Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
395/23.8GDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CARTA BRASILEIRA CADUCADA
CONTRAORDENAÇÃO
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.3º, N.ºS 1 E 2, DO DEC.-LEI N.º 2/98, DE 3.1; DEC.-LEI N.º 46/2022, DE 12.7; 125º DO CÓDIGO DA ESTRADA.
Sumário:
Comete a contraordenação prevista no art. 125º, n.º 8, do Código da Estrada o agente portador de título de condução emitido por Estado da CPLP caducado, apesar de revalidável.
Sumário elaborado pela relatora
Decisão Texto Integral:

           Acórdão, deliberado em conferência, da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

RELATÓRIO


  

            I. O Ministério Público veio  interpor recurso da sentença proferida no processo sumário nº 395/23...., do Juízo Local Criminal de Coimbra – J..., Tribunal da Comarca ..., que julgou absolveu o arguido AA da prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, n.ºs 1 e 2, do Dec.-Lei n.º 2/98, de 3.1.


*


     I.1. Decisão recorrida (que se transcreve na parte com relevo).

“(…)FACTOS PROVADOS

Da instrução e discussão resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 10 de Outubro de 2023, pelas 18:35 horas, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Volkswagen, matrícula ..-ER-.., em via pública sita em ..., ..., tendo na sua posse documento com os dizeres “Carteira Nacional de Habilitação” com o nº ...74 emitida pela República Federativa do Brasil em que o arguido consta como respetivo titular e cuja validade caducara a 20/07/2023.

2. O documento supra identificado foi apreendido pelos militares da GNR às 18.35 horas do dia 10 de Outubro de 2023.

3. Nesse mesmo dia 10 de Outubro de 2023, pelas 19.45 horas, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Volkswagen, matrícula ..-ER-.., na Avenida ... na cidade ....

4. O arguido, não obstante, saber que não podia conduzir aquele veículo em virtude de a carta de condução de que era titular se encontrar caducada, não se absteve de o fazer.

5. Agiu o arguido com o intuito de conduzir o referido veículo apesar de saber que não era titular de documento válido que o habilitasse a conduzir.

6. O arguido agiu de forma forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta, era proibida e punida por lei.

7. O arguido trabalha numa empresa gráfica de publicidade, auferindo o SMN.

8. Reside com a sua companheira, de nacionalidade brasileira, empregada fabril, a qual aufere o SMN.

9. O arguido e sua companheira residem em casa arrendada, pagando a renda mensal de € 410,00, que é suportada a meio por ambos.

10. O arguido não tem ninguém a seu cargo.

11. O arguido e sua companheira despendem mensalmente a quantia média em alimentação no montante de € 350,00.

12. O arguido paga mensalmente a quantia de € 30,00 em despesas de telemóvel.

13. O arguido não tem antecedentes criminais.

*

(…)

A questão a decidir prende-se com o enquadramento legal da conduta do arguido, ante a factualidade provada.

Como é sabido, a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa subscreveram a Convenção de Viena de 8 de Novembro de 1968, sobre circulação rodoviária.

No dia 01 de Agosto de 2022, entrou em vigor o Decreto-Lei nº 46/2022, de 12 de Julho.

A finalidade assumida da publicação do Decreto-Lei nº 46/2022, como expressamente se prevê no respetivo artigo 1º, foi a de alterar o Código da Estrada com vista a conceder habilitação à condução de veículos a motor em território nacional aos detentores de títulos de condução emitidos por Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).

Como se explicita no respetivo preâmbulo: “A liberdade de circulação é um elemento essencial para o exercício pleno da cidadania, para tal, Portugal tem procurado reforçar os direitos dos cidadãos estrangeiros que se deslocam para o nosso país, quer tratando-se de deslocações temporárias com finalidades turísticas quer tratando-se de deslocações para trabalhar ou investir no nosso país.

O XXIII Governo Constitucional reiterando o seu compromisso por uma integração dos migrantes, que passe pelas melhorias da sua qualidade de vida, entende ser essencial simplificar a habilitação para a condução de veículos a motor, elemento fundamental para uma garantia de mobilidade em todo o território nacional.

Face ao exposto e com vista a reforçar e a melhorar a mobilidade entre cidadãos de Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e de Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, procede-se a uma alteração ao Código da Estrada. Em consequência promove-se a dispensa das trocas de cartas de condução, habilitando-se a condução no território nacional com títulos emitidos naqueles Estados, através do reconhecimento dos títulos de condução estrangeiros.”.

O citado Decreto-Lei nº 46/2022, procedeu à alteração do art. 125º do Código da Estrada, passando o mesmo a ter a seguinte redação:

1–Além da carta de condução são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:

a)-Títulos de condução emitidos pelos serviços competentes pela administração portuguesa do território de Macau;

b)-Títulos de condução emitidas por outros Estados membros da União Europeia ou do espaço económico europeu;

c)-Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:

i)-O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;

ii)-Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;
iii)-O titular tenha menos de 60 anos de idade;

d)-Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;

e)-Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade;

f)-[Revogada.]
g)-Licenças internacionais de condução, desde que apresentadas com o título nacional que as suporta;

h)-Licenças especiais de condução;

i)-Autorizações especiais de condução;

j)-Licença de aprendizagem.

2–A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.

3–Os titulares das licenças referidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.

4–Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
5–Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.

6–[Revogado.]

7–[Revogado.]
8–Quem infringir o disposto nos n.ºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.
”.

Em face da nova redação do artigo 125º do Código da Estrada, condutas como a do arguido, deixaram de poder subsumir-se na previsão do artigo 3º, nºs. 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, subsumindo-se antes na contraordenação prevista no nº 8 do artigo 125º do Código da Estrada.

Este entendimento foi sufragado nos acórdãos do Tribunal da Relação de   Évora de 15 de novembro de 2022, e no do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07 de Fevereiro de 2023, ambos in www.dgsi.pt.

No citado acórdão do TR de Évora, depois de se referir a existência de prévias decisões em sentidos divergentes, argumentou-se que: “(…) com a entrada em vigor do DL n.º 46/2022, de 12/07 que alterou a redação do artº 125º do Cód. da Estrada condutas que, segundo uma corrente jurisprudencial, antes eram punidas criminalmente (como crime de condução de veículo sem habilitação legal), configuram agora uma mera contraordenação sancionada com coima de (euro) 300 a (euro)1500,assim, acreditamos nós, solucionando a referida divergência jurisprudencial”.

E, como se refere no acórdão do TR de Lisboa de 07.02.2023, que sufragou a posição do referido acórdão do TR de Évora, diz-se, propósito do citado DL nº 46/2022, «Na construção legislativa do regime aplicável aos títulos de condução estrangeiros, o Legislador optou pelo acolhimento da possibilidade de se reconhecer a revalidação de títulos cuja data de caducidade tenha sido já atingida, tal como sucede com os títulos de condução emitidos pelo Estado português.

E essa possibilidade constitui fundamento para se diferenciar o tratamento das infrações criminais e contraordenacionais.

Como se decidiu no Acórdão desta Relação de Lisboa de 22 de março de 2022:
“Não obstante, muito embora a lei tenha deixado de se referir ao «cancelamento» dos títulos de condução, designando todas as situações previstas quanto à perda de validade desses títulos como «caducidade», a verdade é que não deixou de prever dois momentos distintos: quando é atingido o limite da validade previsto no título – designadamente, no que agora importa, por ter o respetivo titular completado 50 anos de idade – este caduca, nos termos previstos no artigo 130º, nº 1, alínea a) do Código da Estrada.

Porém, a partir dessa data e durante os 10 anos subsequentes, é ainda possível a respetiva revalidação, nos termos do disposto no artigo 130º, nº 2, alínea a) do Código da Estrada. Tal revalidação deixa, no entanto, de ser possível decorridos 10 anos sobre aquela caducidade inicial – ficando então o título de condução caducado definitivamente (é o que decorre do já citado nº 3 do artigo 130º) – efeito que se produz apenas pelo decurso do tempo (conjugado com a inação do titular da carta de condução).

Esta modelação legal tem reflexos na responsabilidade penal/contraordenacional do titular de título de condução caducado, posto que o nº 7 do artigo 130º se reporta expressamente aos títulos caducados nos termos previstos no nº 1 – ou seja, aqueles cujo limite de validade se mostra ultrapassado, mas que ainda são passíveis de revalidação. Para os titulares de carta de condução caducada definitivamente (relativamente à qual já não é possível a revalidação), rege o nº 5 do mesmo artigo 130º, isto é, consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido – incorrendo em ilícito criminal se exercerem a condução de veículos motorizados nessas circunstâncias, nos termos previstos no artigo 3º, nos 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de janeiro.”.

Como não pode deixar de ser, ao alterar o disposto no artigo 125º do Código da Estrada (e designadamente o respetivo nº 5), o Legislador estava, não só bem ciente da modelação legal a que supra se alude quanto aos títulos nacionais, como inevitavelmente não pode ter desprezado a possibilidade de idênticas ou diversas modelações resultarem dos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados emissores de títulos.

E na verdade também a legislação brasileira prevê que os títulos caducados – designadamente a carteira nacional de habilitação – possam ser revalidados. O que não existe na lei brasileira é um prazo máximo para revalidação, decorrido o qual, em caso de inação do titular da CNH, esta caduque definitivamente. A revalidação é, ali, possível a todo o tempo (embora com exigências diferentes consoante o tempo já decorrido sobre a data em que “expirou a validade”). A carteira nacional de habilitação é, pois, sempre passível de revalidação».

Como se escreveu nos referidos acórdão da Relação de Évora de 15 de Novembro de 2022, e de Lisboa, de  07 de Fevereiro de 2023, cujo entendimento é por nós sufragado, são pressupostos, necessários e cumulativos, do carácter habilitante para a condução de veículos em território nacional, de aplicação aos títulos estrangeiros elencados no nº 1 do artigo 125º do Código da Estrada, na sobredita e atual redação, conforme se dispõe no nº5 do mesmo artigo, os seguintes:

a) Que o titular tenha a idade mínima legal imposta pela lei portuguesa para a condução de veículos automóveis;

b) Que o título se encontre válido e não apreendido, suspenso, caducado ou cassado por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicada ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.

No caso vertente, o arguido, de nacionalidade brasileira, nascido em ../../1991, tinha mais de 18 anos quando foi fiscalizado no exercício da condução automóvel, pelo que, está verificado o 1º pressuposto.

Por outro lado, o título de que é titular, Carteira Nacional de Habilitação com o nº ...74, emitido pela República Federativa do Brasil em 21.07.2022, com validade até ao dia 20.07.2023, como dele próprio consta, caducou em 20.07.2023.

Constando a caducidade do próprio título, a mesma resulta, automaticamente, da decisão administrativa que o emitiu, ou, no limite, na disposição que no direito Brasileiro fixa tal prazo de caducidade.

Não está, pois, verificado o 2º pressuposto em referência, não podendo o arguido conduzir em território nacional, já que o título que o habilita para o exercício da condução, embora revalidável, está caducado.

Ora, como se decidiu nos citados acórdãos, em situações como a vertente, caímos na previsão do nº 8 do referido artigo 125º, na redação DL n.º 46/2022, de 12/07.

Com efeito, o arguido é titular de um título de condução emitido pela República Federativa do Brasil, válido, na medida em que é um título autêntico e que concede licença revalidável, mas caducado, pelo que a sua conduta preenche a contraordenação prevista neste preceito legal, sancionável com coima de € 300 a € 1500.

Tal como nos citados acórdãos, também nós concluímos que “a atual redação do nº 5 do artigo 125º do Código da Estrada, conjugado com o disposto no nº 8 do mesmo artigo demonstra ter o legislador afastado a tipicidade da conduta praticada pelo arguido com referência ao artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, antes a subsumindo à contraordenação prevista no nº 8 do referido normativo.

Em face da nova redação do artigo 125º do Código da Estrada, a conduta do arguido deixou de poder subsumir-se na previsão do artigo 3.º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, subsumindo-se antes na contraordenação prevista no nº 8 do artigo 125º do Código da Estrada.

Impõe-se, pois, a absolvição do arguido dos crimes de que vem acusado. (…)


*


    I.2. Recurso do Ministério Público (conclusões que se transcrevem)

1.ª Na sentença ora recorrida não se procedeu a enumeração dos factos não provados existindo apenas menção genérica a que não foram provados outros factos com relevo para a decisão.

2.ª Na acusação pública constava que “atuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas acima descritas proibidas e punidas por lei criminal, como sabia que com as mesmas colocava em causa a segurança da circulação rodoviária”, sendo que na sentença de que se recorre foi dado como provado (ponto 6) que “o arguido agiu de forma forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta, era proibida e punida por lei.”

3.ª Ao não dar como provado, ou como não provado, que o arguido agiu ciente que a sua conduta era proibida por lei criminal omitiu a sentença ora recorrida requisito previsto no nº 2 do art.º 374º CPP, omissão que configura nulidade da sentença conforme o previsto no art.º 379º, nº 1, al. a) do CPP, a qual aqui expressamente se invoca nos termos previstos no nº 2 daquele mesmo normativo legal e deverá, salvo todo o respeito por melhor opinião, ser suprida por esse venerando Tribunal da Relação.

4.ª O arguido foi acusado pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, previstos e punidos pelo art.º 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, conjugado com os artigos 121.º, n.º 1, e 123.º, n.º 1, do Código da Estrada.

5.ª Conduziu no dia 10 de outubro de 2023, pelas 18:35 e após ter sido intercetado pelas autoridades policiais novamente pelas 19:45, fazendo uso de uma carta de condução emitida pela República Federativa do Brasil com prazo de validade até ao dia 20 de julho de 2023.

6.º Foi absolvido da prática dos crimes por se considerar que com a sua conduta integrou a prática de contraordenação ao abrigo do disposto no artigo 125.º, nº 8, do Código da Estrada.

7.ª O seu título de condução emitido pelo Brasil habilitá-lo-ia para conduzir em Portugal de acordo com o artigo 41.º, n.º 2 da Convenção de Viena sobre a Circulação Rodoviária, celebrada em Viena em 8 de Novembro de 1968, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 107/2010 se no momento da condução estivesse válido.

8.ª Segundo a Convenção de Viena, o Acordo Bilateral existente entre Portugal e o Brasil e o Despacho n.º 0942/200, publicado no DR, 2.ª série de 27-5-2000 deve considerar-se que o reconhecimento tem como pressuposto a validade do título.

9.ª Tal título é válido se permanecer válido à luz do direito interno do estado emitente, o que só pode ser aferido pela data constante do documento.

10.ª Validade do título que não se confunde com a sua autenticidade.

11.ª O Decreto-Lei nº 46/2022, de 12 de Julho, manteve no nº 8 do art.º 125º do Código da Estrada, como pressuposto da aplicação da coima a existência de um título válido.

12.ª Não sendo o título apresentado pelo arguido válido nos termos supra expostos a sua conduta não se reconduz à prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 125.º, n.º 8 do Código da Estrada mas sim à previsão do artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.

13.ª Ao absolver da prática de crime afastando a aplicação do artigo 3.º Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro o tribunal errou na concretização do elemento típico objetivo – falta de habilitação legal – violando tal norma.

14.ª Pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, entendendo-se como adequado impor-lhe uma pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 5,50, por cada um dos crimes praticados fixando-se a pena única em 70 (setenta dias de multa).


*


                   I.3. Resposta do arguido AA: pronuncia-se pela improcedência do recurso, uma vez que não tem em consideração a alteração legislativa operada pelo DL n.º 46/2022, de 12/07.


*

          I.4. Parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação:

          Apôs o seu visto.


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II.

Objeto do recurso


          

O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente ([1]).

Assim, são as seguintes as questões a decidir:

a)       …

b)       Preenchimento dos elementos do crime de condução sem habilitação legal.


*

III.

Conhecimento do recurso



(…)

*


B) Preenchimento dos elementos do crime de condução sem habilitação legal:

Entende o recorrente que a sentença proferida errou na aplicação do direito porquanto o título de condução da República Federativa do Brasil de que o arguido era titular caducara a 20.7.2023, pelo que nos termos do art. 41º, n.º 2, da Convenção de Viena Relativa ao Tráfego Rodoviário, do Despacho n.º 10.942/2000, de 27.10.2000 e do Dec.-Lei n.º 46/2022, de 12.7, que conferiu uma nova redação ao art. 125º do Código da Estrada, não se poderia ter entendido que o arguido é titular de licença de condução válida.
Vejamos:
O tipo de crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3º, n.ºs 1 e 2, do Dec.-Lei n.º 2/98, de 3.1, exige a verificação de dois elementos objetivos, a saber:
a) Que o agente conduza um veículo automóvel na via pública; e
b) Que o agente não possua título que o habilite a conduzir o veículo em causa – a saber, a carta de condução, a que se refere o art. 121º, n.ºs 1 e 4, do Código da Estrada.

Encontra-se provado que o arguido conduzia um veículo automóvel na via pública no dia 10.10.2023, tendo na sua posse um documento denominado “Carteira Nacional de Habilitação” com o n.º ...57, emitida pela República Federativa do Brasil, em que o arguido consta como titular, cuja validade caducara a 20.7.2023.

Com base nesta factualidade, ponderando as normas legais aplicáveis, o tribunal a quo entendeu que a conduta do arguido não preenche o elemento referido na al. b), supra, mas a contraordenação prevista no art. 125º, n.º 8, do Código da Estrada.

Ora, Portugal e a República Federativa do Brasil subscreveram a Convenção de Viena de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária.

O Despacho n.º 10.942/2000, da Direção Geral de Viação, sobre a Carteira nacional de habilitação brasileira (CNH), dispõe o seguinte: “Torna-se necessário confirmar a validade das carteiras nacionais de habilitação brasileiras para habilitar à condução de veículos a motor, nos termos do artigo 125.o do Código da Estrada.

Tendo presente que a legislação de trânsito brasileira em vigor reconhece a carta de condução portuguesa para conduzir no Brasil e para ser trocada pela correspondente carteira nacional de habilitação brasileira, com dispensa de exame, o que preenche o requisito constante da alínea e) do n.o 1 daquele artigo, determino:

As carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada.” (sublinhado nosso).

Posteriormente, foi publicado o Dec.-Lei n.º 46/2022, de 12.7 (que entrou em vigor a 1 de agosto de 2022), que habilita a condução de veículos a motor pelos titulares de títulos de condução emitidos por Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (art. 1º).

Não desconhecemos que anteriormente à entrada em vigor deste diploma era discutido na jurisprudência qual o enquadramento jurídico de condutas como a do arguido nestes autos, dúvidas que em nosso entender foram totalmente removidas com o Dec.-Lei citado, nos termos a seguir expostos:

Este diploma introduziu várias alterações ao Código da Estrada, com vista à execução do anunciado desiderato, nomeadamente o seu art. 125º, que tem a epígrafe “Outros títulos”.

Assim, no n.º 1 deste preceito rezava a al. c) que são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os “títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária”, e

Passou a ter a seguinte redação:

c) Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:

i) O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;

ii) Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;

iii) O titular tenha menos de 60 anos de idade

Tratou-se de uma disposição legal inovadora, “com vista a reforçar e a melhorar a mobilidade entre cidadãos de Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e de Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico” (preâmbulo do Dec.-Lei n.º 46/2022).

Com a entrada em vigor desta alteração legislativa, caducou o Despacho n.º 10.942/2000 da DGV, acima referido, fruto da superioridade legal do diploma posteriormente publicado.

Continuando,

O n.º 4 estabelecia e estabelece: “4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias”, mas o n.º 5 do mesmo art. 125º do Código da Estrada passou a ter a seguinte redação:

5 - Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.

Ou seja, o Dec.-Lei n.º 46/2022 alargou os casos de dispensa da obrigação de título estrangeiro por título nacional aos títulos emitidos pelos países da CPLP e da OCDE – passando, pois, a impor ao julgador o afastamento da tipicidade dessas condutas ([2]).

O art. 125º, n.º 5, do Código da Estrada em vigor, vindo de transcrever, prescreve assim que os títulos de condução como o que o arguido possuía só permitem conduzir em território nacional se:

1º- os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação;

2º- o título se encontre válido e não apreendido, suspenso, caducado ou cassado.

Ora, o arguido nasceu em 1991, contando à data dos factos 22 anos de idade – encontrando-se preenchido o 1º requisito.

Quanto ao 2º requisito, atente-se que a legislação brasileira prevê que os títulos caducados, nomeadamente a carteira nacional de habilitação, possam ser revalidad0s – não existindo um prazo máximo para a revalidação e eventual subsequente caducidade ([3]). Ou seja, a carteira nacional de habilitação é sempre passível de revalidação ([4]) – mantendo-se, pois, válido.

Assim, encontrando-se o título de condução emitido por Estado da CPLP  caducado, apesar de revalidável, não preenche o arguido o 2º requisito enunciado para poder exercer a condução de veículos a motor em Portugal.

Sucede que o n.º 8 do mesmo art. 125º estabelece que “8 - Quem infringir o disposto nos n.ºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.”

Ou seja, a própria lei pune expressamente como contraordenação a condução de titular de título de condução emitido por Estado membro da CPLP caducado, tendo as respetivas condutas deixado de se subsumir à previsão do art. 3º, n.ºs 1 e 2, do Dec.-Lei n.º 2/98, de 3.1.

Em consonância, nenhuma censura merece a sentença recorrida.


*

III.

DECISÃO


Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso  e confirma-se a sentença recorrida.

     

Sem custas.


*

Coimbra, 6 de março de 2024

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

Alcina da Costa Ribeiro (1ª adjunta)

Isabel Valongo (2ª adjunta)





[1] v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336.
[2] Cf. Acórdãos da Relação de Lisboa de 7.2.2023, rel. Jorge Antunes, proc. 962/22.7GLSNT.L1-5, da Relação do Porto de 5.7.2023, rel. Eduarda Lobo, proc. 15/21.5PGGDM.P1, e da Relação de Évora de 15.12.2022, rel. Margarida Bacelar, proc. 1718/21.0GBABF.E1, todos em www.dgsi.pt 
[3] Contrariamente ao que dispõe a nossa lei, no art. 130º do nosso Código da Estrada, em que se distinguem os casos de caducidade do título de condução dos casos de cancelamento.
[4] V. o Ac. da Relação de Lisboa de 7.2.2023, cit.