Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
128/23.9GBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: OBJECTO DO PROCESSO
VINCULAÇÃO TEMÁTICA AO OBJETO DO PROCESSO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 32.º, N.º 5, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 1.º, N.º 1, ALÍNEA F), 303.º, 309.º, 340.º, N.º 1, 358.º, N.ºS 1 E 2, 359.º, 379.º, N.º 1, ALÍNEA B), 386.º, N.º 2, E 389.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – Devido à estrutura acusatória do nosso processo penal, a actividade cognitiva e decisória do tribunal penal não pode sair fora dos limites traçados pela acusação, sob pena de nulidade, salvo nas situações permitidas por lei e respeitadas as condições nela estabelecidas.
II – É, ainda, dentro dos limites da acusação que se define a extensão do caso julgado, porque o tribunal deve apurar tudo o que diga respeito a esse objecto de uma forma esgotante, resultando que, se o não tiver apurado, tudo se passa como se o tivesse sido, pelo princípio da consunção.
III – Se nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime imputado constarem da acusação o juiz deve intervir, reformulando-a ou mesmo acrescentando os factos novos que emergirem da discussão da causa, se não alterarem o objecto do processo, se forem relevantes à decisão e se tiver sido comunicada ao arguido essa alteração, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º do C.P.P.
IV – Em processo sumário o Ministério Público pode optar por apresentar acusação ou substituir essa apresentação pela leitura do auto de notícia e, se julgar insuficiente a factualidade constante deste auto, pode proferir despacho a completá-la antes da apresentação a julgamento, caso em que é a factualidade constante do auto de notícia completada pelo despacho do Ministério Público a definir ou delimitar o objeto do processo e, portanto, a fixar os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal.
Decisão Texto Integral: *

… o arguido … foi condenado pela prática, em autoria material e de forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo disposto no artigo 292.º nº 1 e 69.º n.º 1, al. a), do Código Penal, numa pena de 07 (sete) meses de prisão e na pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor pelo período de 1 (um) ano.

Foi, ainda, determinada a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, sob vigilância eletrónica (OPHVE) sujeita às regras de conduta de o arguido: a) Fixar a sua residência na morada indicada; b) Manter boa conduta e integração a nível sociofamiliar e dentro dos parâmetros pró-sociais; c) Aceitar a tutela dos serviços de reinserção social da área da sua residência, cumprindo os deveres inerentes à fiscalização e ao controlo do integral cumprimento da pena de permanência na habitação, que lhe sejam comunicados, sujeita a regras de conduta; d) Aceitar a sua referenciação para unidade de saúde (consulta de alcoologia) para despiste de problemas de alcoolismo e submissão a tratamento se tal for determinado pelos serviços competentes se este der/mantiver essa autorização expressa.

… foram autorizadas genericamente saídas ao arguido pelo tempo estritamente necessário por razões de saúde ou necessidades de assistência médica; para a presença em diligências judiciais ou outras de natureza similar de urgência e imprevistas que a EVE - Equipa VE de ... – repute de razoáveis e necessárias e pelo tempo estritamente necessário.

Uma vez que o arguido e o agregado familiar também dependem dos proventos do trabalho do arguido, foi autorizado que o mesmo mantenha atividade profissional regular - de segunda a sexta feira – …

Inconformado, recorreu o arguido formulando as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«…

B. A douta sentença recorrida apresenta uma originalidade a ponto de no tocante aos factos provados se mostrar muito mais do que aquilo que constituía a douta acusação pública … o Tribunal a quo foi mais longe do que constava em tal auto de notícia, conforme factos dados por provados 2.1.4 e 2.1.5, decorrendo do teor das actas das várias sessões de audiência de discussão e julgamento que nunca foi comunicada qualquer alteração, substancial ou não, de factos, com preclusão de contraditório;

C. A factualidade dada por assente sob os números 2.1.4 e 2.1.5 é assim inovatória, tendo o recorrente sido condenado por factos pelos quais não estava acusado …, sendo tal adição não previamente comunicada factor gerador de nulidade decisória, nos termos da alínea b) do art. 379º CPP, a qual expressamente se invoca por violação do art. 358º n.º 1 CPP;

D. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre tal concreta factualidade vertida no auto de notícia, … quando devia ter sido dado como não provado que o arguido tenha sido interceptado no exercício da condução e que tenha sido interceptado na via pública, …

E. Para a determinação da dosimetria penal o Tribunal a quo, a fls. 9 segundo parágrafo, refere que o arguido foi encontrado depois de uma condução errática num caminho e depois num terreno agrícola, após galgar um desnível da estrada de mais de um metro de altura mas tal condução errática e declive/desnível em um metro de altura não constam sequer da matéria de facto dada por provada, não podendo tal circunstancialismo, inovatório e não previamente comunicado, ser valorado em seu prejuízo!

F. O ponto de facto dado por provado 2.1.6, resultante do teor do douto relatório social junto aos autos, deve ser completado, …

I. A fls. 4 de douta sentença recorrida o Tribunal a quo refere que “A taxa de alcoolémia de que o mesmo era portador mostra-se compatível, de acordo com as regras da experiência com o dolo direto dos factos (art. 14.º n.º 1 do CP). Sem que se vislumbrem causas de exclusão a culpa ou da sua ilicitude.” mas, salvo o devido respeito, com semelhante taxa de alcoolémia não pode haver dolo directo dos factos pois inexistirá consciência ou discernimento plenos, …

K. Ao nível da fundamentação para a dosimetria penal e natureza da pena o Tribunal a quo a fls. 13, penúltimo parágrafo, refere “A personalidade evidenciada pelo arguido tem-se revelado algo avessa a imposições jurídico-penais, como o demonstram as suas sucessivas condenações inscritas no certificado do registo criminal em menos de dois anos; reveladoras de uma certa indiferença perante uma situação de mera ameaça de reclusão.” mas, salvo o devido respeito, não pode o Tribunal a quo suportar tal consideração quando o arguido nunca foi condenado em qualquer pena suspensa na sua execução e face à qual houvesse tal ameaça de reclusão, havendo contradição insanável com a matéria de facto dada por provada …

L. Refere o Tribunal a quo que as sucessivas condenações são “em menos de dois anos”, … da consulta ao certificado de registo criminal do arguido ressalta, cristalinamente, que a data dos factos relativos à primeira condenação, sofrida nos autos de processo 266/20...., é de 25 de  julho de 2020, …

M. Para efeitos da determinação da dosimetria da pena acessória o Tribunal a quo alicerçou a convicção também na “sua postura em audiência (não prestou declarações ou emitiu juízo critico para o sucedido)” mas se tal é válido no tocante à não prestação de declarações em audiência de discussão e julgamento, não deixa de não ser totalmente verdade na parte em que o douto relatório social contém declarações do arguido e permite vislumbrar o que o mesmo pensa dos factos …

N. Julga-se existir contradição insanável entre os dois trechos decisórios constantes do dispositivo sob os pontos 5.12 e 5.13, a fls. 17, que se mostram em mútua exclusão, …

O. … o arguido conduziria o veículo num caminho junto ao n.º ...5 da Rua do ..., não tendo sido interceptado nem visto a conduzir por qualquer elemento policial …

P. Não teve lugar qualquer detenção ou fiscalização no exercício da condução numa via pública ou equiparada …

Q. Mostra-se imputada uma condução pelas 07h10 mas a verdade é que o teste se mostra datado das 07h50, com dilação temporal de 40 minutos, não podendo ser condenado pela condução às 07h10 com tal taxa de álcool …

U. Não poderá constituir fundamento de agravação da pena a existência de antecedentes criminais pelo mesmo crime pois tal existência já foi valorada negativamente/em desfavor sempre em prejuízo do arguido: …

V. Mostra-se inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, legalidade e proibição da dupla valoração, o entendimento e dimensão normativa do art. 71º n.º 2 f) CP no sentido “Para efeitos de determinação da medida da pena/dosimetria penal pode o Tribunal atender novamente aos antecedentes criminais do arguido quando os já tenha valorado negativamente/em seu desfavor na operação anterior de escolha da natureza da pena e opção por pena privativa da liberdade, com afastamento de pena de multa”;

W. No tocante à pena acessória, … não mostra proporcional nem adequada …

Z. Temos por violados os princípios da igualdade, proporcionalidade bem como do carácter de ultima ratio do Direito prisional, … quando a danosidade material se mostra in casu diminuta …

…».

Notificado respondeu o Ministério Público …

Neste Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer  …

Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido exercido o contraditório.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

ÂMBITO DO RECURSO

Nos autos são as seguintes as QUESTÕES a resolver:

- A invocada nulidade por força da alteração não substancial dos factos;

- A omissão de pronúncia;

- O erro de julgamento;

- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável na fundamentação e o erro notório na apreciação da prova;

- A violação do princípio in dubio pro reo;

- O erro na aplicação do direito aos factos;

- O excesso das penas aplicadas.


II. Sentença recorrida (transcrita na parte ora relevante)

2.1. Factualidade provada

2.1.1. No dia 08 de abril de 2023, cerca das 07 horas e 10 minutos, o arguido … seguia aos comandos do veículo ligeiro de passageiros …, num caminho junto ao n.º ...5 da Rua …, após ter ingerido bebidas alcoólicas que o viriam a colocar com uma taxa de álcool de 2.171 gramas por litro de sangue (TAS).

2.1.2. Ao fazê-lo o arguido agiu voluntária e conscientemente …, conhecendo o carácter ilícito da sua conduta, o que conseguiu e desejou.

2.1.3. Bem sabendo da censurabilidade criminal da sua conduta, o que não o demoveu de atuar do modo descrito.

2.1.4. O arguido nas circunstâncias mencionadas em 2.1.1) foi encontrado no interior da sua viatura sozinho, no lugar do condutor, com evidente perda de equilíbrio, de estabilidade emocional e um forte odor a álcool.

2.1.5. A viatura automóvel por si conduzida viria a ser imobilizada por si num local acessível a partir da estrada nacional, por uma rua e caminho acessível ao público ali existente e de onde proveio, cujas margens que delimitavam o traçado iria galgar e assim atascar a viatura conduzida num terreno de natureza agrícola e de cultura ali existente, onde viria a ser detido.

2.1.7. São conhecidos ao arguido os seguintes antecedentes criminais:

a) condenado por sentença transitada em julgado a 05.05.2021 pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 7,00 € e na pena de 4 M e 15 D de inibição de conduzir, declaradas extintas pelo cumprimento.

b) condenado por sentença transitada em julgado a 05.01.2022 pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 6,50 € e na pena de 6 M de inibição de conduzir, declaradas extintas pelo cumprimento.

c) condenado por sentença transitada em julgado a 28.11.2022 pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e um crime de violação de proibição, imposições e interdições  na pena única de 170 dias de multa à taxa diária de 7,00 € e na pena de 8 M de inibição de conduzir, declarada extinta pelo cumprimento a pena de multa.
*

».


III. Apreciando e decidindo


Insurge-se o arguido recorrente contra a sentença recorrida alegando que a matéria de facto provada sob os números 2.1.4 e 2.1.5 é «inovatória», face ao que «cristalinamente definida pelo teor do auto de noticia».

Concretiza o arguido recorrente que, enquanto o auto de notícia indica «a via pública como local de prática dos factos», imputando-se «a condução na data, hora e local dos factos» bem como «a interceção no exercício da mesma», a sentença refere «perda de equilíbrio, forte odor a álcool ou perda de estabilidade emocional», e que o arguido «foi detido num terreno agrícola e com o veículo imobilizado e alegadamente atascado».

No entender do arguido recorrente, tal «adição» que é relevante não lhe foi previamente comunicada, pelo que o Tribunal recorrido incorreu em violação dos princípios do «contraditório» e da «vinculação temática ao objeto do processo», e infringiu o disposto no n.º 1 do art.º 358.º do CPP (ou Código de Processo Penal).

Conclui o recorrente que a sentença se mostra inquinada da «nulidade decisória», nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 379º do mesmo diploma legal, vício este que «expressamente invoca».

A primeira das questões a decidir é assim, a da invocada nulidade por força da alteração não substancial dos factos.

Vejamos.

Nos termos do n.º 5 do art.º 32.º da nossa Constituição da República (CRP), o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

Do ponto de vista do arguido «a delimitação do objeto do processo está relacionada fundamentalmente com todas as garantias de defesa», «permitindo-se-lhe uma defesa eficaz, subordinada aos princípios do contraditório e da audiência» - Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 13.10.2011, no processo 141/06.0JALRA.C1.S1 (rel. Cons. Rodrigues da Costa).

Num processo penal de estrutura acusatória, é a acusação é que define o objeto do processo.

São os factos narrados na acusação, imputados a um concreto arguido e que constituem o crime, a fixar o campo no interior do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua atividade cognitiva e a sua atividade decisória.

É, portanto, a acusação que fixa os limites da atividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum - Cf. citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13.10.2011.

Desde logo, a atividade do tribunal penal, consubstanciada na investigação e prova de determinados factos não pode sair fora dos limites traçados pela acusação, sob pena de nulidade, salvo em certas situações permitidas por lei em que, respeitadas certas condições, se pode proceder a uma alteração daqueles factos (arts. 303.º, 309.º, 358.º e 359.º, entre outros, do CPP).

Por seu turno, a atividade decisória do tribunal também tem de se confinar ao objeto da acusação (art.º 379.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma legal).

Encontramo-nos perante a denominada vinculação temática do tribunal, da qual derivam os princípios da identidade (segundo o qual o objeto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou da indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente). É ainda dentro dos limites da acusação que se define a extensão do caso julgado, visto que o tribunal deve apurar tudo o que diga respeito a esse objeto (aos factos que dela constam e são imputados ao arguido) de uma forma esgotante, sendo certo que, se o não tiver apurado, tudo deve passar-se como se o tivesse sido, segundo o designado princípio da consunção - Cf. José de Figueiredo Dias , Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 145.

Portanto, tendencialmente, realizada a audiência de julgamento, a decisão final do tribunal pronuncia-se sobre se os concretos factos narrados na acusação devem ser tidos como provados ou não provados, quer na sua dimensão objetiva, quer subjetiva, subsumindo-os ou não ao tipo ou tipos legais de crime correspondentes (os indicados na acusação), extraindo as consequências jurídicas compatíveis, isto é, condenando ou absolvendo o arguido.

Nisto reside a solução jurídica do caso sub judice, isto é, daquele concreto pedaço de vida que constitui o objeto do processo - Cf. citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13.10.2011.

Contudo, embora o nosso processo penal seja de estrutura basicamente acusatória, ele vem integrado por um princípio de investigação (art.º 340º, n.º 1 do CPP), «de modo a proporcionar, nos limites do possível, a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 11.03.2019, no processo 3212/18.7T8BRG.G1 (rel. Des. Ausenda Gonçalves).

Pode suceder que nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime imputado constem, desde logo, da acusação, justificando-se que o juiz intervenha excecionalmente na narrativa dos factos da acusação, reformulando-a ou mesmo acrescentando os factos novos que emergirem durante a discussão da causa e que traduzam alteração da anterior descrição

Trata-se de matéria é regulada nos artigos 303.º, 358.º e 359.º do CPP que, possibilitam «a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo simultaneamente os direitos de defesa do arguido e o processo justo» e que disciplinam a «alteração substancial» e «alteração não substancial» de factos- Cf. em sentido aproximado o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11.03.2019).

Na definição constante do artigo 1.º, n.º 1, f), considera-se «alteração substancial dos factos» «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

A «definição de «alteração substancial», e por exclusão de «alteração não substancial» está vinculada à construção da garantia e da efetividade do direito de defesa» - Cf. António Henriques Gaspar, em Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira, António Pires Henriques da Graça, Almedina, 2002, 4.ª edição revista, pág. 16.

Concretizando, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 21.03.2007, no processo 07P024 (rel. Conselheiro Henriques Gaspar):

«Alteração substancial dos factos” significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa.

É este o sentido da definição constante do artigo 1º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal para «alteração substancial dos factos», que se apresenta, assim, como um conceito normativamente formatado: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

Já a alteração não substancial de factos define-se pela negativa, sendo, portanto, aquela que não tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação do limite máximo da pena aplicável, pressuposta, evidentemente, a sua relevância para a decisão da causa.

«“Alteração não substancial” constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa» - Cf. referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 21-03-2007.

            Nos termos do art.º 359.º do CPP:

«1-A alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância;

2- A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

3- Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4- Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário».

Se a alteração dos factos for não substancial, isto é, se não determinar uma alteração do objeto do processo, o tribunal pode investigar e integrar no processo os factos que não constem da acusação ou da pronúncia e que tenham relevo para a decisão da causa.

No entanto, exige-se, neste caso, que ao arguido seja comunicada a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (n.º 1 do artigo 358.º), ressalvando-se os casos em que a alteração derive de factos alegados pela defesa (n.º 2).

O artigo 379.º, n.º 1 estabelece as situações em que uma sentença é nula, sendo uma delas, no que ora interessa, a prevista na sua alínea b), o que sucederá quando se «condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».

«Ínsito a tais preceitos encontra-se subjacente o princípio do contraditório, o qual, encarado no ponto de vista do arguido, pretende assegurar os seus direitos de defesa com a abrangência imposta pelo artigo 32.º, nºs 1 e 5 da Constituição da República, no sentido de que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão deve ser proferida, sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efetiva possibilidade de ser contestada ou valorada pelo sujeito processual contra o qual aquelas são dirigidas(Cfr. Parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81, Volume XVI, pág. 147.)» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 09.03.2022, no processo 6579/16.6T9LSB.L2 (Des. Rui Teixeira).

Pretende-se evitar uma decisão surpresa, que contrarie o princípio do acusatório e ponha em causa as garantias de um processo leal e equitativo.

«O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa do arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que não lhe foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, que venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender» - Cf. Oliveira Mendes, em Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira, António Pires Henriques da Graça, Almedina, 2002, 4.ª edição revista, pág. 1111.

Como pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 72/05: «Em suma: decisivo para aferir da compatibilidade de uma determinada interpretação normativa dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal com a Constituição é, como se concluiu no Acórdão n.º 674/99, a questão de saber se essa interpretação normativa impede a possibilidade de uma defesa eficaz do arguido. Como então se afirmou, resumindo a anterior jurisprudência do Tribunal sobre a questão, “erige-se assim em critério orientador a defesa eficaz do arguido, permitindo que ele tome conhecimento das alterações de factos que sejam relevantes do ponto de vista daquela defesa».

Temos, portanto, que, «em cada caso haverá que determinar se ocorre uma alteração de factos e se, ocorrendo alteração – que a lei permite, nos referidos moldes – é substancial ou não substancial, desencadeando, perante essa definição, os mecanismos legais previstos para assegurar o exercício dos direitos de defesa» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 22.03.2023, no processo 791/16.7PBLRA.C1 (rel. Cristina Branco).

E assim se compreende que «a alteração dos factos que desencadeia a necessidade de comunicação a que alude o artigo 358.º n.º 1 do Código de Processo tem que ser relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa» - Cf. citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 22.03.2023.

Importa sempre «distinguir, em função dos casos concretos, aquelas situações em que a omissão da comunicação impede a possibilidade de defesa eficaz do arguido, daquelas outras em que tal omissão não tem qualquer impacto negativo na estratégia de defesa do arguido» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10.11.2021, no processo 509/16.4GCVIS.C1 (rel. Des. Paulo Guerra).

«A concretização dos elementos úteis para a definição do que se deverá entender por “factos relevantes para a decisão” pode validamente encontrar-se por recurso ao elenco das questões que imperativamente são objeto de deliberação do tribunal e abordadas na sentença, em obediência ao disposto nos artigos 368º, nº 2, alíneas a) a f) e 369º, ambos do Código de Processo Penal (vide, neste sentido, mas restrito ao primeiro dos artigos citados, Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 03-02-2010, rel. Custódio , in www.dgsi.pt).

Assim, terão de ser comunicados ao arguido, para efeito de eventual defesa, os novos factos importantes ou relevantes para concluir se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, se o arguido atuou com culpa, se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa, se se verificam quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança, se se verificam os pressupostos de que depende o arbitramento de uma indemnização e, por último, mas seguramente não menos importante, para a escolha da espécie e determinação da medida concreta da sanção a aplicar» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 20.09.2017, no processo 119/12.5SLLSB.L1-3.

Dito isto.

No nosso caso, encontramo-nos perante a forma de processo sumário correspondente a um processo acelerado quanto aos prazos aplicáveis e simplificado quanto às formalidades exigíveis.

Como princípio geral, vigora a redução dos atos e termos do julgamento ao mínimo indispensável ao conhecimento e boa decisão da causa (artigo 386.º, n.º 2 do CPP).

Assim, o Ministério Público pode optar por apresentar a acusação ou por substituir essa apresentação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção (art.º 389.º, n.º 1 do CPP).

E, se julgar insuficiente a factualidade constante do auto de notícia pode proferir despacho a completá-la, antes da apresentação a julgamento, sendo tal despacho igualmente lido em audiência (cf. art.º 389.º, n.º 2, do mesmo diploma).

Tal como o fez no caso dos autos, em que, o Ministério Público, usando a faculdade prevista no art.º 389º nº 1 do CPP, substituiu a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia elaborado pela GNR ..., acrescentando apenas o designado elemento subjetivo

Será, então, a factualidade constante do auto de notícia completada pelo despacho do Ministério Público a definir ou delimitar o objeto do processo, e, portanto, a fixar os limites da atividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum.

Ora, como salienta o Digno Procurador Geral Adjunto no seu douto parecer:

«os factos essenciais que se retiram do auto de notícia/acusação - e portanto aqueles pelos quais o arguido, em princípio, deveria ser julgado - são os seguintes:

i. data da ocorrência: …

ii. local dos factos: …

iii. veículo interveniente: …

iv. TAS apresentada (após realização de teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue): pelo menos 2,171 g/l (valor respondente à TAS de 2,36 g/l registada, deduzido o valor de erro máximo admissível);

constando do espaço desse auto destinado à “Descrição dos Factos”, no que mais releva, o seguinte:

“Na data, horal e local mencionados nos autos, o ora arguido com Carta de Condução Nº …, conduzia o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula … tendo sido intercetado em ação de fiscalização de trânsito pelo subscritor”.

Mais se retira desse auto de notícia que o agente autuante (…) teve conhecimento direto dos factos, tendo presenciado a infração e que a detenção tinha sido efetuada em flagrante delito».

Por outro lado, lida a sentença recorrida verificamos que se provaram os seguintes factos (para o que ora releva):

«2.1.1. No dia … o arguido … seguia aos comandos do veículo ligeiro de passageiros …, num caminho junto ao n.º ...5 da Rua do ..., …, após ter ingerido bebidas alcoólicas que o viriam a colocar com uma taxa de álcool de 2.171 gramas por litro de sangue (TAS).

2.1.4. O arguido nas circunstâncias mencionadas em 2.1.1) foi encontrado no interior da sua viatura sozinho, no lugar do condutor, com evidente perda de equilíbrio, de estabilidade emocional e um forte odor a álcool.

2.1.5. A viatura automóvel por si conduzida viria a ser imobilizada por si num local acessível a partir da estrada nacional, por uma rua e caminho acessível ao público ali existente e de onde proveio, cujas margens que delimitavam o traçado iria galgar e assim atascar a viatura conduzida num terreno de natureza agrícola e de cultura ali existente, onde viria a ser detido».

Como é bom de ver, os factos descritos sob os pontos 2.1.4 e 2.1.5 constituem uma alteração face ao que resultava do auto de notícia e do despacho de aditamento do Ministério Público.

Manifestamente não nos encontramos perante uma alteração substancial de factos, por não ter tenha como efeito nem a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

No entanto, os novos factos são relevantes por, tal como se escreve no parecer do Digno Procurador Geral Adjunto «constituirem um “plus” não desprezível no agravamento da responsabilidade do arguido, de que o mesmo não foi antecipadamente informado para que, se o quisesse fazer, preparasse a sua defesa.

Não é a mesma situação o arguido conduzir na via pública um veículo automóvel em estado de embriaguez e ser intercetado pelas autoridades numa normal ação de fiscalização de trânsito, sendo detido em flagrante delito - que era a factualidade que, em suma, decorria do auto de noticia/acusação - e depois concluir-se que o mesmo, afinal, para além disso, nessa sequência e nesse estado:

Aliás, Tribunal recorrido entendeu que estes factos eram relevantes:

- Seja para considerar regular a sujeição do arguido a teste de alcoolemia, mencionando que se mostrava «regular a sujeição do arguido a teste de alcoolemia até porque o local onde o mesmo imobilizara a viatura indiciava uma desorientação ou perda de controlo da viatura compatível com uma situação de despiste ou de acidente de viação, a respeito do qual é sempre sujeito, obrigatoriamente, a teste de alcoolémia (art. 156.º n.º 1 do CE)»;

- Seja para a escolha da pena de prisão, apreciando o «desnorte em que foi encontrado» (o arguido) «na sua viatura, num terreno rural, após sair de uma via afeta ao trânsito público, onde a circulação automóvel não se pode fazer»);

- Seja para a determinação da pena de prisão, ponderando que o «arguido é encontrado depois de uma condução errática que o conduzirá a um caminho afeto ao público e depois a um terreno agrícola, após galgar um desnível da estrada de mais de um metro de altura»;

- Seja na fixação da medida da pena acessória, referindo as «concretas circunstâncias em que foi encontrado a exercer a condução (terreno agrícola e fora de estrada».

Portanto, encontramo-nos perante factos distintos que não constituem meras «concretizações» ou «especificações» do previamente imputado, antes relevando para a preparação e organização da defesa do arguido.

Nestes termos, a sentença destes autos evidencia uma alteração não substancial dos factos , pelo que devia ter havido comunicação em obediência ao disposto no artigo 358.º, n.º 1 do CPP.

Assim não procedeu o tribunal recorrido e a alteração são substancial dos factos não pode deixar de ser considerada como uma decisão surpresa, que contraria o princípio do acusatório e põe em causa as garantias de um processo leal e equitativo.

A falta dessa comunicação implica a nulidade da sentença, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, tal como tempestivamente suscitada em recurso.

Uma vez que os factos aditados fundaram o juízo relativamente à regularidade da sujeição do arguido a teste de alcoolémia, encontramo-nos perante uma nulidade total (e não parcial) da sentença, o que se impõe declarar, devendo ser reaberta da audiência de julgamento, a fim de ser efetuada a comunicação omitida e concedido prazo para a defesa, com eventual produção de prova e novas alegações, sendo, depois, proferido nova sentença.

Em face da invalidade da sentença, fica prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas no recurso.


IV. Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar a nulidade da sentença recorrida, determinando a reabertura da audiência a fim de ser comunicada a alteração não substancial dos factos e, se requerido, concedido prazo para a defesa nesse âmbito, após o que deverá ser proferida nova sentença.

Sem tributação.

Coimbra,

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

Alexandra Guiné (relatora)

Rui Lima (adjunto)

José Eduardo Martins (adjunto)