Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1849/18.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PENHORA
ARRENDAMENTO DO BEM PENHORADO APÓS A REALIZAÇÃO DA PENHORA
DIREITO DE PREFERÊNCIA DO ARRENDATÁRIO
INOPONIBILIDADE DO ARRENDAMENTO RELATIVAMENTE À EXECUÇÃO
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 819.º; 822.º; 1024.º, 1 E 1091.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Perante a função garantística da penhora prevista no artº 822º do CC, e o disposto no artº 819º do mesmo diploma, ao executado está vedado, após a penhora, de dispor, onerar ou arrendar o bem penhorado, sendo que a prática de qualquer destes atos, posto que válida e eficaz fora da execução, é nesta inoponível, e, assim, nela irrelevante.
Decisão Texto Integral: Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: Fonte Ramos
João Moreira do Carmo




ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA  RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

 No processo em epígrafe foi proferido o seguinte despacho:

«… veio a Sociedade “A..., Lda” na qualidade de proponente com a proposta mais alta apresentada no leilão electrónico…, impugnar a decisão do Sr. Agente de Execução de reconhecimento de direito de preferência à arrendatária “B..., Lda.”.

Para fundamentar a impugnação deduzida, sustenta a proponente que, uma vez que o contrato de arrendamento celebrado pela arrendatária tem data posterior à da penhora averbada nos presentes autos, considera que o mesmo é inoponível à execução, para efeitos de exercício do direito de preferência.

Pelo que, na perspectiva do impugnante, o Sr. Agente de Execução ao reconhecer a existência de direito de preferência por parte da arrendatária, violou, ostensivamente, o disposto nos artigos 819.º e 824.º, n.º 2 do Código Civil.

Por seu turno, alega o Sr. Agente de Execução que há que distinguir a questão do direito à manutenção do contrato de arrendamento em caso de venda do direito de preferência atribuído legalmente àquele pelo art. 1091º do Código Civil, sempre que o local arrendado há mais de dois anos seja objeto de venda (judicial ou não).

Cumpre apreciar e decidir.

No que concerne aos pressupostos para o exercício do direito de preferência estabelece o artigo 1091.º do Código Civil que «1. O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos(…)».

Em anotação ao referido preceito legal, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, 3.ª ed., 2009, referem o seguinte «Considerando a arrumação sistemática do artigo 1091 do CC, a letra da lei e a inexistência de norma de sentido contrário, o direito de preferência do arrendatário aqui consagrado refere-se a todos os contratos sujeitos à disciplina do arrendamento urbano , sejam eles para fim habitacional ou para fim não habitacional, tenham eles prazo certo ou duração indeterminada».

Relativamente a esta matéria, refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09 de Março de 2021, Processo n.º 1668/18.7T8PVZ.P1.S1, …que «(…)estando em causa o exercício do direito de preferência do autor, enquanto arrendatário, esse direito, porque pré-existente à venda, implicava que, querendo o mesmo preferir, conforme sucedeu, a fração lhe devia ter sido vendida(…)».

Face ao exposto, conclui-se que o direito de preferência atribuído ao arrendatário na compra-e-venda do local arrendado, apenas está dependente da verificação do requisito temporal previsto no próprio artigo 1091.º, n.º 1 do Código Civil, ou seja, o contrato de arrendamento estar em vigor há mais de dois anos à data da venda.

No caso em apreço, …o contrato de arrendamento em causa iniciou-se em 01/09/2020, mantendo-se em vigor à data da concretização do leilão electrónico (23/02/2023), pelo que, é forçoso concluir-se pelo preenchimento do requisito temporal previsto no artigo 1091.º, n.º 1 do Código Civil.

Nessa conformidade, considera o Tribunal que efectivamente assiste razão ao Sr. Agente de Execução no reconhecimento do direito de preferência da arrendatária “B..., Lda.”.

*

Questão diferente é a caducidade do contrato de arrendamento em caso de concretização de venda a terceiro, dispondo expressamente o artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil que «Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo».

Nessa conformidade, sendo o contrato de arrendamento posterior à penhora averbada à ordem da presente acção executiva (AP. ...11 de 2018/03/29), efectivamente com a venda judicial a terceiro, o mesmo caducaria.

Não obstante, no caso em apreço, não houve qualquer venda concretizada a terceiro, uma vez que não foi celebrada qualquer escritura pública, nem emitido título de transmissão a favor do proponente.

Acresce que, da própria decisão tomada pelo Sr. Agente de Execução na sequência do encerramento do leilão electrónico, é feita expressa menção a que «(…)terminado em 23/02/2023, pelas 11:24 horas, o leilão eletrónico com a referência ...23, verifica-se que a melhor proposta é superior a 85% do valor base,estando assim reunidas condições para que se concretize a adjudicação do bem ao proponente, logo que(…)Decorrido o prazo de 30 dias, sem que seja exercido direito de preferência e sem prejuízo de eventual direito de remição (artigo 842º do CPC)».

Nessa conformidade, considera-se inexistir razão à proponente “A..., Lda.”, pois não houve qualquer venda judicial efectivamente concretizada do imóvel a terceiro que implique a caducidade do contrato de arrendamento, cumprindo, consequentemente, julgar improcedente a reclamação apresentada.»

2.

Inconformada  recorreu  a proponente “A..., Lda.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

   1. O douto despacho recorrido enferma de erro notório na apreciação da factualidade assente nos presentes autos, e na subsunção jurídica aí perfilhada.

   2. Merecendo, por isso, censura.

   3. Na verdade, o imóvel penhorado nos presentes autos foi dado de arrendamento pela Executada à B..., Lda., em 1 de Setembro de 2020.

   4. Sucede que, a penhora do imóvel dado de arrendamento e o seu registo ocorreram em 29 de Março de 2018.

   5. Dúvidas não há que o contrato de arrendamento foi celebrado após penhora do imóvel e seu registo.

   6. A venda judicial do imóvel penhorado realizou-se no passado dia 23 de Fevereiro de 2023, através de leilão electrónico.

   7. A melhor proposta foi a apresentada pela aqui Recorrente.

   8. A qual foi aceite pelo Agente de Execução, como decorre da certidão de encerramento de leilão.

   9. O contrato de arrendamento celebrado pela Executada com a referida B..., Lda., por ser posterior à penhora do referido imóvel e do seu registo, é inoponível à presente execução.

   10. É como se tal contrato de arrendamento não tivesse sido celebrado, como se não existisse nos presentes autos.

   11. Por isso, à data da venda judicial do imóvel penhorado, através de leilão electrónico, nenhum direito de preferência existia a favor da arrendatária, a identificada B..., Lda..

   12. O douto despacho recorrido viola, ostensivamente, o disposto nos artigos 819º e 824º, nº 2, do Código Civil.

   13. Além de que, foi proferido ao arrepio da doutrina e jurisprudência pacificamente aceites na interpretação e aplicação dos princípios enunciados nos citados dispositivos legais.

  Contra alegou a arrendatária preferente B..., Lda, pugnando pela manutenção do decidido, aduzindo os seguintes argumentos finais:

   1. A recorrente não tem qualquer razão nem o presente recurso tem qualquer sentido ou fundamento jurídico, tendo decidido bem o tribunal a quo.

2. O direito de preferência da preferente recorrida deriva da sua qualidade de arrendatária do bem imóvel penhorado na execução, nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 1091.º do CC, conforme contrato de arrendamento para fins não habitacionais com prazo certo celebrado a ../../2020, pelo prazo de seis anos, com a executada C... Lda, NIPC ...95, que se encontra em vigor desde a data da sua celebração, e de que os presentes autos tiveram imediato conhecimento.

3. Ou seja, o contrato de arrendamento em crise iniciou-se em 01.09.2020, mantendo-se em vigor a 23.02.2023, data da concretização do referido leilão electrónico, sendo forçoso concluir pelo preenchimento do requisito temporal previsto no artigo 1091.º, n.º 1 do CC.

4. Assim, bem andou o Exmo. Sr. Agente de Execução ao notificar a arrendatária recorrida após o encerramento do leilão electrónico para, querendo, exercer o seu direito de preferência no prazo de 30 dias, o que ela fez legal, tempestiva e legitimamente e, assim, ao reconhecer e aceitar o exercício do direito de preferência por parte desta que, indubitavelmente, existe.

5. Por outro lado, a executada recorrida não estava impedida de arrendar o bem imóvel penhorado nos autos, como fez, sendo o contrato de arrendamento celebrado com a preferente recorrida plenamente válido e eficaz na ordem jurídica, sem prejuízo de não poder ser oposto à exequente para efeitos de impedir e inviabilizar a sua venda judicial nos autos.

6. É isto que diz o art. 819.º do CC, não o que a recorrente quer fazer crer nas suas alegações, sem razão.

7. Tal normativo não impede a celebração do contrato de arrendamento do bem imóvel penhorado nem retira à arrendatária recorrida o seu direito legal de preferência, nos termos expostos.

8. Acresce, com todo o respeito, que a recorrente faz ainda uma errada interpretação do disposto no art. 824.º, n.º 2 do CC, uma vez que tal normativo apenas tem aplicação após a venda, seja quem for que compre o bem.

9. Mas a venda ainda não se concretizou, uma vez que não foi celebrada qualquer escritura pública ou emitido título de transmissão a favor da recorrente.

10. Pelo que não se verificou a caducidade do contrato de arrendamento, que se mantém válido e plenamente eficaz.

11. O direito legal de preferência é prévio e em nada é beliscado pelo disposto no art. 824.º, n.º 2 do CC.

12. O douto despacho recorrido deve, pois, manter-se por ser absolutamente correcto fáctica e juridicamente e, assim, justo.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é  a seguinte:

Ilegalidade do despacho que concedeu o direito de preferência na venda executiva ao abrigo do artº 1091º do CC.

4.

Apreciando.

Estatui o artº 819º do Código Civil (adiante CC):

«Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis em relação à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.»

Esta redação resulta da reforma de 2003, acrescentando-se aos anteriores atos de «disposição» e «oneração» já no artigo consagrados, o contrato de «arrendamento».

Efetivamente, o arrendamento, se celebrado até ao prazo de seis anos, não  constitui um ato  de  disposição, mas antes ato de mera administração ordinária – artº 1024º nº 1 do CC .

Pelo que, e numa interpretação a contrario sensu do artº 819º, era comummente   entendido que este arrendamento podia ser contratado pelo executado, mesmo após o decretamento da penhora.

A consagração expressa do contrato de arrendamento no preceito significou assim que o legislador o quis integrar no lote dos atos jurídicos e contratos realizados/outorgados pelo executado, após a penhora, os quais fulmina de inoponiveis na execução.

O que bem se compreende, pois que este negócio tem virtualidade para frustrar ou, ao menos, prejudicar os efeitos que se pretendem para o ato da penhora.

Na verdade, nos termos do artigo 822.º do CC:

«1. Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior.»

Por conseguinte, a penhora assume-se como «o meio de obter o cumprimento coercivo da obrigação, consistindo na apreensão do bem – conservação da garantia geral relativamente a um ou mais bens, na medida do necessário à satisfação daquele crédito – para, através dele (venda ou adjudicação), os Tribunais se substituírem ao executado no cumprimento da respectiva obrigação pecuniária.» - AC.  da RG de 10.07.2028, p. 3128/17.4T8VNF-G.G1 in dgsi.pt.

(sublinhado nosso)

Alcança-se assim que o artº 822º do CC  atribui à penhora uma função de garantia: beneficiar o credor que promoveu a execução perante outros credores, aqueles  que não tenham garantia real anterior.

Esta função garantística apenas pode ser conseguida através da presença prévia da outra função da penhora, a saber: a função conservatória.

Esta visa  assegurar a viabilidade da venda executiva dos  bens ou direitos sujeitos a penhora.

E desdobra-se numa dupla perspetiva:

• Conservação material (Indisponibilidade material absoluta) – pretendendo-se que o bem, objeto do direito penhorado, não seja desencaminhado ou diminuído no seu valor.

Nesta perspetiva há que ter presente que com a penhora cessa a posse do executado e inicia-se uma nova posse pelo tribunal: o depositário passa, em nome deste, a ter a posse do bem penhorado; ou, no mínimo, a penhora impõe ao executado um desdobramento da posse sobre os seus bens – ele permanece possuidor em nome próprio nos termos do seu direito, de que ainda é titular, mas vê constituir-se sobre eles uma posse que é exercida pelo depositário e que tem o conteúdo que resulta dos poderes que são concedidos a este último.

• Conservação jurídica (Indisponibilidade jurídica relativa) – pretende-se que a faculdade de disposição do direito penhorado que incide sobre o bem apreendido, e que o executado mantém na sua esfera jurídica, não possa ser exercida de modo a privar a venda do seu objeto.

Por conseguinte, se, após a penhora, o executado dispuser, onerar, ou der de arrendamento, o bem penhorado, o negócio jurídico é meramente inoponível no âmbito da execução.

E diz-se «meramente» porque o negócio mantém a sua validade e eficácia extra execução.

 Mas  não pode ser oposto na execução, ao menos se e na medida em que contenda com direitos e interesses de partes ou intervenientes no processo.

Esta mera inoponibilidade, resulta do facto de, mesmo dentro da execução, se a penhora vier a ser levantada, os efeitos “suspensos” terão lugar retroativamente à data do ato.

E se a penhora se extinguir por venda, adjudicação ou remição, o ato de oneração ou alienação ou arrendamento caducará por impossibilidade superveniente - Cfr.  PENHORA-Mafalda-Maló, AAFDLhttps://aafdl.pt ›

O caso sub judice.

Resulta que já após a penhora o imóvel em causa foi dado de arrendamento.

 É assim evidente que tal contrato está abrangido na previsão do artº 819º do CC, sendo, pois, inoponível na execução, vg. contra o interessado que efetuou a melhor oferta na venda eletrónica.

A argumentação vertida no despacho não colhe.

O direito de preferência concedido pelo artº1091.º do Código Civil é um direito genérico/geral, que releva apenas em tese e por princípio;  mas podendo e devendo estar sujeito às condições/condicionantes previstas e impostas por legislação especifica/especial.

É o caso que nos ocupa.

A lei é clara em retirar da esfera jurídica do executado  o direito de, após a penhora, dar de arrendamento o bem penhorado, de tal sorte que mesmo que o seja, o contrato não é oponível na execução.

Logo, ex vi desta indisponibilidade e inoponibilidade, o contrato de arrendamento em causa não releva na execução e tem, pura e simplesmente, de nela ser ignorado/irrelevado.

O que clama a conclusão óbvia que, assim, vedado está o chamamento do, e alcandoramento no, artº 1091º do CC.

Procede o recurso.

(…)

 6.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, e revogar o despacho recorrido, com as legais consequências.

Custas  recursivas pela recorrida.

Coimbra, 2024.03.05.