Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1166/22.4T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: EXERCÍCIO DO PATROCÍNIO FORENSE
DIREITO DE CRÍTICA DO ADVOGADO
DEVERES DE CORREÇÃO E URBANIDADE
OFENSA DA HONRA E CONSIDERAÇÃO
ILICITUDE
Data do Acordão: 10/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 95.º, 110.º E 112.º DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS, 483.º, N.º 1, E 496.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – Numa ação executiva em que o exequente – advogado em causa própria – pretendia o pagamento coercivo de montante pecuniário, não constitui ofensa ilícita à sua dignidade, honra e consideração a alegação, nos embargos de executado, através de mandatário judicial, de que o exequente, ao assim acionar, agiu de forma “indigna”, por se basear numa “mera invenção e de uma forma expedita de se locupletar à custa alheia, no caso em apreço, à custa do ora Executado”.

II – Ao assim escrever, no exercício do direito de defesa que cabe ao seu constituinte, o mandatário do executado não ultrapassou os seus limites deontológicos ou impostos pela dignidade, honra e consideração da pessoa do exequente, pelo que, inexistindo ilicitude, não pode ser condenado em indemnização por danos não patrimoniais.

Decisão Texto Integral:
Relator: Arlindo Oliveira
1.º Adjunto: Catarina Gonçalves
2.º Adjunto: Maria João Areias

            Processo n.º 1166/22.4T8ACB.C1 – Apelação

            Comarca de Leiria, Pombal, Juízo Local Cível

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, ambos já identificados nos autos, peticionando a condenação da mesma no pagamento da quantia de €8.000,00 (oito mil euros), acrescida de juros de mora, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Alegou, no essencial, que a Ré deduziu embargos de executado em ação executiva que correu termos no Juízo de Execução ... – Juiz ..., com o n.º 502/22...., na qualidade de Advogada de CC (executado), figurando o ora Autor nas vestes de exequente naquele processo, tendo a Ré nessa peça processual realizado imputações falsas numa atitude que o Autor qualifica de atentatória das regras deontológicas da profissão como da sua honra e consideração, causando, deste modo, graves danos não patrimoniais na esfera jurídica do Autor.

*

Válida e regularmente citada, a Ré BB apresentou a sua contestação, tendo, além do mais, impugnado parcialmente a matéria de facto vertida na petição inicial, aduzindo, em suma, que é falso que tenha atentado contra a honra, reputação e dignidade do Autor, uma vez que a mesma apenas se limitou a exercer o seu mandato forense de acordo com as regras próprias da deontologia profissional, escrevendo na sua peça processual os factos que lhe foram transmitidos pelo seu cliente, convencida de que correspondem à verdade.

Pugnou, em consequência, pela improcedência da ação e do pedido formulado pelo Autor.

*

Notificadas para o efeito, as partes exerceram o contraditório quanto ao mérito da causa.

Após o que, cf. decisão de fl.s 59 a 67 (aqui recorrida), se procedeu ao saneamento dos autos, tendo a M.ma Juiz  a quo entendido que os autos já continham todos os elementos de facto  e de direito que lhe permitiam, desde logo, conhecer do mérito da causa, o que assim fez, tendo julgado a presente acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da ré do pedido, ficando as custas a cargo do autor.

Inconformado com a mesma, interpôs recurso o autor AA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 106), rematando as respectivas motivações, com o que apelida de “conclusões”, praticamente, reproduzindo as alegações, ao longo de 13 fl.s, em flagrante violação do disposto no artigo 639.º.n.º 1, do CPC “de forma sintética”, pelo que aqui não se procede à respectiva transcrição, sem prejuízo de, no local próprio, se assinalar as questões a decidir.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se verificam ou não, os pressupostos para a ré ser condenada a pagar ao autor a peticionada indemnização, por, ilicitamente, o ter ofendido na sua honra e consideração.

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório que antecede, a que acresce o seguinte (artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC):

1. Conforme requerimento inicial de embargos deduzido na execução que o aqui autor, AA, moveu a CC, subscrito pela aqui ré, BB, na qualidade de Mandatária judicial do executado, no mesmo consta o seguinte:

a) “Não passa de uma mera invenção e de uma forma expedita de se locupletar à custa alheia, no caso em apreço, à custa do ora Executado, tudo o que é alegado pelo Exequente no seu articulado, respeitante à dívida do executado para com o Exequente no montante de 1.812,00 €, ou qualquer outra dívida” – artigo 2.º;

b) “Foi o próprio executado (exequente ?) a afirmar expressamente no seu requerimento de injunção, que “O ora requerente no dia 31 de Agosto de 2020, emprestou a quantia de 1.812,00 euros ao requerido e este não lhe pagou, apesar de ser ter deslocado por cinco vezes á morada do requerido a fim de interpelar e este não lhe pagou. Tendo despendido a quantia de 400.00 euros em deslocações á morada deste” – artigo 13.º;

c) “O que é completamente falso” – artigo 14.º;

d) “Pelo que, não corresponde à verdade a existência de um contrato de mútuo celebrado entre Exequente e Executado” – artigo 16.º;

e) “Sentindo-se profundamente afrontado pela interposição da presente acção, que considera  indigna de uma pessoa a quem nada deve” – artigo 18.º;

f) “O que, aliás, o Exequente não pode desconhecer, pelo que, intencional e dolosamente alega factos que bem sabe não serem verdadeiros, somente com intenção de fundamentar o seu pedido, bem sabendo que ao mesmo não tem direito” – artigo 19.º e;

g) “Pelo que, o Exequente deve ser condenado, a final, como litigante de má-fé, nos termos do disposto nos artigos 542º e 543º do Código de Processo Civil, em multa e indemnização a favor do ora Executado, em montante não inferior a 1.500,00 € …” – artigo 24.º

Se se verificam ou não, os pressupostos para a ré ser condenada a pagar ao autor a peticionada indemnização, por, ilicitamente, o ter ofendido na sua honra e consideração.

Em resumo, defende o recorrente, que assim se deve considerar porque a ora ré, ao redigir o requerimento inicial de embargos usou expressões que, para além de falsas, pois que dos documentos juntos na injunção resulta a prova do alegado empréstimo, são atentatórias da sua honra e consideração e violam os deveres deontológicos que vinculam os advogados no exercício da profissão.

Mais refere que a sentença é nula ou inexistente porque não especifica quais os factos provados e porque os fundamentos estão em oposição com a decisão.

Ao invés, na decisão recorrida considerou-se que dos factos alegados pelo autor não resulta a prática por banda da ré de qualquer acto ilícito gerador da imputada responsabilidade civil, tendo-se a mesma limitado a exercer a defesa do seu constituinte, respeitando os deveres deontológicos que se lhe impunham.

Iniciando a nossa análise da questão quanto à invocada nulidade, cumpre referir que a mesma não se verifica.

Se é certo que, formalmente, não se indicam os factos tidos em consideração, basta ler a decisão para se constatar que são os descritos nos artigos 6.º a 11.º da petição inicial e que acima, ao abrigo das citadas disposições legais, se descreveram e que estão admitidos por acordo das partes.

Assim, inexistem razões para declarar a invocada nulidade.

Igualmente, não se verifica a prevista na al. c), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC, uma vez que a acção improcedeu, precisamente, porque se considera que os factos em apreço não constituem a prática de qualquer acto ilícito tal como definido no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.

No que se refere ao mérito da decisão, igualmente, não vemos razões para dela divergir, pelo que é a mesma de acolher, o que implica a improcedência do recurso.

Na mesma, escalpelizam-se os motivos que levaram à improcedência da acção em termos aprofundados e que aqui se dão por reproduzidos, nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do CPC.

No entanto, não deixamos de acrescentar o que se segue.

Como resulta do exposto, em termos factuais, o autor intentou uma injunção contra o mandante da ora ré, alegando ter-lhe emprestado a supra aludida quantia em dinheiro, que o mesmo não lhe pagou.

Acrescenta na conclusão 8.ª, que a ré não deveria ter usado as expressões que usou ao deduzir embargos, porque já estava demonstrada existência de tal empréstimo, que resultam do teor dos documentos juntos a fl.s 17 e 18.

Ora, o doc. de fl.s 17, é a fotocópia da liquidação do IRS de CC, de que resulta a obrigação do pagamento da quantia de 1.812,00 €, indicando-se como data limite de pagamento o dia 31 de Agosto de 2020.

O doc. de fl.s 18, demonstra que o ora autor pagou ao Estado a ora referida quantia, no dia 31/8/2020, por transferência efectuada através de transferência bancária com origem numa conta bancária em que figura como seu titular.

A nível estritamente factual, resulta desconhecida a razão pela qual foi o autor a pagar tal quantia e ainda que se refira à aludida dívida de IRS, designadamente se o fez na qualidade de Advogado e mais relevante ainda – por ser a questão em discussão – se o fez emprestando tal quantia ao devedor de IRS.

Efectivamente, de tais documentos apenas resulta provada a obrigação de pagamento do IRS e que o autor pagou a quantia correspondente, mas já não resulta provado que o autor lhe tenha emprestado tal quantia.

Podia ser, inclusivamente, para mais exercendo a advocacia, que estivesse mandatado para o fazer ou que o devedor, previamente, lhe tivesse entregue a quantia correspondente.

Em suma e em conclusão, de tais documentos não se pode extrair a conclusão de que o autor emprestou tal quantia ao cliente da ora ré.

Analisando, agora, a conduta desta, ao redigir o requerimento de embargos de executado, salvo o devido respeito pelo entendimento manifestado pelo recorrente, temos de concluir que a mesma não extravasou a defesa dos direitos do seu constituinte, nem os exerceu de forma desprimorosa, ofensiva e/ou atentatória da dignidade, honra e consideração do ora autor.

No exercício da profissão, os advogados, para além das sanções pela prática de ilícitos de índole penal e/ou civil, a que estão sujeitos, como o estão a generalidade dos cidadãos de um país regido pelos princípios que norteiam um estado de direito democrático, devem obediência aos princípios e regras especiais que regulam o exercício da profissão de advogado e que estão positivados no Estatuto da Ordem dos Advogados, de que salientamos, por mais diretamente respeitarem ao caso em apreço, o disposto nos artigos 95.º; 110.º e 112.º.

O artigo 95.º, consagra o designado “Dever geral de urbanidade”, de acordo com o qual se exige ao advogado, no exercício da profissão, que proceda com urbanidade, nomeadamente para com os colegas e demais pessoas ali referidas.

O artigo 110.º, n.º 1, consagra o designado “Dever de correcção”, segundo o qual, o advogado deve exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade, sem prejuízo do dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente.

Por fim, o artigo 112.º, define os “Deveres recíprocos dos advogados” e cf. seu n.º 1, al. a):

“Constituem deveres dos advogados nas suas relações recíprocas:
a) Proceder com a maior correção e urbanidade, abstendo-se de qualquer ataque pessoal, alusão deprimente ou crítica desprimorosa, de fundo ou de forma;”.

Destes preceitos resulta, que o advogado deve, em primeira linha, defender adequadamente os interesses do seu cliente e deve fazê-lo com observância dos deveres de urbanidade e correcção acima descritos.

No entanto, como resulta do Ponto 20 do Anexo aos Princípios Básicos Relativos à Função dos Advogados, aprovado pelo 8.º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção de Crime e Tratamento dos Delinquentes, há que ter, ainda, em linha de conta que “os advogados gozam de imunidade civil e penal por todas as declarações pertinentes feitas de boa fé, por escrito ou em alegações orais ou no âmbito das suas intervenções profissionais perante um tribunal judicial ou outro ou uma autoridade administrativa” – cf. anotação 8.ª ao então artigo 105.º, do EOA (correspondente ao actual 110.º), António Arnaut, EOA, Anotado, 14.ª Edição, Coimbra Editora, pág.s 129/130).

Ali acrescentando (nota 11) que “O Advogado, no exercício do patrocínio forense, não está impedido de criticar objectivamente as posições assumidas no processo por qualquer dos seus intervenientes. (…) A conduta só é disciplinarmente ilícita se violar os limites que estatutariamente lhe são fixados – o ataque pessoal ou a alusão pessoalmente vexatória ou aviltante”, citando Acórdão do Conselho Superior de 23/9/2005, 4.ª Secção.

No mesmo sentido se pronuncia Fernando Sousa Magalhães, EOA, Anotado e Comentado, Almedina, 2015-9.ª Edição, a pág.s 170/1, acrescentando a fl.s 173, nota 1 (ao então artigo 107.º, correspondente ao actual 112.º, 1,) que “O dever enunciado na al. a) pretende evidenciar que o livre exercício do direito de crítica, por mais áspero e contundente, não deve resvalar para o ataque pessoal já que, quer sobre o ponto de vista técnico, quer no plano deontológico, é censurável personalizar as questões nos Advogados que nelas intervêm.”.

Estamos, assim, numa situação paralela à da colisão de direitos, uma vez que, nos apontados limites, se consagra ao advogado no exercício de funções, um direito de crítica relativamente à actuação de outros intervenientes processuais, desde que não de índole pessoal.

A lei dá prevalência a este direito de crítica sobre os demais em confronto, designadamente dos do visado com tal direito de crítica, que retira aquele qualquer carácter ilícito – neste sentido R. Capelo de Sousa, O Direito Geral De Personalidade, Coimbra Editora, 1995, a pág. 436, que ali refere “… aqui não se estará propriamente perante uma causa justificativa da ilicitude, na medida em que não há como que uma causa justificativa da ilicitude que seja sequencialmente justificada, nem há, por conseguinte, um autêntico acto lesivo. Estamos, sim, perante a determinação do próprio âmbito normativo do direito, que, directamente, torna lícita a prevalência de certos interesses sobre outros e lícitos os actos em que essa prevalência se exprime.

De igual modo, estaremos no mero plano da licitude, (…) nos casos de colisão de dois ou mais direitos, existentes e válidos, mesmo que desiguais ou de espécie diferente (…) Com efeito, também em tal prevalecimento não há propriamente um acto lesivo do direito anterior, mas condutas axiológico-juridicamente preferidas e impostas pelo sistema jurídico”.

Volvendo à factualidade atinente e tendo por parâmetro o que acima se deixou dito, só se pode concluir que a ré não actuou ilicitamente.

A mesma, subscreve a peça processual em causa seguindo as informações que lhe terão sido dadas pelo seu cliente, nada resultando dos autos que foi a mesma a “autora” das mesmas.

No seguimento do que impugnou a existência do invocado empréstimo, referindo serem falsos os factos alegados pelo autor, o que este sabia, o que motivou o pedido de condenação em litigância de má-fé.

Mais refere ser “indigna a interposição da acção”, por nada dever e que tais factos se tratam de “uma invenção e forma expedita de se locupletar à custa alheia”.

É certo que a ré se poderia limitar a impugnar a existência de tais factos, sem se referir ao carácter indigno da propositura da acção e da intenção do autor em se locupletar à custa do seu constituinte.

Mas, ainda assim, estamos no âmbito dos factos alegados pelo autor, que a ré impugna, seguindo as informações dadas pelo seu constituinte e negando-os, resulta que é falsa a pretensão do autor, com todas as consequências daí decorrentes.

Ou seja, não se trata de qualquer ataque de índole pessoal, à pessoa do autor, na sua qualidade pessoal, de carácter vexatório ou aviltante.

Usou de alguma asperidade e contundência, mas nada mais do que isso.

De resto, de salientar, que o autor actua como advogado em causa própria, pelo que assume, para além, da qualidade de advogado, a posição da própria parte, caso em que, inexoravelmente, fica numa posição mais delicada, no que a questões desta índole se refere, do que aquela em que exerce o mandato em nome de outrem.

Poderá sempre colocar-se a questão de saber em que qualidade é que o advogado em causa própria se sente “ofendido”, designadamente, no âmbito das relações com os demais colegas.

Mas decisivo e relevante é que, face ao anteriormente exposto, entendemos que a ré, tal como considerado na decisão recorrida, não actuou de forma ilícita.

Inexistindo, como inexiste, um facto ilícito, desnecessária se torna a análise dos demais pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, tal como definida no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.

Assim, é de manter a decisão recorrida.

Consequentemente, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Coimbra, 24 de Outubro de 2023.