Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
783/22.7T8PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO FERNANDO SILVA
Descritores: NÃO IMPUGNAÇÃO DE FACTOS
ADMISSÃO POR ACORDO
INALTERABILIDADE CONSEQUENTE À PRODUÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PORTO DE MÓS DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 574.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 1207.º E 342.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: A falta de impugnação pelo réu dos factos alegados pelo autor implica, por força do art. 574.º, n.º 2, do CPC, a sua admissão por acordo, o que impede que esses factos possam ser impugnados com base na insuficiência da prova produzida para os demonstrar, ou que possam ser tidos por não provados em virtude da produção de prova que eventualmente os contrarie.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Relator:
António Fernando da Silva
Adjuntos:
Sílvia Pires
Pires Robalo

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Vem a presente acção dirigida por J..., Lda., contra AA e mulher BB, pedindo a sua condenação no pagamento de 14.352 euros, acrescidos de juros.

Alegou, no essencial, que efectuou obras em moradia dos RR., a pedido destes, sendo o valor peticionado correspondente ao valor das obras, descontados os pagamentos parciais realizados pelos RR..

Os RR. contestaram, invocando prescrição presuntiva, escorada na alegação do integral pagamento, e impugnaram o período de realização dos trabalhos.

A A. pugnou pela improcedência da excepção e invocou a litigância de má fé dos RR.. Por sua vez, os RR. também invocaram a litigância de má fé da A..

            Efectuado o saneamento, foi julgada improcedente a aludida excepção.

            Realizado o julgamento foi proferida sentença que condenou os RR. a pagarem à A. a quantia de 14.352 euros, a que acrescem juros de mora à taxa de 4%, desde vencimento das facturas a que respeitam e até integral pagamento. Mais foram as partes absolvidas dos pedidos de condenação como litigantes de má fé.

            Desta decisão interpuseram os RR. recurso, formulando as seguintes conclusões:

1 – O Tribunal “a quo” fez incorreta interpretação da prova documental e da prova produzida e da aplicação do direito;

2 – Entendem os recorrentes/apelantes incorretamente julgados os pontos nºs 2, 3, 4, 5 e 6 dos fatos provados;

3 – Nessa medida, impugnam, com reapreciação da prova gravada a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” sobre a matéria de fato;

4 – O Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre os fatos instrumentais e complementares constantes dos articulados de fls.24, 25, 26, 27, 28, 29, 39, 40 e 44 a 48 dos autos, considerados por nós essenciais para efeitos de poder extrair deles as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência - arts.607, nº4 e 5, nº2, alª b) do C.P.C., respetivamente;

4.1 – Por exemplo, as faturas juntas pela apelada com a p.i. sob os nºs 2a), 2b), 2c), 4a) e 4b), a fls.5 verso, 6 e 6 verso dos autos não dizem respeito quer ao teor dos documentos aí juntos sob os nºs 1 e 3, quer ao teor do ponto nº 2 dos fatos provados;

4.2 – Nada têm de comum, nem de semelhante sequer;

4.3 – A apelada não emitiu aos apelantes qualquer recibo dos pagamentos efetuados por estes e a que se reportam os documentos 1, 2, 3 e 4 juntos com a contestação – a fls.14, 14 verso, 15, 15 verso e 55 dos autos;

4.4 – Em vez disso, e em substituição dos recibos junta as notas de crédito de fls.46, 46 verso, 47, 47 verso e 48 dos autos;

            4.5 - Ou seja, os apelantes desconhecem a que faturas se destinaram os pagamentos efetuados;

4.6 – Pois que, da análise conjugada dos documentos 1 e 3 e 2a), 2b), 2c), 4a) e 4b) juntos à p.i. verifica-se que todas as faturas no seu descritivo dizem:

- Fatura referente ao orçamento de 2020/2 (as três primeiras) e,

- Fatura referente ao orçamento de 2020/3 (as duas últimas);

4.7 - Significa isto que tais faturas – fatos provados e enunciados sob os nºs 3 e 5 – não podem, de modo nenhum, dizer respeito aos trabalhos referidos no nº2 dos fatos provados;

4.8 - Reportam-se as mesmas a dois orçamentos contabilísticos juntos pela apelada a fls.29 e 29 verso dos autos, assim chamados pela apelada no seu requerimento – ref.44562201, de 30/1/2023 de fls.27 e ss. dos autos;

4.9 - Donde, se não há faturas referentes aos documentos 1 e 3 juntos à p.i. o “hipotético” crédito da apelada não é exigível judicialmente;

5 – Visaram os apelantes com os articulados complementares de fls. dos autos transmitir ao Tribunal “a quo” que as faturas emitidas e reclamadas pela apelada não poderiam ter por base os documentos nºs 1 e 3 juntos à p.i.;

6 – Ou seja, a apelada associa as faturas juntas com a p.i. (que se reportam a dois orçamentos contabilísticos) aos documentos juntos sob os nºs 1 e 3;

7 – O acima referido impõe decisão diversa da proferida pelo Tribunal recorrido, desde logo, quanto à fatualidade dos pontos nºs 2 e 3 dos fatos provados;

8 – Também a este propósito prestou depoimento a testemunha CC na audiência de julgamento realizada no dia 3/7/2023 que se encontra gravada no sistema de gravação digital com inicio às 11.46.04 e fim às 11.55h, a minutos e segundos 00:07:31 conforme ata da audiência de julgamento do mesmo dia, que a instâncias do ilustre mandatário da apelada disse:

CC

Orçamentos fundamentam a faturação, tem que haver um orçamento para poder faturar.

Mandatário da Autora

Exatamente. Portanto, se a Autora, J..., emitiu faturas, existirá subjacente um orçamento, que fui eu que lhe chamei por minha autorrecreação orçamento contabilístico, mas podemos ficar apenas por orçamento, na certeza, porém, de que o valor da faturação corresponderá ao valor do orçamento, é assim?

CC

Sim.

Mandatário da Autora

Não, é que, repare, é para esclarecermos, porque a senhora está a responder…

CC

Certo.

Mandatário da Autora

…isso do orçamento contabilístico…

Meritíssima Juiz

Ó Sr. Dr., mas já… não precisa… isto não é uma conversa, já respondeu. Há orçamentos que são enviados para a contabilidade para efeitos de faturação. Está respondido.

9 – Na verdade, resulta que as faturas reclamadas pela apelada tiveram por base dois orçamentos contabilísticos (um deles nem sequer assinado se mostra pelo legal representante da apelada) por si elaborados apenas para efeitos contabilísticos; ou seja, as referidas faturas não assentam e têm por documentos de suporte orçamentos de trabalhos efetuados;

10 – Ou seja, não correspondem a rigorosamente nada que se assemelhe com trabalhos levados a efeito pela apelada;

11 - Por outro lado, nem os orçamentos datados de 15 de Maio de 2019 e 3 de Setembro de 2019 de fls.5 e 7 dos autos – docs.1 e 3 juntos com a p.i. – discriminam os valores das diversas rubricas, e as faturas – fatos nºs 3 e 5 provados - pautam-se pela ausência da especificação dos trabalhos realizados em cujas rubricas tudo cabe (subl. nosso);

12 – A nosso ver e salvo melhor opinião, o Tribunal “a quo” jamais ou dificilmente poderia ter considerado provada a matéria dos nºs 2, 3 e 5 dos fatos provados;

13 - O Tribunal “a quo”, não procedeu, salvo melhor opinião, a uma análise crítica das provas, não compatibilizou toda a matéria de fato adquirida e dela não extraiu as presunções impostas por lei e pelas regras da experiência, em violação do disposto no art.607, nº4 do C.P.C.;

14 - O Tribunal “a quo” fez, pois, uma errada interpretação dos fatos e do direito aplicável ao caso dos autos fazendo, inclusivé, uma interpretação “contra legem” do art.342 do C. Civil;

15 – São relevantes a este propósito as passagens dos depoimentos das testemunhas DD, com inicio às 10.40.27 e fim às 10.47h, gravadas a minutos e segundos 00:03:11, 00:05:18 e 00:06:34, da testemunha EE, com inicio às 10.47.37 e fim às 10.56h, gravadas a minutos e segundos 00:02:16, 00:05:40 e 00:06:36 e da testemunha FF (Eng.ª Civil), com inicio às 10.56.13 e fim às 11.07h, gravadas a minutos e segundos 00:00:04, 00:02:23, 00:03:50, 00:04:46, 00:05:45, 00:07:17, 00:08:05, 00:09:29 e 00:10:45;

16 – Dão-se aqui por integralmente reproduzidas, para todos os efeitos legais, as transcrições de todos os excertos dos depoimentos destas testemunhas que se fez em sede de motivação e se consideram relevantes para a alteração da matéria de fato dada como provada;

17 – Do depoimento da testemunha FF resulta que a mesma referiu que a apelada não fez trabalhos no interior da habitação, acrescentando desconhecer a razão do livro de obra se encontrar em branco e não estar por si assinado e que também desconhece o que se passou relativamente a pagamentos;

18 - Acontece que o Tribunal “a quo” deu como provado no ponto nº 2 dos fatos provados que foi levada a efeito uma escada interior que faz o acesso do rés-do-chão ao 1º andar desta mesma garagem, quando o deveria ter dado como não provado;

19 - Também é referido no parágrafo 4º da pág.4 da douta sentença que resulta do depoimento da testemunha FF o seguinte: “a última tranche do pagamento em falta será feita quando o banco disponibilizar o restante capital, situação que só ocorrerá com a licença de utilização e para isso necessito de toda a documentação devidamente preenchida e entregue na CM....”;

20 – Como acima vai dito na conclusão nº 17 a testemunha FF em parte alguma do seu depoimento se refere a trabalhos no interior da moradia dos apelantes ou se pronunciou sobre tranches de pagamento;

21 - Os depoimento das testemunhas da apelada e dos documentos juntos aos autos não permitem concluir (ou indiciar fortemente que a versão apresentada em juízo pela autora corresponde à verdade…, subl. nosso) como refere a douta sentença a págs.4, quais os trabalhos contratados e acordados entre os apelantes e a apelada;

22 – Para que conste, existem 5 orçamentos elaborados pela apelada juntos aos autos, a saber: O de fls.5 e 7, o de fls.29, o de fls.29 verso e o de fls. dos autos – manuscrito - junto em audiência de julgamento;

23 - A fatualidade descrita no nº 2 dos fatos provados, não poderá resultar como provada em face desses documentos, dos depoimentos e também do que resulta da discrepância entre a fatualidade descrita no nº 2 dos fatos provados e as faturas descritas sob as alªs a), b) e c) do nº3 e as descritas sob as alªs a) e b) do nº5 dos fatos provados;

24 – Ainda com o propósito de o ponto nº 2 dos fatos provados dever ser considerado como não provado prestou declarações na audiência de julgamento realizada no dia 3/7/2023 o réu marido – AA – que se encontram gravadas através do sistema de aplicação digital, com inicio às 11.08.11 e fim às 11.45h, a minutos e segundos 00:01:30, 00:02:40, 00:04:52, 00:06:02, 00:08:21, 00:09:35 e 00:17:25, cujas transcrições dos excertos das suas declarações que se fizeram em sede de motivação dão-se aqui por integralmente reproduzidas;

25 – Resulta das declarações do apelante marido que apenas teve conhecimento de um orçamento elaborado pela apelada – o de fls. dos autos, manuscrito pelo legal representante desta no valor de 18.000,00€, junto em audiência de julgamento;

26 – Orçamento que não foi impugnado pela apelada aquando da sua junção aos autos em sede de audiência de julgamento do dia 3/7/2023;

27 – Ora, por conta desses trabalhos os apelantes pagaram à apelada a quantia de 5.904,00€ conforme documentos de fls. dos autos juntos em audiência de julgamento;

28 - Os apelantes não receberam da apelada mais nenhum orçamento dos restantes cinco;

29 – Então, se os apelantes pagaram à apelada conforme faturas nºs 0221 e 225 datadas de 26/8/2019 e 7/10/2019, respetivamente, juntas a fls. dos autos a quantia de 5.904,00€ nas datas de 3/10/2019, 7/10/2019 e 8/11/2019 conforme documentos de fls. dos autos e,

30 – mais tarde, e sem qualquer fatura pelos apelantes recebida da apelada pagaram mais a quantia de 11.970,00€ conforme documentos a fls. dos autos;

31 – Temos que, no total, por conta dos trabalhos os apelantes sempre teriam pago à apelada a quantia de 17.874,00€;

32 – A nosso ver o tribunal recorrido, alheou-se de proceder a uma análise rigorosa e conjugada dos documentos supra indicados nos pontos 27, 29 e 30 das conclusões;

33 - Nessa medida não deveria ter sido dado como provado o nº 6 dos fatos provados;

34 – Reitera-se: Os apelantes nunca receberam nenhuma fatura referente aos trabalhos descritos no nº 2 dos fatos provados (que, aliás, a recorrida admite no seu articulado de fls.27 e ss. dos autos) bem como algum recibo dos pagamentos efetuados;

35 – Do depoimento da testemunha dos apelantes CC cujas passagens se encontram gravadas através do sistema digital com inicio às 11.46.04 e fim às 11.55h, a minutos e segundos 00:1:15, 00:02:28, 00:04:33, 00:05:37, 00:06:41 e 00: 07:31 e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos e legais efeitos;

36 – Do depoimento da referida testemunha resulta que a faturação tem de ter por base um orçamento discriminativo de trabalhos a efetuar e nunca um qualquer orçamento contabilístico;

37 – De fato, as faturas mencionadas nas diversas alíneas dos nºs 3 e 5 dos fatos provados, no seu descritivo referem-se aos orçamentos contabilísticos de 2020/2 e 2020/3, respetivamente, e não a nenhum dos documentos juntos com a p.i. sob os nºs 1 e 3, datados de 15/5/2019 e 3/9/2019 e a que é associada a fatualidade descrita no nº 2 dos fatos provados;

38 – O Tribunal “a quo” deixou assim de se pronunciar sobre todas estas “questões” que lhe foram trazidas pelos apelantes, sendo que nas palavras da Mma. Juíza “a quo” em sede de motivação da douta sentença, logrou alcançar: “…não resulta controvertido que a Autora tenha prestado os trabalhos discriminados nas faturas apresentadas…” – fls.3 da douta sentença recorrida;

39 – Ora, as faturas apresentadas pela apelada não revelam a discriminação de quaisquer trabalhos levados a efeito pela apelada;

40 – O Tribunal “a quo” ignorou na sua análise que tais faturas resultam dos dois orçamentos contabilísticos atrás citados e se encontram a fls. dos autos e que nada têm que ver com o ponto nº2 dos fatos provados;

41 – Nessa medida, parece claro, ter-se verificado um erro de julgamento da matéria de fato aqui impugnada e fixada na sentença e como tal os nºs 2, 3 e 5 dos fatos provados deveriam constar como não provados;

42 – Resulta à evidência demonstrado e não consta dos elementos documentais juntos aos autos que os apelantes tenham feito qualquer transferência bancária para a apelada, como é dito pelo Tribunal “a quo” no 1º parágrafo da sentença a págs.4;

43 – Também carece de qualquer fundamento que a quantia de 11.970,00€ foi paga pelos apelantes à apelada por conta das faturas discriminadas nos pontos nºs 3 e 5 dos fatos provados;

44 – Basta atentar que os valores pagos pelos apelantes a fls. dos autos são muito anteriores às ditas faturas;

45 - Por referência ao único tema de prova a apelada não esclareceu, dos trabalhos ditos no nº2 dos fatos provados, quais os que foram executados por ela e quais os executados pelos apelantes;

46 – A apelada no art.5 da p.i. e a este propósito diz: “a autora não teve qualquer intervenção nesta primeira fase da obra…” e no art.24 da mesma peça diz: “contudo, importa ter presente essa realidade porque os RR. realizaram a maior parte dos trabalhos a seu bel-prazer e não respeitaram integralmente as linhas do projeto” (subl. nosso);

47 – Também, o livro de obra de fls. dos autos junto em audiência de julgamento – onde a Eng.ª responsável pela obra – Eng.ª FF – deveria registar todos os trabalhos efetuados e a que a apelada se refere no art.25 da p.i. – encontra-se totalmente em branco em todas as suas folhas no que diz respeito à execução de trabalhos;

48 – Quanto ao fato único dado não provado consideram os apelantes ter sido incorretamente julgado;

49 – Os apelantes impugnaram os dosc.1 e 3 juntos à petição inicial – fatualidade transcrita no ponto nº2 dos fatos provados;

50 - Só incumbiria aos apelantes o pagamento, caso a apelada tivesse provado toda a fatualidade descriminada no ponto nº2 dos fatos provados – cfr.art.342, nº2 do C. Civil;

51 – Por outro lado, nenhuma testemunha da apelada se pronunciou sobre os trabalhos convencionados ou acordados entre si e os apelantes, nos termos em que vêm discriminados no ponto nº2 dos fatos provados;

52 - A mera emissão de faturas não é fonte de obrigações;

53 - A fonte da obrigação é sempre o contrato subjacente à emissão da fatura e cujos elementos constitutivos têm de ser demonstrados (subl. nosso);

54 – Pelo que deverá ser julgada improcedente a ação;

55 – Na decisão recorrida violou-se, entre outros, o disposto nos artigos 5, nº2, alª b) e 607, nº4 do C.P.C. e artigos 1207, 1209, 342 e 788, todos do C.C.

            A A. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

II. O objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».

Assim, a questão a tratar analisa-se na avaliação da impugnação da matéria de facto e reflexos dessa impugnação, caso seja de acolher, no mérito da decisão (quanto a valores devidos e/ou pagamentos efectuados).

III. Foram considerados provados os seguintes factos:

1. A Autora no exercício de actividade de construção civil, com fins lucrativos, a pedido dos Réus, realizou trabalhos de reconstrução e ampliação de uma antiga moradia, sita no largo ..., em ..., ...;

2. Em data não concretamente apurada, foram acordados entre a Autora e os Réus a realização dos seguintes trabalhos: reconstrução de uma parede antiga e construção de uma nova parede para a garage confinante do lado direito da casa; construção de uma escada exterior que faz o acesso desta garagem ao quintal; reconstrução de quatro paredes de um velho barracão confinante do lado esquerdo da casa, transformado em garagem, e construção da laje e da escada interior que faz o acesso do rés-do-chão ao primeiro andar desta mesma garagem; rebocos e remate dos telhados, execução de pavimento no interior da moradia, mais concretamente nas duas garagens supra referidas; construção de um muro de vedação em pedra, para suporte de terras; e vários rebocos nas paredes exteriores da moradia;

3. Os trabalhos foram realizados e facturados, de forma repartida, tendo sido emitidas as seguintes facturas:

a) Em 30-04-2020, factura n.º ..., no valor de 5.535,00€;

b) Em 30-05-2020, factura n.º ..., no valor de 3.690,00€;

c) Em 30-06-2020, factura n.º ..., no valor de 3.690,00€.

4. Os Réus pagaram à Autora a quantia de €11.970,00, ficando por pagar o valor remanescente de €945,00, por conta destas facturas;

5. Foram ainda, por conta dos trabalhos discriminados em 2., emitidas as seguintes facturas:

a) Em 21-07-2020, factura n.º ...0, no valor de 8.610,00€;

b) Em 06-08-2020, factura n.º ...1, no valor de 4.797,00€.

6. Os trabalhos foram concluídos e até ao presente os Réus não pagaram mais qualquer valor, nem o valor remanescente discriminado em 4., nem o valor facturado em 5..

            IV.1. Os RR. assentam o recurso interposto essencialmente na impugnação dos factos tidos por provados (rectius, assentes) na sentença impugnada, contestando essencialmente que a A. tenha logrado provar a realização dos trabalhos alegados (ou de todos os trabalhos alegados), e discutindo ainda a exclusão do facto não provado.

Resulta do art. 574º do CPC que:

1 - Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor.

2 - Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.

            Trata-se da consagração legal do ónus de impugnação, que impõe ao R. que tome posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, contradizendo-os em sentido amplo (v. ainda o art. 571º n.º2 do CPC). Posição definida não significa uma ponderação singular de cada facto (como ocorria no direito processual pretérito) mas uma tomada de posição clara sobre os factos concretos alegados, em termos tais que estes possam ser tidos por impugnados ou não (quer tal decorra de uma negação singela ou da alegação de versão diferenciada e oposta à do autor). Constitui um verdadeiro ónus porquanto o seu incumprimento coloca o réu numa posição desfavorável, provocando a admissão dos factos constitutivos não impugnados (referido art. 574º n.º2 do CPC), sem atribuir ao autor o direito a exigir-lhe qualquer actuação (aliás, apesar da menção legal à admissão por acordo, aquela admissão não tem natureza negocial; o acordo retira-se tacitamente da atitude processual unilateral do réu, face ao ónus legal imposto).

            2. Compulsada a contestação, verifica-se que os RR. não impugnaram de forma clara (definida) os factos alegados pela A., com duas excepções: impugnaram a alegação de que deviam a quantia invocada à A. (art. 5º da contestação)[1] e impugnaram o período de realização dos trabalhos (art. 20º da contestação)[2]. Já não discutiram os demais factos alegados, que assim se tiveram por aceites (admitidos por acordo, nos termos do citado art. 574º n.º2 do CPC).

Conclusão ainda confirmada por duas circunstâncias.

De um lado, os RR. alegaram ter pago integralmente os valores em dívida, associados aos trabalhos e facturas que a A. indicou (v. art. 5º e ss. da contestação). Naturalmente, os RR. só pagariam os trabalhos em causa se estes tivessem sido acordados, e o preço que foi reclamado (e que os RR afirmam terem pago) correspondesse a esses trabalhos – sendo que os RR. também admitem a realização dos trabalhos quando, no art. 6º da contestação, reportam os pagamentos que alegam ter feito aos trabalhos efectuados pela A., aceitando-os. Ou seja, não apenas não impugnam como até directamente aceitam os factos que a A. alega.

De outro lado, os RR. invocaram uma prescrição presuntiva, a qual, fazendo presumir o cumprimento (art. 312º do CC[3]), pressupõe o reconhecimento da existência e extensão da relação fundamental alegada pelo credor, incluindo a obrigação cujo cumprimento o credor reclama, baseando-se o regime invocado apenas na presunção da realização do pagamento devido. A posição do devedor tem que partir daquele reconhecimento para depois beneficiar desta presunção de cumprimento, pois «impugnar os factos constitutivos do direito do credor, negando a sua existência, validade ou montante, é recusar a existência da correspondente obrigação de cumprir, em contradição com a presunção de cumprimento»[4]. Foi aquilo que os RR. fizeram: reconheceram a relação subjacente para alegar o seu pagamento, que se presumiria (e não teriam assim que provar).

Donde ser evidente que os RR. não apenas não impugnaram de forma clara os factos constitutivos da pretensão da A., como até os aceitaram (o que a sentença recorrida acertadamente diagnosticou, ao considerar na motivação que «Tendo em consideração o teor dos articulados, não resulta controvertido que a Autora tenha prestado os trabalhos discriminados»).

3. Aceitação que foi ainda reflectida na enunciação dos temas da prova, ponto onde apenas se enunciou, sem oposição dos RR. (que não reclamaram, faculdade que o art. 596º n.º2 do CPC lhes reservava), como questão controvertida saber se os RR. pagaram a quantia acordada à A.[5].

4. O efeito desta conduta processual analisa-se, como já referido, na admissão por acordo de tais factos, por força do referido art. 574º n.º2 do CPC – sem que ocorra alguma das excepções legais a este efeito cominatório[6] (sendo que a exposta posição dos RR. quanto ao cumprimento também demonstra que os factos não impugnados não se mostram em oposição com a defesa considerada no seu conjunto).  

É certo que os RR. impugnam documentos juntos pela A. mas esta impugnação de documentos depois de aceitar os factos alegados é inconsequente e até incoerente porque se reduz a impugnar o (suposto) meio de prova de um facto já assente por acordo (e acordo este manifesto, sem ponta de ambiguidade). Por isso que, ao contrário do que a alegação sugere, a matéria constante de 2) dos factos provados não resulta de documentos impugnados mas dos art. 7º e 11º da PI, não impugnados (nos termos expostos).

           

5. É discutida a natureza desta «admissão por acordo» (na fórmula legal) dos factos não impugnados. Seguro é que, depois de admitidos por acordo, a sua fixação deriva de tal acordo, não dependendo da produção de prova que os confirme, e que não podem voltar a ser discutidos, pelo que a prova que os infirme é irrelevante. Pois «ao ónus corresponde uma cominação que não admite nem contraprova, nem prova do contrário»[7], «não podendo o réu posteriormente pôr em causa a prova que a lei faz decorrer do seu silêncio»[8]. A realidade factual está fixada e não pode voltar a ser discutida.

Também se discute se este efeito cominatório pode ser excluído, não com base em prova que contrarie os factos objecto do acordo (o que não é, como referido, admissível), mas com base em situações não enquadráveis na contraprova (v.g. vícios subjectivos quanto à admissão; alegação superveniente de erro na admissão do facto). Mas nenhuma dessas situações foi invocada, ou actuada, no caso. Os RR. limitam-se a pretender recuperar a discussão probatória de factos já assentes por acordo, o que não é admissível.

            Donde ser ineficaz a impugnação dos factos provados que ensaiam, assim necessariamente improcedente.

6. Quanto ao facto não provado, os RR. não pretendem realmente demonstrar a existência de tal facto, o pagamento (como deriva das suas alegações e conclusões). Apenas dirigem a sua crítica ao facto de tal pagamento não ser devido (por entenderem não estarem demonstrados os trabalhos alegados). Aliás, e dados os termos do recurso (em que negam a existência dos factos - a realização dos trabalhos - que suportariam o crédito), não poderiam, em coerência, pretender demonstrar um seu pagamento integral. Para além de, de qualquer modo, se notar que o cumprimento não está probatoriamente demonstrado.

A impugnação é, assim, inconsequente.

            7. Desta forma, estando em causa um contrato de empreitada, e demonstrada a realização dos trabalhos acordados e o preço, é este devido (art. 1207º do CC). Constituindo o pagamento um facto extintivo da pretensão da A., caberia aos RR. a sua demonstração (art. 342º n.º2 do CC), o que não lograram. Inexiste, pois, razão para alterar a decisão recorrida, acertada.

            8. As custas correm por conta dos RR., que decaem integralmente (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).

            V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

            Custas pelos RR..

            Notifique-se.

Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…).

             

Datado e assinado electronicamente

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico.


[1] Impugnação que já decorria da alegação da realização do devido pagamento.
[2] Embora, em rigor, mesmo esta impugnação não seja ajustada à alegação, pois as datas em causa nos art. 8º e 12º da PI são as datas das facturas e não as datas da realização dos trabalhos.
[3] E limitando a prova do contrário: art. 313º e 314º do CC.
[4] V. H. Mesquita, A prescrição presuntiva e a armadilha do ónus da prova, RLJ 138/268.
[5] A questão foi enunciada nestes termos, supondo o ónus da prova a cargo dos RR., porque já antes tinha sido desatendida a excepção assente na prescrição presuntiva.
[6] Excepções típicas, constantes do art. 574º n.º2 do CPC, ou, segundo alguns, também extra-típicas, derivadas de outras regras (v.g. factos derivados de prova ilícita).
[7] C. Mendes / T. Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL Editora 2022, pág. 60.
[8] L. de Freitas A Acção Declarativa Comum, Gestlegal 2023, pág. 127.