Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1142/22.7JACBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: INSTRUÇÃO
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
LEI DE PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS
Data do Acordão: 11/08/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 20.º, N.º 4, E 32.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 118.º, N.ºS 1 E 2, 123.º, 309.º, N.º 1, 310.º, 374.º, N.º 2, 379.º, 399.º, 414.º, N.º 2, E 420.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: 1. Sendo constitucionalmente admissível que o legislador possa determinar, no artigo 310º, nº 1 do CPP, a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, quando opta por essa solução em nome da celeridade processual, revela-se perfeitamente coerente que essa opção se estenda às decisões sobre questões prévias a esse despacho, as quais apenas nele se repercutem.
2. Parece ter sido aqui ideia mestra do nosso sistema processual penal preferir prescindir de um segundo grau de jurisdição para assegurar uma maior celeridade processual, dando-se assim melhor e maior cumprimento do artigo 20º, nº 4 da CRP.
3. Esta irrecorribilidade do despacho de pronúncia na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais não tem o sentido de vedar, por efeito de caso julgado (nem mesmo sob a forma de caso julgado rebus sic stantibus) a posterior cognição de tais matérias pelo tribunal de julgamento.
4. O disposto no artigo 379º do CPP, relativo à nulidade da sentença, não é aplicável aos despachos, designadamente aos despachos de pronúncia ou de não pronúncia, o mesmo acontecendo com o disposto no referido artigo 374º do CPP, relativo aos requisitos da sentença, entre os quais surge o dever de fundamentação (art.º 374º, nº 2, do CPP).
5. Não se tratando de questão de conhecimento oficioso, o conhecimento de irregularidades processuais não compete ao tribunal de recurso sem que, previamente, houvesse sido suscitada na 1ª instância.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

RECURSO Nº 1142/22.7JACBR-C.C1
Instrução
Nulidade da acusação
Lei de Protecção de Testemunhas



            I - RELATÓRIO
           
           1. O DESPACHO RECORRIDO

… foi proferido despacho com a referência nº 91859388, datado de 19 de Julho de 2023, com o seguinte teor ([1]): 
«(…)
III Da nulidade da acusação:
Em sede de instrução, antes de se pronunciar pela suficiência ou insuficiência dos indícios … o juiz deve conhecer da regularidade do processo, da existência dos necessários pressupostos processuais …, ou da ocorrência de vícios que impeçam aquele julgamento ou inquinem o próprio juízo de indiciação que a pronúncia consubstancia …
É justamente a esta necessária apreciação preliminar sobre a regularidade do processo que se refere o nº 3 do artº 308º do CPP, …

A decisão sobre as questões incidentais corresponde, pois, à ideia de saneamento do processo, …
É pois enquanto questão prévia que terá de ser apreciada a invocada nulidade da acusação.
Defendem os arguidos que a acusação é nula porque, não tendo a sua madnatária sido notificada do processo complementar para apreciação do pedido de não  revelação de identidade para poder exercer o direito ao contraditório previsto no artº 32º nº 5 da CRP e tendo a decisão sido proferida sem a convocação da manatária para se pronunciar, ocorre a nulidade a que se refere o artº 119º al. c) do CPP.
Diz o artigo 119 do CPP que constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
Vejamos então se é esse o caso dos autos.
Nos termos do artigo 139º n. 2 do Código de Processo Penal, "a protecção das testemunhas e de outros intervenientes no processo contra formas de ameaça, pressão ou intimidação, nomeadamente nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, é regulada em lei especial".
Tal matéria é regulada pela Lei n. 0 93/99, de 14 de Julho, bem como pelo Decreto-lei nº 190/2003 de 22 de Agosto, que regulamenta aquela lei.
Nos termos da Lei, a não revelação da identidade da testemunha é decidida pelo Juiz de Instrução, …
Estabeleceu-se, depois, algumas regras no sentido de assegurar a imparcialidade do juiz, quer quanto à apreciação do pedido de não revelação da identidade, quer quanto às fases ulteriores do processo.
No artº 18º estabelece-se o chamado processo complementar de não revelação de identidade.

Decidida a reserva do conhecimento da identidade, a pessoa em causa recebe uma designação codificada, pela qual passará a ser referenciada no processo, e que é comunicada à autoridade judiciária com competência na fase em que o processo se encontre.
Em momento algum, e por razões de proteção da testemunha, se prevê o contraditório do defensor dos arguidos

Assim, para permitir o contraditório, foi nomeado um defensor distinto do advogado que é nomeado aos arguidos, assim se procurando garantir que a identidade da s testemunhas não é revelada.
A defensora do arguido, não sendo ouvida nesse processo complementar não tem de ser notificada da decisão proferida no processo complementar.
Ou seja, não há qualquer violação do direito ao contraditório nem estamos perante uma situação de ausência do defensor num caso em que a lei exija a respectiva comparência: esteve presente um defensor, embora não a mandatária dos arguidos.
Termos em que improcede a invocada nulidade».

Tal despacho foi proferido na sequência de um requerimento dos arguidos … com o seguinte teor (transcrição):
«Aquando da constituição de arguidos e ainda antes de interrogatório judicial de arguido detido, a ora signatária juntou aos autos procuração forense outorgada por cada um dos arguidos,
Porém, resulta dos autos que em sede de inquérito e após a ora signatária ter sido constituída mandatária de todos os arguidos, o MP procedeu à inquirição de 2 testemunhas, recorrendo à ocultação da identificação dessas mesmas testemunhas.
Da mesma forma, resulta dos autos que o MP veio requerer que essas testemunhas fossem ouvidas em sede de julgamento também com “ocultação da sua identidade
Ora, o recurso a tal mecanismo exige, legalmente, um processo complementar, separado e secreto, em que é nomeado advogado com perfil adequado para representar os interesses de defesa, e em que, antes de proferir decisão o Juiz ouve o MP e o representante do arguido em Debate oral, decidindo de seguida, conforme dispõe o art. 18º da Lei 93/99, de 14 de julho.
Assim, existindo um processo complementar para apreciação do pedido de não revelação a identidade das testemunhas, a ora signatária, não foi notificada do mesmo, nem pode exercer o direito ao contraditório dos arguidos, previsto no art. 32º, 5 da C.R.P. inconstitucionalidade que aqui se argui,
Decisão da qual também não fomos notificados em momento algum, o que constitui a nosso ver também uma nulidade insanável nos termos da al. c) do art. 119º do C.P.P. Não tendo havido, qualquer processo complementar- como não existiu- a requerimento do MP ou das próprias testemunhas, para ocultação da identidade, existe nulidade do Despacho de acusação, prevista no art. 283º, 3 do C.P.P., por falta de identificação das testemunhas arroladas, elemento fundamental da acusação, nos termos da al. e) do 3, do art. 283º do C.P.P».

            2. O RECURSO
Inconformados, em 22 de Agosto de 2023, os arguidos … recorreram do despacho em causa, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões :
I. «…
II.
III.
IV. No seu requerimento vieram os recorrentes, arguir a inconstitucionalidade, por violação do art. 32º, nº 5 da C.R.P., …
V. No despacho proferido e que aqui se recorre, não proferiu o Tribunal uma única palavra quanto à inconstitucionalidade arguida.
VI. Assim sendo, considerando que o Tribunal deixou de se pronunciar quanto a uma questão que lhe foi colocada (a inconstitucionalidade, por violação do direito ao contraditório do arguido), deverá o despacho ser decretado nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na al. c), nº 1, do art. 379º do C.P.P. …
VII. A existência de processo complementar para apreciação do pedido de não revelação a identidade das testemunhas apesar de ser sigiloso, nos termos do nº1, do art. 18 da Lei de Proteção de testemunhas, não o pode ser para sempre.
VIII. Ora, já tendo sido deduzida acusação pública contra os recorrentes, já tendo decorrido o processo complementar que determinou a não revelação da identidade das testemunhas, considera-se que, esse processo complementar não poderia permanecer em sigilo, como permanece.
IX. os recorrentes visam, a garantia da transparência da justiça, com os sucessivos  pedidos de consulta do processo complementar.
X. E veja-se que, os recorrentes não pretendem ter acesso ao nome ou outros dados pessoais das testemunhas 4 e 5 da acusação, o que visam, isso sim, tendo em mente a transparência da justiça, é aceder e consultar o trâmite do processo complementar, …
XI. Até porque, a lei refere que o processo é secreto, mas não contempla que, esse secretismo seja indeterminado, …
XII.
XIII.
XIV. Assim, deveria o douto Tribunal ter admitido a consulta do processo complementar, com rasura da identificação das testemunhas 4 e 5 da acusação pública, considerando que, assim, ficariam assegurados os direitos dos recorrentes e protegida a identidade das testemunhas.
XV. Com a falta de notificação, aos recorrentes e à sua legitima mandatária, da decisãoquedeterminou a nãorevelaçãodaidentidadedastestemunhas 4 e 5 da acusação, até ao momento, consideram os recorrentes que também o seu direito previsto no art. 61º, nº 1, al. j) do C.P.P. foi violado.
XVI.
XVII. Posto isto, entendem os recorrentes que o despacho recorrido é nulo, por violação do art. 61º, nº 1, al. j) do C.P.P.- …
XVIII. Atendendo a que, o direito ao recurso é um direito constitucional reconhecido ao arguido, considera-se que o despacho recorrido violou o art. 32º, nº 1 da C.R.P. …
XIX. Não tendo os recorrentes, nem a sua mandatária sido notificados da decisão que determinou a não revelação da identidade das testemunhas, também não poderão os exercer o contraditório, previsto no art. 32º, nº 5 da C.R.P.
XX.
XXI. Entende-se que, o facto de ter sido nomeado defensor aos arguidos no processo complementar, não assegura o princípio do contraditório, quando nem sequer, houve contacto entre os recorrentes e este alegado defensor.
XXII.
XXIII. Os recorrentes têm igualmente o direito inalienável de escolher o seu defensor, no processo penal, devendo ser assistido pelo mesmo em todos os atos, que lhes digam respeito.
XXIV. O facto de ter sido nomeado defensor aos recorrentes, sem que os mesmos tivessem disso conhecimento e consentissem, viola o seu direito à escolha de defensor, nos termos do nº 3 do art. 32º da C.R.P.-…

».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se …

5.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

…, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
· O despacho recorrido viola o artigo 32º, nºs 2, 3 e 5 da CRP ao não decretar a nulidade da acusação do MP?
· Na redacção do despacho recorrido foi cometida alguma nulidade processual?

2. Sobre a sequência de factos processuais:
a) Foi proferida acusação pública contra os 5 arguidos em causa.
b) Em INSTRUÇÃO requerida pelos 5 arguidos, com data de 19 de Julho de 2023, foi proferido DESPACHO DE PRONÚNCIA contra os mesmos 5 arguidos pelos mesmos factos e incriminações constantes do despacho de acusação.
c) Nesse despacho de pronúncia, como questão prévia, foi indeferida a invocada nulidade de acusação.
d) É desse segmento do despacho de pronúncia que vêm agora os 5 arguidos recorrer …
            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Nos presentes autos, e como questão prévia à de saber se assiste alguma razão aos recorrentes quando invocam que o despacho recorrido é nulo e violador de preceitos da nossa CRP, urge verificar se o despacho em si é recorrível.
Note-se que o despacho recorrido, como expressamente se dá conta na Motivação, é o inserido no despacho de pronúncia datado de 19/7/2023, e não qualquer outro posterior, nomeadamente, o exarado sob a referência nº 91902698, datado de 26/7/2023[2].
Sabemos que o artigo 310º do CPP, na versão posterior à Lei nº 48/2007[3], de 29 de Agosto, reza assim (com sublinhado nosso):
«1. A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para julgamento
2. O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.
3. É recorrível o despacho que indeferir a arguição de nulidade cominada no artigo anterior».
Tornou-se assim claro que esta redacção veio resolver as divergências que se faziam sentir, designadamente no seio da jurisprudência, quanto à irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciasse o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, na parte relativa à apreciação de nulidades e outras questões prévias ou incidentais, tornando, assim, inaplicável, aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, a jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2000 (DR, I – A, de 07.03.2000) …
Por tal motivo, terão de se ter por “caducos” tal AFJ e o AFJ nº 7/2004 (DR, I – A, de 02.12.2004 …
Note-se que a solução contrária à depois fixada nos dois arestos em causa vinha já sendo considerada constitucionalmente conforme ao artigo 32º da CRP (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 266/98, 216/99, 387/99 e 242/2005, citados por Pedro Soares de Albergaria, na anotação ao artigo 310º no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, p.1304).
São razões de celeridade processual que ditam esta solução movida pela perspectiva da dupla conforme entre a acusação do MP e um despacho de pronúncia exarado por um JIC.
Tem-se entendido, e bem, a nosso ver, que se encontrava dentro da margem de liberdade do legislador optar pela irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, enquanto despacho intermédio que se limita a determinar a necessidade do arguido ser sujeito a julgamento, face aos indícios que existem de que ele cometeu um crime, como forma de, em nome dos interesses da celeridade processual, evitar uma demora na realização do julgamento.
Ora, sendo constitucionalmente admissível que o legislador possa determinar a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, quando opta por essa solução em nome da celeridade processual, revela-se perfeitamente coerente que essa opção se estenda às decisões sobre questões prévias a esse despacho, as quais apenas nele se repercutem, como sucede com a decisão em causa nos presentes autos.
Parece ter sido aqui ideia mestra do nosso sistema processual penal preferir prescindir de um segundo grau de jurisdição para assegurar uma maior celeridade processual, dando-se assim melhor e maior cumprimento do artigo 20º, nº 4 da CRP.
Como bem aduziu o Acórdão desta Relação, datado de 5/6/2019 (Pº 199/17.7GAPCV.C1), em caso muito paralelo ao nosso:
«Significa, pois, que, para além da irrecorribilidade da decisão instrutória de pronúncia do arguido, dentro do condicionalismo prevenido no n.º 1 do artigo 310.º, com fundamento em razões de natureza substantiva, como a inexistência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (artigo 308.º, n.º 1 do CPP), também as nulidades, questões prévias ou incidentais, apreciadas na decisão instrutória de pronúncia, são agora insuscetíveis de sindicância através de recurso interposto nos sobreditos termos.
Na verdade, o regime decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29.08, no que tange à irrecorribilidade nesta parte da decisão instrutória acabou por acolher a jurisprudência do Tribunal Constitucional, firmada no acórdão n.º 216/99, o qual concluiu que a irrecorribilidade do despacho de pronúncia na parte em que conhece de questões prévias ou incidentais não viola a Constituição da República Portuguesa.
Como a propósito escreve Maia Costa, in Código de Processo Penal Comentado, 2016, Almedina, pág. 986 “A nova solução legal, embora recusando o direito ao recurso, não agrava a posição processual do arguido, não podendo, portanto, ser arguida de inconstitucional. Do novo n.º 2 resulta que a decisão sobre nulidades e questões prévias e incidentais não faz caso julgado formal no processo, podendo o tribunal de julgamento reapreciar tais questões. Assim, perdendo o arguido o direito de recurso da decisão instrutória naquela parte, ganhou, porém, a possibilidade de ver essas questões reapreciadas em sede de julgamento, com o inerente direito a recurso da sentença”.
No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional nos acórdãos n.º 387/2008, n.º 95/2009 e n.º 247/2009 enquanto considerou que a decisão de pronúncia que incida sobre nulidades e questões prévias não forma, sobre elas, caso julgado formal [Idêntica orientação é defendida por Nuno Brandão, A nova face da instrução, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 18º, nºs 2-3, pág. 239]».
De facto, esta irrecorribilidade do despacho de pronúncia na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais não tem o sentido de vedar, por efeito de caso julgado (nem mesmo sob a forma de caso julgado rebus sic stantibus) a posterior cognição de tais matérias pelo tribunal de julgamento, o que «menoscabaria as garantais de defesa do arguido (artigo 32º/1 da CRP)», na feliz expressão de Pedro Soares de Albergaria em artigo já aqui citado.
Este autor continua dizendo que:
«Pelo contrário, é precisamente diante da irrecorribilidade e por causa dela, que se impõe, como condição de conformidade constitucional da solução, que o tribunal de julgamento possa delas conhecer novamente. Como se escreve no ac. TC 482/2014[4], p. 21, “pressuposto essencial desse entendimento [da irrecorribilidade] foi sempre a consideração da subsistência da possibilidade de reapreciação da questão pelo tribunal de julgamento em decisão, essa sim, suscetível de reapreciação por um tribunal superior, porque passível de recurso (…)”».
Esta é a tese a que aderimos com facilidade, face aos valores processuais aqui em causa, face ao teor do nº 2 do normativo onde se expressa a excepção a uma regra que se teve por adequada à fase processual da instrução, necessariamente intermédia e não definitiva, em caso de pronúncia e face ao teor do nº 3[5] onde se diz claramente que é recorrível o despacho que indeferir a arguição de nulidade cominada no artigo 309º do CPP (e só vale aqui a nulidade consistente no facto de ter havido pronúncia por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do MP ou do assistente ou no RAI).
Portanto:
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reiteradamente entendido «não se ter por inconstitucional a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo no segmento decisório atinente a nulidades e outras questões prévias ou interlocutórias (cfr., por exemplo, os Acórdãos 216/99, 387/99, 460/08, 247/09, 51/10, 235/10, 430/10, 477/11, 146/12, 265/12, 482/14, 203/16, bem como as Decisões Sumárias 603/14, 799/14, e 78/16», razão pela qual aplicamos sem dúvidas o teor literal do nº 1 do artigo 309º do CPP[6].
Na verdade, «o legislador, na revisão operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, adoptou, no que respeita à admissibilidade do recurso do despacho de pronúncia, uma solução que presume o bem fundado da decisão instrutória de submeter o arguido a julgamento, havendo identidade dos factos em que assentam a acusação e a pronúncia, procurando assim potenciar a celeridade processual e obstar a uma reconhecida tendência para o abuso dos recursos sem que daí resulte prejuízo para as garantias de defesa do arguido, visto não estar em causa uma decisão sobre a sua culpabilidade ou inocência, mas tão-só o prosseguimento dos autos para julgamento, subsistindo a presunção de inocência de que o arguido beneficia até ao trânsito em julgado de eventual sentença condenatória».
Se assim é, então este despacho recorrido não é passível de recurso, só havendo que o rejeitar.
Na verdade, nos termos do disposto no artigo 420º nº1 al. b) do CPP, deve este recurso ser rejeitado sempre que “se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do nº 2 do artigo 414º”.
Acresce que a decisão que admitiu o recurso não vincula este tribunal – artigo 414º nº 3 do CPP.

3.2. E o que dizer, à luz da regra da recorribilidade das decisões judiciais, cuja irrecorribilidade não esteja expressamente prevista (artigo 399.º do CPP), das alegadas invalidades formais da decisão instrutória?
Passaremos a conhecê-las, limitando, portanto, o conhecimento do recurso a tal matéria por força do que se expôs em 3.1.
E a única questão a discutir é apenas – Conclusões nºs V e VI - a de saber se existe alguma invalidade formal do despacho recorrido por ter omitido pronúncia relativamente às várias inconstitucionalidades arguidas no requerimento datado de 13/7/2023.
Portanto, apenas se conhecerá da pretensa nulidade formal da própria decisão instrutória por haver, na óptica da defesa, omissão de pronúncia relativamente às várias inconstitucionalidades arguidas pela mesma, …
Segundo a defesa, «no despacho proferido e que aqui se recorre, não proferiu o Tribunal uma única palavra quanto à inconstitucionalidade arguida», pedindo a declaração de nulidade do despacho em causa, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.
Não deixando de se dizer que, se o tribunal se pronunciou de forma assaz desenvolvida sobre a questão colocada, decidindo não verificada a violação do direito ao contraditório no processo complementar referido no artigo 18º da Lei nº 93/99, de 14/7, inevitavelmente desconsiderou a possibilidade da existência de qualquer inconstitucionalidade, haverá, contudo, que concluir que a forma de arguir este vício não foi o adequado.
Inexiste AQUI qualquer espectro de nulidade.
Começa por se dizer que, ao contrário do que se aduz no recurso, o disposto no artigo 379º do CPP, relativo à nulidade da sentença, não é aplicável aos despachos, designadamente aos despachos de pronúncia ou não pronúncia, o mesmo acontecendo com o disposto no referido artigo 374º do CPP, relativo aos requisitos da sentença, entre os quais surge o dever de fundamentação (art.º 374º, nº 2, do CPP).
Não podemos também esquecer que, em matéria de invalidades, o nosso sistema processual penal consagra o princípio da legalidade das nulidades, plasmado no nº 1 do artigo 118º do CPP, segundo o qual a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo o acto irregular nos casos em que a lei não determinar expressamente a nulidade (cfr. artigos 118º, nº 2 e 123º CPP).
Veja-se, lendo a melhor doutrina jurisprudencial[7] sobre o assunto, que:
· a falta de motivação da matéria de facto indiciada ou não indiciada num despacho de pronúncia ou de não pronúncia constituiu uma mera irregularidade da decisão instrutória;
· apenas a omissão de indicação dos factos e das normas jurídicas, mesmo que tão só por remissão, implica já a nulidade da decisão de pronúncia que decorre da remissão do artigo 308º, nº 2 para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do CPP, nulidade que deve ser arguida perante o JI, cabendo depois recurso do despacho que a indefira;
· a decisão de não pronúncia que não descrever, nem por remissão, os factos não indiciados, será nula[8], podendo tal nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, nos termos do artigo 379º, nº 2, aplicável por identidade de razões.
No nosso caso, não está em causa qualquer nulidade da decisão instrutória quanto a Factos e Direito mas apenas do segmento atinente ao conhecimento de nulidades.
Segundo a defesa, o despacho recorrido, ao conhecer a questão prévia, não proferiu uma única palavra sobre as alegadas inconstitucionalidades igualmente arguidas.
Ora, também nesse segmento inicial do despacho de pronúncia (artigo 308º, nº 3 do CPP), algum vício formal existente na decisão – no caso, omissão de pronúncia, apenas cominado com o vício da irregularidade, cuja reparação deve ser oficiosamente ordenada sempre que puder afectar o valor do acto praticado (artigo 123º CPP) - terá de ser antes arguido perante o tribunal que a proferiu.
O certo é que, antes da interposição deste recurso, os arguidos não suscitaram perante o JIC a irregularidade da decisão instrutória nessa parte, deixando até passar o prazo de 3 dias aludido no artigo 123º do CPP (bastando conferiu o CITIUS e as notificações feitas do despacho recorrido e a entrada em juízo do recurso), encontrando-se assim sanada (diga-se ainda que não é caso de aplicação do nº 2 do artigo 123º pois o vício em causa não afecta o valor do acto praticado).

Citando o Acórdão da Relação do Porto de 27/05/2009, «não se tratando de questão de conhecimento oficioso (…), o seu conhecimento não competiria a este tribunal sem que, previamente, houvesse sido suscitada na 1ª instância. Pois, como é sabido, os recursos têm por objeto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada; são remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas, e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas. Assim, se os recorrentes pretendiam que fosse corrigido o procedimento adotado […], tinham de arguir primeiramente o vício perante o tribunal onde ele foi cometido e só depois, caso a decisão que viesse a ser proferida lhes fosse desfavorável, interpor o competente recurso, só então estando reunidas as condições para que este tribunal apreciasse a questão».
Como tal, cai por terra a sindicância feita ao teor do despacho recorrido, também por esta ordem de razões.

3.3. Se assim é, só pode improceder este recurso, abrangendo-se na figura da improcedência a prévia decisão de rejeição do mesmo.

3.4. Em sumário, diremos:
1. Sendo constitucionalmente admissível que o legislador possa determinar, no artigo 310º, nº 1 do CPP, a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, quando opta por essa solução em nome da celeridade processual, revela-se perfeitamente coerente que essa opção se estenda às decisões sobre questões prévias a esse despacho, as quais apenas nele se repercutem.
2. Parece ter sido aqui ideia mestra do nosso sistema processual penal preferir prescindir de um segundo grau de jurisdição para assegurar uma maior celeridade processual, dando-se assim melhor e maior cumprimento do artigo 20º, nº 4 da CRP.
3. Esta irrecorribilidade do despacho de pronúncia na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais não tem o sentido de vedar, por efeito de caso julgado (nem mesmo sob a forma de caso julgado rebus sic stantibus) a posterior cognição de tais matérias pelo tribunal de julgamento.
4. O disposto no artigo 379º do CPP, relativo à nulidade da sentença, não é aplicável aos despachos, designadamente aos despachos de pronúncia ou de não pronúncia, o mesmo acontecendo com o disposto no referido artigo 374º do CPP, relativo aos requisitos da sentença, entre os quais surge o dever de fundamentação (art.º 374º, nº 2, do CPP).
5. Não se tratando de questão de conhecimento oficioso, o conhecimento de irregularidades processuais não compete ao tribunal de recurso sem que, previamente, houvesse sido suscitada na 1ª instância.

            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso intentado pelos arguidos

Custas pelos arguidos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].


Coimbra,__________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)

Relator: Paulo Guerra
Adjunta: Cristina Pêgo Branco (voto a decisão, ressalvando contudo que, salvo o devido respeito, em face da irrecorribilidade da decisão instrutória entendo que não haveria lugar à apreciação (sequer) da sua invalidade formal, contida no ponto 3.2, pelo que rejeitaria o recurso, por inadmissibilidade legal.)
Adjunta: Isabel Valongo


[1]
[2] E que tem o seguinte teor:
Visto o preceituado no art.º 89.º, n.º 4, do Cód. de Processo Penal, autorizo à ilustre advogada defensora dos arguidos o exame gratuito dos autos fora da secretaria, pelo prazo de 5 (cinco) dias, com excepção dos autos respeitantes ao processo complementar de não revelação de identidade, cujos têm natureza secreta (cfr. art.º 18.º da Lei 93/99, de 14/07) ….”
[3]
[4] E nesse aresto do Tribunal Constitucional, considerou-se o seguinte:
Foi apreciada a inconstitucionalidade das normas que impedem o recurso dos despachos proferidos pelo juiz de instrução, depois de proferida a decisão instrutória, que conheçam da arguição de nulidades suscetíveis de a invalidarem.
O TC julgou inconstitucional, neste caso, a norma que considera irrecorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente à decisão instrutória, que aprecie a arguição de nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência material do tribunal de instrução criminal, por constituir uma restrição desproporcionada do direito de defesa do arguido.
Segundo o TC, não configura uma restrição desproporcionada do direito ao recurso em processo penal, que o legislador, em benefício da celeridade processual, determine a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, bem como a irrecorribilidade da decisão instrutória na parte em que decide questões prévias ou incidentais a esse despacho.
Na base dessa jurisprudência constante está o pressuposto de que a natureza meramente provisória do juízo de imputação de factos suscetíveis de integrarem a prática de crime que resulta da decisão instrutória de pronúncia permite que qualquer vício ou nulidade que a afete possa sempre ser conhecido na fase subsequente de julgamento, quer na sentença quer no posterior recurso que venha a ser interposto da sentença que seja desfavorável ao arguido.
Neste âmbito, em coerência, não pode deixar de se entender que o mesmo raciocínio se aplicará à irrecorribilidade do despacho que decida a arguição de vícios que afetem especificamente a decisão instrutória, designadamente na parte em que decida a arguição de nulidade da decisão instrutória por omissão do dever de pronúncia ou por falta de concretização dos factos imputados ao arguido.
Mas já não será assim quando esteja em causa a apreciação, pelo juiz de instrução, da invocação da incompetência material do tribunal. Isto porque essa decisão produz caso julgado formal, o que obsta a que a eventual incompetência do tribunal de instrução criminal possa ser apreciada pelo tribunal de julgamento.
Afastada a revisibilidade pelo juiz de julgamento da decisão proferida pelo juiz de instrução que conheça da arguição da incompetência material do tribunal para proceder à instrução dos autos, será, então, inaceitável que essa decisão não possa ser sindicável por nenhuma outra instância, designadamente de grau superior.
Não sendo o valor constitucional da celeridade do processo penal suficiente para justificar essa restrição dos direitos de defesa do arguido, que assim se revela excessiva e intolerável. Designadamente ao abrigo do princípio do juiz natural, plenamente aplicável na fase instrutória do processo penal, do qual decorre que, para garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais, a parcela de jurisdição atribuída a cada tribunal tem de ser objeto de prévia e clara determinação legal.
Ora, para o TC, negar em absoluto o direito a uma reapreciação da questão da incompetência material do tribunal de instrução criminal equivale a admitir a ausência de defesa, e com ela, ausência também de tutela efetiva do direito ao juiz legalmente predeterminado para realizar a instrução, em negação do núcleo essencial do princípio do juiz natural, constitucionalmente garantido.
Na verdade, não se mostra compatível com esta garantia a reunião, num mesmo juiz, do poder de proferir a primeira e última palavra na definição da sua própria competência ou, mais precisamente, do tribunal onde exerce funções.
Razão pela qual, impedir a possibilidade de recurso dessa decisão para um tribunal superior compromete, no entender do TC, os valores tutelados pelo princípio do juiz natural e, nessa medida, fere o núcleo essencial do direito de defesa do arguido, devendo ser julgada inconstitucional a norma que inviabiliza esse mesmo recurso.
Contudo, a nossa situação não é esta, sendo bem diferente.
[5] Onde se fala do recurso do indeferimento da reclamação em que se argui a nulidade da pronúncia e não propriamente do recurso da decisão instrutória.
[6] Cfr. também o teor do acórdão desta Relação de Coimbra, datado de 30/5/2012 (Pº 134209.5TACBR-A.C1), com o seguinte sumário: …
[7] Leia-se o que se escreveu no Acórdão da Relação de Évora, datado de 29/11/2016 (Pº 884/13. 2 TAMTA.E1):

Não sendo aplicável à decisão instrutória o disposto no art.º 379.º do C.P.P., apenas aplicável às sentenças, e uma vez que a nulidade prevista no art.º 283.º, n.º 3, por força da remissão vertida no art.º 308.º, n.º 2, do C.P.P., apenas abarcaria a falta de indicação dos elementos previstos o nº 3 daquele art.º 283.º do C.P.P. (identificação do arguido, narração dos factos indiciadores da prática do crime, indicação das disposições legais aplicáveis, indicação das provas, data e assinatura) e não já a omissão da análise crítica das provas produzidas que permitiu considerar indiciariamente provados e não provados os factos e ainda a omissão de alguns dos factos elencados na acusação e/ou no requerimento para abertura de instrução, como aconteceu com a decisão recorrida, entendemos, seguindo a posição defendida no citado Acórdão do TRP de 12.10.2016, que «estamos perante numa situação de irregularidade, que pode afectar o valor do acto praticado e se assim for de conhecimento oficioso e a sanar em face disso».
Também no Ac. do TRP de 06.01.2016, CJ, XLI, I, pg. 187, citado naquela decisão de 12.10.2016, se considera: …
[8] Não se ignorando que existem decisões jurisprudenciais que cominam aqui apenas uma mera irregularidade e já não nulidade.