Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MARIA CATARINA GONÇALVES | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO DE VIDA DECLARAÇÃO INICIAL DO RISCO SINTOMAS DE DOENÇA INCUMPRIMENTO DO DEVER DE DECLARAÇÃO QUESTIONÁRIO ANULABILIDADE DO CONTRATO ABUSO DO DIREITO | ||
Data do Acordão: | 12/13/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 24.º, 25.º E 26.º DO REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO E 334.º DO CÓDIGO CIVIL | ||
Sumário: | I – O segurado que, à data da celebração de um contrato de seguro de vida, vinha apresentando, há cerca de um mês, um conjunto de sintomas com algum relevo e significado (astenia generalizada, perda ponderal de 5kg/1 mês, hipersudorese nocturna lombalgia, anorexia, pirose, sensação de enfartamento precoce, que motivava ainda evicção alimentar, dor epigástrica, aliviada com recurso a fentanil, com irradiação dorsolombar, sem relação com ingestão de alimentos) que o haviam obrigado a recorrer por múltiplas vezes, a serviços de urgência clínica e a consulta de medicina geral e familiar, no âmbito da qual lhe havia sido prescrito um exame médico, sem que fosse ainda conhecido o resultado desse exame e sem que existisse ainda qualquer diagnóstico médico, estava obrigado – em cumprimento do dever de informação previsto no art.º 24.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008 de 16/04) – a declarar essa situação à seguradora por estarem em causa circunstâncias que, estando relacionadas com a sua saúde, eram relevantes e significativas para a apreciação do risco.
II – Nas circunstâncias descritas, o segurado que, omitindo qualquer referência a esses factos e subscrevendo, ao contrário, uma declaração da qual constava que se encontrava em perfeito estado de saúde e que não estava sob observação médica, incorre em incumprimento do dever acima mencionado. III – A lei não impõe ao segurador a obrigação de elaborar um questionário para recolha da informação relevante para efeitos de avaliação do risco (tal questionário é facultativo) e, portanto, o facto de esse questionário não ter sido elaborado não permite afirmar que a seguradora actua em abuso de direito quando, depois de tomar conhecimento da situação que realmente existia (e foi omitida) – já após o óbito do segurado que veio a ocorrer uns meses depois –, vem invocar a anulabilidade do contrato de seguro com fundamento nas inexactidões ou omissões da declaração do segurado em que havia fundado a sua decisão de contratar. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
Decisão Texto Integral: |
Apelação nº 716/21.8T8VIS.C1 Tribunal recorrido: Comarca de Viseu - Viseu - JC Cível - Juiz ... Relatora: Maria Catarina Gonçalves 1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves 2.º Adjunto: Paulo Correia
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. AA, residente na Rua ..., ..., ..., veio instaurar acção contra Companhia de Seguros A..., S.A., com sede na Rua ..., ..., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 50.000,00€, acrescida de juros vencidos no montante de 2.673,97€ e juros vincendos, calculados à taxa legal de 4%, até integral e efetivo pagamento. Fundamenta essa pretensão num contrato de seguro de vida que foi celebrado, em 24/07/2019, entre a sua mãe BB e a Ré e por via do qual foi contratado o capital no montante de 50.000,00€, em caso de morte, sendo beneficiário do mesmo a herdeira legal, a aqui autora. Alega, em resumo, que a sua mãe (BB) faleceu em 18/10/2019 e que, tendo solicitado à Ré o pagamento da indemnização devida (com envio de todos os documentos necessários), esta declinou a sua responsabilidade, invocando a nulidade do contrato pelo facto de a proposta/boletim de adesão que havia sido preenchida quando a mãe da Autora fez o seguro não reflectir o seu verdadeiro estado de saúde. Todavia – continua alegando – no momento em que prestou essas declarações, a segurada declarou com exactidão todas as circunstâncias que eram do seu conhecimento e eram relevantes para apreciação do risco, sendo certo que, à data, não tinha conhecimento de qualquer doença e não podia prever nesse momento a doença fulminante e evasiva que veio a determinar a sua morte. * A Ré contestou, invocando a nulidade ou anulabilidade do contrato por força das declarações falsas ou inexactas que a mãe da Autora prestou quando subscreveu o boletim de adesão onde declarou estar de perfeita saúde, omitindo a existência das doenças de que sabia padecer e que, caso fossem do conhecimento da Ré, implicariam que não aceitasse celebrar o contrato. * A Autora respondeu, pugnando pela validade do contrato e alegando que, quando celebrou o contrato, a sua mãe não omitiu qualquer facto, sendo certo que não tinha conhecimento de ser portadora de qualquer tipo de doença, nem o médico de família que a assistia a alertou para qualquer problema de saúde grave; à data, a mãe da Autora não havia ainda realizado qualquer exame médico – muito menos sabia os seus resultados –, não havia realizado qualquer tratamento, não se encontrava sob observação, nem tomava medicação de combate á doença que a veio a vitimar. * Foi proferido o despacho saneador, foi fixado o objecto do litigio e foram delimitados os temas da prova. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar a acção improcedente e absolver a Ré do pedido. * Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso formulando as seguintes conclusões: 1. A 24 de Julho de 2019 não poderia a falecida BB informar que a .../.../2019 tinha realizado uma EDA, que tinha efetuado RMA em 16/08/2019 e biópsia em 19/08/2019). 2. A proposta de seguro é sempre subscrita antes da data em que entra em vigor o contrato de seguro de vida, pelo que a segurada subscreveu a proposta em data anterior a 24/07/2019. 3. Deve dar-se como provado que a segurada se deslocou, em data anterior a 24/07/2019, no balcão do Banco 1... da cidade ..., para subscrever um contrato de seguro de vida, no montante de €.50.000,00, devendo, por isso, a matéria de facto ser alterada nesta parte. 4. Face ao resultado negativo do rastreio de CCR, a segurada convenceu-se de que não tinha qualquer problema de saúde e, muito menos uma doença do foro oncológico. 5. Em circunstância alguma a segurada poderia ter consciência da gravidade do seu estado de saúde. 6. O senhor juiz no seu raciocínio dá um salto ilógico, na medida em que defende que a segurada ao ter realizado o CCR tinha de ficar ciente de que as manifestações dadas pelo seu corpo estavam relacionadas com a doença que a veio a vitimar. Só se pode afirmar o contrário. 7. Em lado nenhum dos exames de diagnóstico pedidos, ou nas consultas que antecederam a celebração do contrato de seguro se afirma ou se dá a entender por mais leve que seja a suspeita de que à segurada tivessem sido dadas informações sobre a doença e o tipo de doença de que veio a falecer. 8. Para a medicina muitas vezes trabalha-se em áreas do cinzento, da incerteza e da probabilidade, pelo que não se pode exigir que a segurada suspeitasse, que face aos exames pedidos, aos sinais do seu corpo, que tinha uma doença grave e que daí viria a resultar a sua morte, e muito menos quando o exame que fez de pesquisa de doença o já indicado CCR deu um resultado negativo. 9. O facto de se ir ao hospital em 25 de julho de 2019 não é demonstrativo de que algo de grave se passa com a saúde da segurada, porque foi ao hospital por ter uma indisposição. 10. O tribunal deve afirmar sem qualquer hesitação, que a segurada tinha conhecimento da doença, e que estava ciente de uma doença que viria a ser fatal. 11. Deve dar-se com provado que “a segurada, no momento de adesão ao contrato de seguro, não tinha conhecimento de padecer de alguma doença”, pelo que a matéria de facto deve ser alterada deste modo. 12. Devem excluir-se da matéria de facto dada por assente, os pontos doze e treze dos factos dados como provados na sentença em recurso, por oposição aos que se pretendem alterar. 13. Uma coisa é a segurada ter conhecimento de padecer de alguma doença, e outra, bem diferente é ter conhecimento de uma doença grave que a levou a falecer em menos de três meses. Em lado nenhum da sentença, ficou demonstrado que a segurada tivesse esse conhecimento. 14. Não ficou demonstrado que a segurada tenha omitido intencionalmente, ser portadora de uma doença do foro oncológico, único facto em que recorrida se estriba para eximir à sua responsabilidade. 15. A segurada se tivesse conhecimento de alguma doença e da sua fatalidade, e eventualmente, quisesse obter proveitos da seguradora, teria subscrito um contrato de seguro de capital de €.125.000,00. 16. A segurada esteve sempre de boa fé e nunca ousou enganar a seguradora, quanto a seu estado de saúde, e muito menos quanto às suas reais condições. 17. É à seguradora que compete demonstrar que a segurada tinha conhecimento de padecer de uma doença, e que intencionalmente a omitiu e não à autora comprovar que não tem conhecimento de qualquer doença de que a segurada padecesse. 18. O contrato de seguro, desde a sua outorga manteve-se válido até à data em que foi comunicado o óbito da segurada, tendo a seguradora recebido os prémios respetivos, cujos débitos eram mensais. 19. O contrato de seguro – ramo vida, celebrado entre BB, e a A..., é válido, ao contrário da tese da seguradora e que a sentença sufragou. 20. A segurada BB, ao assinar a proposta de seguro, atuou sem dolo, não se verificando que a declaração por si assinada, fosse inexata e que essa inexatidão se devesse a culpa sua. 21. Em lado nenhum da alegação da recorrida foi dito ou demonstrado que à declarante foi explicado o conteúdo e teor da mesma, e muito menos que tendo-lhe sido explicado, a mesma tenha omitido, ou alterado a sua resposta. 22. Se não tivesse ocorrido o evento (morte da segurada), e se hoje a mesma continuasse a sobreviver, mesmo com recurso a quimioterapia e radioterapia, não deixaria a seguradora de continuar a receber os prémios mensais de segurada, não invocando, nunca, qualquer invalidade do contrato. 23. A atitude da seguradora, ao invocar a invalidade do contrato, não deixa de configurar uma situação de verdadeiro abuso de direito. 24. A eventual invalidade do contrato de seguro, só pode ser imputada à recorrida por não ter elaborado um questionário completo, sobre o estado de saúde da segurada. 25. Não o tendo feito, conformou-se e aceitou as declarações escritas, elaboradas em papel timbrado da seguradora. 26. No contrato de seguro, a simples omissão de respostas a perguntas feitas sobre anteriores doenças do segurado não significa que o segurado mentiu. 27. Apenas releva para efeitos da sua anulabilidade se a seguradora provar que tal omissão foi culposa e intencional, no sentido de o omitente pretender escamotear tais doenças. 28. Se a seguradora aceita, ou não se dá conta, como lhe era exigível, que tal omissão ocorreu, e outorga o contrato e recebe o valor do prémio não pode, aquando do acionamento do seguro, e quanto mais não seja por atuação em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, por frustração da confiança, invocar a sua anulabilidade com base naquela omissão Termos em que; Na procedência do recurso, revogando a decisão em crise e julgando a ação procedente por provada, condenando a recorrida a pagar à autora a quantia de €.50.000,00, acrescida de juros vencidos, nos termos constantes da petição inicial, farão V. Exas a costumada JUSTIÇA. * A Ré respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões: (…). ///// II. Questões a apreciar: Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – as questões suscitadas (que importa apreciar e decidir) são as seguintes: - Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto (importa saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre os pontos de facto impugnados, nos termos propostos pela Apelante); - Validade/invalidade do contrato de seguro (importa saber se a segurada cumpriu ou não o dever de informação que sobre si recaía quando emitiu a declaração inicial do risco, o que equivale a saber se as declarações que prestou a propósito do seu estado de saúde correspondiam à realidade e se omitiu – ou não – informações relevantes, apurando as consequências emergentes do eventual incumprimento desse dever); - Abuso de direito (importa saber se ao invocar a invalidade do contrato, a Ré actua com abuso de direito) ///// III. Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto: [1] A Autora é filha e única universal de BB, falecida no dia 18/10/2019 em virtude de doença, nomeadamente metastização hepática difusa de endocarcinoma com rápida deterioração da situação da situação clínica desde o diagnóstico. [2] CC é o tutor provisório da A. [3] BB celebrou com a R., a 24.07.2019, um contrato de seguro de vida, ao qual veio a corresponder a apólice nº ...83. [4] Foi contratado o capital no montante de 50.000,00€, em caso de morte, sendo beneficiária do mesmo a A. [5] Na Proposta de Seguro, assim como no Certificado de Seguro, representados no documento junto com a contestação sob o n.º 1, BB subscreveu, por assinatura, a declaração datada de 24/7/2019 com o seguinte teor: “As condições apresentadas neste contrato de seguro foram estabelecidas de acordo com as declarações do estado de saúde da Pessoa Segura BB à data de contratação do seguro: Declaro cumulativamente que me encontro em perfeito estado de saúde e não estar sob observação médica ou em tratamento medico regular, não ter interrompido por mais de 15 dias consecutivos, nos últimos 5 anos, a minha atividade laboral por motivos de saúde; não ter sido operado ou internado num estabelecimento hospitalar nos últimos anos; não ter fármaco dependência ou toxicomania; não ter alguma deficiência física ou funcional e nunca ter sido objeto de recusa ou agravamento de prémio aquando da subscrição de um Seguro de Vida. *Ficam excluídas de informação as seguintes cirurgias: Abcessos, Adenoidectomia, Amigdalectomia, Astigmatismo, Hérnias inguinal e Umbilical, Miopia e Parto.” [6] Mais subscreveu BB, pela mesma forma, na mesma referida Proposta de Seguro a declaração datada de 24/7/2019 com o seguinte teor: “O Tomador de Seguro e/ou a Pessoa Segura, ao assinar esta proposta, garante(m) ter declarado com exatidão todas as circunstâncias do seu conhecimento e relevantes para a apreciação do risco pela A..., independentemente de lhe serem questionadas no presente documento e declara(m) nada ter omitido que possa induzir a Seguradora em erro na apreciação do risco proposto, ainda que esta tenha sido preenchida por terceiros e por si apenas assinada. Aceita(m) que a A..., nos termos legais, invoque a anulação do contrato, em caso de incumprimento doloso, com possibilidade de retenção dos prémios pagos; ou que, em caso de negligência, possa optar entre propor a consequente alteração do contrato e do respetivo prémio, ou fazer cessar o contrato, demonstrando que em caso nenhum cobre os riscos relacionados com o risco omitido ou declarado inexatamente. A A... apreciará a presente proposta, podendo aceitá-la ou recusá-la. A sua aceitação far-se-á sempre de forma escrita, definindo garantias, seus limites e franquias. (“Proposta de Seguro para Modalidades de Prémio Fixo Nova Alteração”) O Tomador de Seguro e/ou Pessoas Segura declara também que lhe foram dadas a conhecer todas as condições que regulam este Contrato de Seguro e que recebeu a Nota de lnformação Prévia”. [7] Todavia, BB iniciara já em Junho de 2019 um quadro de astenia generalizada, perda ponderal de 5kg/1 mês, hipersudorese nocturna lombalgia e anorexia, o que a levou a recorrer, por múltiplas vezes, a serviços de urgência clínica conjunta. [8] Associadamente referia já dor epigástrica, descrita como "guinada", intermitente, mas sem resolução total, aliviado com recurso a fentanil, com irradiação dorsolombar, sem défices neurológicos associados, sem factores de alívio ou agravamento, sem relação com ingestão de alimentos. [9] De novo, por essa altura, desenvolveu ainda pirose e sensação de enfartamento precoce, que motivava ainda evicção alimentar. [10] Em 18/07/2019, BB recorreu a consulta de medicina geral e familiar, com o médico DD que, nesse dia, solicitou a realização urgente de Endoscopia Digestiva Alta, a qual se veio a realizar no serviço de gastroenterologia do Centro Hospitalar ... no dia 26/7/2019, com o diagnóstico de esofagite de refluxo (Grau A); Cárdia complacente e Gastropatia pápulo-erosiva do antro. [11] À data da solicitação do exame, 18/7/2019, foi justificada a urgência conferida ao exame pela circunstância de BB ter “Antecedentes familiares pesados de Ca Gástrico”, ter “Dor epigástrica” e “Rastreio de CCR[1]” [12] À data de 24/07/2019, BB não fez qualquer declaração que se referisse, directa ou indirectamente, aos eventos relativos a esse seu estado de saúde, referidos em 7, 8, 9, 10 e 11, nomeadamente que, por via deles, estava em observação médica, do que, por ostensivo, tinha consciência. [13] Como tal, consciente estava também de que não eram fiéis com o seu real estado de saúde as declarações que prestou a 24/07/2019, suprarreferidas em 5 e 6, declarações essas que a R. teve como fiéis e que a levaram a aceitar a proposta. [14] Se a R. tivesse conhecimento do real estado de saúde de BB à data de 24/07/2019, não aceitaria celebrar o contrato de seguro de vida. [15] A R. foi informada do óbito de BB e foram-lhe remetidos os elementos cínicos solicitados para que esta pagasse à A. aquele montante de 50.000,00. [16] A R. decidiu não pagar e não pagou à A. aquele montante de 50.000,00€, justificando tal decisão do seguinte modo: “A proposta/boletim de adesão que foi preenchida quando a Senhora D. BB fez o seguro não refletia o seu verdadeiro estado de saúde”. [17] A R. considerou, por isso, a “apólice nula”, o que também lhe comunicou em 18 de Junho de 2020. [18] Novamente interpelada pela A., através do seu mandatário, para rever a sua posição, a Ré, nada disse. [19] Antes da celebração deste contrato de seguro de vida, BB havia celebrado com a R. já um outro contrato de seguro e que tinha por objecto um seguro de vida e um seguro de doença. [20] Tal contrato teve início em 21/09/2009 com o capital subscrito de 150.000.00€ e foi anulado por falta de pagamento em 21/08/2017.
Não se julgaram provados os seguintes factos: [a] Que só em Maio de 2019 BB tivesse tomado conhecimento de que o contrato de seguro referido em [8] do rol dos factos provados, tivesse sido anulado; [b] Que foi em Maio de 2019 que BB solicitou à R., através do mediador Banco 1..., que a falta de seguro de vida fosse corrigida, tendo sido então sugerido pelo mediador que fosse subscrito um novo contrato de seguro; [c] Que foi logo nesse mês de Maio de 2019 que BB contratou com a R. o novo contrato de seguro referido em 3. do rol dos factos provados; [d] Que foi no mês de Maio de 2019 que BB tenha subscrito as declarações pré-disponibilizadas pelo mediador “Banco 1...” corporizadas no documento junto com a contestação sob o n.º 1, na parte em que representam, nomeadamente, a “Proposta de seguro” [cf. fls. 46 e verso do processo físico] e o “Certificado de Seguro” [cf. fls. 45 do processo físico]. [e] A segurada, no momento de adesão ao contrato de seguro não tinha conhecimento de padecer de alguma doença. ///// IV.
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO Conforme resulta das conclusões das alegações (onde terão que constar, obrigatoriamente, os pontos de facto impugnados), a Apelante impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos seguintes termos: a) Sustenta – cfr. conclusão 3.ª – dever julgar-se provado que: A segurada se deslocou, em data anterior a 24/07/2019, no balcão do Banco 1... da cidade ..., para subscrever um contrato de seguro de vida, no montante de €.50.000,00; b) Sustenta – cfr. conclusão 11.ª – dever julgar-se provado que: A segurada, no momento de adesão ao contrato de seguro, não tinha conhecimento de padecer de alguma doença; c) Sustenta – cfr. conclusão 12.ª – que devem ser excluídos da matéria de facto dada como assente (julgando-se, portanto, não provados) os pontos 12 e 13, ou seja: [12] Que à data de 24/07/2019, BB não fez qualquer declaração que se referisse, directa ou indirectamente, aos eventos relativos a esse seu estado de saúde, referidos em 7, 8, 9, 10 e 11, nomeadamente que, por via deles, estava em observação médica, do que, por ostensivo, tinha consciência; [13] Que, como tal, consciente estava também de que não eram fiéis com o seu real estado de saúde as declarações que prestou a 24/07/2019, suprarreferidas em 5 e 6, declarações essas que a R. teve como fiéis e que a levaram a aceitar a proposta.
Analisemos, portanto, essa matéria.
Em relação ao ponto acima mencionado sob a alínea a), argumenta a Apelante, em linhas gerais, que, de acordo com as regras de experiência e dos procedimentos habituais neste tipo de contratos, o normal é que a proposta seja subscrita antes da data em que entra em vigor o contrato de seguro. Fazendo ainda referência (sem que se percebam muito bem as exactas consequências que a Apelante daí pretende retirar em relação ao facto que estamos a analisar) a um contrato de seguro anterior e às razões que determinaram a sua extinção – aludindo, a propósito dessa matéria, ao depoimento de CC – conclui dizendo que deve julgar-se provado que a segurada se deslocou, em data anterior a 24/07/2019, no balcão do Banco 1... da cidade ..., para subscrever um contrato de seguro de vida, no montante de €.50.000,00. Não percebemos, no entanto, qual a relevância que a Apelante pretende atribuir ao facto que pretende que se julgue provado e que apenas traduz uma deslocação da segurada ao Banco 1... antes da data em que efectivamente subscreveu o contrato. Na verdade, está provado (cfr. ponto 3) – e a Apelante não impugnou – que o contrato foi celebrado em 24/07/2019 e está provado (cfr. pontos 5 e 6) – o que a Apelante também não impugnou – que as declarações constantes da proposta de seguro e do certificado de seguro, subscritas (por assinatura) pela segurada, cuja apreciação e veracidade está em causa nos autos, estão datadas de 24/07/2019. Nessas circunstâncias, não percebemos qual a relevância de a segurada ter ido (ou não) antes dessa data ao Banco para tratar do seguro. Tenha feito (ou não) essa deslocação, o certo é que o contrato de seguro foi celebrado em 24/07/2019 e as declarações aqui em causa foram efectuadas nessa mesma data e, naturalmente, a veracidade ou exactidão dessas declarações (questão que se coloca nos autos) afere-se pela situação que existia e era do conhecimento da segurada à data dessas declarações e não pela situação que existia num qualquer momento anterior em que a segurada tivesse feito um primeiro contacto tendo em vista a celebração do contrato. Assim e no que toca a essa matéria, improcede a pretensão da Apelante.
Em relação aos restantes pontos de facto – acima mencionados sob as alíneas b) e c) – argumenta a Apelante, no essencial: - Que, em face do resultado negativo do rastreio de CCR, a segurada convenceu-se de que não tinha qualquer problema de saúde e, muito menos uma doença do foro oncológico; - Que, em circunstância alguma a segurada poderia ter consciência da gravidade do seu estado de saúde; - Que, em lado nenhum dos exames de diagnóstico pedidos, ou nas consultas que antecederam a celebração do contrato de seguro se afirma ou se dá a entender por mais leve que seja a suspeita de que à segurada tivessem sido dadas informações sobre a doença e o tipo de doença de que veio a falecer; - Que, conforme resulta do depoimento da Dr.ª EE, a medicina trabalha muito “na área do cinzento, da incerteza e da probabilidade” e, portanto, não se poderia exigir que a segurada, sem formação académica alguma, pudesse, em face dos exames pedidos e dos sinais do seu corpo, suspeitar que tinha uma doença grave e que daí viria a resultar a sua morte, e muito menos quando o exame que fez de pesquisa de doença – o já indicado rastreio de CCR – deu um resultado negativo; - Que o facto de ter ido ao hospital em 25 de Julho de 2019 não é demonstrativo de que algo de grave se passava com a sua saúde, sendo que, como resulta do depoimento da testemunha FF, foi apenas uma indisposição e melhorou; - Que, conforme resulta dos depoimentos das testemunhas GG, HH e CC, a segurada tinha boa condição física e aparentava saúde; - Que, em face da prova produzida, não se pode ter como demonstrado que a segurada tivesse conhecimento da doença grave que veio a determinar o seu falecimento e, como tal, não se pode ter como demonstrado que tivesse omitido à seguradora a existência de uma doença do foro oncológico. Analisemos. É certo – como diz a Apelante – que não podemos ter como demonstrado que, à data da celebração do contrato e das declarações nele incluídas (24/07/2019), a segurada tivesse conhecimento da doença que – infelizmente – veio a determinar a sua morte ou de qualquer outra doença concreta que afectasse de modo grave a sua saúde, sendo certo que, à data, ainda não lhe havia sido diagnosticada qualquer doença e nem sequer havia ainda realizado os exames médicos que lhe foram prescritos (a EDA apenas foi realizada em .../.../2019, conforme resulta do ponto 10 e os outros exames foram realizados em data posterior). Sucede, no entanto, que, ao contrário do que parece pressupor a Apelante, aquilo que se julgou provado – nos pontos 12 e 13 – não foi que a segurada tivesse consciência da doença que veio a determinar a sua morte ou de qualquer outra; o que se julgou provado foi apenas que a segurada tinha consciência dos factos ou eventos referidos nos pontos 7, 8, 9, 10 e 11 (relacionados com diversos sintomas que a vinham afectando, com a consulta médica a que recorreu por causa deles e com a EDA que aí foi solicitada) e que, por via deles, estava em observação médica, sem que tivesse feito qualquer declaração referente a esses factos. Ora, em relação a estes factos – que foram julgados provados nos citados pontos 12 e 13 – pensamos ser inequívoco que eles resultam demonstrados. Com efeito, sendo certo que a segurada não impugnou a decisão proferida sobre os factos constantes pontos 7 a 11, temos como assente a verificação desses factos que, dada a sua natureza, não podiam deixar de ser do conhecimento da segurada. Nessas circunstâncias e sendo certo que as declarações por ela efectuadas – reproduzidas nos pontos 5 e 6 que também não foram impugnados – não fazem qualquer referência aos referidos factos (constantes dos pontos 7 a 11), apenas poderemos ter como correcta a decisão que julgou provados os factos constantes dos pontos 12 e 13. A segurada tinha efectivo conhecimento daqueles factos (sintomas que vinha apresentando, consulta médica a que havia recorrido e EDA que havia sido solicitada pelo médico) e não lhes fez qualquer referência na declaração feita aquando da celebração do contrato de seguro, declarando, pelo contrário, que estava em perfeito estado de saúde e não estava sob observação médica. Esclareça-se apenas que esse conhecimento da segurada apenas não abrangia o resultado (diagnóstico) da EDA, uma vez que esta ainda não havia sido realizada à data em que fez as declarações em causa, sendo certo, no entanto, que isso já resulta claramente da matéria de facto – mais concretamente da conjugação da data das declarações com a data de realização da EDA – sem necessidade de qualquer outro esclarecimento.
Mantém-se, portanto, a decisão proferida sobre a matéria de facto. ** DIREITO Está em causa nos presentes autos – e no presente recurso – a eventual invalidade de um contrato de seguro de vida por alegada omissão (intencional) de informações relevantes, por parte da segurada, em relação ao seu estado de saúde. A questão em análise remete-nos para o disposto nos artigos 24.º a 26.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008 de 16/04), onde se prevê o dever de informação do tomador do seguro ou do segurado – a declaração inicial do risco – e as consequências do incumprimento desse dever. Segundo o disposto no n.º 1 do citado art.º 24.º “O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. Refira-se que, como resulta do n.º 2 do mesmo artigo, esse dever de informação funciona independentemente de qualquer questionário que a seguradora eventualmente possa fornecer e, portanto, incide sobre quaisquer circunstâncias que se devam ter como relevantes para avaliação do risco e para que a seguradora possa formar, de forma esclarecida, a sua decisão de contratar, ainda que tais circunstâncias não se incluam em nenhuma das questões que tenham sido expressamente feitas (em eventual questionário) pela seguradora. Ao nível das consequências emergentes do incumprimento desse dever – e como se refere na decisão recorrida –, o regime actualmente em vigor (cfr. citados artigos 25.º e 26.º) distingue o incumprimento doloso do incumprimento negligente, determinando que, no primeiro caso, o contrato é anulável (nos termos previstos no art.º 25.º) e que, no segundo caso, a seguradora tem a faculdade de propor uma alteração do contrato em função do conhecimento que venha a adquirir da circunstância que lhe havia sido omitida/ocultada ou a faculdade de fazer cessar o contrato, caso demonstre que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente (cfr. art.º 26.º). Feitas essas considerações, regressemos ao caso dos autos.
A decisão recorrida considerou que a segurada (mãe da Autora) incumpriu o dever em questão ao prestar, aquando da celebração do contrato, declarações inexactas e intencionalmente enganadoras relativamente ao seu estado de saúde, com omissão de informações relevantes que impediram a Ré de avaliar o risco e que, caso fossem do seu conhecimento, teriam implicado a recusa de celebração do contrato. Por isso – e por ter considerado que estava em causa um incumprimento doloso – considerou que o contrato era anulável nos termos previstos no citado art.º 25.º e, portanto, atendendo à declaração que nesse sentido havia sido enviada pela Ré à Autora, concluiu que a Ré não estava obrigada a cobrir o sinistro e julgou a acção improcedente.
A Autora/Apelante discorda da decisão – pugnando pela sua revogação – sustentando, no essencial: 1. Que, ao contrário do que se considerou, o contrato é válido, não havendo razões para afirmar que a segurada tenha incumprido o dever em questão, uma vez que: a) Não ficou demonstrado que a segurada tenha omitido intencionalmente, ser portadora de uma doença do foro oncológico, sendo certo que não poderia ter consciência da gravidade do seu estado de saúde; não sabia que tivesse qualquer problema de saúde ou que padecesse de qualquer doença e muito menos sabia que padecia de uma doença (grave) do foro oncológico que conduziu à sua morte em menos de três meses; b) Não há razões para afirmar que as manifestações dadas pelo seu corpo estavam relacionadas com a doença que a veio a vitimar; c) Nenhum dos elementos existentes até à data da celebração do contrato de seguro, poderiam fazer crer à segurada que o seu estado de saúde era o que veio a verificar-se com a sua morte, sendo certo que em nenhum dos exames de diagnóstico pedidos, ou nas consultas que antecederam a celebração do contrato de seguro se afirma ou se dá a entender por mais leve que seja a suspeita de que à segurada tivessem sido dadas informações sobre a doença e o tipo de doença de que veio a falecer. d) Em lado nenhum da alegação da recorrida foi dito ou demonstrado que à declarante foi explicado o conteúdo e teor da declaração por si assinada, e muito menos que tendo-lhe sido explicado, a mesma tenha omitido, ou alterado a sua resposta. 2. Que a invocação da nulidade do contrato configura uma situação de abuso de direito, uma vez que: a) Provavelmente, e quase com toda a certeza, se não tivesse ocorrido o evento (morte da segurada), e se hoje a mesma continuasse a sobreviver, mesmo com recurso a quimioterapia e radioterapia, não deixaria a seguradora de continuar a querer receber os prémios mensais de segurada, não invocando, nunca, qualquer invalidade intrínseca do contrato; b) A omissão imputada à segurada – onde radica a eventual invalidade do contrato – só pode ser imputada à recorrida por não ter, como devia, elaborado um questionário completo, sobre o estado de saúde da segurada; não o tendo feito, conformou-se e aceitou as declarações escritas, elaboradas em papel timbrado da seguradora, e que a segurada assinou, como lhe disseram para fazer, e como é hábito fazer-se; c) No contrato de seguro, a simples omissão de respostas a perguntas feitas sobre anteriores doenças do segurado não significa que o segurado mentiu, apenas relevando para efeitos da sua anulabilidade se a seguradora provar que tal omissão foi culposa e intencional; d) Se a seguradora aceita, ou não se dá conta, como lhe era exigível, que tal omissão ocorreu, e outorga o contrato e recebe o valor do prémio não pode, aquando do acionamento do seguro, e quanto mais não seja por atuação em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, por frustração da confiança, invocar a sua anulabilidade com base naquela omissão
Analisemos então essas questões.
Cumprimento/incumprimento do dever previsto no citado art.º 24.º, n.º 1 e validade/invalidade do contrato Sustenta a Apelante, como se referiu, que não existiu qualquer incumprimento do dever em questão. Não lhe assiste, no entanto, qualquer razão. Conforme se referiu, o dever em causa incide sobre quaisquer circunstâncias que sejam do conhecimento do segurado ou tomador do seguro e que, razoavelmente, deva ter por significativas para a apreciação e avaliação do risco pelo segurador, ou seja, as circunstâncias que, aos olhos de uma pessoa razoável com conhecimentos médios, se devam ter como relevantes para que a seguradora possa formar, de forma esclarecida, a sua decisão de contratar e assumir um determinado risco e que sejam susceptíveis de influenciar essa decisão. O dever em questão tem que ser cumprido, de forma espontânea, e, portanto, independentemente de qualquer questionário que a seguradora entenda apresentar – que, conforme resulta do disposto no n.º 2 do citado art.º 24.º, não é obrigatório e que, no caso em análise, não foi apresentado – e ainda que essas informações não se incluam em nenhuma das questões que tenham sido incluídas em questionário que, eventualmente, tenha sido apresentado. Ao argumentar que a segurada não incumpriu o dever em causa – e que, como tal, não omitiu qualquer informação relevante – a Apelante argumenta como se a informação em questão (alegadamente omitida) correspondesse ao facto de padecer de determinada doença e, em particular, da doença grave que veio a determinar a sua morte. Mas, na verdade, não é isso que está em causa. É certo – como diz a Apelante – que, à data da celebração do contrato, a segurada não tinha conhecimento da doença que veio a determinar a sua morte, sendo certo que tal doença não havia sido ainda diagnosticada. E – como diz a Apelante – também não dispomos de elementos para afirmar que, à data, a segurada tivesse razões para suspeitar de que poderia padecer de qualquer doença grave, sendo certo que não sabemos quais as concretas informações e eventuais suspeitas que lhe foram transmitidas pelo médico aquando da consulta realizada em 18/07/2019 no âmbito da qual foi solicitada a realização urgente de Endoscopia Digestiva Alta. Mas, ainda que não tivesse conhecimento desses factos, a segurada tinha efectivo conhecimento de outras circunstâncias que eram relevantes e que, nessa medida, deviam ter sido transmitidas à seguradora. Com efeito, a segurada sabia – não podia deixar de saber – que vinha apresentando, há cerca de um mês, um conjunto de sintomas com algum relevo e significado (astenia generalizada, perda ponderal de 5kg/1 mês, hipersudorese nocturna lombalgia, anorexia, pirose, sensação de enfartamento precoce, que motivava ainda evicção alimentar, dor epigástrica, aliviada com recurso a fentanil, com irradiação dorsolombar, sem relação com ingestão de alimentos) que a haviam obrigado a recorrer por múltiplas vezes, a serviços de urgência clínica conjunta e que também a levaram a recorrer a uma consulta de medicina geral e familiar no dia 18/07/2019 (escassos dias antes da celebração do contrato de seguro). Perante essa situação, a segurada não estava em condições de declarar – como efectivamente declarou – que se encontrava em “perfeito estado de saúde”. A segurada estava, na verdade, com problemas de saúde; poderia até ser uma situação com pouca gravidade e de fácil resolução, mas, naquele momento, a segurada sentia-se doente e, portanto, não estava em perfeito estado de saúde. Por outro lado, apresentando aqueles sintomas – que vinham evoluindo, sem resolução, há cerca de um mês –, a segurada também sabia que ainda não havia diagnóstico e que já lhe tinha sido prescrito um exame médico para apurar as causas daqueles sintomas. Ou seja, ainda que pudesse não ter razões para pensar que estava em causa uma doença grave (ainda que a urgência do exame pedido e a circunstância de ter antecedentes familiares pesados de Ca Gástrico – antecedentes que também teria que ser do seu conhecimento – pudessem indiciar essa suspeita), a segurada também não tinha razões para pensar o contrário; o que a segurada sabia – não podia deixar de saber – é que ainda não existia qualquer diagnóstico (não se sabia ainda o que causava aqueles sintomas) e que a situação estava em investigação/observação clínica, sendo certo que havia sido solicitada a realização de exame médico (EDA) e, portanto, não estava em condições de declarar – como efectivamente declarou – “não estar sob observação médica”. Estando em causa – como estava – um contrato de seguro de vida, é evidente – para qualquer pessoa – que o estado de saúde da pessoa segura no momento da celebração do contrato é um elemento essencial para que a seguradora possa avaliar a possibilidade/probabilidade de concretização do risco que irá assumir e para formar a sua decisão de contratar. É certo, portanto, que as circunstâncias acima mencionadas – que eram do efectivo conhecimento da segurada – eram, em termos de razoabilidade, bastantes significativas para que a Ré pudesse apreciar o risco a assumir, sendo mais ou menos evidente – para qualquer pessoa, como também o seria para a segurada – que, caso tivesse conhecimento dos sintomas relevantes que a segurada vinha apresentando há cerca de um mês sem que existisse ainda diagnóstico, a Ré não teria celebrado o contrato sem que, previamente, fosse apurada a causa desses sintomas e o tipo de doença/patologia que afectava a segurada. A segurada estava, portanto, obrigada a declarar à seguradora (a Ré) as circunstâncias acima referidas e não o fez, tendo, pelo contrário, subscrito uma declaração onde declarou, em termos incompatíveis com a realidade, que se encontrava em perfeito estado de saúde e que não estava sob observação médica. Diz a Apelante que a Ré/Apelada nunca alegou ou demonstrou que o teor da referida declaração tenha sido explicado à segurada. Não percebemos exactamente quais as consequências que a Apelante pretende retirar dessa alegação, sendo certo, além do mais, que tal circunstância nunca antes havia sido alegada. Refira-se, de qualquer forma, que a referida declaração não corresponde a uma cláusula do contrato (seja ela geral ou não) que, como tal, ficasse sujeita ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (Dec. Lei n.º 446/85 de 25/10), aos deveres de comunicação e informação que aí se encontram previstos e às consequências aí fixadas para a inobservância desses deveres; a referida declaração corresponde apenas a isso mesmo, ou seja, uma “declaração” que, apesar de constar de formulário fornecido pela seguradora, é imputável ao próprio proponente que, ao apor ali a sua assinatura, a subscreve e faz sua. Vejam-se neste sentido os Acórdãos do STJ de 14-02-2017 (processo n.º 2294/12.0TVLSB.L1.S1); de 12/07/2018 (processo n.º 3016/15.9T8CSC.L1.S1) e de 17-11-2020 (processo n.º 2029/15.5T8LRA.C1.S1)[2], importando notar que, como também se considerou refere no Acórdão do STJ de 27-03-2014 (processo n.º 2971/12.5TBBRG.G1.S)[3], ainda que a declaração em questão não tivesse sido redigida pela segurada e constasse de formulário que lhe foi apresentado pela seguradora, “...a assinatura do documento tem de significar e fazer presumir o conhecimento e a aprovação do seu conteúdo e a assunção da paternidade do documento pelo assinante/ subscritor”. De qualquer forma, ainda que tal declaração fosse desconsiderada ou excluída, isso não eliminaria o facto de a segurada não ter declarado à seguradora – como lhe era imposto por lei – as circunstâncias acima referidas (os sintomas que vinha apresentando, a consulta médica a que tinha recorrido, o exame médico que tinha sido prescrito e a circunstância de não existir ainda qualquer diagnóstico), sendo certo que não existe qualquer declaração escrita nesse sentido e também não foi alegado que tais circunstâncias tenham sido declaradas verbalmente. Concluimos, portanto, em face do exposto, que a segurada violou, efectivamente, o dever que lhe era imposto pelo citado art.º 24.º, o que fez conscientemente. Refira-se que, no caso, nem sequer relevaria saber se esse incumprimento foi doloso ou meramente negligente. Tendo resultado provado que a Ré não celebraria o contrato de seguro caso tivesse conhecimento das informações que foram omitidas (referentes ao estado de saúde da segurada), a Ré/seguradora teria sempre o direito de fazer cessar o contrato e de recusar o cumprimento da obrigação de cobrir o sinistro; em caso de incumprimento doloso, o contrato seria anulável mediante declaração da seguradora ao tomador do seguro, nos termos previstos no art.º 25.º; sendo o incumprimento negligente, a seguradora tinha o direito de fazer cessar o contrato e recusar a cobertura do sinistro, nos termos previstos no art.º 26.º, n.º 1, b) e n.º 4, b). Assim, em qualquer caso, a Ré não estaria obrigada a pagar à Autora a quantia peticionada, improcedendo a acção. Improcede, portanto, a 1.ª questão suscitada pela Apelante.
Abuso de direito Sustenta a Apelante que a invocação da nulidade (anulabilidade, melhor dizendo) por parte da Ré configura uma situação de abuso de direito. Não lhe assiste razão. O art.º 334.º do CC – ao definir a situação de abuso de direito – dispõe: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Pressupondo, logica e naturalmente, a existência de um direito, o que está em causa no abuso de direito é o excesso no respectivo exercício, excesso que é delimitado/determinado em função dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. A boa-fé – subjacente ao conceito de abuso de direito –, significa que “…as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”[4], sendo que, na aplicação desse princípio, o juiz “…deverá partir das exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos”[5]. O que releva, pois, para efeitos de abuso de direito é saber se o exercício do direito corresponde ou não a uma conduta que, naquelas circunstâncias e, eventualmente, em função de comportamentos anteriores, não se pauta pela honestidade e lealdade para com a outra parte, defraudando, de algum modo, a confiança e a expectativa desta. No que respeita ao fim social ou económico do direito, importará atender ao fim (seja ele social ou económico) a que o direito está subordinado e com vista ao qual foi concedido, sendo ilegítima a “…utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução do interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”[6]. Para que se possa falar em abuso de direito, será ainda necessário que a conduta desonesta, incorrecta, desleal ou lesiva da confiança legitimamente criada na outra parte – contrária, portanto, à boa-fé – ou o excesso dos limites impostos pelo fim social ou económico do direito sejam manifestos, claros e notórios, de tal forma que o exercício do direito possa ser considerado como clamorosamente ofensivo da justiça ou sentimento jurídico socialmente dominante. Para fundamentar a existência de abuso de direito, a Apelante começa por dizer o seguinte: “Provavelmente, e quase com toda a certeza, se não tivesse ocorrido o evento (morte da segurada), e se hoje a mesma continuasse a sobreviver, mesmo com recurso a quimioterapia e radioterapia, não deixaria a seguradora de continuar a querer receber os prémios mensais de segurada, não invocando, nunca, qualquer invalidade intrínseca do contrato”. Não percebemos, no entanto, qual o fundamento dessa afirmação, ou seja, em que é que se baseia a Apelante para formular essa conclusão. Temos como certo que, enquanto permanecesse na ignorância ou desconhecimento dos factos/circunstâncias que lhe haviam sido omitidos, a Ré não invocaria a anulabilidade do contrato e, como tal, continuaria a cobrar e a receber os prémios. Todavia, resultando provado que, caso tivesse conhecimento do real estado de saúde de BB à data de 24/07/2019, a Ré não aceitaria celebrar o contrato de seguro de vida, não temos o menor fundamento para afirmar/concluir que não invocasse a anulabilidade do contrato logo que tomasse conhecimento daqueles factos e dentro do prazo que, para tal, lhe é conferido pela lei (cfr. citados artigos 25.º e 26.º). Ainda para fundamentar a existência do abuso de direito, alega a Apelante: - Que a omissão imputada à segurada – onde radica a eventual invalidade do contrato – só pode ser imputada à recorrida por não ter, como devia, elaborado um questionário completo, sobre o estado de saúde da segurada; - Que não tendo elaborado tal questionário, conformou-se e aceitou as declarações escritas, elaboradas em papel timbrado da seguradora, e que a segurada assinou; - Que a simples omissão de respostas a perguntas feitas sobre anteriores doenças do segurado não significa que o segurado mentiu, apenas relevando para efeitos da sua anulabilidade se a seguradora provar que tal omissão foi culposa e intencional; - Que, se a seguradora aceita, ou não se dá conta, como lhe era exigível, que tal omissão ocorreu, e outorga o contrato e recebe o valor do prémio não pode, aquando do acionamento do seguro, e quanto mais não seja por atuação em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, por frustração da confiança, invocar a sua anulabilidade com base naquela omissão, invocando, a propósito, um Acórdão da Relação de Coimbra de 10/09/2019 (proferido no processo n.º 2029/15.5T8LRA.C1). Relativamente à situação – a que se reporta a Apelante e o Acórdão citado – em que está em causa a omissão de resposta a uma questão concreta que havia sido inserida em questionário elaborado pela seguradora, importa dizer que nem sequer seria necessário recorrer ao abuso de direito para concluir que, a não ser que existisse dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, a seguradora não podia invocar a anulabilidade do contrato, uma vez que, em face do regime legal actualmente vigente (aplicável à situação dos autos), isso resulta directamente da lei (cfr. art.º 24.º, n.º 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro). Tal solução é, aliás, facilmente compreensível, uma vez que, existindo um questionário, a seguradora, se actuar com a devida diligência, está em condições de detectar a existência de uma omissão na informação solicitada e, portanto, se, ainda assim, aceita celebrar o contrato sem solicitar a informação omitida, é justo que não possa depois invocar essa omissão para o efeito de invocar a anulação do contrato. Sucede, no entanto, que não é essa a situação dos autos. Na situação dos autos, não está em causa a omissão de resposta a uma questão concreta que tivesse sido inserida em questionário elaborado pela seguradora, uma vez que não existia qualquer questionário, importando notar que nada na lei impõe ao segurador a obrigação de elaborar um questionário para recolha da informação relevante, resultando claramente do disposto no n.º 2 do citado art.º 24.º que tal questionário é facultativo (o segurador pode apresentar tal questionário, mas não é obrigado a tal). Ora, se tal questionário não é obrigatório, não faz sentido dizer – como diz a Apelante – que a omissão imputada à segurada – onde radica a eventual invalidade do contrato – só pode ser imputada à recorrida por não ter, como devia, elaborado um questionário completo, sobre o estado de saúde da segurada. A Ré não tinha, como se referiu, a obrigação de formular qualquer questionário; era a segurada que tinha o dever de informar todas as circunstâncias relevantes sobre o seu estado de saúde e, portanto, é a esta – e não àquela – que é imputável a omissão daquela informação, importando notar que, ao contrário do que acontece quando existe um questionário (em que o segurador está em condições de detectar as omissões, imprecisões ou contradições no seu preenchimento), quando tal questionário não existe – reafirmamos que não é obrigatório que exista –, o segurador não tem forma de saber que foi omitida alguma informação relevante. É certo – como diz a Apelante – que, não tendo elaborado tal questionário, a Ré conformou-se e aceitou as declarações escritas, elaboradas em papel timbrado da seguradora, e que a segurada assinou, sendo certo, no entanto, que aquilo que constava dessas declarações (em que a Ré se baseou para fundar a decisão de contratar) é que a segurada se encontrava em perfeito estado de saúde e não estava sob observação médica, o que, conforme se referiu, não correspondia à verdade. Não encontramos, portanto, qualquer fundamento para considerar que a Ré actua com abuso de direito. A Ré limitou-se a exercer o direito que a lei lhe confere perante uma declaração da segurada em que havia fundado a sua decisão de contratar e que, conforme se veio a constatar, não correspondia à verdade, sem que tenha resultado provado qualquer comportamento da Ré que, de algum modo, evidenciasse a sua aceitação e conformação com tal situação e que, de algum modo, pudesse ter criado qualquer confiança ou expectativa da outra parte que ficasse defraudada pela invocação da anulabilidade do contrato. Sobre essa matéria e em apoio do que dissemos, vejam-se os seguintes Acórdãos do STJ: · O Acórdão de 11-11-2020 (processo n.º 3471/17.2T8VNG.P1.S1)[7], em cujo sumário se lê: “Não constitui abuso de direito o facto de a seguradora ter aceitado celebrar o contrato de seguro de vida com base nas declarações prestadas pelo autor/segurado e, anos mais tarde, resolver este contrato com fundamento no disposto no artigo 429º, do Código Comercial, por, através da análise da documentação junta à participação de sinistro por invalidez que lhe foi feita pelo autor, ter tomado conhecimento que este, aquando da subscrição da proposta de seguro, omitiu que já tinha sofrido, anteriormente, um enfarte agudo do miocárdio, com colocação de stent, porquanto era sobre o autor que recaía o ónus de informar, com verdade, a seguradora desses factos e foi ele que, ao omiti-los, criou na seguradora a confiança de que ele não sofria de qualquer doença anterior, influenciando, deste modo, a sua decisão de contratar”; · O Acórdão de 19-06-2019 (processo n.º 4702/15.9T8MTS.P1.S1)[8], em cujo sumário se lê: “Não é de assacar qualquer violação de boa–fé contratual à conduta da ré seguradora, nem se vislumbra que exista também abuso de direito na conduta que praticou, pois, não constitui abuso de direito o facto de a seguradora, num dado momento inicial e sem qualquer verificação sobre informações do segurado: - não ter solicitado a apresentação de qualquer exame médico ou informação clínica para a celebração do contrato de seguro e nem ter exigido a realização de exames médicos em serviços clínicos por si contratados”; · O Acórdão de 02-12-2013 (processo n.º 2199/10.9TVLSB.L1.S1)[9], em cujo sumário se lê: “Não configura abuso do direito da seguradora o facto de, num dado momento inicial e sem qualquer verificação sobre informações do segurado, ter aceite o contrato de seguro e só depois de lhe ter sido comunicado um sinistro ter investigado as referidas informações, detectando então omissões e falsas omissões...”.
Em face de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida. ****** SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção): (…). ///// V.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves) (José Avelino Gonçalves) (Paulo Correia)
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