Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
515/21.7T9GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
DANO QUALIFICADO
QUEIXA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
METADADOS
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA – J4)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 1.º AL. F), 358º, 359º, 379º, N.º 1, AL. B), 189º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 212º E 213º, N.º 1, AL. C), E N.º 3, DO CÓDIGO PENAL; ART. 4º DA LEI N.º 32/2008, DE 17.7
Sumário: I. Ocorrendo uma modificação da base factual que, a ser considerada, permitiria a subsunção da conduta ao tipo qualificado quando a conduta descrita na acusação apenas é suscetível de preencher o tipo base, incorre-se numa alteração de factos que é substancial, por ter como efeito a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (art.º 1.º al. f)).
II. A possibilidade de transmissão de dados de tráfego no âmbito de processo criminal não está prevista apenas na Lei 32/2008 de 17.07, sendo também permitida, designadamente, nos termos do art.º 189°, n° 2 do Cód. Proc. Penal, cuja norma não foi declarada inconstitucional com força obrigatória gera.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



I–RELATÓRIO

1. Nos autos de processo comum coletivo a correr os seus termos sob o nº 515/21...., no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda (Juízo Central Criminal ...), foi mediante Acórdão decidido condenar o arguido AA:

- pela prática, em autoria material e na forma consumada (em concurso efetivo com os demais ilícitos em que vai condenado), de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às tabelas I-B e I-C anexas a tal diploma, como reincidente, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, absolvendo-se o mesmo arguido da imputada prática daquele crime na forma agravada, p. e p. pelo art.º 24º, al. c), do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22.01, com referência à tabela II-A anexas a tal diploma;

- pela prática, em autoria material e na forma consumada (em concurso efetivo com os demais ilícitos em que vai condenado), de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo art.º 213º, n.º 1, al. c) do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;

- pela prática, em autoria material e na forma consumada (em concurso efetivo com os demais ilícitos em que vai condenado), de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291º, n.º 1 al. b) do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática, em autoria material e na forma consumada (em concurso efetivo com os demais ilícitos em que vai condenado), de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º, ns.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

Operando o competente cúmulo jurídico, foi ainda decidido condenar o arguido na pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão.

Foi condenado o mesmo arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 12 (doze) meses, nos termos do artigo 69º, nº 1, al. a), do Código Penal, devendo proceder à entrega da carta de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão na secretaria deste Tribunal ou ao EP para que proceda ao seu envio, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, nos termos do A.U.J. n.º 2/2013 (Proc. 146/11.0GCGMR-A.G1-A.S1 (22 de novembro de 2012), in DR, 1.ª Série, n.º 5, de 8.01.2013.

Foi declarada perdida a favor do Estado a vantagem obtida pelo arguido com a sua atividade criminosa, que se liquida em € 9.200,01 (nove mil e duzentos euros e um cêntimo), nos termos do art.º 110.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal e art.º 36º, ns.º 2, 3 e 4 do DL n.º 15/93, de 22.01, condenando-se o arguido ao seu pagamento em conformidade, devendo ter-se em atenção neste particular o disposto no art.º 110º, n.º4 do CP. No mais julga-se improcedente a pretensão de perda de vantagens formulada pelo Ministério Público, absolvendo-se da mesma o arguido;

2. Inconformado, recorreu o arguido, apresentando as seguintes Conclusões:

(…)

7. ÂMBITO DO RECURSO

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.

Encontra-se, ainda, o tribunal obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos art.º s 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

No caso em apreço são questões a resolver:
1. Falta de legitimidade para o procedimento criminal pelo crime de dano qualificado;
2. Condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou da pronúncia fora dos casos e das condições previstos nos art.ºs 358.º e 359.º do CPP;
3. Omissão de pronúncia por falta de ponderação da não substituição das penas de prisão parcelares por penas não privativas da liberdade;
4. Utilização sob pontos 27, 37,38,39, 40, 41, 42, 43, 44, 46, 47, 53 da factualidade provada de expressões vagas, imprecisas e não concretizadas;
5. Recurso a prova proibida;
6. Vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP e violação do princípio in dubio pro reo;
7. Enquadramento da conduta do arguido no tipo previsto no art.º 25.º do DL 15/93, de 22.01;
8. Unidade dos crimes de dano qualificado, condução perigosa e resistência e coação;
9. Excesso das medidas das penas;
10.  Excesso na liquidação das vantagens obtidas com a atividade criminosa.


*

iI. Acórdão recorrido (transcrito na parte ora relevante)


«II. FACTOS PROVADOS

Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

Do despacho de acusação,

I - Das linhas gerais do empreendimento criminoso

1. Pelo menos, desde 11 de dezembro de 2020 até ao dia 14 de novembro de 2022 (período de tempo este o de referência, o qual será de considerar caso outro não seja indicado), o arguido AA, também conhecido por “BB” ou apenas “CC”, dedicou-se à aquisição de substâncias estupefacientes, nomeadamente cocaína, canábis, tanto na forma de resina (haxixe) como em folhas/sumidades (erva), e à respetiva venda a terceiras pessoas, para obtenção de proventos económicos.

2. O arguido AA combinava encontros com os seus “clientes”, para concretizar as transações de estupefacientes, por chamadas telefónicas e SMS, mas vinha preferindo os contactos por através do Messenger do Facebook, do Instagram ou do Whatsapp[1].

3. Quando o arguido tinha substâncias estupefacientes disponíveis para revenda, através de tais meios de comunicação, avisava os seus clientes dessa disponibilidade.

4. Para o efeito, o arguido AA utilizou o telemóvel n.º ...01[2].

5. O arguido AA procedia às entregas de estupefacientes a troco de dinheiro, entre outros, na respetiva residência sita em Rua ..., ..., ..., ..., junto ao cemitério ..., junto à Pastelaria ... e noutros cafés da cidade ..., na zona do Centro Comercial .../..., na zona de ..., perto do Centro de Saúde ... e junto de postos de abastecimento de combustíveis.

6. O arguido AA, durante o período em referência, viveu o seu dia-a-dia única e exclusivamente dedicado à compra de estupefacientes e posterior venda, nomeadamente cocaína e canábis, a terceiras pessoas, maioritariamente da zona da cidade ... e áreas limítrofes, não tendo qualquer outra atividade profissional.

II - Do abastecimento de substâncias estupefacientes para revenda

7. O arguido AA adquiria as substâncias estupefacientes que vendia aos seus clientes, maioritariamente em Vila Nova de Gaia – Porto e, por vezes, em Aveiro, localidades para onde se deslocava conduzindo uma carrinha de marca ..., modelo ..., de cor ..., com a matrícula ..-..-ZO.

8. A fim de adquirir substâncias estupefacientes para revenda na cidade ..., o arguido AA deslocou-se a Vila Nova de Gaia – Porto, e a Aveiro, sem prejuízo de outros, nos dias 02-12-2020, 21-12-2020, 14-01-2021, 11-02-2021, 16-03- 2021, 28-04-2021, 28-12-2021, 15-01-2022, 30-01-2022, 26-03-2022, 20-04-2022, 21-04-2022, 23-06-2022, 28-08-2022, 18-09-2022, 05-10-2022, 18-10-2022, 1-11-2022 e 14-11-2022.

9. No dia 28 de dezembro de 2021, cerca das 9 horas, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou uma deslocação com destino a Vila Nova de Gaia, onde chegou cerca das 11 horas e 15 minutos. Ali adquiriu substâncias estupefacientes para revenda na cidade .... No regresso, o arguido esteve cerca de 30 minutos em Aveiro, tendo chegado à ... cerca das 16 horas.

10. No dia 15 de janeiro de 2022, cerca das 8 horas, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou uma deslocação com destino a Vila Nove de Gaia, onde chegou cerca das 10 horas. Ali adquiriu substâncias estupefacientes para revenda na cidade .... Onde, após, regressou, cerca das 12 horas e 30 minutos.

11. No dia 30 de janeiro de 2022, cerca das 8 horas e 30 minutos, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou uma deslocação com destino a Vila Nova de Gaia, onde chegou cerca das 10 horas e 12 minutos. Ali adquiriu substâncias estupefacientes para revenda na cidade .... Onde, após, regressou, cerca das 13 horas e 5 minutos.

12. No dia 26 de março de 2022, cerca das 9 horas e 10 minutos, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou uma deslocação com destino a Vila Nova de Gaia, onde chegou cerca das 11 horas e 15 minutos. Ali adquiriu substâncias estupefacientes para revenda na cidade .... Onde, após, regressou, cerca das 16 horas.

13. No dia 28 de agosto de 2022, cerca das 8 horas e 50 minutos, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou uma deslocação com destino ao Porto, onde chegou cerca das 10 horas e 15 minutos. Ali adquiriu substâncias estupefacientes para revenda na cidade .... Onde, após, regressou, cerca das 12 horas e 10 minutos.

14. No dia 10 de outubro de 2022, cerca das 8 horas e 50 minutos, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou uma deslocação com destino ao Porto, onde chegou cerca das 11 horas e 20 minutos. Ali adquiriu substâncias estupefacientes para revenda na cidade .... Onde, após, regressou, cerca das 14 horas e 20 minutos.

15. No dia 18 de outubro de 2022, cerca das 9 horas e 25 minutos, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou uma deslocação com destino à cidade do Porto, onde chegou cerca das 11 horas. Ali tendo permanecendo cerca de 30 minutos, onde adquiriu substâncias estupefacientes para revenda na cidade .... Onde regressou de seguida, diretamente para a respetiva residência, tendo estacionado a referida viatura em frente ao prédio onde habita, pelas 13 horas e 25 minutos. Saiu do referido veículo de matrícula ..-..-ZO e, com um pacote nas mãos, dirigiu-se ao prédio onde reside.

16. No dia 1 de novembro de 2022, cerca das 8 horas e 47 minutos, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou uma deslocação com destino ao Porto, onde chegou cerca das 10 horas e 17 minutos. Ali adquiriu substâncias estupefacientes para revenda na cidade .... Onde, após, regressou, cerca das 17 horas e 28 minutos.

Nas seguintes datas, para o efeito, o arguido AA efetuou os seguintes percursos nos seguintes horários:

(…)

27. Também no dia 14 de novembro de 2022, pelas 9 horas e 3 minutos, o arguido AA, a bordo do seu veículo de matrícula ..-..-ZO, iniciou mais uma viagem com destino ao Porto, onde chegou ao Bairro ... cerca das 10 horas e 30 minutos, local esteve cerca de 20 minutos e onde adquiriu substâncias estupefacientes (não concretamente apuradas) para revenda na cidade ....

28. No regresso à ..., os inspetores da Polícia Judiciária encarregados da investigação procuraram intercetar o arguido à entrada da cidade, nomeadamente a seguir à rotunda de acesso à autoestrada A25 e à estrada para o ... (conhecida pela rotunda do Cubo ou da Mercedes/Finiclasse), já na Avenida ....

29. Nesse local, cerca das 12 horas e 42 minutos, assim que foi avistada a viatura do arguido AA a passar a chamada “rotunda do Cubo”, uma viatura da Polícia Judiciária (PJ) que ali se encontrava, efetuou uma manobra para cortar o caminho ao arguido e proceder à abordagem, tendo colocado o sinal luminoso, vulgo “pirilampo”, no tejadilho da viatura policial.

30. Ao mesmo tempo a viatura que efetuava o seguimento ao arguido pela A25, aproximou- se da viatura do arguido, também devidamente sinalizada com o sinal luminoso no tejadilho.

31. O arguido, perante a referida ação policial, imobilizou momentaneamente a respetiva viatura, sendo que, quando os elementos da PJ saíram das viaturas respetivas para proceder à detenção, exibindo os crachás identificativos e dando ordem de paragem, identificando-se claramente como Polícia Judiciária, o arguido engrenou a marcha atrás, curvando na direção do passeio e embatendo na viatura afeta à PJ com a matrícula ..-..-NT, tendo estragado a dianteira da mesma e colocado em risco os elementos policiais que ali se encontravam.

32. De seguida, o arguido engrenou a primeira velocidade e, quando o Inspetor DD se encontrava no exterior da viatura, o arguido avançou com o seu carro na direção deste, que apenas teve o reflexo de saltar para a berma, do lado direito, a fim de evitar ser colhido pelo arguido, o que aconteceria caso não o tivesse feito.

33. Nesse trajeto, o arguido com a sua viatura, em grande velocidade, galgou o passeio e passou por cima de duas árvores ali plantadas, reentrando na estrada mais adiante, assim consumando a fuga.

34. O arguido apenas veio a ser intercetado, pelas 14 horas e 18 minutos, na localidade de ..., por agentes da GNR que haviam sido alertados da descrita situação de fuga.

35. Durante o percurso entre a cidade ... e ..., o arguido desfez-se das substâncias estupefacientes que tinha adquirido no Porto e do respetivo telemóvel.

III - Da colocação das substâncias estupefacientes no “mercado” e obtenção dos correspondentes proventos económicos

36. O arguido AA, pelo menos no período de tempo em referência, procedeu à cedência, a troco de dinheiro, de substâncias estupefacientes a diversos consumidores desse tipo de substâncias, entre as quais, cocaína, canábis nas variantes “resina/haxixe”, “sumidades/erva” e “pólen” e MDMA (em comprimidos/pastilhas), nomeadamente, mas sem prejuízo de a outros, a EE, utilizadora do telemóvel número ...59 e ...17; FF; GG, utilizador do telemóvel número ...27; HH, utilizador do telemóvel número ...53; II, utilizador do telemóvel número ...41 e JJ, utilizador do telemóvel número ...24....

(…)

V- Verificação do elemento subjetivo do tipo

67. O arguido AA destinava as substâncias que adquiria, deteve e as que lhe foram apreendidas à venda a terceiras pessoas, que o procurassem para o efeito, a troco de dinheiro.

68. O arguido conhecia a natureza, quantidade, qualidade e características estupefacientes das substâncias que vendeu e detinha para venda a terceiras pessoas, bem assim que a respetiva detenção, transporte e cedência a terceiros, em tais quantidades era proibida e punida por lei.

69. Agiu o arguido em execução de plano previamente delineado, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as condutas que assumiu eram proibidas e puníveis por lei penal.

70. O arguido agiu consciente, voluntária e livremente, com a intenção concretizada de causar os referidos estragos no identificado veículo automóvel adstrito ao serviço público, nomeadamente afeto à Polícia Judiciária, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal.

71. Bem sabia o arguido que, ao conduzir daquela forma temerária, violando grosseiramente as mais elementares regras de condução rodoviária relativas à obrigação de parar no espaço livre e visível, ao respeito devido aos peões, à obrigação de circular nos limites da faixa de rodagem, poderia causar, como causou, perigo para a vida e integridade física de terceiras pessoas, bem como para bens de valor elevado.

72. Bem sabia o arguido que devia obedecer ao sinal regulamentar de paragem que lhe foi dirigido, sendo que, para evitar ser fiscalizado, para além de não obedecer a tal sinal de paragem, de forma livre, voluntária e conscientemente o arguido dirigiu o veículo automóvel que conduzia contra o referido agente da autoridade policial, com a intenção concretizada de obstar a que os mesmos agentes o fiscalizassem.

73. Agiu, sempre, o arguido de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as condutas que assumiu eram proibidas e punidas por lei penal.

74. Agiu da forma descrita, o arguido, bem sabendo que pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º, al. a) do DL 15/93, de 22.01, por condutas que protagonizou entre o início de 2015 e 2 de setembro de 2015, foi condenado no âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 19/15.... do Juízo Central Cível e Criminal ... – Juiz ..., por acórdão de 5.07.2016, transitado em julgado no dia 28.04.2017, na pena de 3 anos de prisão efetiva, não tendo tal anterior condenação servido de suficiente advertência ao arguido, contra a prática de crimes, designadamente de tráfico de estupefacientes (cfr. certidão dos acórdãos juntos de fls. 2679 a 2755, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido).

Dos segmentos relativos à perda de bens e vantagens,

75. O arguido AA, com a sobredita conduta, obteve um proveito no valor de, pelo menos, € 7666,67 (23 meses x €250 - 1/3) relativamente a vendas de pedras de cocaína e € 1533,34 (23 meses x € 100 - 1/3) de vendas de telas de haxixe, num total de € 9200,01 (diferença entre o expendido com a aquisição do estupefaciente e o posterior preço de venda, descontando um terço desse valor que destinava ao seu consumo).

76. Para as vendas que realizou ao longo da atividade acima descrita (durante 23 meses e 14 dias), o arguido adquiria a cocaína no Porto, gastando até €250,00 (geralmente) em cada compra, que realizava pelo menos uma vez por mês (sendo que a pedra de cocaína custava no Porto €10,00); quanto ao haxixe que comprava em Aveiro, onde se deslocava pelo menos uma vez por mês, em placas de 50g cada uma, pela qual pagava pelo menos €100,00 por deslocação.

77. Da venda de haxixe, habitualmente recebia o dobro do que gastava (descontando uma terça parte que consumia), enquanto da venda de cocaína, cujas pedras partia ao meio para vender, que vendia a €20,00 cada, fazia igualmente o dobro do que gastava na sua aquisição (descontando uma terça parte que consumia).

(…)


*

Do crime de dano qualificado,

Ao arguido é também imputada a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo com os demais crimes, de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo art.º 213º, n.º 1, al. c) do Código Penal.

Comete o crime de dano quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não inutilizável coisa alheia.

O bem jurídico protegido é a propriedade.

“A incriminação do Dano protege a propriedade (alheia) contra agressões que atingem directamente a existência ou a integridade do estado da coisa (WOLFF, LK § 303 1). Deve, contudo, precisar-se que –salvo nos casos extremados de destruição da coisa- o direito de propriedade qua tale não é atingido. O que é atingida é apenas uma dimensão ou direito decorrente daquele: o domínio exclusivo sobre a coisa (...), isto é, o direito reconhecido ao proprietário de fazer da coisa (e de lidar com ela como) o que quiser, retirando dela, no todo ou em parte, as gratificações ou utilidades que ela pode oferecer” – cfr. Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, II, p. 207.

A ação ou execução, no crime de dano, consiste em:

-destruir, isto é, dar cabo de, demolir, derrubar, arrasar, fazer desaparecer, inutilizar;  

-danificar, isto é, estragar, arruinar, adulterar; 

-desfigurar, ou seja, mudar a figura de, alterando-lhe os traços;

-tornar não utilizável, isto é, impedir a utilização normal (esta última forma de consumar o dano, é particularmente importante na tipificação prevista no art. 212º nº 1, e que se destina a prevenir aquelas situações em que, não havendo ofensa à integridade física do objecto, nos seus vários aspectos, apenas haja intenção de causar prejuízo a outrem particularmente grave, pelo impedimento da sua normal utilização).

Assim, são elementos do tipo objectivo o acto de destruir, total ou parcialmente, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia; logo, o dano é um crime material ou de resultado, consumando-se com a efectiva destruição (total ou parcial), danificação, desfiguração ou inutilização da coisa.

Objeto do crime de dano é uma coisa alheia, móvel ou imóvel, não havendo aqui, como acontece no furto, de particularizar se a coisa é móvel ou imóvel.

Relativamente ao carácter alheio da coisa, este sofre uma certa limitação quando comparado com igual conceito na definição de crime de furto. Assim, a coisa alheia pode estar na posse do próprio agente, mesmo que essa posse seja a título legítimo.

Coisa alheia, para efeitos do preceituado no art.º 212º, nº 1 do Código Penal, é apenas, aquela cujo direito de propriedade pertence a outrem que não o agente.                                                                  

O sujeito ativo ou agente do crime pode ser qualquer pessoa; o sujeito passivo, o dono da coisa.

Finalmente, o crime de dano tem como elemento subjetivo o dolo, traduzido na vontade de praticar o facto, com consciência de que a coisa é alheia e de que tal comportamento é ilícito.

O dolo prescrito no crime de dano é um dolo genérico, bastando que o agente tenha querido o resultado, não exigindo a lei, qualquer fim específico, nomeadamente o de lesar a propriedade de outrem (neste sentido, AC. de 26.11.86 in BMJ 358, pg.616 e AC. de 21.12.88 in BMJ 382, pg. 529).

Neste sentido, e ao nível do tipo subjetivo de ilícito, o dano apresenta-se como um crime doloso, sendo bastante o dolo eventual (art.º 14º do Código Penal).

Assim, e tendo em consideração todos os factos provados, dúvidas não se nos colocam em afirmar que o resultado é imputável ao arguido.

Com efeito, está provado que nas circunstâncias referidas de 27. a 35. (cujo teor aqui se dá por reproduzido), o arguido, perante a referida ação policial, imobilizou momentaneamente a respetiva viatura, sendo que, quando os elementos da PJ saíram das viaturas respetivas para proceder à detenção, exibindo os crachás identificativos e dando ordem de paragem, identificando-se claramente como Polícia Judiciária, o arguido engrenou a marcha atrás, curvando na direção do passeio e embatendo na viatura afeta à PJ com a matrícula ..-..-NT, tendo estragado a dianteira da mesma e colocado em risco os elementos policiais que ali se encontravam, sendo que o arguido agiu consciente, voluntária e livremente, com a intenção concretizada de causar os referidos estragos no identificado veículo automóvel adstrito ao serviço público, nomeadamente afeto à Polícia Judiciária, bem sabendo ser a conduta que assumiu proibida e punível por lei penal (cfr. factos 31. e 70.).

Mostram-se, pois, cabalmente preenchidos pelo arguido os elementos objetivo e subjetivo deste tipo legal.

Importa agora apurar se se verifica o crime de dano qualificado, previsto e punido na al. c) do nº 1 do art.º 213º do Código Penal, onde se refere que “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável: (...) c) Coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos”.

Neste sentido, teceremos algumas considerações, ainda que necessariamente breves, acerca do referido preceito, naquilo que representa um plus face ao já expendido quanto ao tipo legal base.

Visa o legislador, com esta incriminação, não só proteger a propriedade da coisa (como acontece com a alínea a) dos nºs 1 e 2), mas também tutelar valores e interesses supra individuais que nada têm a ver com a propriedade, como é o caso da al. c) do nº 1 do art.º 213º, desde logo quando o facto atinja a função da própria coisa.

De facto, “não é viável referenciar um único bem jurídico susceptível de emprestar racionalidade teleológico-funcional a todas as condutas proibidas na incriminação” (cfr., neste sentido, Manuel da Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense”, Parte Especial, Tomo II, p. 243 e ss.).

Daí que também não se exija, no dano qualificado, que a coisa objeto do crime seja alheia, já que a infração pode recair sobre coisa própria ou coisa de ninguém, não necessariamente sobre coisa pública ou pertencente a entidade pública.

No que concerne especificamente à cláusula geral que vem referida na al. c), do nº 1, do art.º 213º- “coisa destinada ao uso e utilidade públicos”, - haverá de atender-se, para saber se no caso concreto a conduta do agente integra o tipo objectivo do crime de dano qualificado, a critérios gerais, que a doutrina e jurisprudência vêm apontando como sendo o critério do fim e o do carácter imediato da utilidade (cfr., op. cit., p. 247).

Assim, quanto ao primeiro, haverá de tratar-se de coisa cuja finalidade seja precisamente o serviço ou utilidade em relação ao público, ou seja, coisa a que foi cometida uma função de serviço à comunidade. Quanto ao segundo, haverá de tratar-se de coisa que se destina a ser imediatamente utilizável pela comunidade, ou seja, de coisa que qualquer pessoa, mesmo que, só após a verificação de algumas condições gerais, pode retirar vantagens da própria coisa ou dos seus produtos ou efeitos, sem a mediação de um terceiro legitimado a escolher as pessoas autorizadas a participar ou beneficiar, não cabendo aqui, por exemplo, as coisas pertencentes à Administração Pública e afectas ao seu funcionamento interno como mesas, cadeiras e computadores (vide, neste sentido, Manuel de Andrade, op. cit., p. 249).

Coisas destinadas ao uso e utilidades públicos são, segundo Leal Henriques e Simas Santos (in CP Anotado, vol. II, p. 811), aquelas de que a comunidade se pode utilizar ou tirar um imediato proveito, físico, visual ou auditivo, e também, embora o preceito as não refira expressamente, as coisas destinadas à decoração pública.

À vontade de praticar o facto, haverá que acrescer, na forma qualificada prevista na dita alínea, a consciência de que a coisa é destinada ao uso e utilidade públicos.

Parece-nos razoavelmente claro que a viatura danificada pelo arguido, estando afeta ao serviço da Polícia Judiciária, independentemente do seu proprietário, claramente integram tais funções e, nessa medida, a sua afetação/inutilização remete para uma qualificação da conduta danosa.

Aliás, precisamente como referido no Ac. da R. do Porto de 10.12.2014 (Proc. n.º 4/13.3PEPRT.P1, in www.dgsi.pt) “É suscetível de integrar a prática de um crime de Dano qualificado, do art. 213.º, n.º 1, alínea c), do Cód. Penal, a conduta do agente que desfere um pontapé num veículo policial [“coisa destinada ao uso e utilidade de organismo ou serviço público” - Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro], causando “amolgadelas”.

Sendo entendimento recorrente da nossa jurisprudência que o valor referente para efeitos de qualificação do crime de dano é o do prejuízo sofrido e não o do valor da coisa na sua totalidade (cfr. Ac. da R. do Porto de 10.12.2014, Proc. n.º 4/13.3PEPRT.P1, in www.dgsi.pt), também este fator está demonstrado nos autos (além de ser patente).

Já em aresto de 09.01.2013, aquele mesmo Tribunal da Relação afirmava que “Para efeitos de qualificação do crime de dano p. e p. pelo art.º 213º do C. Penal o valor referente (valor elevado ou valor consideravelmente elevado) é o do prejuízo sofrido e não o do valor da coisa na sua totalidade” (cfr. Proc. n.º 10/11.2GATBC.P1, in www.dgsi.pt). 

Ora, resulta provado do vertido em 80. que os estragos provocados pelo arguido na viatura ..., 308 1.5 BlueHDi Style EAT8, de matrícula ..-..-NT, referida acima em 31., apuraram-se em € 2365,17, os quais foram reembolsados pela seguradora A..., sendo o valor da viatura em novo €32093,11 (com o preço de venda corrigido a 22.11.2022 de €23791).

Conclui-se assim pela comissão, pelo arguido, de um crime de dano qualificado, tal como lhe estava imputado, não existindo causas de extinção da ilicitude ou da culpa que operem in casu.


*

(…)

VIII. DA PERDA DE INSTRUMENTOS, OBJETOS E VANTAGENS


(…)

Atentemos agora na perda de vantagens.

A perda de coisas e direitos relacionados com a prática de um ilícito criminal, previsto, em termos gerais, no Capítulo IX do Código Penal, intitulado «Perda de instrumentos, produtos e vantagens», onde se encontra regulada a «Perda de instrumentos ou produtos» (artigos 109.º e 110.º) bem como a «Perda de vantagens» (artigo 111.º).

Estabelece o art.º 110º, n.º 1, al. b) do Código Penal que são declarados perdidos a favor do Estado “As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.”

Atento o teor do já referido art.º 110, n.º1, al. b) do Código Penal incluem-se em tais vantagens que advêm da prática do crime todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem, direta ou indireta.

Especialmente, prevê o art.º 36º do DL 15/93, de 22.01, sob a epígrafe “Perda de coisas ou direitos relacionados com o facto”, que:
1- Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de uma infração prevista no presente diploma, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.
2- São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objetos, direitos e vantagens que, através da infração, tiverem sido diretamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem.
3- O disposto nos números anteriores aplica-se aos direitos, objetos ou vantagens obtidos mediante transação ou troca com os direitos, objetos ou vantagens diretamente conseguidos por meio da infração.
4- Se a recompensa, os direitos, objetos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor.
5- Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna.

Importa aqui reter que esta promoção e a questão em causa nos autos, nenhuma ligação mostra com o confisco alargado previsto no artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11.01 [3] (inserido no Capítulo IV da aludida Lei, denominado «Perda de bens a favor do Estado», sob a epígrafe «Perda de bens», que não foi invocado in casu).

Como se refere no Ac. da R. do Porto de 11.06.2014 (Proc. n.º 1653/12.2JAPRT-A.P1):

I– A perda de bens determinada pelo art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2012, de 11 de janeiro, não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.

II– O Ministério Público deve proceder à liquidação do património incongruente (“o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado” – art. 8.º, n.º 1), em incidente de liquidação enxertado no processo penal, e promover a sua perda a favor do Estado.

III– Para decidir a liquidação, o tribunal tem em consideração toda a prova produzida no processo.

IV– A base de partida é o património do arguido, todo ele, pois o conceito é utilizado no art. 7.º numa perspetiva omnicompreensiva, de forma a abranger não só os bens de que o arguido seja formalmente titular (do (inserido no Capítulo IV da aludida Lei, denominado «Perda de bens a favor do Estado», sob a epígrafe «Perda de bens», que não foi invocado in casu).

Ora, a perda de vantagens tem em vista, primordialmente, uma perigosidade em abstrato, um propósito de prevenção da criminalidade em geral, sendo que tal como a perda de instrumentos e produtos do crime, também a perda de vantagens vem sendo definida, maioritariamente, no que respeita à sua natureza jurídica, como uma “providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança”.

Como se refere no Ac. da R. de Coimbra de 3.10.2012 (Proc. n.º 5/10.3GBMMV.C1, in www.dgsi.pt ) “O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, dispõe de regulamentação específica no que concerne à perda dos instrumenta e producta sceleris, bem como às vantagens e direitos retirados do facto, estabelecendo que as vantagens e os direitos dele decorrentes, bem como os eventuais juros, lucros e outros benefícios obtidos através daqueles, são declarados perdidos a favor do Estado - artigos 35º a 38º”.

Alegou o Ministério Público que o arguido AA, com a sobredita conduta criminosa, obteve uma vantagem patrimonial no valor de, pelo menos, € 99.380,00 (noventa e nove mil trezentos e oitenta euros), equivalente a uma pequena parte das substâncias estupefacientes que vendeu no período de tempo de referência.

Como vimos acima e consta da respetiva al. z), tal alegação resultou não provada. direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), à data da constituição como arguido ou posteriormente.

V- Para este efeito, incluem-se, no património do arguido, os bens transferidos para terceiros de forma gratuita ou através de uma contraprestação simbólica nos cinco anos anteriores à constituição de arguido e os por ele recebidos no mesmo período.

VI– Apurado o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita, auferidos pelo arguido naquele período. Se desse confronto resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado.

VII– Para garantir a efetiva perda desse valor incongruente, pode o Ministério Público requerer ao juiz que decrete o arresto de bens do arguido.

VIII– O arresto pode incidir sobre bens de que formalmente é titular um terceiro.

IX– O titular de direitos afetados pela decisão pode, tal como o arguido, ilidir a presunção do art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, nomeadamente provando (através da demonstração inteligível dos fluxos económico-financeiros na origem das aquisições em causa) que os bens foram adquiridos com proventos de atividade lícita

O que a este respeito foi possível apurar está descrito de 75. a 77., onde se pode ler que AA, com a sobredita conduta, obteve um proveito no valor de, pelo menos, € 7666,67 (23 meses x €250 - 1/3) relativamente a vendas de pedras de cocaína e € 1533,34 (23 meses x € 100 - 1/3) de vendas de telas de haxixe, num total de € 9200,01 (diferença entre o expendido com a aquisição do estupefaciente e o posterior preço de venda, descontando um terço desse valor que destinava ao seu consumo); para as vendas que realizou ao longo da atividade acima descrita (durante 23 meses e 14 dias), o arguido adquiria a cocaína no Porto, gastando até €250,00 (geralmente) em cada compra, que realizava pelo menos uma vez por mês (sendo que a pedra de cocaína custava no Porto €10,00); quanto ao haxixe que comprava em Aveiro, onde se deslocava pelo menos uma vez por mês, em placas de 50g cada uma, pela qual pagava pelo menos €100,00 por deslocação; da venda de haxixe, habitualmente recebia o dobro do que gastava (descontando uma terça parte que consumia), enquanto da venda de cocaína, cujas pedras partia ao meio para vender, que vendia a €20,00 cada, fazia igualmente o dobro do que gastava na sua aquisição (descontando uma terça parte que consumia).

Resulta assim razoavelmente claro que, seja ao abrigo do disposto no art.º 36º, ns.º 1, 2, 3 e 4 do DL n.º 15/93, de 22.01, seja ao abrigo do estipulado no art.º 110º, n.º1, al. b) e n.º4 do Código Penal (ou nos termos do anterior art.º 111º, n.º 2 do mesmo diploma legal), apenas tais montantes devem ser entendidos como vantagem do crime em causa nos autos e, como tal, devem ser declarados perdidos a favor do Estado.

Importa reter a importante lição dada no Ac. da R. de Coimbra de 8.11.2017 (Proc. n.º 326/16.1JACBR.C1, in www.dgsi.pt ) onde se consignou que “Punir os crimes mas tolerar a manutenção da recompensa prometida no património dos agentes dos crimes, não decretando a sua perda a favor do Estado, pelo menos quando essa promessa de recompensa se mostra objetivamente séria, cremos que é uma resposta incongruente e incompreensível para a comunidade.

A remoção dos meios económicos subjacentes à prática dos crimes de tráfico e de corrupção, através da perda da recompensa prometida, é o meio verdadeiramente eficaz de combater a atividade ilícita que visou o lucro”.

Procede, pois, apenas nessa medida, o requerido pelo Ministério Público neste particular».


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III. Apreciando e decidindo

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Nos presentes autos são questões a apreciar e decidir:1) Falta de legitimidade para o procedimento criminal pelo crime de dano qualificado; 2) Condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou da pronúncia fora dos casos e das condições previstos nos art.ºs 358.º e 359.º do CPP; 3) Omissão de pronúncia por falta de ponderação da não substituição das penas de prisão parcelares por penas não privativas da liberdade; 4) Utilização sob pontos 27, 37,38,39, 40, 41, 42, 43, 44, 46, 47, 53 da factualidade provada de expressões vagas, imprecisas e não concretizadas; 5) Recurso a prova proibida; 6) Vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP e violação do princípio in dubio pro reo;7) Enquadramento da conduta do arguido no tipo previsto no art.º 25.º do DL 15/93, de 22.01; 8)  Unidade dos crimes de dano qualificado, resistência e coação e condução perigosa Enquadramento da conduta do arguido no tipo previsto no art.º 25.º do DL 15/93, de 22.01; 9) Excesso das medidas das penas; 10) Excesso na liquidação das vantagens obtidas com a atividade criminosa.

            Apreciemos.


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1. Falta de legitimidade para o procedimento criminal pelo crime de dano qualificado

1.1 Alega o recorrente que «Tendo em conta que decorre dos autos que o veículo em causa era pertença de uma entidade externa ao estado, era essa quem tinha legitimidade para o procedimento criminal, termos em que deve o crime de dano qualificado ser arquivado por falta de legitimidade».

Vejamos.

1.2 O arguido foi acusado e condenado pela prática de um crime de dano qualificado previsto e punido na al. c) do nº 1 do art.º 213º do Código Penal (ou CP), onde se refere que «Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável: (...) c) Coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos».

Ora, encontramo-nos perante um crime de natureza pública, não dependendo o seu procedimento de queixa ou de acusação particular (art.º 48.º do Código de Processo Penal, ou CPP).

No entanto, importa considerar que, se a coisa danificada for de diminuto valor não há lugar à qualificação, nos termos do n.º 3 do art.º 213.º do CP (que remete para o n.º 4 do art.º 204.º do mesmo diploma legal).

Valor diminuto é «aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto» (art.º 202.º al. c) do CP), ou seja, €102,00 (art.º 9 da Lei 99/2021 de 31.12, Portaria n.º 294/2021).

Analogicamente pro reo e por força do princípio da proporcionalidade (art.º 18.º da CRP), se a coisa de valor elevado ou consideravelmente elevado sofrer um dano de valor diminuto também não há lugar à qualificação - Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, p. 908.

Este efeito desqualificador opera independentemente do número e das circunstâncias qualificativas que se verifiquem no caso concreto - Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, relativamente ao crime de furto, p. 875 (48).

A ausência de circunstâncias descritas na acusação que permitam, no mínimo, uma quantificação aproximada, relevante e segura para satisfazer o respeito pelo princípio da legalidade penal, não pode ser interpretada, no sentido mais amplo e com maior desfavor do arguido, ou seja, em valoração in pejus.

Entendimento diverso - como seja o de se admitir a qualificação sem que se encontre descrito no libelo o elemento essencial do valor - violaria os princípios da acusação e da vinculação temática - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 10.12.2014, no processo 4/13.3PEPRT.P1 (rel. Des. Eduarda Lobo) disponível in www.dgsi.pt, como os restantes a que no, no presente Acórdão no referiremos, sem especificação.

Em suma, «sempre que não for notório que os danos causados tenham valor superior à unidade de conta, se a acusação for omissa quanto ao seu valor, sob pena de violação do princípio da acusação, não poderá o arguido ser julgado e, muito menos, condenado por mais do que por um crime de dano «simples»» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 19.05.2022, no processo 4/21.0T9AGH.L1-9 (rel. Des. Paula Cristina Jorge Pires).

No caso dos autos, a acusação descreve a conduta do arguido (causadora de estragos na viatura afeta ao serviço público) sem quantificar o valor do prejuízo causado (ou mesmo da coisa).

O valor do dano não é revertível à noção de facto notório.

Deste modo, os factos constantes da acusação no que respeita ao elemento do valor, não permitem a subsunção no tipo legal qualificado (p.p. nos termos do art.º 213.º do CP), mas apenas ao crime de dano (p.p. nos termos do art.º 212.º do CP).

1.3 É certo que, no nosso caso, o Tribunal recorrido, invocando o disposto no art.º 358.º (alteração não substancial) no decurso da audiência de julgamento procedeu à comunicação do seguinte facto:

«Os estragos provocados pelo arguido na viatura ..., 308 1.5 BlueHDi Style EAT8, de matrícula ..-..-NT, referida acima em 31., apuraram-se em € 2365,17, os quais foram reembolsados pela seguradora A..., sendo o valor da viatura em novo €32093,11 (com o preço de venda corrigido a 22.11.2022 de €23791)».

Deste facto, que foi julgado provado pelo Tribunal recorrido, resulta que o valor dos estragos causados não é diminuto (uma vez que não é igual nem inferior à unidade de conta).

Contudo, num processo penal de estrutura acusatória, é a acusação a definir o objeto do processo.

São os factos narrados na acusação, imputados a um concreto arguido e que constituem o crime, a fixar o campo no interior do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua atividade cognitiva e a sua atividade decisória.

É, portanto, a acusação que fixa os limites da atividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum.

A atividade do tribunal penal, consubstanciada na investigação e prova de determinados factos não pode sair fora dos limites traçados pela acusação, sob pena de nulidade, salvo em certas situações permitidas por lei em que, respeitadas certas condições, se pode proceder a uma alteração daqueles factos (arts. 303.º, 309.º, 358.º e 359.º, entre outros, do CPP).

A atividade decisória do tribunal, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º, também tem de se confinar ao objeto da acusação (art.º 379.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma legal).

Encontramos nos art.ºs 358.º e 359.º do CPP os casos e condições em que é permitida a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

Dispõe o art.º 358.º do CPP (alteração não substancial dos factos previstos na acusação ou na pronúncia):

«1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

(…)».

Prevê o art.º 359.º (alteração não substancial dos factos previstos na acusação ou na pronúncia) do mesmo diploma legal que:

«1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.

3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia».

Na definição legal da alínea f) do n.º 1 do CPP, alteração substancial dos factos «é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

Já a alteração não substancial de factos define-se pela negativa, sendo, portanto, aquela que não tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação do limite máximo da pena aplicável, pressuposta, evidentemente, a sua relevância para a decisão da causa.

A alteração dos factos - seja substancial, seja não substancial - distingue-se da alteração da qualificação jurídica.

A base factual não se confunde com a sua valoração.

Uma coisa são os factos descritos na acusação e que podem ser objeto de alteração substancial ou não substancial.

Outra coisa é a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

À alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia aplica-se, em conformidade com o disposto no n.º 3 do art.º 358.º do CPP, o disposto no n.º 1 do mesmo artigo.

«A alteração substancial ou não substancial dos factos não deve ser confundida com a alteração da qualificação jurídica dos mesmos, nada impedindo que com base nos factos constantes da acusação/pronúncia, ou ainda dos resultantes de uma alteração não substancial, o tribunal venha a condenar por crime diverso – e mesmo mais grave -, posto que, com vista a assegurar um efetivo exercício do direito de defesa, máxime o contraditório, comunique a alteração da qualificação jurídica e, sendo o caso, a alteração não substancial dos factos, concedendo, se requerido, prazo para preparação da defesa – [cf. artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP]»- Cf. Acórdão do TRC datado de 22.02.2023, no processo 3/22.4PEFIG.C1 (rel. Des, Maria José Nogueira).

No nosso caso, os factos comunicados e julgados provados que respeitam ao valor dos estragos causados permitiria a subsunção ao crime de dano qualificado.

No entanto, a factualidade descrita na acusação apenas seria suscetível de fazer integração na conduta no crime de dano previsto no art.º 212.º do CP.

Não, portanto, nos encontramos perante uma mera alteração da qualificação jurídica que já seria permitida pelos factos descritos na acusação.

Aliás, o arguido foi acusado e veio a ser condenado, em primeira instância, pela prática de um dano qualificado (art.º 213.º do CP).

Ou seja, não procedeu (nesta parte) o Tribunal recorrido a uma diferente qualificação da conduta do arguido.

O que ocorreu, isso sim, foi uma modificação da base factual, que, a ser considerada, permitiria a subsunção da conduta ao tipo qualificado, quando a conduta descrita na acusação apenas é suscetível de preencher o tipo base.

Trata-se, portanto, de uma alteração de factos que é substancial, por ter como efeito a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (art.º 1.º al. f)).

Como assim é, a circunstância de a alteração haver sido comunicada ao arguido como «não substancial» e de lhe ter sido concedido prazo para defesa, não se afigura decisiva» - Cf. citado Acórdão do TRC datado de 22.02.2023.

«Com efeito, como resulta da fundamentação do acórdão do TC n.º 463/2004, de 23.06.2004 - o qual «julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 3 5, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do art.º 359.º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de, em situação em que o tribunal de julgamento comunica ao arguido estar-se prante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, quando a situação é de alteração substancial da acusação, pode o silêncio do arguido ser havido como acordo com a continuação de julgamento» -, «(…) a comunicação ao arguido de que a alteração temática do processo tem natureza de alteração não substancial quando, em boa verdade, ela tem natureza de substancial corresponde a dar-lhe conhecimento de um estatuto substantivo diferente relativo à sua posição processual de arguido e uma tal situação, estatuto esse que comporta, mesmo à face do direito infraconstitucional, uma diminuição dos seus direitos de defesa e, consequentemente, não pode deixar de considerar-se como violando o n.º 1 do art.º 32.º da CRP. Na verdade, o estatuto comunicado não exige que o julgamento apenas possa continuar se ele der o seu acordo com essa continuação e o mesmo fizerem o Ministério Público e o assistente. Por outro lado, são também diferentes as condições de que o arguido goza para poder preparar a sua defesa: enquanto no caso do art.º 358.º do CPP, ele apenas dispõe do tempo que o juiz considerar estritamente necessário, no caso do art.º 359.º do CPP, ele poderá reclamar um prazo até 10 dias.

(…)

Por outro lado, a comunicação feita pelo tribunal não poderá deixar de ser vista pelo prisma do princípio de processo penal de fair trial, ou seja, um processo leal, apanágio do processo penal de um Estado de direito (...). Assim sendo, não é de exigir que o arguido deva olhar, imediatamente, com desconfiança para a qualificação da alteração temática do processo, dado que a mesma é feita por um tribunal que deve agir com imparcialidade e independência e que está obrigado a respeitar o seu estatuto processual».

«Isto para dizer que a consequência decorrente da comunicação de uma alteração não substancial, quando efetivamente se tratava de alteração substancial, ainda que o arguido não haja reagido, não a subtraí ao regime decorrente da alínea b), do n.º 1, do artigo 379.º do CPP» - cf. citado Acórdão do TRC de 22.02.2023.

Ora, não consta dos autos que o Ministério Público e o arguido estejam de acordo com o prosseguimento dos autos por estes novos factos, e, sem tal acordo, estes novos factos (não autonomizáveis do objeto do processo) não podem ser tomados em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implicam a extinção da instância (art.º 359.º n.ºs 1 e 2 do CPP).

Portanto, nunca poderiam ser considerados os factos aditados (que respeitam ao valor dos estragos) para a condenação do arguido por dano qualificado.

Assim, o Acórdão é nulo, na parte em que condenou o arguido por factos que não se encontram descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359 do CPP (art.º 379.º n.º 1 al. b) do CPP).

1.4 Desconsiderando os factos novos na decisão a proferir, permitirão os autos a condenação do arguido pela prática de um crime de dano p.p. nos termos do art.º 212.º do CP?

Entendemos que não.

O procedimento criminal deste tipo de crime depende de queixa (n.º 3 do artigo 212º do CP).

Ora, dispõe o art.º 49º nº 1 do CPP que «Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo».

A queixa não se encontra sujeita a forma.

No entanto, é indispensável «que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona» - Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 675.

Ora, no caso em apreço, não se mostra formulada tal intenção, por qualquer dos titulares de interesse que a lei «especialmente quis proteger com a incriminação» (art.º 113.º do CP).

Seja pelo proprietário da coisa danificada, seja por quem se encontrava no legítimo gozo da coisa (cf. Acórdão de fixação da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2011, que não vislumbramos qualquer razão para afastar, nos termos do n.º 3 do art.º 445.º do CPP).

É certo que os Órgão de Polícia Criminal levaram ao conhecimento do Ministério Público os factos relativos à danificação da viatura.

Mas tal comunicação nem foi efetuada por quem tinha legitimidade para apresentar queixa, nem demonstra por si só a vontade de instauração de procedimento criminal.

Aliás, a denúncia que é obrigatória para as entidades policiais, quanto a todos os crimes de que tomarem conhecimento (nos termos do art.º 242.º n.º 1 al. a) do CPP) e só dá lugar a instauração de inquérito se a queixa for apresentada no prazo legalmente previsto (art.º 242.º n.º 3 do CPP).

Tal como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 20.22.2012, no processo 1831/10.9TAPTM.E1 (João Gomes de Sousa):

«Não nos parece que a distinção prática entre um crime público e outro semi-público possa ficar sistematicamente dependente de simples interpretação sobre uma vontade presumida.

A diversa natureza dos crimes na nossa ordem penal é uma forma de o legislador regular e equilibrar interesses e bens jurídicos sem recorrer ao princípio da oportunidade e o princípio da oficialidade, plenamente operativo, exige previsibilidade, clareza e certeza. A interpretação de uma vontade presumida a que se recorra de forma sistemática implica, em maior ou menor grau, uma imprecisão e um corroer daquele princípio da oficialidade.

Exige-se, por via disso, que a expressão de vontade se corporize em algo de diferente de uma figura que o legislador tratou de forma diversa e com diferente terminologia».

Em breve: denúncia não é queixa. Contém a denúncia algo que corporize a vontade? Se sim, existe queixa. Se não, não há acto volitivo processualmente relevante, apenas a notícia de um crime».

E não se diga que a questão da falta de legitimidade se encontra sanada por força da alteração dos factos descritos na acusação, nos termos do art.º 358.º do CP.

Nem o regime da alteração dos factos destina a sanar a falta de uma condição de procedibilidade, no caso a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir a acusação, nem os factos que respeitam ao valor dos estragos podem servir de base à decisão condenatória por crime de dano qualificado, por se encontrarem fora dos casos e condições previstos nos art.º 358.º e 359.º do CPP.

Como assim e, no que respeita ao crime de dano, p.p. nos termos do art.º 212.º do CP, decorrido o prazo de seis meses, nos termos do art.º 115.º n.º 1 do CPP, sem que pessoa com legitimidade para o efeito, tivesse exercido o direito de queixa, extinguiu-se o respetivo direito, carecendo o Ministério Público de legitimidade para o prosseguimento da ação penal.

1.5 Tudo visto e considerado, impõe-se, revogar parcialmente o Acórdão recorrido, absolvendo o arguido pela prática do crime de dano qualificado nos termos do art.º 213.º n.º 1 al. c) do CP pelo qual foi condenado.

(…)

3. Omissão de pronúncia: Falta de ponderação da não substituição da penas parcelares por penas não privativas de liberdade

3.1 Alega o recorrente que o Tribunal recorrido omitiu pronúncia ao não ponderar a substituição das penas parcelares que assim o permitem, por penas não privativas da liberdade.

Efetivamente, entre as causas de nulidade da sentença encontra-se prevista a omissão de pronúncia, que é aquela que se verifica quando o Tribunal deixa de pronunciar-se sobre «questões de devesse apreciar» (art.º 379.º n.º 1 al. c), 1ª parte).

Determinada a concreta medida da pena e sendo esta uma pena de prisão, impõe-se verificar se ela pode ser objeto de substituição, em sentido próprio ou impróprio e determinar a sua medida.

O Tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar uma pena de substituição pois não detém uma faculdade discricionária.

O que está consagrado na lei é um poder/dever ou um poder vinculado, pelo que, uma vez verificados os respetivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicar uma pena de substituição.

E se não o fizer, o Tribunal comete a nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP.

Lê-se no Acórdão recorrido, quanto à substituição da pena única:

«Face à dosimetria penal concretamente fixada à pena de prisão, não importa equacionar qualquer pena de substituição, uma vez que nenhuma é legalmente admissível in casu.

Considerando o apurado igualmente se mostra afastado o disposto no art.º 44º do DL n.º 15/93, de 22.01».

Certo é ainda que o Tribunal recorrido não proferiu qualquer juízo de substituição das penas parcelares.

Ora, em 1.ª instância, o arguido foi condenado nas penas parcelares de:

- 6 anos e 6 meses de prisão (pela prática, em autoria material e na forma consumada (em concurso efetivo com os demais ilícitos em que vai condenado), de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às tabelas I-B e I-C anexas a tal diploma, como reincidente);

-  9 (nove) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada (em concurso efetivo com os demais ilícitos em que vai condenado), de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo art.º 213º, n.º 1, al. c) do Código Penal, pela qual vai absolvido nesta Relação.

Relativamente à primeira daquelas penas parcelares, face à medida fixada (de 6 anos e 6 meses fixada), encontra-se afastada a  substituição seja por multa (pena substitutiva da prisão aplicada em medida não superior a 1 ano, nos termos do art.º 45.º do CP), seja por suspensão de execução da pena de prisão (pena substitutiva da prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, nos termos do art.º 50.º ), seja por prestação de trabalho a favor da comunidade (pena substitutiva da pena de prisão não superior a 2 anos, nos termos do art.º 58.º do CP), bem como se encontra afastado o regime de permanência na habitação (a executar quando a pena de prisão efetiva não superior a dois anos, nos termos do art.º 43.º n.º 1 al. a) do CP).

Por outro lado, como o arguido vai absolvido da prática do crime de dano qualificado, perde utilidade, nesta parte a apreciação da defesa recursiva.

Será, no entanto, que haveria de ter sido proferido em primeira instância um juízo sobre a substituição (ou não) das penas parcelares:

- de 6 (seis) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291º, n.º 1 al. b) do Código Penal, pelas penas de multa (artigo 45º); prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º); suspensão da pena (artigo 50º); bem como relativamente à execução em regime de permanência na habitação (artigo 43º); e de

- de 2 (dois) anos de prisão pela prática, em autoria material e na forma consumada (em concurso efetivo com os demais ilícitos em que vai condenado), de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347º, ns.º 1 e 2, do Código Penal, pelas penas de  prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º); suspensão da pena (artigo 50º); bem como relativamente à execução em regime de permanência na habitação (artigo 43º)?

Terá, por essa razão, o Tribunal recorrido omitido um dever de se pronunciar, assim inquinando o Acórdão na nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP?

3.2 Vejamos.

Dispõe o art.º 77.º do CP, sob a epígrafe, quanto às regras da punição do concurso, o seguinte:

«1- Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis».

O comando do art.º 77º nº 1 do CP determina que sejam considerados, na medida da pena única a aplicar, «em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Ou seja, à visão atomística própria da determinação das penas parcelares sucede-se uma visão do conjunto dos crimes em concurso, que são tratados na sua imagem global, de modo serem detetadas as conexões existentes (ou não) entre os diversos comportamentos ajuizados, tendo em conta o que ressalta do contexto factual provado, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente.

No dizer do Professor Jorge de Figueiredo Dias, releva «a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)» -Cf. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág, 291.

Tal como escreve o Professor André Lamas Leite no capítulo «Em Direção a Uma teoria Geral das penas de substituição?», pp 597 e 598, disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/121775/2/345145.pdf, e consultado no dia 09.04.2024:

«(…) é a própria natureza deste modo especial de determinação da medida concreta da pena que não nos permite olvidar que estamos em face de factualidades criminosas cometidas — todas elas — antes do trânsito em julgado de qualquer uma, o que importa a sua consideração uno ato e não de jeito parcelar (…).

Analisar a pluralidade criminosa de uma forma sincopada impediria que o juiz tomasse consciência da verdadeira e proporcionalidade das penas (acórdãos n. os 61/2003 e 572/2003, sobre a protecção jusconstitucional do efeito de caso julgado, emanação dos princípios da certeza e segurança do Direito, com guarida no princípio do Estado de Direito — cf. arts. 1.º e 2.º da CRP).

(…)

Em outras palavras, é o próprio condenado que estabelece uma ligação entre os vários crimes a serem julgados em conjunto, de tal modo que o juízo prognóstico favorável fundamentador de qualquer pena substitutiva apenas se justifica se e na medida em que o julgador tem uma visão holística de toda a factualidade. Esquecê-lo seria, porventura, determinar uma medida substitutiva que, depois, em face dos demais crimes parcelares, pudesse ver esse juízo fundador totalmente posto em crise. Dir-se-á, numa palavra, que a consideração isolada dos delitos poderia contrariar o pressuposto material de qualquer medida de substituição, ao tratar, por tranches, realidades unificadas pela ausência de caso julgado sobre qualquer um dos delitos que, entre si, poderiam depor em sentido uns favorável e outros desfavorável à dita substituição».

3.4 Tudo considerado.

A fórmula constante do art.º 77.º do Código Pena implica, de modo objetivo, que alguma ou algumas das medidas concretas parcelares não admitam, na prática (i. e., na diluição da pena única de concurso), uma sua substituição por outra medida.

Andou bem o Tribunal recorrido ao não se pronunciar sobre a substituição das penas parcelares (nem o seu cumprimento em regime de permanência na habitação), não enfermando o Acórdão recorrido nesta parte da nulidade prevista no art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP.

(…)

4. Utilização de prova proibida : metadados


5.1 No entender do recorrente, o Tribunal a quo desatendeu a decisão do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 de 19.4.22 que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4.º, em conjugação com o artigo 6.º, e do artigo 9.º da Lei dos Metadados, ao socorrer-se de prova proibida.

Alega o recorrente que deve «declarar-se a) a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma constante do artigo 4º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, conjugada com o artigo 6º da mesma lei, por violacão do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35º e do n.º 1 do artigo 26º, em conjugacão com o n.º 2 do artigo 18º, todos da Constituicão da República Portuguesa. b) a inconstitucionalidade, com forca obrigatória geral, de norma constante do artigo 9º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigacão, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicacão não seja suscetível de comprometer as investigacões nem a vida ou a integridade física de terceiros, por violação do n.º 1 do artigo 35º e do n.º 1 do artigo 20º, em conjugacão com o n.º 2 do artigo 18º da Constituicão da República Portuguesa».

Ora, todos os Tribunais podem recusar-se a aplicar normas que infrinjam a Constituição nos feitos submetidos a julgamento (art.º 204.º do CRP).

Os tribunais comuns também têm, portanto, acesso direto à Constituição, dispondo de competência plena para julgarem e decidirem as questões suscitadas.

No entanto, o controlo concreto de constitucionalidade é um controlo incidental, nunca surgindo como o objeto principal do processo.

A fiscalização abstrata da constitucionalidade consiste num mecanismo com a sua tramitação própria, que tem direta e exclusivamente relevância normativa, o que o diferencia dos processos cíveis, penais ou administrativos, bem como dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade, que não consubstancia, desta forma, uma «ação em sentido restrito», que é da competência do Tribunal Constitucional, e no qual os particulares não têm qualquer possibilidade de intervir ou de influenciar a tramitação processual, dado que só podem formular o pedido determinadas entidades (artigo 281º, nº 2 da Constituição).

O processo penal, incluindo, a fase recursiva não é, a todas as luzes, o meio adequado para deduzir pedido de fiscalização abstrata da constitucionalidade, sendo ainda certo, carecerem o aqui recorrente de legitimidade para nele intervir e não ter o Tribunal de Recurso competência para a apreciação.

Com esforço acrescido, pese embora o textuado no recurso, entendemos que o que o recorrente efetivamente pretende não é a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mas que seja alterada a decisão de facto, por assentar em prova proibida, transitando para a factualidade não provada os factos descritos sob os pontos 1 a 26.

5.2 Vejamos.

No seu Acórdão n.º 268/2022, o Tribunal Constitucional decidiu:

«a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;

b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição».

Contudo, a possibilidade de transmissão de dados de tráfego no âmbito de processo criminal não está prevista apenas na Lei 32/2008 de 17.07, sendo também permitida, designadamente, nos termos do art.º 189°, n° 2 do Cód. Proc. Penal, cuja norma não foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral.

No caso, nos termos dos arts. 187.º, n.º 1, alínea a) e 188.º, e do artigo 189.º, do CPP, por despacho judicial foi autorizada a interceção e gravação das conversações efetuadas e recebidas para os números de telefone dos suspeitos, respetivas faturações detalhadas, localizações celulares e registo de trace-back, pelo período de 90 dias.

Como assim foi, não se vislumbra qualquer nulidade na obtenção de prova.

(…)

10. Excesso na liquidação das vantagens obtidas com a atividade criminosa

O Acórdão recorrido declarou perdida a favor do Estado a vantagem obtida pelo arguido com a sua atividade criminosa, liquidou em € 9.200,01 (nove mil e duzentos euros e um cêntimo), nos termos do art.º 110.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal e art.º 36º, ns.º 2, 3 e 4 do DL n.º 15/93, de 22.01, condenando o arguido ao seu pagamento.

Alega o recorrente, «ainda que se mantenha o raciocínio logico dedutivo efetuado pelo tribunal, quanto muito a vantagem patrimonial obtida seria de 3066€», e não o total de € 9.200,01 (nove mil e duzentos euros e um cêntimo), liquidado pelo Tribunal recorrido.

Vejamos.

Tal como se escreve no Acórdão recorrido no capítulo VIII. DA PERDA DE INSTRUMENTOS, OBJETOS E VANTAGENS, na parte respeitante à perda de vantagens:

«Na síntese de Paulo Pinto de Albuquerque (in CCP, Iniv. Cat. Edt.ª, 1ª edição, pág. 316) “As vantagens são determinadas de acordo com o “princípio do ganho liquído” (das Nettogewinnprinzip), pelo que dever ser deduzido da vantagem obtida pelo agente o montante que ele despendeu para obter essa vantagem”. Veja-se no mesmo sentido Miguez Garcia e Castela Rio, in “Código penal – Parte geral e especial”, Almedina, 2015, 2ª Ed., pág. 467».

No caso.

Provou-se que:

«76. Para as vendas que realizou ao longo da atividade acima descrita (durante 23 meses e 14 dias), o arguido adquiria a cocaína no Porto, gastando até €250,00 (geralmente) em cada compra, que realizava pelo menos uma vez por mês (sendo que a pedra de cocaína custava no Porto €10,00); quanto ao haxixe que comprava em Aveiro, onde se deslocava pelo menos uma vez por mês, em placas de 50g cada uma, pela qual pagava pelo menos €100,00 por deslocação.

77. Da venda de haxixe, habitualmente recebia o dobro do que gastava (descontando uma terça parte que consumia), enquanto da venda de cocaína, cujas pedras partia ao meio para vender, que vendia a €20,00 cada, fazia igualmente o dobro do que gastava na sua aquisição (descontando uma terça parte que consumia)».

Lê-se, ainda, no Acórdão recorrido o seguinte:

«O que a este respeito foi possível apurar está descrito de 75. a 77., onde se pode ler que AA, com a sobredita conduta, obteve um proveito no valor de, pelo menos, € 7666,67 (23 meses x €250 - 1/3) relativamente a vendas de pedras de cocaína e € 1533,34 (23 meses x € 100 - 1/3) de vendas de telas de haxixe, num total de € 9200,01 (diferença entre o expendido com a aquisição do estupefaciente e o posterior preço de venda, descontando um terço desse valor que destinava ao seu consumo); para as vendas que realizou ao longo da atividade acima descrita (durante 23 meses e 14 dias), o arguido adquiria a cocaína no Porto, gastando até €250,00 (geralmente) em cada compra, que realizava pelo menos uma vez por mês (sendo que a pedra de cocaína custava no Porto €10,00); quanto ao haxixe que comprava em Aveiro, onde se deslocava pelo menos uma vez por mês, em placas de 50g cada uma, pela qual pagava pelo menos €100,00 por deslocação; da venda de haxixe, habitualmente recebia o dobro do que gastava (descontando uma terça parte que consumia), enquanto da venda de cocaína, cujas pedras partia ao meio para vender, que vendia a €20,00 cada, fazia igualmente o dobro do que gastava na sua aquisição (descontando uma terça parte que consumia)».

Entendamos que o Acórdão recorrido enferma de um erro de cálculo notório, a corrigir nos termos do art.º 380.º n.º 1 al. b) do CPP.

Vejamos.

O preço que o arguido pagou:

- pela cocaína (que revendeu) foi de (€ 5750x2/3), num total de € 3833,33

- pelo haxixe (que revendeu) foi de (€ 2300x2/3), num total de € 1533,33.

Portanto, despendeu o arguido na aquisição das substâncias estupefacientes (que revendeu), € 5366,66.

O preço que o arguido recebeu:

- pela cocaína (que revendeu) foi de (€ 3833,33x2=) € 7666,67

- pelo haxixe (que revendeu) foi de (€ 1533,33x2=) 3066,67

Portanto, o arguido recebeu pela venda das substâncias estupefacientes € 10 733,34.

Deduzindo a este valor o preço pelo qual haviam sido adquiridas as substâncias obtemos o valor de € 5 366,68, sendo este o valor correspondente à perda da vantagem obtida pelo arguido com a sua atividade criminosa.

Nesta parte, resulta, pois, parcialmente procedente o recurso.


*

IV. DISPOSITIVO

*

Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso, e, consequentemente:

- Em absolver o arguido AA da prática em autoria material e na forma consumada (em concurso efetivo com os demais ilícitos em que vai condenado), de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo art.º 213º, n.º 1, al. c) do Código Penal;

- Em reformular o cúmulo jurídico, condenando o arguido na pena única de 7 (sete) anos e 8 (oito) meses de prisão;

- Em reformar o Acórdão recorrido na parte em que liquidou em € 9.200,01 (nove mil e duzentos euros e um cêntimo), a vantagem e declarada perdida a favor do Estado e obtida pelo arguido com a sua atividade criminosa, liquidando a vantagem e declarada perdida a favor do Estado e obtida pelo arguido com a sua atividade criminosa, em € 5 366,68 (cinco mil trezentos e sessenta e seis euros e sessenta e oito cêntimos), condenando o arguido no pagamento deste valor;

- Em manter no remanescente o Acórdão recorrido.

Sem custas.

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).


*

Coimbra, 24.04.2024

Alexandra Guiné (relatora)

Pedro Lima (1.ª adjunto)

João Novais (2.º adjunto)


[1] Cfr. sessões n.ºs 1514, 1515, 1520, 1662, 2769, 3153, 4930, 11019, do Alvo 122843060.

[2] Cfr. sessões n.ºs 25, 57, 92, 162, 1117, 1313, 1325, 1326, 1370, 1371, 1377, 1381, 1382, 1443, 1445, 1460, 1462, 1473, 1478, 1501, 1513, 1514, 1515, 1516, 1520, 1662, 1666, 1783, 1796, 2109, 2245, 2404, 2434, 2444, 2481, 2482, 2603, 2604, 2628, 2720, 2733, 2734, 2739, 2750, 2758, 2759, 2760, 2762, 2763, 2765, 2767, 2769, 2771, 3056, 3080, 3089, 3091, 3092, 3094, 3100, 3104, 3105, 3141, 3142, 3147, 3150, 3152, 3153, 3154, 3358, 3371, 4162, 4454, 4835, 4845, 4930, 4943, 4981, 4988, 5002, 5003, 5015, 5022, 5032, 5042, 5055, 6552, 6685, 6999, 7014, 7019, 7086, 7094, 7144, 7391, 7396, 7408, 7412, 7730, 7733, 7899, 8139, 8145, 8475, 8485, 8494, 8499, 8528, 8531, 8532, 8547, 8556, 8743, 8896, 8907, 9327, 9347, 9627, 9638, 9699, 9710, 9806, 9807, 9814, 9869, 9890, 9892, 9899, 9984, 9985, 9986, 9989, 10153, 10159, 10162, 10169, 10193, 10327, 10336, 10340, 10341, 10352, 10363, 10369, 10455, 10744, 10755, 10769, 10801, 10809, 10810, 10814, 10818, 10832, 10857, 10860, 10993, 11007, 11018, 11019, 11020, 11144, 11248, 11255, 11275, 11372, 11379, 11507, 11717, 12069, 12073, 12299, 12435, 12585, 12598, 12599, 12601, 12602, 12622, 12623, 12624, 12625, 12827, 12828, 13366, 13384, 13389, 13408, 13764, 13865, 14130, 14213, 14215, 14244, 14246, 14263, 14264, 14265, 14352, 14373, 14817, 14823, 14906, 14907, 14922, 14924, 15025, 15026, 15027, 15028, 15029, 15030, 15031, 15041, 15062, 15271, 15273, 15382, 15444, 15680, 15752, 15863, 15866, 16213, 16312, 16313, 16315, 16667, 16672, 16836, 16913, 17040, 17272, 17311, 17349, 17350, 17371, 17379, 17380, 17897, 18216, 18307, 18308, 18342, 18499, 18870, 18991, 19002, 19082, 19239, 19446, 19449, 19452, 19456, 19607, 20288, 20298, 20456 e 20462, 21070, 21075, 21468, 23670, 23675, 23676, 23767, 23770, 24099, 24452, 24453, 24604, 24605, 24607, 25055, 25056 e 25332 do Alvo 122843060.

[3] Como se refere no Ac. da R. do Porto de 11.06.2014 (Proc. n.º 1653/12.2JAPRT-A.P1):

I– A perda de bens determinada pelo art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2012, de 11 de janeiro, não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.

II– O Ministério Público deve proceder à liquidação do património incongruente (“o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado” – art. 8.º, n.º 1), em incidente de liquidação enxertado no processo penal, e promover a sua perda a favor do Estado.

III– Para decidir a liquidação, o tribunal tem em consideração toda a prova produzida no processo.

IV– A base de partida é o património do arguido, todo ele, pois o conceito é utilizado no art. 7.º numa perspetiva omnicompreensiva, de forma a abranger não só os bens de que o arguido seja formalmente titular direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), à data da constituição como arguido ou posteriormente.

V- Para este efeito, incluem-se, no património do arguido, os bens transferidos para terceiros de forma gratuita ou através de uma contraprestação simbólica nos cinco anos anteriores à constituição de arguido e os por ele recebidos no mesmo período.

VI– Apurado o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita, auferidos pelo arguido naquele período. Se desse confronto resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado.

VII– Para garantir a efetiva perda desse valor incongruente, pode o Ministério Público requerer ao juiz que decrete o arresto de bens do arguido.

VIII– O arresto pode incidir sobre bens de que formalmente é titular um terceiro.

IX– O titular de direitos afetados pela decisão pode, tal como o arguido, ilidir a presunção do art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, nomeadamente provando (através da demonstração inteligível dos fluxos económico- financeiros na origem das aquisições em causa) que os bens foram adquiridos com proventos de atividade lícita