavia deponham a favor ou contra o arguido.

            Posto isto, importa relembrar que, como vem sendo sucessivamente apontado pela jurisprudência, a função do tribunal superior na fiscalização da medida da pena não é tanto a de verificar se o seu quantum é exactamente o correcto, visto não estarmos no domínio das ciências exactas, mas se a concretização está fundamentada e se a pena encontrada se contém dentro da faixa penal que o próprio tribunal de recurso utilizaria no caso concreto. Se a resposta for afirmativa, a pena é ajustada e não deverá ser alterada. De outro modo, deverá ser corrigida, salvo se for de entender que deveria ter sido mais gravosa e não tiver havido recurso visando o seu agravamento, caso em que permanecerá inalterada por força da proibição da reformatio in pejus.

Ora, esta perspetiva permite aquilatar o equilíbrio da pena determinada pelo tribunal recorrido, que foi fixada em 8 anos de prisão, ou seja, num ponto situado 2 anos e 8 meses acima do mínimo legalmente previsto, que se contém, pois, na metade inferior da moldura penal e que é perfeitamente ajustado ao caso. Esta pena deverá, assim, ser confirmada.

No que concerne ao crime de detenção de arma proibida, p. p. pelos arts. 275º, nº 1, do Código Penal e 3°, n° 1, a), do D.L. n.º 207-A/75, de 17/4, a pena abstracta, de acordo com a legislação vigente à data da prática dos factos, aplicável por ser a concretamente mais favorável, é a de prisão de 2 a 5 anos [14].

Já antes referimos não estarem demonstrados factos que permitam, quanto a este crime, ter por verificada a reincidência.

Trata-se de crime de perigo, praticado com dolo directo, sendo elevada a culpa do arguido, como elevada é a ilicitude dos factos, aferida essencialmente em função das características da arma, de detenção absolutamente proibida (arma da classe A).

Renovam-se as considerações gerais relativas à medida da pena que antes se fizeram e que se concretizam agora numa culpa a determinar uma pena que jamais poderia exceder a faixa central da moldura legal. As exigências de prevenção geral não são tão elevadas como as que se verificam para o crime de tráfico de estupefacientes, admitindo uma pena que não exceda significativamente o limite mínimo da moldura e a prevenção especial que ao caso cabe, assente na constatação da existência de antecedentes criminais heterogéneos, tem também um peso significativamente inferior ao apontado a propósito do crime antes tratado, tudo a apontar para uma pena concretizada em 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

Também no que concerne ao crime de detenção ilegal de arma de caça, como ao crime continuado de condução sem habilitação legal, se verifica a inexistência de factos que permitam ter por verificado o requisito material da reincidência, não podendo essa circunstância modificativa agravante operar os seus efeitos.

As penas correspondentes deverão ser revistas em conformidade.

Assim, quanto ao crime de detenção ilegal de arma de caça, que constitui também um crime de perigo, previsto e punido nos termos do artigo 6°, nº. 1, do DL n° 22/97, de 27 de Junho, vigente à data dos factos,  a que corresponde a pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias e que constitui o regime concretamente mais favorável [15], há que proceder à escolha da pena aplicável.

O art. 70º do Código Penal obriga a dar preferência à pena não detentiva sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, que são as indicadas no art. 40º, nº 1, do mesmo diploma, visto que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação [16].

No caso vertente, vistas no seu conjunto as exigências de prevenção geral e especial associadas ao caso, não há como afirmar que estas seriam asseguradas através da mera pena de multa, impondo-se a opção pela pena detentiva.

Na concretização da pena há que ponderar o dolo directo subjacente à prática do crime, assistido por um mediano grau de ilicitude. As exigências de prevenção geral em matéria de crimes de detenção ilegal de armas de fogo têm alguma premência e pesam negativamente os antecedentes criminais, ainda que de natureza heterogénea, no domínio da prevenção especial, por evidenciarem falta de preparação para a adopção de um comportamento conforme com os ditames do direito. Não ocorre violação da proibição da dupla valoração por as necessidades de prevenção serem aferidas tanto para a escolha da pena como para a determinação da sua medida, dada a diversa finalidade a que se reporta cada uma dessa valorações, valendo aqui as considerações que antes se fizeram sobre o tema.

Revela-se ajustada uma pena de 7 (sete) meses de prisão.

Por fim, no que respeita ao crime continuado de condução sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3º, nº 2, do  DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, a moldura a considerar é a de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.

Renovam-se as considerações relativas à escolha da pena, impondo-se a opção pela pena detentiva.

Não há como diferenciar objectivamente cada uma das condutas que integram a continuação.

O crime foi praticado com dolo directo, como não poderia deixar de ser, e a ilicitude assumiu um grau mediano. O quotidiano dos tribunais evidencia as prementes exigências de prevenção geral, por se tratar de crime em permanente crescimento. Pesam, pelas razões antes apontadas, os antecedentes criminais do arguido, no que concerne às exigências de prevenção especial.

A menção constante da decisão recorrida à repetição da conduta delituosa colide com a natureza continuada do crime. Tendo o tribunal a quo optado pela punição por um só crime continuado, a pena ajustada será a que corresponder à conduta mais grave que integra a continuação (art. 79º, nº 1, do Código Penal), o que afasta a possibilidade de ponderar na determinação da pena a renovação da conduta.

Afigura-se como ajustada ao caso a pena de 8 (oito) meses de prisão.

            Impõe-se, consequentemente, rever o cúmulo jurídico de penas efectuado em primeira instância.

            A medida do concurso contém-se entre os limites mínimo e máximo de 8 (oito) anos de prisão e 11 (onze) anos e 7 (sete) meses de prisão.

            O critério previsto no art. 77º, nº 1, parte final, do Código Penal, aponta para a concretização da medida da pena única através da ponderação conjunta dos factos praticados e da personalidade do agente. A valoração da personalidade do agente faz-se pela ponderação dos traços que afloram na imagem permitida pelo acervo fáctico, avaliado agora numa perspectiva de conjunto, visando aferir se se revela uma mera pluriocasionalidade ou se se evidencia já uma tendência criminosa; sendo ainda a apreciação da imagem global do facto criminoso que permite determinar a gravidade do facto global, fundamento da pena única.

            Analisados os factos no seu conjunto, intui-se uma solução de continuidade com o passado criminal do recorrente, nomeadamente, no que concerne à prática anterior de um crime de tráfico de estupefacientes que lhe determinou uma pena de prisão efectiva de duração considerável (oito anos de prisão)

            A gravidade dos factos agora em avaliação gera uma perspectiva de conjunto a reclamar expressão na pena única resultante do cúmulo jurídico, da circunstância de se desenhar uma personalidade pautada pela indiferença a valores socialmente postergados, afigurando-se como ajustada a imposição de uma pena única, em cúmulo jurídico, de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão.

            Em função da pena determinada em sede de cúmulo jurídico não haverá, sequer, que ponderar a suspensão da execução da pena, como pretende o recorrente.

III – DISPOSITIVO:

            Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e, consequentemente:

            I - Alteram a matéria de facto em conformidade com o acima exposto, substituindo no facto nº 4 a referência ao peso de 118,88 gramas consignado pelo tribunal a quo, que corresponde ao peso bruto, aí incluída a tara, por 116,5 gramas, correspondente ao peso liquido da cocaína apreendida;

            II - Revogam a decisão recorrida no que tange à consideração da agravante da reincidência relativamente ao crime de detenção de arma proibida, ao crime de detenção ilegal de arma de caça e ao crime continuado de condução sem habilitação legal;

            III - Alteram, em consonância, as penas parcelares impostas ao arguido AA por aqueles três crimes, bem como a pena do concurso, nos termos seguintes:

            a) Condenam o arguido, pela autoria material de um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelos arts. 275º, nº 1, do Código Penal e 3°, n° 1, a), do D.L. n.º 207-A/75, de 17/4, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

            b) Condenam o arguido, pela autoria material de um crime de detenção ilegal de arma de caça, p. p. pelo art. 6°, nº. 1, do DL n° 22/97, de 27 de Junho, na pena de 7 (sete) meses de prisão;

            c) Condenam ainda o arguido pela autoria material de um crime continuado de condução sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3º, nº 2, do DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 8 (oito) meses de prisão;

            d) Operando o cúmulo jurídico destas penas com a que lhe foi imposta pelo crime de tráfico de estupefacientes p. p. pelo art. 21º, nº 1 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, cometido em reincidência, condenam o arguido AA na pena única de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão.

            Confirmam, em tudo o mais, a decisão recorrida.

            Sem taxa de justiça


*


                                             Coimbra, 21 de Fevereiro de 2024

            (Processado pelo relator, revisto por todos os signatários e assinado electronicamente)


[1] - A numeração das conclusões corresponde ao que consta do original.
[2] - A numeração dos factos foi por nós introduzida, não constando do acórdão recorrido.
[3] - Proc. nº 999/10.9TALRS.S1, relatado pelo Ex.º Juiz Conselheiro Santos Cabral.
[4] - Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, pág. 268
[5]- Cfr. Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal - Parte Geral, pág. 66
[6]- Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 110-111.
[7]- Assim se revelam as duas vertentes da prevenção geral: uma vertente de prevenção geral positiva, de integração ou de socialização, vocacionada para permitir a interiorização ou aprofundamento dos bens jurídico-penais; e uma vertente de prevenção geral negativa ou de dissuasão. Sobre o tema, Cfr. Taipa de Carvalho, ob. cit., págs 63-69.
[8]- Evidenciando também duas vertentes distintas, uma de prevenção especial positiva e uma outra de prevenção especial negativa
[9] - Sobre a relação da prevenção especial com o quantum da pena, cfr. Anabela Miranda Rodigues, «O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade», in Problemas Fundamentais de Direito Penal - Homenagem a Claus Roxin, pág. 206.
[10] - Acórdão do STJ, de 18/05/2011, Proc. nº 24/10.0PAMTJ.L1.S1, relatado pelo Ex.º Juiz Conselheiro Santos Cabral.
[11] - Para utilizar a expressão de Taipa de Carvalho, trata-se de uma “atitude ético-pessoal de oposição ou de indiferença perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta ilícita” –  Direito Penal - Parte Geral, pág. 466.
[12] - Como observa Cavaleiro de Ferreira (Lições de Direito Penal, Tomo I, págs. 66 e ss.) a ilicitude penal desdobra-se em dois juízos ou qualificações: de ilicitude objectiva e de culpa ou culpabilidade, que correspondem à função valorativa e à função imperativa da norma jurídica. O primeiro, é indispensável para a existência do crime e prende-se com a tipicidade do facto. Já o segundo, respeita à sua quantidade ou gravidade. Ao aludir ao “grau de ilicitude”, o art. 71º, nº 2, al. a) do Código Penal tem em vista o último daqueles juízos, pois só esse admite quantificação.
[13] - Cf. Ac. do STJ de 24/10/2006, proc. nº 06P3163, relatado pelo Ex.º Juiz Conselheiro Santos Carvalho.
[14] - Este crime é actualmente previsto pelo art. 86º, nº 1, al. a), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos arts. 2º, nº 1, j), 3º, nº 2, b) e 4º, nº 1, da mesma Lei, sendo punível com pena de prisão de 2 a 8 anos.
[15] - Crime actualmente punível pelo art. 86º, nº 1, al. c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos arts. 2º, nº 1, am), 3º, nº 6, c) e 4º, nº 1, da mesma Lei, sendo punível com a pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
[16] - Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, pág. 331