Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/23.0YCCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: EXTRADIÇÃO
INADMISSIBILIDADE DA EXTRADIÇÃO
RECUSA DA EXTRADIÇÃO
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: PEDIDO DE EXTRADIÇÃO
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO DE EXTRADIÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 8.º, N.º 2, E 25.º, N.º 2, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA/CRP
ARTIGO 229.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGO 3.º, N.º 1, DA LEI N.º 144/99, DE 31 DE AGOSTO/LEI DA COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL/LCJIMP
CONVENÇÃO INTERNACIONAL
ARTIGOS 1.º, 2.º, 3.º, 21.º E 22.º DA CONVENÇÃO DE EXTRADIÇÃO ENTRE OS ESTADOS MEMBROS DA COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, ASSINADA NA CIDADE DA PRAIA EM 23 DE NOVEMBRO DE 2005/CONVENÇÃO DA PRAIA
Sumário:
I – Resulta dos artigos 229.º do C.P.P. e 3.º, n.º 1, da LCJIMP o princípio da prevalência dos tratados, convenções e acordos no tratamento da extradição, cabendo recorrer ao disposto nesta lei especial apenas nos casos de falta ou insuficiência de regulamentação daqueles.

II – Assim, sendo a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa signatárias da Convenção da Praia, resulta que as suas normas serão de aplicação primordial aos casos de extradição, apenas cabendo recorrer à LCJIMP para colmatar as lacunas que se verifiquem, designadamente procedimentais, e mesmo nesse caso sem gerar desvio ou oposição ao sentido daquelas.

III – A Convenção da Praia, contrariamente à LCJIMP, não autonomiza as regras atinentes à detenção provisória directamente solicitada pelo Estado requerente como acto prévio de um pedido de extradição formal e as que especificamente disciplinam a detenção não directamente solicitada, mas tal não importa nenhuma lacuna que imponha a aplicação da LCJIMP, porquanto ela tem regras próprias, no seu artigo 21.º, para a detenção provisória.

IV – Do mesmo modo, contendo a Convenção norma expressa sobre as causas de recusa facultativa de extradição, não há lugar à aplicação das normas da LCJIMP sobre a matéria.

V – Diferentemente, nada dispondo a Convenção sobre a fase administrativa do processo de extradição, neste particular aplica-se o disposto nos artigos 46.º, n.ºs 1 e 2, 48.º, n.ºs 1 e 2, e 63.º, n.ºs 1 e 3, da LCJIMP, nomeadamente quanto ao prazo de 15 dias previsto nesta ultima norma.

VI – Embora a Convenção da Praia não contenha disposição que explicitamente contemple a recusa da extradição com base nas condições desumanas dos estabelecimentos prisionais do país requerente, ela prevê, no seu artigo 22.º, uma cláusula geral de subordinação da obrigação de extraditar à tutela de interesses fundamentais do Estado português.

VII – Sendo a preservação de qualquer pessoa humana contra tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, independentemente da nacionalidade, interesse fundamental do Estado Português, tal como resulta do n.º 2 do artigo 25.º da CRP, no caso de as condições prisionais do Estado requerente não garantirem a inviolabilidade física e moral dos cidadãos reclusos, não podem elas deixar de considerar-se tratamento cruel, desumano ou degradante, assim legitimando a recusa de extradição, à luz do artigo 22.º da Convenção.

Decisão Texto Integral:



Acordam os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. A magistrada do MP junto deste tribunal requereu, nos termos do art. 50.º, n.º 2, da Lei 144/99, de 31/08 (Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – adiante LCJIMP), o cumprimento do pedido da República Federativa do Brasil para extradição da cidadã brasileira

em vista disso e em síntese alegando:

 

a) Por sentença de 15/06/2015, da ... Vara Criminal de Magé, Rio de Janeiro, confirmada por decisão de 08/09/2016, da ... Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e transitada em julgado, a requerida foi condenada, como autora de um crime continuado de atentado violento ao pudor, p. e p. pelos art. 214.º, 226.º/1, 29.º e 71.º, do Código Penal Brasileiro, na pena de oito anos e nove meses de prisão, a cumprir em regime semiaberto.

b) Concretamente, os factos que valeram a dita condenação consistiram no seguinte: “Entre 2005 e 2006, na residência … constrangeu a vítima, …, à data com 14 anos de idade, mediante violência presumida, a praticar actos libidinosos diversos da conjunção carnal, consistentes em ordenar-lhe que fizesse sexo oral ao coarguido…, e o masturbasse, e a permitir que com ela fossem praticados actos libidinosos diversos da conjunção carnal, consistentes em acariciar-lhe os seios, beijar-lhe a boca lascivamente, introduzir o dedo e o roçar o pénis na vagina da menor”.

c) Entre nós, aqueles factos estão criminalmente tipificados, integrando o crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º/1/2, do Código Penal Português (adiante CP), que comina pena de prisão entre três e dez anos, e aquela pena não está prescrita, nem à luz do Código Penal Brasileiro (art. 110.º e 109.º/II) nem à luz do CP (art. 122.º/1-b).

d) O pedido de extradição, formulado à luz da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesas, assinada na Cidade da Praia em 23/11/2005 (ratificada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 67/2008, de 15/09 – adiante Convenção da Praia), satisfaz os requisitos nesta previstos (art. 10.º/2/3), bem como os da LCJIMP (art. 44.º), e com ele o Estado requerente prestou garantias de respeitar o princípio da especialidade, de não aplicar pena de morte, corporal, de prisão perpétua ou com duração superior a trinta anos, de computar na pena o tempo de privação da liberdade da requerida no âmbito dos procedimentos de extradição, de não reextraditá-la para estado terceiro, de não ter em consideração motivos políticos e, enfim, de não submetê-la a tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.

e) Enfim, o pedido de extradição da República Federativa do Brasil foi considerado admissível por despacho da Sr.ª Ministra da Justiça n.º ...23, de 02/08/2023, nos termos dos art. 46.º/2 e 48.º/2, da LCJIMP, e, não havendo notícia da pendência de processo em Portugal contra a requerida, pelos mesmos ou por outros factos, não há obstáculo formal ou substancial ao cumprimento.

2. A requerida tinha sido previamente detida a 20/06/2023, em ..., em detenção não directamente solicitada e isso sim na execução do mandado … emitido pelas autoridades brasileiras a 05/09/2019, para cumprimento daquela pena de oito anos e nove meses de prisão, … sendo que no procedimento para apreciação dessa detenção, que neste tribunal correu trâmites com o n.º 140/23.... (autos entretanto a estes apensados), foi a 21/06/2023 decidida a manutenção daquela detenção, sob a qual a requerida aguardaria os ulteriores termos.

3. O pedido formal de extradição, aqui em apreciação, foi na sequência formulado por ofício das autoridades da República Federativa do Brasil datado de 25/07/2023, e uma vez recebido na Procuradoria-Geral da República, deu-se início à fase administrativa do processo, em 27/07/2023, sendo que após culminar essa fase com decisão da Sr.ª Ministra da Justiça sobre a admissibilidade do pedido, tomada a 02/08/2023, a fase judicial se iniciou com a apresentação aqui do pertinente requerimento do MP, a 09/08/2023, e já neste âmbito, ouvida a 11/08/2023, a requerida manifestou não consentir na respectiva extradição e nem renunciar ao princípio da especialidade, sendo então decidida a manutenção da detenção provisória até ao termo do prazo máximo para isso legalmente previsto.

4. Deduzindo após essa audição tempestiva oposição ao pedido de extradição, …

Em síntese, …, argumenta:

a) Quanto à detenção

i. Tendo a sua detenção não directamente solicitada tido lugar a 20/06/2023, a mesma apenas poderia manter-se, na falta de formulação do pedido de extradição pela República Federativa do Brasil, e nos termos dos art. 38.º, n.º 5, e 64.º, n.º 3, da LCJIMP, pelo prazo de dezoito dias após essa detenção ou, sendo durante ele informado que tal pedido, de quarenta dias após essa detenção, isto é, no máximo até 08/07/2023, data em que precisamente por não ter ainda sido recebido o pedido (chegado à Procuradoria a 31/07/2023), tinha de ter sido libertada, a partir daí faltando aliás tutela constitucional para a correspondente privação da liberdade, uma vez que se manteria para lá do tempo e das condições determinadas na lei, segundo consta do art. 27.º/3-c, da Constituição da República Portuguesa (adiante CR);

ii. Tal detenção seria em todo o caso indevida por executar-se em meio prisional, sob regime fechado, isto é, mais grave do que o previsto para cumprimento da pena em vista de cuja execução é pedida a extradição, que é o semiaberto, em que por isso e a ser o caso deveria também aqui ser cumprida a detenção [em obrigação de permanência na habitação, com controlo por “pulseira electrónica”?], acrescendo ainda que não há perigo de fuga, considerando que se encontra entre nós em paradeiro conhecido e pretende mesmo cumprir a pena em Portugal.

b) Quanto à extradição

i. Ao invés do afirmado no requerimento do MP, não veio para Portugal fugida à justiça brasileira, sendo que quando para cá se mudou o processo não tinha ainda decisão final nem havia contra si mandado de detenção, tendo de resto passado pelos procedimentos de imigração com os documentos necessários (incluindo certificado de registo criminal brasileiro), e tendo obtido autorização de residência, aqui permanecendo com título de residência temporária;

ii. Foi surpreendida pela detenção, porque tinha notícias dos seus advogados, no Brasil, de que a pena em causa fora declarada prescrita …

iii. Não tem já ligação ao Brasil, onde não reside nem trabalha, sendo que se encontra em Portugal há cerca de cinco anos, aqui se encontrando inserida, concretamente tendo residência fixa, emprego estável e família regularmente constituída;

iv. Em especial, sendo mãe de três filhos, dois dos quais maiores, tem a cargo, conjuntamente com o seu marido, uma das maiores, actualmente com 18 anos de idade, estudante e carente de acompanhamento psiquiátrico, dependente dos pais, e uma menor, actualmente com 11 anos de idade e igualmente estudante, filhas cujo sustento ambos asseguram com os proventos do respectivo trabalho;

v. Estando o marido, seu coarguido no processo em que lhe foi aplicada a pena cuja execução é pretendida, igualmente visado por mandados de detenção no mesmo processo emitidos e assim na iminência de ser privado da liberdade para cumprir a correspondente pena em Portugal (no seu caso não cabendo extradição por ser cidadão português), a sua própria extradição importaria gravíssimo e irreversível prejuízo para si e sobretudo para aquelas filhas, as quais ficariam assim privadas do acompanhamento da mãe, …

vi. Todas estas razões configuram causa de denegação facultativa da cooperação internacional, i.e., da pretendida extradição, à luz do art. 18.º/2, da LCJIMP, na medida em que revelam que o deferimento implicaria consequências graves para a requerida em função de motivos de carácter pessoal, devendo pois a extradição ser com efeito recusada.

vii. Ao mesmo se chegando, agora à luz do art. 3.º do Tratado de Extradição entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil [concluído em Brasília a 07/05/1991, e aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 5/94, de 03/02 – adiante Tratado de Extradição], tendo em vista as condições desumanas dos presídios brasileiros, conforme foi reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal brasileiro – também por isso devendo ser negada a extradição.

c) Quanto à execução da pena em Portugal

i. Enfim, subsidiariamente e para a hipótese de não ser negada a extradição, sempre a já aludida perda de ligações ao Brasil, que fariam excessiva a execução da pena nesse pais, e os termos da sua também já referida integração em Portugal, importariam ser-lhe permitido cumprir aqui a pena, “com pulseira electrónica” [em regime de permanência na habitação?], continuando a trabalhar e a cumprir as funções habituais, ou no sistema prisional português, assim permanecendo em todo o caso perto da família e podendo manter a proximidade às filhas.                     

5. Quanto ao MP, pronunciou-se igualmente nos termos do art. 55.º/3, da LCJIMP, muito sucintamente sublinhando que a detenção provisória da requerida fora muito recentemente (em 11/08/2023) revista e mantida, e no mais manifestando nenhuma razão haver, formal ou substancial, que obstasse à extradição.

6. Na sequência, foi por despacho de 25/08/2023 decidida a cessação da detenção da requerida, com aplicação, em seu lugar e por entender-se subsistir perigo de fuga, das medidas de coacção de apresentações periódicas (bissemanais) à autoridade policial competente na respectiva área de residência, e bem assim de proibição de ausentar-se de Portugal (com apreensão do passaporte), tudo em função previsibilidade de não se lograr já a tramitação da causa dentro dos prazos máximos de detenção, para mais havendo necessidade de solicitar informações ao Estado requerente (relativas à eventual decisão de prescrição de pena equacionada na oposição).

7. Obtidas essas informações complementares e junto o relatório do inquérito social cuja realização havia sido determinada, teve lugar a produção da prova solicitada pela requerida, com diligência em que se procedeu à sua audição e das testemunhas que arrolara, após o que o MP e a requerida fizeram ainda as respectivas alegações, nos termos que em síntese são os seguintes:

a) O MP, dando por prejudicadas as questões relativas à detenção provisória (face à cessação respectiva decidida a 25/08/2023), reitera o entendimento de dever ser determinada a extradição, sustentando que:

i. As razões humanitárias invocadas não integram pressuposto da denegação facultativa da extradição nos termos do art. 18.º/2 da LCJIMP, de 31/08, tanto porque as consequências que a requerida refere são afinal nada mais do que as próprias do cumprimento de prisão, como porque impondo-se neste contexto um juízo de ponderação de interesses entre o facto criminoso e aquelas consequências, com elas cotejando as circunstâncias do facto criminoso, se alcança que a gravidade daquelas não sobreleva a deste – em todo o caso acrescendo que a Convenção da Praia, contrariamente à LCJIMP, não comtempla tais fundamentos de denegação facultativa, mas apenas os que taxativamente enumera no seu art. 4.º;

ii. Por outro lado, as alegadas condições desumanas das prisões do Brasil, igualmente não podem dar corpo a qualquer dos fundamentos de inadmissibilidade ou denegação facultativa da extradição, como respectiva e taxativamente previstos nos art. 3.º e 4.º da dita Convenção da Praia, sucedendo de toda a maneira que o ordenamento jurídico brasileiro, por força da constituição, dos tratados internacionais e da lei, se funda no respeito pela dignidade da pessoa humana, vedando tratamentos cruéis e desumanos, e o princípio da confiança mútua entre os Estados parte da Convenção da Praia, a ela subjacente, impõe que cada um deles suponha nos demais esse respeito pelos direitos fundamentais e a não permissão de condições desumanas nos seus estabelecimentos prisionais.

iii. E por último, o alvitrado cumprimento da pena em Portugal carece em absoluto de fundamento legal, não o prevendo sequer aquela Convenção da Praia.

b) A requerida, por seu lado, reitera o que já havia argumentado na oposição, apenas o desenvolvendo nos passos seguintes:

8. E enfim, não se tendo ao exame do processo patenteado nulidades, questões prévias ou o que fosse com a virtualidade de obstar ao conhecimento da causa, foram os autos com vista aos adjuntos e depois à conferência, onde se tomou a decisão final neste acórdão ínsita, tudo nos termos do art. 57.º/1/2, da LCJIMP.

II – Fundamentação

1. De facto

1.1. Factos provados

… resulta apurado, com interesse para a decisão, o seguinte:

a) Por sentença da ... Vara Criminal de Magé (Fórum Regional de ...), Rio de Janeiro, de 15/06/2015, confirmada por decisão da ... Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 08/09/2016, logo transitada em julgado, a requerida, …, foi condenada como autora de um crime continuado de atentado violento ao pudor, p. e p. pelos art. 214.º, 226.º/1, 29.º e 71.º, do Código Penal Brasileiro, na pena de oito anos e nove meses de prisão, a cumprir em regime semiaberto.

b) Dando corpo ao preenchimento desse crime, foi então considerado provado que entre 2005 e 2006, na residência localizada … a requerida constrangeu a vítima, …, à data com 14 anos de idade, mediante violência presumida, a praticar actos libidinosos diversos da conjunção carnal, consistentes em ordenar-lhe que fizesse sexo oral ao coarguido, …, e o masturbasse, e a permitir que com ela fossem praticados actos libidinosos diversos da conjunção carnal, consistentes em acariciar-lhe os seios, beijar-lhe a boca lascivamente, introduzir o dedo e o roçar o pénis na vagina da menor.

c) Para aqui tentar melhorar a sua situação económica, a requerida veio para Portugal em Novembro de 2018, sem que a tanto lhe tivessem colocado entraves as autoridades brasileiras, e entre nós documentou pedido de autorização de residência, que também sem entraves lhe foi deferido, aqui se tendo juntado ao marido, …, que entre nós e por iguais razões se encontrava já há cerca de sete meses e a quem foi atribuída nacionalidade portuguesa, desde então com este se mantendo por cá, com título de residência... n.º ...), tendo entretanto ela própria formulado pedido de atribuição da nacionalidade portuguesa, ainda não decidido.

d) Depois de numa fase inicial de cerca de seis meses se ter mantido dedicada ao acompanhamento das filhas então menores, a requerida vem entre nós trabalhando, actualmente com emprego sob contrato de trabalho a termo incerto…

e) Por seu lado, o marido da requerida, igualmente empregado, desloca-se frequentemente ao serviço da entidade empregadora, por períodos mais ou menos extensos, consoante a localidade ou o país a que é chamado a desempenhar funções, e durante os quais as filhas ficam a cargo apenas da requerida.

f) A requerida e o marido auferem salários líquidos de, respectivamente, 733,00 € e 1.066,00 € (valor base, que pode chegar a duplicar com as ajudas custo pelas ausências em serviço se estas chegarem ao número de dias de trabalho de um mês), sendo os principais encargos fixos da família constituídos pelas prestações para pagamento de créditos que o casal contraiu, …

g) …, a integração na comunidade local fez-se sem registo de dificuldades, não havendo notícia de referências negativas e mostrando-se regulares os convívios com os outros residentes e a participação em eventos, designadamente das filhas do casal.

h) As filhas do casal, ambas com nacionalidade portuguesa e estudantes, e ambas a cargo da requerida e do marido, têm actualmente 18 e 11 anos de idade, sendo que a mais velha passou pela necessidade de acompanhamento psiquiátrico e psicológico, devido a crises de ansiedade, depressão e epilepsia, coisa todavia ultrapassada já desde pelo menos Outubro de 2020, de então para cá não tendo sintomas nem tendo carecido desses acompanhamentos. 

i) A detenção da requerida teve grande impacto na família, gerando nas filhas grande tristeza e ansiedade, pela ausência da mãe e pela incerteza quanto ao respectivo futuro, e tanto elas como o marido a visitaram durante a detenção, quanto à mais velha e para fazer face à diminuição dos rendimentos familiares sequente àquela detenção, tendo chegado em Agosto de 2023 a empregar-se ela mesma na empresa em que trabalha a mãe, sem prejuízo de retomar o ensino profissional em Setembro de 2023.

j) O filho mais velho da requerida, actualmente com 20 anos de idade, com nacionalidade portuguesa e já autónomo, vive na companhia de uma meia-irmã mais velha, em ..., onde se encontra a estudar.

k) Em Portugal a requerida não tem outros familiares ou afins senão o casal constituído por …, tios paternos do seu marido, …

l) Desde a sua vinda para Portugal, a requerida não voltou ao Brasil, desde logo para isso não tendo tido disponibilidade financeira, sendo que nesse país tem ligação afectiva apenas a um seu irmão, uma vez que foi criada por avós já falecidos.

m) Na hipótese de ser extraditada, a requerida projecta que apenas a filha mais nova vá para o Brasil, ali ficando a seu cargo, se as condições de execução da pena lho consentirem, caso contrário ali ficando ao cargo de avós, paternos ou maternos.

n) Quanto ao marido da requerida, seu coarguido no mesmo processo, foi ali e pela sua coautoria dos mesmos factos, na mesma sentença igualmente condenado por idêntico crime, também ele na pena de oito anos e nove meses de prisão, e a executar também em regime semiaberto, sendo que no âmbito desse processo foi ordenada igualmente a emissão de mandados de captura e determinada, a 27/07/2023, a inclusão também dele na lista de procurados da Interpol (red notice).                               

1.2. Factos não provados

Com hipotético relevo para a decisão da causa, não se provou:

a) Que o Superior Tribunal de Justiça Brasileiro ou outra qualquer instância daquele país, tivessem alguma vez declarado prescrita a pena imposta à requerida.

1.3. Motivação da decisão de facto

A convicção subjacente ao que antecede fundou-se, desde logo e quanto à condenação da requerida e do seu marido no Brasil, e às incidências do processo respectivo, nas certidões das peças pertinentes, juntas com o requerimento inicial, que nem consentiriam dúvida nem na verdade foram questionadas na respectiva genuinidade ou no conteúdo. …

Quanto à deslocação da requerida e do seu marido para Portugal, ao que a isso os motivou, e bem assim ao facto de para ela não ter enfrentado obstáculo, bem como à regularidade da sua residência entre nós a coberto de título de autorização de residência temporária, as declarações pela própria prestadas, no sentido de a ter movido a busca de melhores condições de vida, … corroboradas pelo depoimento tio paterno do marido, a testemunha …, igualmente credível, e que atribuiu essa motivação tanto àquela quanto ao marido; e no segundo dos referidos planos, as declarações da requerida naquele sentido foram muito em particular confirmadas pelo exame dos documentos juntos com a oposição à extradição, designadamente aquele mesmo título de residência.

Pelo que tange à nacionalidade portuguesa do marido da requerida e das filhas do casal, bem como às idades destas, valeram as certidões de assentos de casamento e de nascimento igualmente juntas com a oposição, e no que respeita à composição do agregado e respectivas condições de vida, habitação, profissões da requerida e marido, frequência do ensino pelas filhas, integração na comunidade, e no mais, o tribunal teve em conta as declarações da própria, de que também nisto não encontrou razões para duvidar, e em todo o caso são no essencial confortadas tanto pelo relatório do inquérito social (com dados obtidos a partir da audição da própria e do seu marido, bem como daquele tio paterno deste, mas além disso ainda de um responsável da entidade empregadora dela e do presidente da junta de freguesia da localidade de residência, além da consulta de documentos), …

Especificamente quanto aos problemas de saúde da filha mais velha da requerida, e sua actual ultrapassagem, além das declarações desta mesma, … relevaram ainda os documentos igualmente juntos com a oposição e relativos a actos médicos e a medicamentos, …

Os depoimentos das testemunhas … permitiram, aliás em consonância com o teor do relatório do inquérito social, estabelecer, na falta de documentos que concretamente o atestassem, estabelecer o que se deu como provado a respeito ainda do trabalho do marido da requerida, das suas frequentes e mais ou menos extensas ausências, e do respectivo salário, bem como, no que à requerida directamente tange, a boa conta em que é tida na empresa para que trabalha e, enfim, a boa integração da família na comunidade local.

Além disso, isto é, sobre o filho mais velho da requerida, a sua actual permanência em ..., com quem e para o quê, valeram uma vez mais as declarações da requerida, que se não lobrigou razão para nisso colocar em dúvida, outro tanto sucedendo a respeito dos familiares de que a família dispõe em Portugal, …

Por outro lado ainda, não foi junta documentação alguma sobre o pedido de atribuição de nacionalidade portuguesa formulado pela requerida, mas também se não viu razão para duvidar da sua afirmação no sentido de tê-lo formulado, o mesmo cabendo dizer do que afirmou quanto a não ter regressado ao Brasil desde que veio para Portugal e a não ter para isso meios …

As repercussões da detenção da requerida na vida familiar e em especial nas filhas, resultam ainda do teor do relatório de inquérito social, …

Tudo isto sempre tendo como pano de fundo o já amplamente referido relatório de inquérito social, não resultaram ao tribunal dúvidas relevantes sobre as ditas condições da requerida, pessoais, familiares e laborais, e do respectivo agregado, sua integração e tudo o mais, tal como se assentou.

Do mesmo modo, a declaração de prescrição da pena em causa por um tribunal brasileiro, que embora de modo algo oblíquo a requerida alegara logo com a oposição à extradição, não apenas não é documentada como foi expressamente desmentida pelas autoridades brasileiras, quando solicitadas a esclarecê-lo, de sorte que também isso tinha de haver-se como não provado.

2. Fundamentos de direito

2.1. Antes mesmo da análise sucessiva das questões directamente concitadas pelos termos do requerimento de extradição e da oposição da requerida (nos termos sintetizados supra em, respectivamente, I/1/a-e e I/4/a-c), a que já de seguida passaremos, tem utilidade, pelo valor explicativo dos moldes dessa análise, trazer à liça a disposição do art. 229.º, do Código de Processo Penal (adiante CPP), do qual resulta claro que a extradição é regulada pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial, na matéria regendo precisamente a LCJIMP, em cujo art. 3.º/1, de resto, esse princípio de prevalência dos tratados, convenções e acordos é explicitamente reafirmado – tudo aliás em conformidade com a regra do art. 8.º/2 da CR. No caso que nos ocupa, sendo a República Federativa do Brasil, Estado requerente da extradição, e tal como a República Portuguesa, parte signatária da Convenção da Praia, que previne o tema, resulta manifesto que as normas correspondentes serão as de aplicação primordial, apenas cabendo recorrer à LCJIMP para colmatar as eventuais lacunas de disciplina respectivas, designadamente procedimentais, e mesmo nesse caso sem naturalmente gerar desvio ou oposição ao sentido daquelas. Cremos bem que o aqui afirmado nenhuma dúvida suscitará.

2.2. Dito isto, tenhamos agora presente, para começo de análise, que visando a pretendida extradição a execução de pena de prisão de oito anos e nove meses, o pedido se mostra logo à partida conforme com as previsões dos art. 1.º e 2.º/2, da Convenção da Praia: o Estado requerente é também dela signatário, como o nosso, e procura a requerida, que se encontra no nosso território, para execução de uma pena privativa da liberdade que é superior a seis meses (sendo irrelevante o facto de a condenação prever a execução em regime aberto); sendo uma indisputável evidência que os factos subjacentes à condenação dela pelos tribunais do Estado requerente, em cujo ordenamento preenchem crime de atentado violento ao pudor, p. e p. pelos art. 214.º, 226.º/1, 29.º e 71.º, do Código Penal Brasileiro, seriam igualmente puníveis entre nós, configurando a comissão de um (porventura diversos) crime(s) de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 2, do CP, ao qual caberia pena de prisão entre três e dez anos, torna-se óbvia a conformidade do pedido também com o art. 2.º/1 da Convenção da Praia, e à partida está Portugal vinculado à entrega da requerida.

2.3. Assente essa vinculação de princípio do nosso Estado, que o art. 1.º da Convenção da Praia explicitamente não subordina senão à observância das regras e condições nela estabelecidas, só destas poderia extrair-se eventual recusa de cumprimento – alcance do qual afastamos desde já e sumariamente o que quer que pudesse relevar da forma e instrução do pedido pelo Estado requerente, que sem mácula, de resto nem apontada, observou o que nesse plano dita o art. 10.º do mesmo instrumento. Pertinentes poderiam ser, isso sim, e com efeito nelas se demora a oposição da requerida, as vicissitudes temporais da formulação, pelo Estado requerente, do pedido subsequente a uma detenção não directamente solicitada, nomeadamente, e como é arguido, a regularidade da subsistência de uma tal detenção em tendo sido ultrapassado, como se alega, o termo do período para ela legalmente previsto sem a dita formalização. Dir-se-ia, com o MP e em inteira lógica, que a libertação da requerida, por decisão de 25/08/2023 (cfr. supra, I/6), esgotou a questão, atinente ao estatuto coactivo e não já à extradição sobre que agora cumpre decidir, mas a obstinação da requerida no tema e, em boa verdade, o cabal esclarecimento das coisas, justificam mais detalhada apreciação.

2.4. Passando a empreendê-la, cabe observar, enfaticamente, que é baldado o esforço argumentativo erigido com arrimo às normas dos art. 64.ª/2/3 e 38.º/5, da LCJIMP: a Convenção da Praia, e concretamente o seu art. 21.º, dispõe regras próprias para a detenção provisória e as condições da respectiva duração, resultando do n.º 4 desse art. 21.º que a pessoa provisoriamente detida “é imediatamente posta em liberdade se, ao cabo de quarenta dias seguidos, a contar da data de notificação da sua detenção ao estado requerente, este não tiver formalizado um pedido de extradição”. Não cabe argumentar, em hipotética tentativa de afastar este enquadramento, com a falta de um expresso pedido directo do Estado requerente e às autoridades portuguesas para aquela detenção provisória, nos termos dos n.º 1 e 2 do mesmo art. 21.º, por isso que, de acordo com o n.º 3 o pedido “poderá ser apresentado pelas autoridades competentes do Estado requerente pelas vias estabelecidas na presente Convenção, bem como pela (…) Interpol (…)”; no caso, foi isto mesmo o que sucedeu – as autoridades do Estado requerente emitiram o mandado de detenção, difundiram-no adequadamente pela Interpol e, sendo localizada em Portugal, a requerida foi aqui detida em execução desse mandado.

2.5. A LCJIMP autonomiza das regras atinentes à detenção provisória directamente solicitada pelo Estado requerente como acto prévio de um pedido de extradição formal (art. 38.º, com o procedimento e prazos dos art. 62.º e 63.º), as que especificamente disciplinam a detenção não directamente solicitada (art. 39.º, com o procedimento e prazos do art. 64.º e, por remissão do n.º 4 deste último, os dos art. 53/5/6 e 63.º), mas a Convenção da Praia não faz uma tal destrinça, o que todavia nenhuma lacuna importa, pois tem regras próprias para a detenção provisória, sendo as que cabe primordialmente aplicar. O que no âmbito da LCJIMP configuraria “detenção não directamente solicitada”, prevista no respectivo art. 39.º, e a concitar a inteireza dos procedimentos, disciplina e prazos daquele art. 64.º, também da LCJIMP, enquadra-se afinal na previsão do art. 21.º/1/2/3 da Convenção da Praia. Nada prevendo esta sobre procedimento de apreciação e validação da detenção, seguiu-se o disposto no art. 64.º/1/2 da LCJIMP (nos autos agora a estes apensos); mas dispondo de norma própria sobre o prazo máximo dela sem formalização de subsequente pedido de extradição (a do seu art. 21.º/4), então não cabe aplicação dos art. 64.º/3 e 38.º/5 da LCJIMP.

2.6. Pois bem, o prazo de quarenta dias seguidos previsto pelo art. 21.º/4 da Convenção da Praia, que ao contrário do art. 64.º/3, da LCJIMP, não estabelece qualquer outro mais curto ou necessidade de comunicação para sua extensão até esses quarenta dias, conta-se, nos termos da mesma norma, a partir da data de notificação da detenção ao Estado requerente, e não já, como no âmbito da LCJIMP sucederia (art. 64.º/3), da data da própria detenção. Ora, a detenção foi apreciada, com validação e manutenção, a 21/06/2023, sendo então ordenada a comunicação ao Estado requerente, precisamente nos termos do art. 21.º da Convenção da Praia, assinalando os quarenta dias para formalização do pedido de extradição, sob pena de libertação imediata da requerida; e consultando os autos apensos, em que tudo isso se passou, constata-se ter sido cumprida a comunicação por ofícios também de 21/06/2023, dirigidos tanto directamente à embaixada/consulado da República Federativa do Brasil, quanto ao Gabinete Nacional da Interpol e à Procuradoria Geral da República, estes para a retransmitirem aos respectivos congéneres brasileiros (sendo a PGR a autoridade central portuguesa – nos termos do art. 9.º/1/2, e cfr. o art. 2.º da Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15/09).

2.7. Não consta dos autos, destes ou dos apensos, em que data foi a autoridade central brasileira efectivamente ciente da detenção da requerida, mas figuremos que tivesse sido naquele próprio dia da expedição dos ofícios, 21/06/2023: contando o prazo a partir daí, resulta insofismável que o quadragésimo dia seguido posterior é o 31/08/2021. Não tendo sido até aí formalizado o pedido de extradição, a requerida teria de ter sido imediatamente libertada, de acordo com o art. 21.º/4 da Convenção da Praia, mas a verdade, e ao contrário do que a própria longamente argumenta, é que com efeito foi atempadamente formalizado, como tem de extrair-se da ponderação das datas referidas supra em I/3. Foi-o por ofício datado de 25/07/2023 e que, uma vez recebido na PGR, aí deu início à fase administrativa do processo, nos termos dos art. 46.º/1/2 e 48.º/1/2, da LCJIMP, em 27/07/2023, data em que por força tem de considerar-se formalizado e que é anterior àquela em que, na melhor hipótese, terminaria o dito prazo de quarenta dias! É útil sublinhar que nos termos do art. 9.º/1 da Convenção da Praia, a transmissão à PGR, enquanto autoridade central, é justamente a forma primacialmente adequada de formalizar o pedido.

2.8. Recebido o pedido na PGR, e nada dispondo a Convenção da Praia sobre fase administrativa do processo de extradição, todavia imprescindível, já a respeito desta cobra sentido a aplicação dos referidos art. 46.º/1/2 e 48.º/1/2, e 63.º/1/2, daquela LCJIMP, e com o prazo neste último previsto (quinze dias). Ora, não apenas também esse prazo foi cumprido, porque entre aquele dia 27/07/2023 (que já vimos ser o mais cedo que pode admitir-se como o da formalização) e o da decisão da Sr.ª Ministra a considerá-lo admissível (02/08/2023) não mediaram mais do que os referidos quinze dias, como sobretudo, e é o que aqui importa, é em absoluto destituído de fundamento o pressuposto, contudo latente na estruturação de argumentos da arguida, de que tal formalização do pedido apenas se teria verificado com a entrada do requerimento do MP em juízo, a 09/08/2023: nessa data apenas se deu início à fase judicial do processo de extradição, que na sequência da formalização do pedido passara já pela devida fase administrativa. Donde, e ao cabo deste já algo longo excurso, chegamos à incontornável conclusão de que não teria cabido a libertação da requerida por força de atraso na formulação do pedido pelo Estado requerente.

2.9. Mas admitamos, por exercício de raciocínio, que assim tivesse sido, que aquela formalização do pedido tivesse sofrido demora que, à luz do prazo pertinente (do art. 21.º/4 da Convenção da Praia, insista-se), tivesse obrigado à libertação da requerida. Nessa hipótese, a subsistência da detenção para além daqueles quarenta dias, isto é, a omissão da libertação, falta da maior gravidade, decerto teria carecido de reparação, libertando-a enfim, mesmo que tardiamente e, em última análise, com recurso ao mecanismo do habeas corpus, de todo o modo sem prejuízo da eventualidade de serem em sede própria exercitadas responsabilizações de naturezas diversas (disciplinar, criminal e porventura civil); o que não poderia era resolver-se em espúrio impedimento à extradição em si mesma, sendo mais uma vez à margem de qualquer fundamento que a requerida o toma igualmente como pressuposto da sua argumentação. Na verdade, mesmo supondo demora da formalização do pedido e inerente cessação da detenção provisória (libertação da requerida, tempestiva ou tardia que fosse), o art. 21.º/5 da Convenção da Praia (em linha com o art. 38.º/7 da LCJIMP) é formal: a libertação por excesso daquele prazo “não prejudica nova detenção da pessoa reclamada caso venha a ser apresentado o pedido de extradição”.

2.10. Vale dizer, a hipotética recepção do pedido ulteriormente àquele prazo teria implicado a libertação da requerida, mas continuaria a ser compatível com nova detenção (se necessária fosse) e com a extradição, por conseguinte nem em substância importando a recusa desta última e nem ipso facto “o arquivamento do processo”! A requerida acabou com efeito por ser libertada, a 25/08/2023, não por força do art. 21.º/4 da Convenção da Praia (e menos do art. 64.º/3 da LCJIMP), mas  sim porque se anteviram demoras passíveis de inviabilizar a observância do prazo máximo de detenção até à decisão final do tribunal da Relação (cfr. supra, I/6), prazo que é o previsto pelo art. 52.º/1 daquela LCJIMP (sessenta e cinco dias), uma vez que nessa específica matéria a Convenção da Praia nada dispõe. E, para encerrarmos como começámos, o que afinal importa é que com aquela libertação da requerida, as questões relativas à detenção e sua regularidade, que de todo o modo nem se verificaram como ela as alega nem a terem verificado produziriam os efeitos que supõe, em todo o caso ficaram ultrapassadas. Face à improcedência, que julgamos deixar assim demonstrada, dessa linha argumentativa da oposição da requerida, vejamos agora as mais.

2.11. Começando pelo que pudesse relevar de eventuais motivos de inadmissibilidade do pedido de extradição, conforme elencados pelo art. 3.º da Convenção da Praia, podemos sem mais desconsiderar todos os previstos nas als. a) a e) do respectivo n.º 1: não se trata de executar pena de morte ou de que resulte lesão irreversível da integridade física da requerida; a pena não foi imposta por crime político ou com ele conexo; o crime não militar e menos exclusivamente militar; os factos não foram julgados em Portugal e nem aqui  houve lugar a indulto, amnistia ou perdão com respeito a eles; e a requerida não foi condenada por tribunal de excepção. Todas estas hipóteses são absolutamente estranhas à causa e nem aliás esgrimidas foram, tendo a requerida isso sim alvitrado a extinção da pena por prescrição, declarada por um tribunal do Brasil. Essa seria já uma razão de inadmissibilidade da extradição, segundo a previsão do art. 3.º/1-f da Convenção da Praia, e em rigor sê-lo-ia não somente a hipótese de prescrição à luz da legislação do Estado requerente ou da do Estado requerido, de sorte que se torna necessário equacionar a hipótese, com a pertinente indagação, sumária que seja, como será.

2.12. Como vimos, as autoridades brasileiras deram conta da inexistência de qualquer decisão a declarar prescrição da pena, mas importa ter em conta o teor dos art. dos art. 109.º/II e 110.º, do Código Penal Brasileiro: o primeiro, dispõe que “a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final [é dizer, do procedimento], salvo o disposto no § 1.º do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se” (…) “em dezasseis anos, se o máximo da pena é superior a oito e não excede a doze”; e o segundo, reza que “a prescrição, depois de transitar em julgado a sentença condenatória [a da pena, por conseguinte], regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente”. Sendo a pena imposta à requerida de oito anos e nove meses de prisão, e não havendo reincidência a considerar, o prazo de prescrição dela na lei brasileira é pois e claramente de dezasseis anos. E em Portugal, nos termos do art. 122.º/1/-b/2, do CP, seria de quinze anos, começando a correr no dia do trânsito em julgado da decisão condenatória.

2.13. Ora, mesmo aplicando o prazo da lei portuguesa, porque mais curto, e tendo como referência a data de trânsito da decisão que impôs a pena para cuja execução a extradição é pedida (na melhor hipótese, 09/09/2016 – cfr. supra, II/1/1.1/-a), a prescrição dessa pena só poderia ocorrer, mesmo por simplificação abstendo-nos de ponderar aqui eventuais causas de suspensão ou interrupção daquele prazo, na ainda muito longínqua data de 09/09/2031; e ainda que, por absurdo, considerássemos como termo inicial a data da própria decisão condenatória em primeira instância (15/06/2015 – cfr. igualmente supra, II/1/1.1-a), então a prescrição da pena só poderia ter lugar no em todo o caso também ainda muito longínquo dia 15/06/2030. Temos pois como indisputável que está igualmente fora de causa a recusa da extradição por inadmissibilidade e com esse específico fundamento, à luz do art. 3.º/1-f, da Convenção da Praia, também nesta linha decaindo a argumentação da requerida. E com isto ficam por equacionar hipotéticas razões de recusa facultativa, que são as previstas nos art. 4.º e 22.º daquela Convenção, decorrendo dessa mera previsão a impropriedade, e consequente inatendibilidade, da invocação do art. 18.º/2 da LCJIMP (que, recordemos, apenas cobram aplicação na falta ou insuficiência das disposições convencionais).

2.14. Descartando o que a requerida procura esgrimir quanto a não ter “fugido” do Brasil, no sentido de que não seria ainda sequer procurada quando daquele país se ausentou, e porque isso é em absoluto irrelevante (o que importa, à luz do art. 1.º da Convenção da Praia, é ser actualmente ali procurada para execução de pena que lhe foi ali aplicada mas encontrar-se em território português), podemos de igual modo desconsiderar todas as possibilidades contempladas nas als. a) a e) daquele art. 4.º: a requerida não tem nacionalidade portuguesa; não está a ser julgada em Portugal pelos factos que levaram à condenação; não é inimputável em razão da idade; não foi julgada à revelia; e enfim a pena restritiva da liberdade a executar não é perpétua e nem de duração indefinida. Em suma, não há sequer aparência de fundamento de recusa facultativa nos termos do art. 4.º da Convenção da Praia, e o que a requerida alega e aliás demonstra é, isso sim, um conjunto de razões relativas às suas condições pessoais e familiares cujo potencial relevo “humanitário”, por assim dizer, denodadamente procura integrar na previsão do art. 18.º/2 da LCJIMP, que todavia vimos já não ter aqui aplicação.

2.15. Não tem, desde logo e insistindo, porque a Convenção da Praia não é nisso omissa, valendo sim as suas próprias previsões, concretamente aquele art. 4.º, que não contempla razões como as do art. 18.º da LCJIMP, sem que nisso possa ver-se lacuna, mas antes e seguramente opção, relevante da especial proximidade relacional entre os Estados signatários, no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de que todos são membros, e com a inerente densidade particular da confiança mútua subjacente a uma convenção de extradição. De resto, e ainda supondo, por mero exercício de raciocínio, que cumprisse aplicar aqui o dito art. 18.º/2 da LCJIMP, as razões invocadas, grosso modo constantes da factualidade provada sob II/1/1.1.- c) a n), não teriam a virtualidade de fundar recusa à respectiva luz: de uma banda, as consequências previsíveis da extradição e de que a requerida se lamenta, radicando todas em motivos de carácter pessoal/familiar, sendo embora e decerto pungentes, em nada desmesuram das que o cumprimento da pena sempre necessariamente implica, não podendo assim justificar a excepcionalidade da recusa; e por outro, cotejada com a dos factos, a gravidade delas não justificaria derrogar o interesse na cooperação internacional para realização da justiça.

2.16. E ainda essa linha argumentativa decaindo, enfrentemos agora a da invocação das condições desumanas dos estabelecimentos prisionais brasileiros. Neste plano, notemos em primeiro lugar que não tem cabimento, salvo o devido respeito, a invocação do art. 3.º do Tratado de Extradição, o qual deixou de vigorar com a entrada em vigência da Convenção da Praia, nos termos do respectivo art. 25.º/1. Observemos, em segundo lugar, que a dita Convenção da Praia, não contendo disposição que explicitamente enquadre um tal motivo de recusa da extradição, como de resto a não contém a LCJIMP, mas prevê isso sim, no seu art. 22.º (como a LCJIMP no respectivo art. 2.º/1), uma cláusula geral de subordinação da obrigação de extraditar à tutela de interesses fundamentais do Estado português (na formulação do art. 2.º/1 da LCJIMP, “interesses da República Portuguesa, constitucionalmente definidos”). Sendo com ela postos em causa tais interesses, a extradição pode por nós ser recusada, com um especial dever de fundamentação (“com a devida fundamentação”, inciso cuja aparente redundância (por definição é devida fundamentação das decisões) apenas se desfaz em o entendendo como expressão reveladora da excepcionalidade de tal hipótese, concretizadora de uma grave limitação da confiança mútua entre os Estados parte). 

 2.17. Ora, não cabe problematizar que a preservação de qualquer pessoa humana, independentemente da sua nacionalidade, contra tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, seja interesse fundamental, definido designadamente pela abrangência do art. 25.º/2, da CR, a que está vinculado o nosso Estado. E a essa luz, se em determinado país as condições prisionais são generalizadamente umas tais que não garantam a inviolabilidade física e moral dos cidadãos reclusos, então, e como a exposição ao risco de produção sistemática de lesões dessa ordem, assim propiciado, ou mesmo a sua concretização, não podem deixar de considerar-se tratamento cruel, desumano ou degradante, resulta, sendo este proscrito pela nossa Constituição, que estaria vedado ao nosso Estado trair aquele interesse com a entrega da pessoa reclamada a um tal país. E assim, e enfim, estaria aberta a porta à recusa da extradição com fundamento, no que importa, naquele art. 22.º da Convenção da Praia. Essa seria porém, segundo cremos e com o devido respeito por diversa opinião, uma apreciação superficial do problema, para mais considerando que, com o pedido de extradição, o Estado requerente logo consignou garantia expressa, entre outras, de “não submeter o extraditando a tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”.

2.18. Assim, vincula-o essa garantia explícita, de resto sistemicamente sustentada na sua ordem jurídica, como adiante passaremos a tentar ilustrar, e de resto, na hipótese de trair esse dever, quebrando a confiança mútua subjacente à Convenção, não nega à requerida meios de contras isso reagir. Acompanhando de muito perto o que ainda recentemente se consignou no Ac. deste TRC de 29/06/2023 (proferido no processo 78/23.TRCBR – relator João Novais):

A Constituição da República Federativa do Brasil «garante os princípios do Estado de Direito Democrático e o respeito pelos direitos humanos, sendo um país plenamente reconhecido na ordem internacional, membro da ONU, subscritor das convenções internacionais respeitantes aos Direitos Humanos, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

O art. 1.° daquela Constituição, de 1988, estabelece o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio basilar do Estado Democrático de Direito, e o art. 5.° garante que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

A Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984 (Lei de Execuções Penais) estabelece que ao condenado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art. 3.º), que os condenados serão classificados segundo os seus antecedentes e personalidade (art. 5.º), que a assistência ao preso é dever do Estado (art. 10.º), concretizando-se a assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa (art. 11.º), que a assistência material consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiénicas (art. 12.º), estipulando-se o conteúdo da assistência à saúde a prestar (art 14.º),  que será prestada assistência judiciária aos presos sem recursos financeiros (art. 15.º), que será facultada assistência educacional – instrução escolar e formação profissional, assistência social (art. 22.º), assim como assistência após a restituição à liberdade (art. 25.º), que o trabalho do condenado será regulado e garantindo-se a sua remuneração e dignidade (art. 28.º e ss.), impondo-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos presos (art. 40.º), resumindo no art. 41.º o conjunto de direitos do recluso,  concretizados nas restantes normas, designadamente  o direito à alimentação suficiente e vestuário, à atribuição de trabalho e sua remuneração, previdência social, à constituição de pecúlio, à proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, ao descanso e a recreação, ao exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas, à assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, à protecção contra qualquer forma de sensacionalismo, à entrevista pessoal e reservada com o advogado, à visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos, ao chamamento nominal, à igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena, à audiência especial com o diretor do estabelecimento, à representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito, ao contacto com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura, ao atestado de pena a cumprir.

Em suma, a um nível mais formal, da conformação político-constitucional da República Federativa do Brasil (Estado de Direito democrático, que proclama como essencial e estruturante o respeito pela dignidade da pessoa humana), da sua vinculação internacional (com realce para a Convenção Universal dos Direitos do Homem e da Convenção de 1987 contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis), e da sua legislação interna (com realce para a acima escrutinada Lei das Execuções Penais), resulta a conclusão de que o ordenamento jurídico a considerar estabelece garantias de protecção, na prisão, do extraditando contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes. »

2.19. Obviamente, a realidade dos factos pode em medida menor ou maior, até muita, desmentir as proclamações jurídicas, mesmos as fundamentais, mas somando estas, que vimos de esquematizar, àquela garantia explícita manifestada pelo Estado requerente com o pedido, nada cabe acrescentar senão que a mesma confiança mútua por cada Estado signatário da Convenção da Praia depositada com a subscrição dela nos demais, quando assim reciprocamente se vincularam todos à extradição enquanto valiosa forma de cooperação judiciária internacional, nisso tendo em conta as diferenças de regimes político-criminais próprios de cada um, mas em equilíbrio com a comum identidade de princípios e valores, culturais e também especificamente de defesa dos direitos humanos (seguimos nisto de perto o Ac. do STJ de 07/09/2017, no processo 483/16.7YRLSB.S1 – relator Francisco Caetano), a mesma confiança mútua, dizíamos, impõe dar crédito àquela garantia e a que, honrando-a, o Estado requerente assegurará ao menos quanto à requerida condições de execução da pena compatíveis com os padrões mínimos a que está internacionalmente obrigado – acrescendo que mesmo a não ser esse o caso, então a requerida teria decerto no Brasil meios judiciais de exigir cumprimento daquilo a que em vista da sua extradição o Estado se vinculou para com Portugal.

2.20. Breve, também nisso decai a oposição da requerida à extradição, sem já sequer aprofundar a todavia perplexante contradição de por um lado alegar em vista dela as más condições do sistema prisional brasileiro, mas por outro e em vista da eventualidade da execução da sua pena em Portugal (e até da execução da detenção provisória), enfatizar que não deve ser cumprida no sistema prisional, porque o regime semiaberto na aplicação dela determinado supostamente assim o imporia… O que nos trás, agora e enfim, a igual falência do que subsidiariamente vem pedido na oposição, para o caso de não ser recusada a extradição: em alternativa a ela, cumprir aqui a pena, “com pulseira electrónica”, continuando a trabalhar e a cumprir as funções habituais, ou no sistema prisional português, assim permanecendo em todo o caso perto da família e podendo manter a proximidade às filhas. Sucede que essa possibilidade de cumprimento da pena, aliás não prevista na Convenção da Praia, sendo em certas circunstâncias admitida pelos art. 95.º e ss. da LCJIMP, teria como pressupostos necessários, entre outros de que nem mesmo caberá já indagar, a iniciativa do Estado da condenação (art. 95.º/2, da LCJIMP), que não formulou um tal pedido.

III – Decisão

Em face do exposto, decide-se autorizar a extradição da requerida, AA, para a República Federativa do Brasil, para efeitos de cumprimento da pena de oito anos e nove meses de prisão, em regime semiaberto, a que foi condenada por sentença da ... Vara Criminal de Magé (Fórum Regional de ...), Rio de Janeiro, de 15/06/2015, confirmada por decisão da ... Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 08/09/2016, transitada em julgado, como coautora de um crime continuado de atentado violento ao pudor, p. e p. pelos art. 214.º, 226.º/1, 29.º e 71.º, do Código Penal Brasileiro.

Sem custas (art. 73.º, n.º 1, da LCJIMP), ficando as despesas de remoção da extraditanda de Portugal a cargo do Estado requerente (art. 20.º/1, segunda parte, da Convenção da Praia).

Notifique a extraditanda e sua defensora e o MP junto deste Tribunal da Relação.

Comunique ao Gabinete Nacional da Interpol e ao SEF, bem como à Procuradoria Geral da República, que enquanto autoridade central comunicará sem demora à sua congénere brasileira e com ela acordará a data, lugar e termos da entrega no prazo pertinente (art. 13.º/1/3/4/5/6, da Convenção da Praia).

Consigna-se, para os efeitos do art. 14.º/1 da Convenção da Praia, que no âmbito deste procedimento de extradição a requerida esteve sob detenção entre 20/06/2023 e 25/08/2023, em total de sessenta e sete dias.


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Coimbra, 11 de Outubro de 2023

Pedro Lima (relator)

Cristina Branco (1.ª adjunta)

Alexandra Guiné (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente