Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
255/20.4PBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
MAL FUTURO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 153.º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I – Para o preenchimento do conceito de ameaça, previsto no artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, torna-se necessário que se anuncie um mal futuro, cuja execução não seja iminente.

II – A expressão “levas um tiro” não permite, por si só, retirar, sem qualquer margem para dúvidas, a conclusão que o arguido estava a anunciar que num qualquer momento futuro iria desferir um tiro ao ofendido, como sucederia se dissesse “um dia destes levas um tiro” ou “da próxima vez que te encontrar levas um tiro”.

III – Sendo o tempo verbal usado o presente do indicativo, não se pode recusar a possibilidade de o arguido pretender significar que iria, de imediato, desferir um tiro ao ofendido, ainda que esta hipótese também não surja como completamente nítida, como seria num caso que que se proferisse uma frase como “levas já um tiro”.

IV – Havendo dúvidas relativamente à intenção do arguido ao proferir as mesmas palavras, há que recorrer ao contexto factual que acompanhou a mesma expressão para se apurar aquela intenção.

Decisão Texto Integral:
*



1.1.  O arguido … interpôs recurso da sentença …, que o condenou pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros).

1.2. No recurso em apreciação, a recorrente apresentou as seguintes conclusões:

d) Após queixa apresentada pelo Ofendido, e depois de decorrer do inquérito, entendeu o Ministério Público haver indícios de que o Arguido tivesse praticado os crimes que foram denunciados, tendo deduzido acusação por um crime de ofensas à integridade física e um crime de ameaça agravada. Tendo posteriormente o Ofendido vindo apresentar a desistência da queixa apresentada contra o Arguido …

e) Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, …

g) Do depoimento do ofendido verifica-se que em momento nenhum este diz que o Arguido trocou a arma verdadeira por uma arma de brinquedo idêntica à supostamente verdadeira, ou que desconfia que isso pudesse ter acontecido.

l) Foram também inquiridos os agentes da PSP que procederam ao cumprimento dos mandados de busca e apreensão. Sendo que no âmbito desses mandados e após as buscas efectuadas à residência e viatura do Arguido foram apreendidas duas armas, uma pistola e um revolver, que foi confirmado se tratarem de brinquedos.

m) Foi também confirmado pelos mesmos agentes através dos seus depoimentos que a armas poderiam parecer verdadeiras à primeira vista, mas melhor observada era perceptível que tratava-se de uma arma de brincadeira.

o) …, sem ter valorado o depoimento dos Agentes da PSP, o tribunal a quo considerou que a arma era verdadeira, vindo ainda afirmar que o Arguido após os factos e preocupado com as respectivas consequências adquiriu um objecto de brinquedo, similar à sua arma, sendo este que veio a ser apreendido. Sendo que, esse facto nunca foi mencionado em todo o julgamento, nem por nenhuma testemunha ou por qualquer outra prova junta aos autos.

r) Outra situação, que deveria ter levado a que o tribuna a quo absolvesse o Arguido é o facto de não estarem preenchidos o requisitos do crime. Ora como faz menção a douta sentença recorrida, um dos requisitos do crime de ameaça é o anúncio de um mal futuro, criando um sentimento de inquietação no Ofendido de que o Arguido irá cumprir a ameaça no futuro.

s) Ora, salvo melhor opinião, contrariamente à fundamentação da douta sentença recorrida, o que aconteceu foi precisamente o contrario, a admitir, o que não se admite, que o Arguido ao ameaçar o Ofendido seria para cumprir naquele momento e não no futuro, tendo sido essa a convicção do Ofendido, conforme consta do seu depoimento supra transcrito.


      1.3.  Notificado o Ministério Público junto da 1ª instância, veio o mesmo pronunciar-se …

 

       1.4. Já o Ex Procurador Geral Adjunto junto a este tribunal da Relação, emitiu um bem estruturado parecer …


***

       II -  Fundamentação de Facto


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      III -  Fundamentação de Facto

     b) Atento o teor das conclusões, as questões a apreciar nestes autos, relacionam-se  (i) com a discordância do arguido quanto a matéria de facto considerada  provada pelo tribunal a quo (designadamente  os factos n.ºs 3), e (ii) saber se se verificam os elementos típicos do crime de ameaça, com especial enfoque na questão da verificação do elemento típico relativo à promessa de um mal futuro.

      c) Começaremos por apreciar a 2ª questão identificada, por razões que melhor se perceberão infra.
        Recorde-se que segundo o artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal que «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.».
 A al. a) do nº 1 do art. 155º dispõe que “quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; (…) o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do art. 153º (…)”.
O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a liberdade de decisão e de ação: “as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afetam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade” - Taipa de Carvalho, em “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, tomo I, pág. 342. Ainda o mesmo autor, assinala 3 características principais que deverão estar reunidas para que se preencha o conceito de ameaça, a saber: um mal, que é futuro, e cuja ocorrência depende da vontade do agente. Concretamente, no que ao caso interessa, o mal tem de ser futuro, ou seja, cuja execução não seja iminente; caso a execução do mal anunciado seja iminente, estar-se-á perante uma tentativa do próprio crime contido na ameaça.
d) A jurisprudência e a doutrina, por vezes de forma não coincidente, têm discutido a abrangência do conceito de “mal futuro”. Sintomático dessas dificuldades de avaliação de determinada frase como constituindo, ou não, um “mal futuro”, ficam expostas na divergência entre a decisão recorrida, e no parecer do Ministério Público junto a este tribunal da Relação.
Assim, considerou o tribunal a quo que (…) “
As dificuldades surgem quando se trata de densificar ou concretizar o conceito de “mal futuro” e as decisões jurisprudenciais ilustram bem essa dificuldade.

Temos para nós que, para se saber se estamos perante o anúncio de um “mal futuro” que se projeta na liberdade de ação e de decisão futura (visando, portanto, o agente limitar ou coartar a liberdade pessoal do visado) ou antes diante de um “mal iminente” que pode considerar-se já um ato de execução de um dos crimes do catálogo legal, é fundamental a contextualização da situação.
Afirmações como «limpo-te o sebo», «é hoje que te vou matar», «enfio-te um tiro nos cornos», «vou-te acabar com a vida filho da puta» ou outras do mesmo jaez tanto podem ser entendidas como anúncio de mal futuro como a manifestação de violência que está prestes a ocorrer. Depende do contexto, do circunstancialismo em que as afirmações são proferidas. Ora, no nosso caso, cremos não existir margem para dúvidas de que o mal anunciado pelo arguido com aquelas palavras (“queres levar nos cornos”) seria infligido naquele exato momento e não no futuro, ainda que próximo. Por tudo isto, propendemos para considerar, tal como se considerou na decisão recorrida, que não está verificado o elemento do tipo objetivo do crime de ameaça «anúncio de um mal futuro».”.
Da mesma forma se decidiu no Ac. TRC de 29.01.2020, proferido no processo n.º 81/18.0PBFIG-C1 , in www.dgsi.pt,
E também, no Ac. TRG, de 21.05.2018, proferido no processo n.º 375/16.0GLVLP.G1, in www.dgsi.pt
Analisados os factos e tendo em atenção todo o entendimento jurisprudencial acima descrito, temos para nós que, no caso vertente, o arguido dirigiu uma ameaça, no sentido jurídico-penal do termo, ao ofendido. Na verdade, o facto de ter utilizado a expressão “levas um tiro” no presente não pode ser entendido como se, caso o arguido pretendesse matar o ofendido, o fizesse naquele mesmo momento.
 O arguido, enquanto proferia a expressão, empunhava uma arma que também apontava ao ofendido. Ao agir deste modo, o arguido quis causar nele medo e receio, limitá-lo na sua liberdade de ação e de movimento e constrangê-lo nos seus comportamentos.
Atento todo o contexto dos factos, entendemos que o arguido, ao atuar do modo demonstrado, quis criar no ofendido a convicção (medo, receio) de que, a qualquer momento, no futuro, fosse ele próximo ou longínquo, o poderia matar. E tal comportamento tem, necessariamente, de ser entendido como o “mal futuro” que a previsão normativa contempla.
Acresce que o arguido, ao assim atuar, não acompanhando a expressão que proferiu com qualquer disparo da arma que empunhava na direção do ofendido, concretizou uma ameaça com um mal futuro, que se prolongou por todo o intervalo de tempo entre o momento em que proferiu a expressão e continuou a apontar a arma.
Por essa razão, consideramos estarem preenchidas todas as parcelas que compõem o ilícito criminal e, em consequência, terá o arguido de ser condenado pela prática destes factos.

e) Em sentido contrário, pronunciou-se o Ministério Público junto a este Tribunal da Relação escrevendo:
“…
Com a exigência de que o mal tem de ser futuro quer-se significar que o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, nessa situação, estar-se-á perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, ou seja, do respetivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirmar: “vou-te matar já”.
No entendimento preconizado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.01.2008 (processo n.º 1798/07-2), disponível em www.dgsi.pt. …
Ora, não há dúvidas de que face à prova produzida em sede de audiência de julgamento, resultou provado que o arguido dirigindo-se ao denunciante disse-lhe o seguinte: “Levas um tiro”.
A expressão “Levas” um tiro, do verbo levar, foi conjugada no presente do indicativo. Aliás, conforme resulta do depoimento do ofendido, que o recorrente reproduz nas suas alegações de recurso, este disse expressamente, a instância da sua ilustre advogada, que era uma ameaça para concretizar naquele exato momento, não era uma ameaça para o dia seguinte, era para a altura mesmo.
Nesse sentido, cremos resultar, inequívoco, que esta expressão que foi comprovadamente proferida pelo arguido dirigindo-se ao ofendido não pode ser considerada como uma ameaça de um mal futuro, até porque o verbo levar foi conjugado num tempo verbal – presente do indicativo – que designa um facto presente.

 
f) …
Desde logo, parece-nos pacífico que a expressão posição “levas um tiro”, por si, só não permite retirar, sem qualquer margem para dúvidas, a conclusão que o arguido estava a anunciar que, num qualquer momento futuro, iria desferir um tiro ao ofendido (como seria o caso de acrescentar à frase “Um dia destes levas um tiro”, ou “da próxima vez que te encontrar levas um tiro”). Mas mesmo não tendo o arguido acrescentado as expressões agora sugeridas às palavras “levas um tiro”, não se pode liminarmente afastar a possibilidade de as palavras, acompanhadas da exibição da arma, pretenderem esse efeito de inquietar o ofendido no futuro.
Por outro lado, e até porque a frase em causa foi proferida no presente do indicativo, não podemos recusar a possibilidade de o arguido pretender significar que iria no imediato desferir um tiro ao ofendido, ainda que esta hipótese também não surja como completamente nítida (uma frase como, por exemplo,  “Levas um tiro, não permitiria quaisquer dúvidas).
g) Há assim que recorrer a outros elementos.
Desde logo, e de modo muito relevante, avaliemos o contexto factual que acompanhou aquela expressão.

       Assim, recorde-se que ficou provado que no dia em causa, “o arguido abeirou-se do queixoso AA e, munido de uma arma de fogo, apontou-o na direção do queixoso e disse-lhe: “levas um tiro (…) e que  “Seguidamente o queixoso conseguiu abeirar-se do arguido e desferiu-lhe uma palmada nas mãos na sequência do que o objeto referido em 1. e que aquele empunhava nas mãos caiu ao chão.”
 O facto de o ofendido ter agido imediatamente (desarmando nesse momento o arguido), impede definitivamente que se apure, com toda a segurança, se o arguido se propunha ameaçar que iria dar no futuro um tiro ao ofendido, ou se essa ameaça se dirigia ao momento contemporâneo dos factos.  Ainda assim, a circunstância de ter apontado a pistola na direcção do ofendido, parece apontar para que se propunha a executar de imediato, sendo esse o seu intuito ao afirmar “levas um tiro”; de outro modo, o que seria talvez mais consentâneo com a execução do tiro apenas no futuro (e não naquele momento), seria o arguido, em vez de apontar a arma ao ofendido, apenas a exibir, ou nem sequer fazê-lo, limitando-se a proferir as referidas expressões.
Note-se que tendo ofendido e arguido se envolvido - em momento contemporâneo ou imediatamente posterior à pretensa ameaça - num conflito físico, também contribui para que o mal anunciado não surja como se projectando no futuro, mas sim como iminente e atual. Logo, a inquietação sentida pelo ofendido quando se apercebeu que lhe tinha sido apontada uma arma, apenas terá durado alguns instantes, até ao momento imediatamente posterior, em que se envolveu fisicamente com o arguido, logrando imediatamente desarmar este último  - assim decidindo em situação semelhante, cfr. o  Ac. TRG de 9-09-2013 .proc 930/11.4GAFAF.G1, in dgsi.pt.  
i) Mais: o próprio ofendido percepcionou as palavras do arguido no sentido que que este se propunha desferir a um tiro com a arma logo naquele momento, assim o declarando em julgamento. Ainda que não seja decisivo para avaliar a intenção do arguido, é manifesto que a aferição dos factos pela pessoa mais directamente envolvida (o ofendido, ou seja, o alvo imediato das palavras), também deve ser considerada.
j) Por último, ainda que o crime de ameaças seja actualmente um crime público (dependia de queixa em momento anterior à entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 48/95 de 15- 3), não se pode deixar de considerar que o ofendido desistiu da queixa relativamente ao crime de ofensas corporais, presumindo-se que tal não sucedeu igualmente relativamente ao crime de ameaças porque este ilícito, desde o momento acima assinalado, passou a assumir natureza de crime público. E assim sendo, a interpretação dos factos no sentido proposto (que conduz à absolvição do arguido) respeita a putativa vontade da vítima, e vai ao encontro da pacificação social que o direito penal também visa.
k) Em suma: Por todo o exposto, ficam dúvidas relativamente à intenção do arguido, ao apontar a arma ao ofendido, pretender ou não intimidá-lo com um mal futuro, sendo certo que os poucos elementos disponíveis apontam, ou ao menos francamente admitem, que a intenção do arguido ao proferir as palavras “levas um tiro”, fossem no sentido de se dirigir ao presente imediato (ou seja, que ira naquele momento disparar a arma), e não provocar uma futura inquietação ao ofendido.

IV- Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente o recurso interposto por …e em consequência absolver o arguido pela prática de ameaça, …

Sem custas.

                                         Coimbra, 13 de Dezembro de 2023

                                                        João Novais


                         

                                                        José Eduardo Martins


                                                        Rui Pedro Lima