Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
705/23.8T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PESSOA COLECTIVA
IDENTIFICAÇÃO DA PESSOA FÍSICA QUE PRATICOU A INFRACÇÃO
CONDUTA OMISSIVA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 7.º, N.º 2, DO D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL/RGCO
Sumário:
I – O modo de expressão da pessoa colectiva traduz uma verdadeira vontade colectiva capaz de dolo ou culpa, visto que é susceptível de ser dirigida tanto para actividades lícitas como para actividades ilícitas.

II – Por isso não carecem de ser identificadas as pessoas concretas que, agindo ou deixando de agir, foram responsáveis pela infracção imputada à pessoa colectiva.

Decisão Texto Integral:
*

*


            1. …, em recurso de impugnação de decisão de autoridade administrativa em processo de contra-ordenação, foi proferido despacho, … mantendo a decisão administrativa que condenou a arguida “… Lda.”, na coima no valor de €600,00 …, acrescida de custas …, pela prática de uma contra-ordenação prevista pelo artigo 5º, n.º 1 e n.º 2, als. a) a g), do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, e punida pelo artigo 6º, n.º 1, al. b), do Dec.-Lei n.º 113/2006, de 12 de Junho.


*

            2.  … veio a arguida recorrer do despacho, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões, …

            “4.1)- A pessoa coletiva só poderá ser responsabilizada por uma contraordenação se existir conexão entre a atuação ou omissão geradora da ilicitude por parte do órgão, agente, representante ou trabalhador e as suas funções no âmbito da prossecução do objeto da pessoa coletiva.

            4.2)- Ou seja, é fundamental para a imputação da contraordenação à pessoa coletiva que o representante naquela situação concreta tenha atuado por causa das suas funções.

            4.3)- No caso dos autos, percorrida a matéria de facto provada verifica-se que em lado algum são identificados o ou os representantes legais da arguida, ou sequer o trabalhador ou responsável que deveria ter atuado por forma a não se verificar a conduta imputada à recorrente, e que omitiu a obrigação que se impunha.

                    …

                    4.6)- Não sendo a matéria de facto suficiente para sustentar a imputação à arguida/recorrente da conduta ilícita geradora de responsabilidade contraordenacional impõe-se concluir pela insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conforme previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal.

                    4.7)- A insuficiência detetada não é suprível nesta instância de recurso, desde logo por não ter sido requerida a renovação da prova (art. 430º, n.º 1), o que determinaria o reenvio dos autos  para novo julgamento (arts. 426º, n.º 1, e 426º-A) a fim de determinar a pessoa que representa a arguida e a pessoa que concretamente agiu e/ou praticou os factos, bem como se o fez no exercício das suas funções ou de ordens transmitidas pelo representante da arguida.

                    4.8)- De qualquer forma, a determinar-se tal reenvio, daí resultaria a violação do princípio da vinculação temática do tribunal, pois não pode a 1ª instância indagar factos que não constem da decisão administrativa impugnada, que vale como acusação mediante a sua apresentação em juízo pelo Ministério Público na sequência de impugnação deduzida (art. 62º, n.º 1, do RGCO).

                    4.9)- Por outro lado, os factos em falta extravasam os conceitos de alteração não substancial e de alteração substancial dos factos, não cabendo no caso recurso aos mecanismos previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal - e daí que outra solução não reste que a absolvição da arguida/ recorrente.

                    ….”


*

           

*

            II- Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso

            … no caso em vertente a questão a decidir é a de saber se a decisão recorrida não interpretou corretamente o n.º 2, do artigo 7.º do RGCO.

            B) Decisão Recorrida

            …


*

            C) Apreciação do recurso

            A recorrente replica no presente recurso a mesma argumentação que apresentou na impugnação que deduziu …, no tocante à nulidade daquela decisão administrativa por nela se imputar a contra-ordenação aqui em apreço directamente a uma pessoa colectiva, …, sem nela se fazer referência a qualquer pessoa singular que tivesse a qualidade de representante, órgão ou agente desta e que também ela tivesse incorrido em qualquer acção ou omissão dolosa ou negligente.

            …

            A questão que vem posta em causa no presente recurso não é nova e não tem merecido sempre o mesmo entendimento por parte da jurisprudência dos nossos tribunais.

            No caso concreto, estamos perante uma conduta omissiva imputada à arguida, pessoa colectiva, e não perante a prática efectiva de qualquer acto.

                    Ao decidir-se na decisão recorrida – e que não vem posto em causa pela recorrente - que esta não efectuava o registo dos pontos críticos de controlo desde Agosto de 2017, em conformidade com o HACCP “(Hazard Analysis Critical Control Points”), no estabelecimento comercial de restauração que explorava, prevendo e aceitando essa realidade,  sabendo que estava obrigada a implementar e cumprir todas as etapas (designadamente manter actualizados todos os registos) de um processo permanente baseado nos princípios do HACCP, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, obviamente que essa aceitação e conformação é a manifestação de vontade dos seus órgãos.

            Como se salientou no ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27.01.2020 , disponível in www.dgsi.pt, as pessoas colectivas, ainda que incapazes de atividade física que as concretize, são dotadas de consciência e vontade próprias, devido à sua estrutura organizativa, sendo, pois, suscetíveis de culpa pela violação das normas que visam proteger os bens jurídicos de que são destinatárias, no entanto, na medida em que não podem, por incapacidade natural de ação, cometer por si mesmas infrações, a sua responsabilidade por estas há de derivar dos comportamentos, ativos ou omissivos, levados a cabo por determinadas pessoas singulares ou físicas, que lhes são atribuídos segundo um certo modelo de imputação, legalmente definido.

               É essa actuação dos seus órgãos que cria a sua vontade, consciência e responsabilidade. Os actos cometidos pelos órgãos ou representantes são actos próprios da pessoa colectiva. A sua vontade nasce do encontro das vontades individuais dos seus membros, vontade que se concretiza em cada etapa da sua vida através da reunião, voto e deliberação, vontade que é capaz de cometer factos típicos tanto como a vontade individual – cfr. Oliveira Mendes e Santos Cabral, in Notas ao Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, Coimbra, Almedina, 2003 pág. 35.

            O modo de expressão da pessoa colectiva traduz uma verdadeira vontade colectiva, capaz de dolo ou culpa visto que é susceptível de ser dirigida tanto para actividades lícitas como para actividades ilícitas.

            Daí serem responsabilizadas e coimadas, sem que haja necessidade de identificar a pessoa concreta que agiu ou deixou de agir.

            Não desconhecendo, embora, a jurisprudência em que a recorrente se sustenta para, de novo, pretender que a decisão administrativa padece da nulidade que lhe assaca, revemo-nos, porém, no entendimento sufragado no despacho recorrido, perfilhando os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais em que se ancora, que, aliás, foram seguidos no ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 8 de Fevereiro de 2023, disponível in www.dgsi.pt, que subscrevemos como adjunta.

            Daí que, não nos mereça censura a decisão recorrida ao considerar que, em decisão condenatória proferida na fase administrativa de processo contraordenacional, não carecem de ser indicadas as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infractora e responsáveis pelas infrações, e, por isso, julgou inexistir insuficiência de factos provados para a decisão e a nulidade que pela arguida vinha assacada à decisão administrativa.

            Assim sendo, estribando-se, apenas, a pretensão da recorrente quanto à pretensa nulidade da decisão administrativa com o fundamento que, nos referidos termos, foi apreciado na decisão recorrida, com os quais, na íntegra, concordamos, julga-se improcedente o recurso.


*

            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Seção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

            1. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido;

            2. Custas do recurso pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (art. 93º, nº 3, do RGCOC, art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, e art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


*

*

*



Coimbra, 13 de dezembro de 2023

            ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

( Maria José Guerra  – relatora)

                 (Helena Lamas – 1ª adjunta)

                    ( Maria Teresa Coimbra – 2ª adjunta )