Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/22.9GCPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGENTE
VIGILÂNCIA DE CANÍDEO
DANO PATRIMONIAL FUTURO
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE POMBAL – J2)
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 6º DO DEC.-LEI N.º 276/2001, DE 17.10; 7º, N.º 2, DO DEC.-LEI N.º 314/2003, DE 17.12; 148º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL; 483º, N.º 1, 564º E 566º, N.º 3, DO CÓDIGO CIVIL; 609º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I. Impende sobre o detentor de canídeo não classificado como perigoso o dever de o vigiar e assim evitar que ponha em risco a vida ou integridade física de outras pessoas ou animais.

II. Para efeitos de determinação de danos patrimoniais futuros, não pode o ofendido assentar o recurso em argumentação não esgrimida na contestação apresentada e que por isso não foi objeto de discussão e decisão em 1ª instância.

Decisão Texto Integral:

            Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I-Relatório

            1. No Processo Comum Singular Nº 6/22...., do Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi sujeito a julgamento, o arguido AA, após o qual foi proferida sentença, em 4.09.2023, depositada na mesma data, na qual se decidiu:

            “ Em face do exposto este Tribunal Judicial julga a acusação procedente por provada e em consequência:

                I.

                a) condena o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, com referência ao artigo 15.º al. a) ambos do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de 06,50 (seis euros e cinquenta cêntimos) €.

                b) condena o arguido no pagamento das custas criminais fixando a taxa de justiça em 4 (quatro) UC e nos demais encargos com o processo a que haja dado lugar (art. 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º n.º 9 do RCP) sem prejuízo do apoio judiciário com que litigue.

                II.

                Julga o pedido de indemnização civil parcialmente procedente por provado e em consequência:

                c) Condena o demandado AA no pagamento à demandante BB da quantia de 2.014,90 € (dois mil e catorze euros e noventa cêntimos) a título de danos patrimoniais; na quantia de 15.000,00 (quinze mil euros) € a título de danos não patrimoniais globais [incluindo ainda o “dano biológico” e os danos morais complementares] e na quantia de 25.960,00 (vinte e cinco mil novecentos e sessenta euros) € a titulo de danos patrimoniais futuros.

                Absolvendo o demandado do demais contra si peticionado.

                d) Condena o demandado no pagamento à demandante de juros civis vencidos sobre as quantias arbitradas a titulo de danos patrimoniais, calculados à taxa legal desde a notificação/citação do pedido de indemnização civil ao demandado, e vincendos, até ao seu efetivo e integral pagamento; e condena-o no pagamento à demandante de juros civis sobre as demais quantias arbitradas à demandante, calculados à taxa legal, vencidos a partir da prolação desta decisão e até ao seu efetivo e integral pagamento.

                e) Condena a demandante e o demandado nas custas do processo civil, na proporção do respetivo decaimento (art. 523.º do CPP).

                f) fixar o valor do pedido de indemnização cível em 59.769,80 € (artigos 296.º, n.º. 1, 297.º, nº.s 1 e 2, 299.º, n.º 1, 300.º, n.º 2, parte final, e 306º do Código de Processo Civil).

                (…)

                Declara-se o cão do arguido, de nome “CC” um cão perigoso nos termos e para os efeitos do artigo 3.º al. b) al. i), 5.º, 5.º-A, 7.º, 9.º a 15.º do DL n.º 315/2009, de 29 de outubro, em função da factualidade provada, devendo, após trânsito, informar-se a Junta de Freguesia da área de residência do (detentor) arguido em conformidade.

(…)”


*

            2.  Não se conformando com o decidido, veio o arguido recorrer da sentença, extraindo da motivação do recurso apresentado as conclusões que a seguir se transcrevem:

                “ Recurso em matéria de direito quanto à responsabilidade criminal

                2º. Por força do artigo 18.º, n.º 2 do Constituição da República Portuguesa, vigora no ordenamento jurídico português o princípio da última ratio ou da mínima intervenção do direito penal.

                3º. Daí resulta que o julgador deva estar especialmente atento à realidade para que certas condutas criminalmente irrelevantes não resvalem (indevidamente) em condutas criminosas!

                4º. No caso, o tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 148.º, n.º 1, do CP.

                5º. O referido preceito contempla os seguintes pressupostos:

                (i) violação do dever objectivo de cuidado;

                (ii) um resultado lesivo típico;

                (iii) a imputação objectiva desse resultado à conduta descuidada do agente;

                (iv) e o juízo de censurabilidade dessa conduta.

                6º. Para além de um nexo de causalidade natural, a imputação objectiva exige que o resultado seja objectivamente previsível por uma pessoa normal, colocada na mesma situação do agente.

                7º. A formulação do juízo de censurabilidade depende da capacidade pessoal do agente de reconhecer e observar o dever de cuidado e de prever o resultado e o concreto processo causal, sendo essa capacidade apreciada em função das faculdades ou qualidades que ao agente assistem.

                8º. Salvo melhor opinião, a conduta do Arguido não poderá ser objeto de censura criminal visto que, em face das circunstâncias provadas, não se poderia exigir que o Arguido pudesse prever o resultado.

                9º. Em particular resultado ponto 2.1.21. da matéria provada que até à ocorrência do evento dano em outras circunstâncias em 08.01.2022 o animal pertencente o arguido – um cão de raça indiferenciada – era reputado de dócil, não tendo ocorrido qualquer episódio em que o mesmo tivesse sido agressivo para com outras pessoas ou para com outros animais.

                10º. Tratando-se de uma situação absolutamente nova e imprevisível, por estar em causa um animal dócil e não havendo qualquer indício anterior de o mesmo poder ser agressivo a ponto de morder alguém, é evidente que o Arguido não poderia prever que o seu animal tivesse aquele comportamento (morder a lesada).

                11º. Sabendo disso, o Arguido, apercebendo de que o cão momentos antes tinha estado um pouco ansioso, não quias acorrentar o animal, pois tal facto, além de constituir uma crueldade, iria agravar o estado de stresse, assim, fazer com que o mesmo ficasse a ladrar incessantemente.

                12º. O Arguido é o primeiro interessado em garantir que o seu animal não seja agressivo.              

                13º. O Arguido preocupou-se com a saúde e bem estar do seu animal (como, aliás, era seu dever) e não tinha qualquer motivo para admitir como possível um cenário como aquele que se veio a verificar, donde resultaram lesões para a lesada.

                14º. O resultado que se veio a verificar não era objetivamente previsível, nem pelo Arguido, nem por uma pessoa normal/mediana, colocada na mesma posição do Arguido.

                15º. Sendo assim, nenhuma responsabilidade criminal – pela prática do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do CP – poderá ser imputada ao Arguido,

                16º. Pelo que o mesmo deve ser absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física negligente.

                Recurso em matéria de facto quanto ao pedido de indemnização civil

                17º. O Autor considera incorretamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto: 2.1.8., 2.1.9., 2.1.10., 2.1.19. (em parte, acima identificada), 2.1.48., 2.1.60., 2.1.61. e 2.1.62.

                18º. Quanto aos pontos 2.1.10., 2.1.19. (na parte impugnada), conclui-se que o Arguido nunca disse que ele próprio se declarava pessoalmente responsável e disponível para indemnizar a lesada por todos os danos;

                19º. o arguido apenas manifestou desde a primeira a intenção de apoiar a Arguida já que dispunha de seguro de responsabilidade civil – como disse logo nas declarações perante a GNR (ver auto de notifica e parte não impugnada do ponto 2.1.19).

                20º. Quanto aos pontos 2.1.8 e 2.1.9 da matéria de facto conclui-se não estando em causa um animal perigoso, o Arguido não estava em condições de prever areação que o seu animal, em concreto, teve perante a lesada.

                21º. Ademais, conclui-se que o Arguido adotou os cuidados que, em concreto, seriam exigíveis perante um animal tido como dócil e sem qualquer episódio de agressão:

                a. Manteve o cão devidamente tratado e com vacinas em dia;

                b. Dispõe de um espaço amplo onde o cão se pode movimentar sem estar acorrentado;

                c. Não acorrentou o cão para não provocar ainda mais ansiedade e stress de modo a não incomodar a vizinhança com o seu constante ladrar;

                22º. O Arguido é o primeiro interessado em garantir que o seu animal não esteja sob stress e não seja agressivo.

                23º. O Arguido preocupou-se com a saúde e bem estar do seu animal e não tinha qualquer motivo para admitir como possível um cenário como aquele que se veio a verificar, donde resultaram lesões para a lesada – o que o arguido lamenta profundamente.

                24º. Quanto à matéria do ponto 2.1.48. conclui-se que a fixação do quantum doloris de grau 4 em 7 é exagerado e desadequado, devendo ser fixado valor inferior a arbitrar segundo o prudente arbítrio do tribunal ad quem.

                25º. Quanto à matéria dos pontos 2.1.60 a 2.1.62 conclui-se que o tribunal a quo julgou erradamente os factos em causa, condenando o Arguido a pagar uma indemnização em montante superior aos danos diretos(patrimoniais enão patrimoniais) sofridos com base numa proposta de tratamento estético que carece de base científica e que está rodeado de incerteza, não só quanto à sua duração, mas também quanto aos tratamentos a fazer.

                26º. Quando inquirida, a autora de proposta de tratamento – Dra. DD-, reafirma a imprevisibilidade e incerteza da eficácia do tratamento, bem como como a previsível necessidade de ajuste/alteração e, até, de realização de outros tratamentos não previstos na proposta de orçamento, admitindo igualmente que, em concreto, o tratamento até pode demorar menos de 2 anos ou, ao final de 2, chegar-se à conclusão de que o tratamento não é adequado.

                27º. O Tribunal a quo dá como quase certo (com elevada probabilidade) aquilo que a própria autora da proposta de tratamento dá como incerto: - o tratamento poderá ser inferior a 2 anos, poderá ser necessário reajustar o tratamento, poderão ser necessários outros tratamentos; os resultados são imprevisíveis;

                28º. Depois, conclui-se que o tratamento surge em momento tardio e clinicamente desadequado: “uma coisa é começarmos a tratar feridas ainda em processo cicatricial; outra coisa é quando já está a cicatriz feita começarmos a trabalhar nelas.”

                29º. Se algum agravamento ocorreu devido à incúria da Lesada, tal não pode, obviamente, ser imputado ao Arguido que, desde a primeira hora, se disponibilizou a auxiliar a Lesada, dando conta da existência da apólice de seguro, caso fosse necessário para algum tratamento!

                30º. Acresce que os tratamentos propostos carecem de base científica que comprovem a sua eficácia, conforme se evidencia no Parecer Técnico que se junta.

                31º. No que respeita à necessidade de consultas de acompanhamento psiquiátrico/ psicológico para ultrapassar o suposto stress pós-traumático, também não se encontra justificação para tal.

                32º. Percebe-se que num espaço de dois meses (entre a primeira e a segunda consulta de psiquiatria), e em momento ainda próximo ao evento traumático, a lesada melhorou significativamente.

                33º. Não se vislumbra qualquer justificação plausível para um acompanhamento psiquiátrico por dois anos.

                34º. Ademais, não se compreende nem se aceita que o Tribunal a quo tem condenado o Arguido a pagar uma elevada quantia a título de danos patrimoniais futuros sem que tenha condicionado o seu pagamento à efetiva e comprovada realização dos tratamentos, bem como à efetiva e comprovada realização da despesa;

                35º. Não o tendo feito, o Tribunal a quo admite (implicitamente) que a lesada pode receber a indemnização ainda que não faça qual quer tratamento, faça um tratamento diferente, ou preciso de despender menos dinheiro, o que, obviamente, não é aceitável!


***

                Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequência, a sentença recorrida deverá ser substituída por decisão judicial que:

                i) Absolva o Arguido da prática da prática de um crime de ofensa à integridade física negligente;

                ii) Absolva o Arguido quanto ao pedido de indemnização civil ou, subsidiariamente e à cautela se equaciona:

                a. Absolva totalmente o Arguido do pedido de pagamento de danos patrimoniais futuros (25.960,00)

                i. ou, a ser atribuída alguma quantia (o que apenas se equaciona à cautela), que a mesma fique condicionada a realização efetiva dos tratamentos e à apresentação de comprovativo de pagamento dos mesmos.

                b. Reduza a indemnização por danos não patrimoniais.

                Ao julgardes assim, Venerandos Juízes Desembargadores, estareis uma vez mais a fazer A COSTUMADA JUSTIÇA!”

                No requerimento de interposição do recurso, para além de nele requerer a realização a audiência, nos termos do disposto no art. 411º, nº5 do CPP, veio também nele o recorrente a requerer a junção aos autos do “Parecer Técnico“ que, com ele apresenta, o qual se mostra epigrafado de “Parecer Médico-Legal “, subscrito por um médico especialista de medicina legal, datado de 12.10.2023.


*

            3. O recurso foi admitido, por despacho datado de 25.10.2023.

*

                4. O Exmo. Procurador da República na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo na resposta apresentada, da seguinte forma que, igualmente, se transcreve:

                “1 – Quanto à junção do documento a que o requerente dá o título de Parecer Técnico, atendendo à forma como o arguido elaborou as alegações de recurso, a verdade é que o Ministério Público reputa por ilegal a junção de tal documento nesta fase dos autos, acompanhando o que diz o Mmo. Juiz titular dos autos no despacho de admissão de recurso.

                2 - O referido documento é uma opinião sobre dois outros pareceres médicos, aos quais foi atribuído o valor de prova pericial e que faziam já parte do processo aquando da audiência de discussão e julgamento e que foram, por isso, alvo do necessário contraditório, o que não sucede relativamente ao documento ora junto aos autos em fase recursiva, contrariando a sua, eventual, admissão e apreciação o estatuído pelo artigo 355.º, n.º 1 do CPP.

            3 – A admissão e apreciação de tal documento nesta fase ofenderá a finalidade atribuída pelo legislador à fase recursiva em processo penal uma vez que o âmbito de um recurso abrange toda a decisão (cfr. artigo 402.º, n.º 1 do CPP) mas limita-se às questões decididas nela contidas, não podendo por isso pretender-se num recurso, mais do que reexame das questões decididas na decisão recorrida;

                4 – Quanto ao requerimento de realização de audiência nos termos do artigo 411.º, n.º 5 do CPP o Ministério Público é do entendimento que o ónus de fundamentação exigido pela norma ora em apreciação não foi cumprido pelo requerente, já que o este fez foi simplesmente indicar 6 pontos da motivação, que, na verdade, constituem todo o recurso quanto à matéria atinente à responsabilidade criminal do arguido e que sendo de, facto, controvertidos, não necessitam porém, face aos factos dados como provados e à motivação que os sustenta na sentença do tribunal recorrido, de ser submetidos à audiência excepcional consignada no artigo 411.º, n.º 5 do CPP. Pelo que não deve proceder o pedido de realização de audiência, nos termos e para os efeitos do estatuído pelo artigo 411.º, n.º 5 do CPP.

                5 – Quanto ao recurso de direito relativo à responsabilidade criminal do arguido, face aos factos dados como provados na decisão e respectiva motivação entendemos que o dever de vigilância do arguido não deve ser olhado apenas pela bitola do homem médio, como o faz o arguido, sem que se considere as especiais e concretas circunstância do caso, como o fez o Mmo Juiz a quo.

                6 – E olhando a tal circunstancialismo em concreto, só se poderá concluir que apesar do animal em circunstâncias normais ser um animal dócil, como também ficou demonstrado em audiência de discussão e julgamento sendo facto dado como provado, naquele dia em particular estava especialmente agitado e ansioso, algo de que o arguido tinha conhecimento e que o deveria ter motivado a agir de forma a evitar o resultado que se veio a produzir, ainda que não o tenha previsto.

                7 - Não se trata, s.m.o., de saber se acorrentar um canídeo, por norma, é factor que gera mais stress ou ansiedade no animal, trata-se é de saber se face à ansiedade e nervosismo que o CC, cão de porte médio/grande com 40 quilogramas, ainda que excepcionalmente, demonstrava se não teria o arguido que, antes de abrir o portão de saída de sua casa, assim permitindo a saída do animal, tomar cuidados, também eles excepcionais, para evitar o resultado que veio a suceder. Entendemos que sim.

                8 – Donde não poderia o Mmo. Juiz a quo decidir senão da forma como decidiu: o comportamento do arguido, conhecedor das circunstâncias especificas que rodearam a prática dos factos, foi “[…]imprudente pois que não se comportou de acordo com o quadro normativamente imposto e com a própria avaliação que fez da instabilidade do animal de que era detentor, não se tendo socorrido de todos os meios que estavam ao seu alcance para impedir que viesse a evadir-se para a via pública, como seria previsível que pudesse vir a tentar, o que constitui uma violação do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, ou seja, do «dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem- estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais.».

                Assim, a sentença recorrida deve ser mantida nos seus precisos termos, declarando-se totalmente improcedente o recurso interposto pelo recorrente.

                VOSSAS EXCELÊNCIAS, porém, apreciarão e decidirão como é De JUSTIÇA.”


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            5. Colhidos os vistos, foi realizada a audiência, na qual foram debatidos os pontos da motivação especificados pelo recorrente, tendo o Exmo. Procurador Geral-Adjunto se pronunciado no sentido da improcedência do recurso. 

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            II- Fundamentação
A) Delimitação do objeto do recurso

            Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

            Definindo-se o objecto do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, nas quais deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido, sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso ( Cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009,pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).

            Assim, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir são:

            - A incorrecta decisão sobre a matéria de facto e suas consequências;

            - O incorrecto enquadramento jurídico-penal dos factos, por inverificação dos elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física negligente imputado nos autos ao arguido;

            - A incorrecta ponderação dos montantes indemnizatórios fixados a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.


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            B) Decisão Recorrida

            Com vista ao conhecimento das questões objecto do presente recurso supra enunciadas, importa ter presente o teor da decisão recorrida, na parte relevante, agora, para a apreciação das duas primeiras daquelas, a qual passamos a transcrever:

            “II. Fundamentação da matéria de facto

                2.1. Factos provados

                2.1.1. AA é proprietário de um cão de raça Indefinida com o chipe de identificação número ...43, identificado com o nome “CC”,que reside no logradouro da residência do primeiro e sua família sita na Rua ..., ..., ....

                2.1.2. No dia 08 de janeiro de 2022, cerca das 15h00m, o arguido AA abriu o portão do logradouro da sua residência sem se certificar e previamente garantir que aquele o seu cão se encontrava preso ou de qualquer forma impedido de dali sair para o exterior.

                2.1.3. Na sequência do que o cão vem a conseguir, efetivamente, fugir da residência do arguido, vindo para a via pública.

                2.1.4. A poucos metros daquele local circulava na via pública, mas na berma oposta à do referido canídeo, a demandante BB que viria a ser surpreendida pela presença do animal, propriedade do arguido, que se aproxima e salta-lhe para cima, provocando a sua imediata queda de costas e desamparada no chão.

                2.1.5. Enquanto BB estava deitada no chão o canídeo “CC” mordeu-a em várias partes do corpo – na face, nos braços e costas – até ser afastado com o aproximar de uma pessoa em seu socorro [munida de um pau].

                2.1.6. Altura, mais ao menos, em que também surge no local o arguido que ligou para o 112 a pedir auxílio para a ofendida.

            2.1.7. Em consequência direta e necessária do ataque daquele canídeo a demandante sofreu fortes dores, feridas na face e equimoses e feridas no tronco e membros superiores que lhe determinaram 49 (quarenta e nove) dias de doença, sendo que nos primeiros 30 (trinta) dias com afetação da capacidade de trabalho  geral e profissional.

            2.1.8. O arguido ao ter atuado da forma descrita em 2.1.2) omitiu um especial dever de cuidado e vigilância que sobre si impendia, a respeito daquele seu animal, ao permitir que pudesse aceder à via pública nos termos descritos, ainda que não fosse essa a sua vontade, não agindo, portanto, com o cuidado que devia e podia ter adotado para evitar aquele resultado/lesão que igualmente podia e devia ter previsto, mas que não previu.

                2.1.9. Demitindo-se de deveres de precaução, prudência e vigilância exigíveis a quem é detentor de canídeos, não observando as cautelas impostas ao nível da vigilância e contenção do animal e que se lhe impunham no caso, para evitar um resultado que não quis ou tão pouco aceitou, mas que se veio a verificar, que foi o de o seu cão ter atacado uma pessoa que circulava num local público e dessa forma provocar lesões como as que se viriam a verificar.

                2.1.10. Constituindo um resultado proibido pelo qual podia vir a ser responsabilizado.

                (mais se provou ainda que:)

                (…)

                2.1.13. O canídeo “CC” pesava nas circunstâncias 2.1.4) cerca de 40 quilogramas.

                (contestação)

            2.1.14. O perímetro da casa de habitação do arguido é vedado com muros e painéis de vedação e todos os acessos se fazem por portões que se encontram habitualmente fechados.

                2.1.15. Nas circunstâncias mencionadas em 2.1.3) o “CC” evadiu-se pelo mencionado portão.

                2.1.16. Antes disso o animal mostrava-se ansioso e enervado em virtude de na parte da manhã, nas imediações da casa do arguido, do que o cão se apercebera e muito ladrara, ter estado à solta na via pública um animal suíno fugido do seu curral, o que gerou um grande alarido e tensão por parte das pessoas que viriam a recuperar o animal num espaço contíguo à casa.

                2.1.17. O arguido ao ouvir gritos na via pública foi no seu encalce e viria a encontrar a demandante caída no chão, o seu canídeo “CC” nas imediações e uma pessoa de nome EE munido de um pau.

                2.1.18. O arguido prestou prontamente auxilio à demandante, confortando-a no que lhe foi possível até à chegada da assistência ao local, bem como o fez a sua sogra e uma tia da lesada chegadas, entretanto, juntas da demandante.

                2.1.19. O arguido foi-se inteirando da situação da demandante desde o primeiro dia, via telefone e por intermédio da esposa, junto de alguns familiares e da própria demandante, predispondo-se a assumir qualquer responsabilidade que lhe assistisse em virtude do ataque do seu cão, informando-a que dispunha de um seguro de responsabilidade civil para cobrir eventuais danos causados.

                2.1.20. O arguido tem o seu canídeo devidamente registado e vacinado.

                2.1.21. Não conhecendo até à ocorrência referida em 2.1.4) outras circunstâncias em que o animal, reputado de dócil por quem o conhece, tivesse sido agressivo para com outras pessoas ou para com outros animais.

            (pedido de indemnização civil:)

            2.1.22. Nas circunstâncias referidas em 2.1.4) o “CC” começou por morder o antebraço e a mão esquerda da demandante, tendo esta conseguido desviá-lo para a sua lateral, altura em que o cão coloca as patas dianteiras sobre o seu tronco enquanto lhe morde na face e a faz cair e embater com o cotovelo do braço direito e com a nuca no chão, de forma desamparada.

                2.1.23. Mordendo-lhe repetidamente na zona das costas e do braço esquerdo.

                2.1.24. Nas circunstâncias referidas em 2.1.5) a ofendida gritou por socorro.

                2.1.25. Tendo a chegada de pessoas ao local afugentado o canídeo.

            2.1.26. Com o referido ataque a demandante padeceu de uma forte angústia, tristeza, medo e desolação.

                2.1.27. E fortes dores nas zonas do corpo atingidas pelas mordeduras, pelas patas do animal e com a queda desampara e de costas ao solo.

                2.1.28. Temendo pela sua integridade física e a própria vida.

                2.1.29. A demandante viria a ser assistida no local pelos Bombeiros Voluntários ..., cerca das 15h30m, e transportada ao Hospital ..., onde viria a dar entrada no SU, tratada e medicada com Alta clinica no mesmo dia.

                2.1.30. Tendo-se ali constatado que a demandante exibia uma ferida aberta na asa do nariz; uma ferida aberta na pálpebra esquerda e área periocular; ferida aberta no antebraço esquerdo e ferida perfurada na mão esquerda e na região lombar e pélvis no retroperitoneu para a qual foi tratada, objeto de suturas num total de 20 [que viriam a ser removidas a 20.01.2022] e medicada [ibuprofeno, paracetamol e antibiótico (amoxicilina)

                2.1.31. Intervenções essas confirmadas no relatório do INML de 24 de janeiro de 2022:

                − Face: presença de tiras de steri-strip na região supraciliar esquerda e penso de gaze e adesivo no dorso do nariz, que não foram retirados para não interferir com a normal evolução das lesões subjacentes.

                − Tronco: equimose arroxeada na região lombar esquerda medindo 6cm de diâmetro sobre a qual assentam 2 escoriações, medindo a superior 0,5cmx0,3cm e a inferior 0,4cm de diâmetro; na mesma região, mas de localização posterior em relação à equimose anteriormente descrita, equimose arroxeada medindo 9,5cmx5,5cm sobre a qual assentam 2 escoriações, medindo a superior 4cmx0,4cm e a inferior 5cmx0,6cm.

                − Membro superior direito: equimose ligeiramente arroxeada estendendo-se do terço distal da face posterior do braço ao terço médio do antebraço, envolvendo todas as faces exceto a anterior, medindo 24cmx21,5cm, sobre a qual assentam várias escoriações a maior no terço proximal da face lateral do antebraço com 2,5cmx1cm e menor no cotovelo com 0,3cm de diâmetro; penso de gaze e adesivo no  terço proximal da face medial do antebraço com ligeiro edema a este nível, que não foi retirado para não interferir com a normal evolução das lesões subjacentes; mobilidades do cotovelo mantidas.

                − Membro superior esquerdo: equimose arroxeada envolvendo todo o antebraço, dorso da mão e dedos até às articulações interfalângicas proximais, com edema da mão e dedos condicionando limitação dolorosa da flexão dos dedos, com múltiplas escoriações a maior no terço médio da face lateral do antebraço medindo 3,5cmx0,5cm e a menor no terço médio da face posterior do antebraço medindo 0,4cm de diâmetro; presença de 2 pensos de gaze e adesivo, um no terço médio da face anteromedial do antebraço e o outro no terço distal da face posterior do antebraço e tira de steri-strip no dorso da mão, que não foram retirados para não interferir com a normal evolução das lesões subjacentes.

                2.1.32. Nos 49 dias subsequentes a Demandante viria a sofrer dores decrescentes nos membros superiores, com especial incidência sobre o seu braço esquerdo, o que prejudicou a sua autonomia, capacidade de descanso e a ausência de posições confortáveis de repouso; desgosto, cansaço e angústia.

                2.1.33. Em reação à dor sentiu-se prostrada e com perda de força anímica e física que diminuiu a sua autonomia e a capacidade de se poder vestir sozinha, de realizar a sua higiene pessoal e tarefas domésticas mais complexas como as de cozinhar.

                2.1.34. Tendo, por essa razão, nos primeiros dias, necessitado do auxilio prestado pelo companheiro, da sua mãe, da tia e de uma prima na realização de algumas daquelas tarefas diárias, como ainda de tratar de roupas, confecionar algumas refeições e no demais das lides que necessitasse.

                2.1.35. Limitações físicas que se foram desvanecendo gradualmente.

                2.1.36. Nos dois meses seguintes à agressão a Demandante foi incapaz de obter um descanso diário retemperador em virtude de por vários dias por semana, enquanto dormia, ao rememorar o ataque que teria sido vitima, acordando sobressaltada e em pânico.

                2.1.37. O que a levou a consultar um psiquiatra em 21.02.2022 e 18.04.2022 que, para o efeito, além do mais, lhe prescreveu “Escitalopram” [um tipo de antidepressivo que também é usado para tratar a ansiedade] e “Victan” [benzodiazepina com atuação ao nível do sistema nervoso central, encontrando-se indicado para a ansiedade e sintomas ansiosos].

                2.1.38. Mantendo-se, ainda assim, nos primeiros três meses após o incidente, ansiosa e nervosa.

                2.1.39. Sofrendo, por isso, uma queda de cabelo, especialmente na zona frontal, o que muito a entristeceu e afetou também a sua autoestima.

                2.1.40. Nos primeiros 49 dias a demandante demonstrou ter dificuldade em exercer a condução tendo-se socorrido para o efeito, maioritariamente, de terceiros, nomeadamente do seu companheiro para a conduzir ao estabelecimento de saúde ... em ... para receber tratamentos médicos e de enfermagem, bem como por três vezes a conduziu ao INML em ... e à farmácia a fim de adquirir os medicamentos que lhe foram sendo prescritos.

                2.1.41. Desde o evento e até à presente data que a demandante sofre de ataques de pânico esporádicos quando se encontra perto de um animal da raça canídea; ouve um ladrar de um cão, tem pavor, fica ansiosa, começa a transpirar das mãos e a sentir calor, com medo de poder ser novamente mordida.

                2.1.42. Assim acontecendo em data não concretamente apurada do mês de junho de 2022, na companhia do seu filho de 8 anos de idade, quando se cruzou no hall do seu prédio com dois cães que eram conduzidos por uma trela e que passaram muito próximos de si.

                2.1.43. E em data não concretamente apurada do mês de julho de 2022 quando estava com o companheiro e o filho de ambos em casa de uns amigos, nas Leais, em ..., perante o ladrar do cão (de raça pinscher) destes últimos.

                2.1.44. Ainda presentemente a demandante sente receio em circular a pé na via pública, com medo de se cruzar com algum cão e de poder vir a ser atacada de novo, razão pela qual prioriza a sua deslocação em automóvel, mesmo em curtas distâncias, ao contrário do que acontecia até ser mordida, em especial para ir buscar o seu filho à escola ... e deslocar-se da casa dos seus pais a casa da sua tia.

                2.1.45. Até ser mordida nas apontadas circunstâncias a demandante tinha por hábito fazer caminhadas nas proximidades de casa, ora sozinha ora acompanhada, tendo-o deixado de fazer desde esse dia, com medo de passar por circunstâncias semelhantes.

                2.1.46. No período da consolidação da doença a demandante deixou a atividade física que fazia até então em virtude das dores sentidas nos membros superiores.

                2.1.47. Após ter sido mordida deprimiu e viu afetadas as suas relações intersubjetivas [e sociais], em especial com seu companheiro e com o filho.

                2.1.48. As cicatrizes com que ficou são permanentes e as situadas na face e antebraço de grau 4 em 7, podendo, contudo, ser atenuadas com recurso a tratamentos de medicina estética e medicamentosos, e o quantum doloris sofrido foi de grau 4 em 7.

                2.1.49. Sendo motivo de diminuição da sua autoestima, uma vez que a demandante se sente desfigurada, ocultando a face direita da face [onde possui uma cicatriz na asa da narina], quando disso se recorda, nomeadamente em ambientes sociais.

                2.1.50. São causa de prurido e maior sensibilidade nas zonas das cicatrizes.

                2.1.51. E de algum retraimento na exposição das partes do seu corpo atingidas.

                2.1.52. E ao nível da sua livre expressão na intimidade com o companheiro, depois do período de consolidação da doença.

                2.1.53. Vive em comunhão de vida com o seu companheiro desde o ano de 2008.

                2.1.54. Nas circunstâncias mencionadas em 2.1.4) a demandante trabalhava, com a categoria de operária fabril, por conta da empresa A..., Lda, no Parque Industrial ..., em ..., auferindo mensalmente a quantia de 750,00 € a titulo de salário e 156,40 € de subsidio de refeição. Docs. 24 a 29

                2.1.55. Por força das lesões infligidos pelo canídeo “CC” a demandante ficou de baixa médica entre o dia 08 de janeiro de 2022 e o dia 25 de fevereiro de 2022 [49 dias], sem que tenha tido direito a receber a retribuição ou subsídio social durante esse período [= 1.480,45 €].Docs. 4, 30 a

                2.1.56. Por força das lesões infligidos pelo canídeo “CC” a demandante desembolsou:

                (…)

                2.1.60. A demandante carece de acompanhamento psiquiátrico/psicológico para poder debelar a sintomatologia de stress pós-traumático e reação de ajustamento (com indicação para psicoterapia) de que padece em virtude da agressão de que foi vitima.

                2.1.61. E necessita de tratamento estético para corrigir e debelar as cicatrizes que por, durante cerca de dois anos, submeter-se:

                a) sessões semanais de rádio frequência e ultrassons, com o custo mensal de 200,00 €;

                b) microagulhamento ou mesoterapia a cada 15 dias, com o custo mensal de 250,00 €;

                c) carboxiterapia mensal, com o custo mensal de 250,00 €;

                2.1.62. E de cuidados diários com a pele e corpo nas áreas atingidas e que passa pelo uso de produtos cosméticos específicos (de lavagem, hidratação diurna e noturna, protetor solar coadjuvado com nutracêuticos), que se mostram orçados em cerca de 270,00 € por mês.

                (contestações:)

                2.1.63. O risco decorrente para terceiros da detenção do canídeo “CC” por eventuais danos mostrava-se à data da ocorrência mencionada em 2.1.4) transferida pela Apólice de Seguro n.º ...74 [multirriscos] para a B... S.A [...], sendo seu tomador o arguido AA.

                2.1.64. De acordo com cláusula 47.ª das condições particulares da mencionada apólice de seguro – responsabilidade civil de inquilino ou de ocupante – a Seguradora garante as reparações pecuniárias legalmente exigíveis ao Segurado - na sua qualidade de inquilino ou ocupante do local de risco - com fundamento em Responsabilidade Civil Extracontratual, por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causadas a Terceiros (n.º 1)

                2.1.65. A garantia é extensiva a todos os factos, atos ou omissões ocorridos ou praticados pelas Pessoas Seguras no âmbito da sua vida privada que ocorram em território nacional (n.º 2).

                2.1.66. E abrange danos causados por animais domésticos pertencentes ao Segurado e que com ele coabitem (n.º 4).

                2.1.67. A cobertura está limitada a 25 % do capital conteúdos – num máximo de 50.000,00 € - que é de 60.973,00 euros, pelo que o capital de cobertura ascende à quantia de 15.243,25 €, com uma franquia contratual de 10 %, no mínimo de 100,00 €.


*

                (…)

                III. Enquadramento jurídico dos factos

                O arguido AA mostra-se acusado da prática, em autoria material e de forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física negligente previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal, em virtude de ser comprovado proprietário inscrito do animal de raça canídea de nome “CC” que, em virtude da violação do dever de contensão e vigilância por parte do primeiro, viria a morder a demandante ofendida numa via pública.

                Ora, antes do mais, o Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro, estabeleceu as regras de proteção dos animais de companhia e, concomitantemente, previu o regime para a posse daqueles que, pelas suas características fisiológicas ou comportamentais, viessem a ser enquadrados como animais potencialmente perigosos.

                Definindo no seu artigo 2.º n.º 1 al. a) que o «animal de companhia» é qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia, e como «detentor» [al.f] qualquer pessoa singular, maior de 16 anos, sobre a qual recai o dever de vigilância de um animal perigoso ou potencialmente perigoso para efeitos de criação, reprodução, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais, ou que o tenha sob a sua guarda, mesmo que a título temporário.

                Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 315/2009, de 29.10, no seu artigo 3.º viria a conter igual definição de animal de companhia, como ainda a definir o que seja um «animal perigoso» [al.b] e um «animal potencialmente perigoso» [al.c]. Definindo este último como sendo um qualquer animal que devido às caraterísticas da espécie, do seu comportamento agressivo, tamanho ou potência da mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente, os cães pertencentes às raças previamente definidas como potencialmente perigosas por Portaria. E como sendo animais do primeiro tipo os que se encontre numa das seguintes condições: i) Tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa; ii) Tenha ferido gravemente ou morto um outro animal, fora da esfera de bens imóveis que constituem a propriedade do seu detentor; iii) Tenha sido declarado, voluntariamente, pelo seu detentor, à junta de freguesia da sua área de residência, que tem um caráter e comportamento agressivos; iv) Tenha sido considerado pela autoridade competente como um risco para a segurança de pessoas ou animais, devido ao seu comportamento agressivo ou especificidade fisiológica; Houve preocupação do legislador, em abranger não só as “raças ditas puras” que pelas suas caraterísticas representam um maior perigo para os humanos, como também os cruzamentos com outras raças, mas em que se tenha obtido uma tipologia semelhante às raças puras.

                Tal Portaria foi publicada em 2004 – Portaria n.º 422/2004, de 24 de abril.

                Não obstante o arguido alegar que o animal canídeo em causa aparenta semelhanças com as de um canídeo da “raça labrador”, certo é que como por aquele assumido e se mostra certificado por médica veterinária em audiência, trata-se de um cão de raça indiferenciada de médio-grande porte – cerca de 40 kg de peso – que não é, contudo, reconduzível a uma raça de cães potencialmente perigosa, mas que com o ataque à demandante e o enquadramento legal que antecede passou à categoria de “animal perigoso”.

                Dito isto, qualquer animal domesticado pode ser considerado uma “fonte de perigo” pela sua imanente irracionalidade e pelo facto de não ser completamente dominado pela vontade humana. Logo, esse dever especial de cuidado por parte do seu «detentor» já existia em relação a qualquer animal de companhia, incumbindo-lhe, nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, «o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais.»

                Manifestamente, sobre o arguido, como proprietário e detentor do animal (o canídeo CC) recaia, e recai, a obrigação jurídica de controlar aquela fonte de perigo sobre a qual tinha disponibilidade fáctica de forma a evitar a lesão de bens pessoais ou patrimoniais alheios o que constituía, como não poderia deixar de ser, uma obrigação de resultado.

                E esse controlo seria feito através de uma sua adequada contenção por referência ao seu espaço habitacional e ao das demais pessoas e animais que circulem dentro do perímetro em que o mesmo habitualmente se encontre na residência/espaço fechado do seu detentor, e quando na via pública ou em espaços de natureza privada e de acesso ao público deve ser controlado com o uso de trela curta (1 metro).

                Feito este introito e analisando sumariamente o crime de que o arguido vem incurso.


*

                O crime de ofensa à integridade física por negligência mostra-se previsto no artigo 148.º n.º 1 do Código Penal que prescreve que “Quem, por negligência, ofender o corpo e a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”

                O tipo complexo de ofensa negligente exige a verificação de um resultado lesivo.

                Dispõe o artigo 15.º Código Penal que age com negligência quem «não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado». Da noção legal resultante deste preceito legal ressalta a ideia de que a negligência consiste na omissão de um dever objetivo de cuidado adequado, imposto segundo as circunstâncias concretas de cada caso, de molde a evitar um evento lesivo proibido por lei: o «não proceder com cuidado».

                Um tal dever normativo de cuidado, que pode ser violado por ação ou por omissão, manifesta-se essencialmente em duas vertentes: (i) no denominado cuidado interno, enquanto dever de o agente representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado pela norma jurídica e de valorar esse perigo; (ii) e o cuidado externo, enquanto dever de praticar um comportamento externo correto, com vista a evitar a produção do resultado proibido.

                O cuidado externo desdobra-se ainda em três exigências principais, a saber: (i) o dever de omitir ações perigosas; (ii) o dever de atuar prudentemente em situações perigosas; (iii) o dever de preparação e informação prévia.

                Por sua vez, quanto ao tipo de culpa, os crimes negligentes exigem a verificação da censurabilidade da ação objetivamente violadora do dever de cuidado, sendo necessário que o agente possa cumprir, de acordo com as suas capacidades pessoais, o dever de cuidado a que se encontra obrigado e prever o resultado típico e o processo causal daí decorrente nos crimes de resultado (a previsibilidade individual está excluída nos casos de negligência inconsciente; na negligência consciente o agente representa como possível a realização de um facto que preenche um determinado tipo de crime).

                A omissão do dever objetivo de cuidado consiste, assim, em o agente não ter usado da diligência exigida na vida de relação social relativamente ao comportamento em causa.


*

                Afirmada a violação de um dever objetivo de cuidado por banda do arguido – e já concluímos que sim na motivação da matéria de facto e nos factos dados como provados - cumprirá verificar se o resultado típico “lesão” pode objetivamente ser imputado à conduta descuidada do arguido, talqualmente lhe é atribuída.

                Neste particular ponto da imputação do facto ao agente seguimos o acórdão do TRE de 25-05-2021 disponível para consulta em www.dgsi.pt, de acordo com o qual “No caso de comportamentos negligentes terá de existir, necessariamente, a violação de um dever objetivo de cuidado, enquanto cuidado exigível para evitar a ocorrência do resultado típico.

                A afirmação do especial dever de cuidado faz-se em função das particulares circunstâncias de atuação do agente, constituindo auxiliares importantes nessa determinação as normas jurídicas que impõem aos seus destinatários específicos deveres e regras de conduta.

                Os factos descritos e dados como provados ante a violação por parte do Arguido do dever de cuidado de se certificar ao sair de casa com o portão aberto que o seu cão também pudesse fazer o mesmo e causar lesões em terceiros como infelizmente se veio a verificar, integram os elementos essências objectivos e subjectivos da prática pelo Arguido de um crime de ofensas corporais negligentes, p. e p. pelo Artigo 148, n.° 1 do Código Penal.”

                Em primeira linha o arguido é assumidamente proprietário inscrito do cão agressor, seu detentor à data dos factos e tomador de seguro de responsabilidade que assegura o risco da detenção daquele concreto animal doméstico [de raça indiferenciada], de nome “CC”, que atacou a demandante, aqui ofendida, numa via pública.

                Por única e exclusiva ação daquele animal (não racional) – visto que não há o menor indicio em como o mesmo haja sido incitado ou provocado pelo arguido nesse sentido ou por terceiros ou tão pouco pela demandante - e por expressa omissão do dever da sua contensão no interior das cercanias existentes na residência do arguido e pela omissão do correspetivo dever de garantir que aquele animal não circularia na via publica sem ser à trela quando, o arguido, representara e previra que o estado de alerta e nervosismo do animal com o que se passara do lado de fora do perímetro de sua casa poderia constituir um perigo para bens jurídicos tutelados (art. 15.º al.a) do Código Penal), caso, como aconteceu neste caso, aquele se escapulisse para a via pública, sem que haja valorado corretamente esse mesmo perigo, conhecendo-o (comportamento interno); abstendo-se, como se lhe impunha, eliminar um risco com que prudentemente podia contar, colocando o animal preso ou em uma área onde não pudesse aceder, como veio a ter lugar, à rua (cuidado externo), evitando a produção de resultados proibidos.

                O resultado que se viria a produzir - a lesão (dano/violação) à integridade física e psíquica e ao património da demandante – ainda que não por sua vontade, sendo previsível, tem de se encontrar numa relação de causalidade com a ação violadora do dever de cuidado que se impunha ao arguido observar, de tal forma que se possa afirmar que aquele tem como causa esta última (nexo de causalidade) omissão.

                Exige-se o chamado nexo de causalidade natural.

                O resultado tem de ter como sua causa natural a ação/omissão do arguido.

                Tal acontece também no caso presente visto que como resulta trazido pelo arguido e pela sua esposa em audiência, os mesmos tinham conhecimento que o cão se encontrava agitado, instável e «atento» ao que se passava no exterior da residência [com os instintos de proteção e de dominialidade exacerbados, porventura, por força do episódio com o porco que ambos relataram, idóneo a um tal estado] – não de confiança – o que reclamava da sua parte, em especial do arguido, que o tivessem colocado num local de contenção (preso a uma corrente) ou num espaço fechado sem ligação ao exterior. Ao invés disso nada fez e omitindo esse seu dever permitiu que o animal se mantivesse livre no interior da sua propriedade e almejasse a fuga pelo portão de entrada quando aquele tentava sair de casa. Saída essa que é causa adequada do cruzamento do animal e da demandante na via pública e o ataque desta por aquele. O que constituiu, por ação do grande porte do animal e das suas patas (e unhas) e mandibula (dentes), condição mecânica das lesões que foram verificadas com a queda ao solo e desamparada da ofendida de costas e com os arranhões e mordeduras sofridas no corpo e consequentemente para ulterior necessidade de assistência médica e hospitalar para tratamento das lesões e dores verificadas.

                Assim como as sequelas permanentes que surgem dadas como provadas e toda a instabilidade emocional e os receios/traumas gerados pela figura daquela espécie animal, de quem a Demandante passou a desconfiar e a temer em virtude da sua experiência traumática.

                Ainda se exige que tenha sido precisamente a ação (neste caso) violadora do dever de cuidado a que o agente estivesse obrigado, de entre as várias condições que concorreram para que o evento se desse, que haja sido a causa específica que produz o concreto resultado proibido (o chamado nexo de causalidade adequada).

                «A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme às leis científico- naturais, previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” (art. 10º do Código Penal) e concretização do risco proibido criado, potenciado ou não diminuído no resultado» - vide acórdão da Relação de Évora de 10.12.2013 (Ana Barata Brito).

                Com esta formulação legal a ação/omissão será adequada para produzir um resultado típico (causalidade adequada) quando uma pessoa normal, colocada na situação do gente, tivesse podido prever que em circunstâncias reputadas normais tal resultado se produziria inevitavelmente (“prognóstico posterior objetivo”). Desta formulação decorre que só será objetivamente imputável um resultado causado por parte de uma ação/omissão humana quando a mesma tenha criado um perigo juridicamente desaprovado pelo ordenamento jurídico e que se realizou num resultado típico (imputação objetiva do resultado à ação) - Jesheck, Tratado de Direito Penal, Parte general, Vol. I, p. 251 e ss.

                No caso dos autos o comportamento do arguido foi imprudente pois que não se comportou de acordo com o quadro normativamente imposto e com a própria avaliação que fez da instabilidade do animal de que era detentor, não se tendo socorrido de todos os meios que estavam ao seu alcance para impedir que viesse a evadir-se para a via pública, como seria previsível que pudesse vir a tentar, o que constitui uma violação do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, ou seja, do «dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais.».

                Pois que o proprietário de um animal, para além de poder ser considerado como utilizador do mesmo no seu próprio interesse, pode também ser considerado como a pessoa encarregue da sua vigilância, o que não quebra a imputação direta ao obrigado à vigilância da responsabilidade advinda do vigiado (art. 493º, nº 1 do Código Civil) – vide o Ac. do STJ de 23.04.2009, P. 7/09.2YFLSB (Oliveira de Vasconcelos), consultável em www.dgsi.pt

                Quanto à culpa, o juízo de censurabilidade depende da capacidade pessoal do agente de reconhecer e de observar o dever de cuidado e de prever o resultado e concreto processo causal. Esta capacidade é apreciada subjetivamente, isto é, em função das qualidades que ao agente assistam. Quanto a este propósito o arguido mostrou ser um homem experiente e com capacidade individual equivalente ao de um homem médio, pelo que pôde apreender as consequências decorrentes da omissão do seu dever de vigilância para com o animal e para a idoneidade deste +último para produzir danos e lesões em pessoas e animais como aquela a que deu causa, por sua responsabilidade, ao não garantir a sua efetiva contensão, com o consequente respaldo para a integrada (física e psíquica) e bens da demandante.

                Como resulta provado não só o arguido estava obrigado a um dever de vigilância, como aquele podia efetivamente ter diretamente influído sobre as condições que estiveram na origem dos prejuízos causados se preventivamente, como estava sensibilizado e podia ter executado, mas não o fez, as medidas necessárias de contensão do cão e evitar a sua fuga e consequentemente o resultado proibido.

                Não está aqui em causa apurar ou questionar se a residência do arguido tinha ou não vedação em todo o seu perímetro, como se demonstra ter, ou as demais condições de salubridade para o bem-estar animal, mas sim a perceção que o arguido teve de que aquele animal estava instável e pretenderia uma interação com o exterior, tornando plausível que numa primeira oportunidade, como veio a ter lugar, pudesse concretizar a sua fuga e assim acontecendo, como aconteceu, pudesse vir a colocar em perigo pessoas e animais (estes últimos seguramente, em função do que o arguido alega ser as razões para a sua destabilização).

                Razão pela qual não se faz prova em como não haja culpa da sua parte (artigo 493.º, n.º 1 do Código Civil), antes pelo contrário, fica demonstrada a violação do dever de vigilância e prudência na detenção daquele animal, sem que lhe assistam causas de exclusão da culpa ou da ilicitude.”


*

            C) Apreciação do recurso

Nota prévia.

Pese embora o arguido e ora recorrente faça menção expressa, na motivação do recurso, a que a sua dissensão em relação à sentença recorrida no que tange à responsabilidade criminal nela apreciada se cinge à matéria de direito, a verdade é que o mesmo, para efeito de “ recurso em matéria de facto quanto ao pedido de indemnização civil “, lança mão da impugnação de matéria de facto,  designadamente da contida nos pontos 2.1.8. a 2.1.10., a qual, para além de se tratar de matéria atinente aos pressupostos da obrigação de indemnizar, com relevo, por isso, para a apreciação do pedido de indemnização civil deduzido nos autos, trata-se, igualmente, de matéria factual integrante dos elementos constitutivos do crime imputado ao arguido, designadamente do seu elemento subjectivo.

Daí que, apesar do recorrente pretender, como anuncia no seu discurso recursivo, cingir a sua discordância em relação à sentença recorrida quanto à responsabilidade criminal nela apreciada lançando mão apenas do “recurso em matéria de direito quanto à responsabilidade criminal”, tal questão só pode ser apreciada por este Tribunal de recurso depois de apreciada a impugnação da matéria de facto deduzida no presente recurso pelo recorrente, tendo em conta que parte desta matéria impugnada visa matéria também com relevo para apreciação da responsabilidade criminal imputada nos autos ao arguido.

  Daí que, iniciaremos a apreciação das questões que se suscitam no presente recurso pelo conhecimento da questão da impugnação da matéria de facto que nele vem deduzida.


*

  - Da incorrecta decisão sobre a matéria de facto e suas consequências.

 (…)

      Volvendo-nos, agora, sobre a impugnação que vem deduzida relativamente à factualidade vertida nos pontos 2.1.8., 2.1.9. e 2.1.10. do elenco factual provado, importa, desde logo, dizer o seguinte:

      Tal factualidade respeita ao elemento subjectivo do crime de ofensa à integridade física por negligência imputado nos autos ao arguido e, na impugnação que à mesma deduz, o arguido e ora recorrente não convoca qualquer meio de prova para sustentar a almejada alteração de tal factualidade – no sentido da não prova da mesma – alavancando, apenas, essa sua pretensão em alguns dos factos objectivos que resultaram provados, os quais, na sua óptica, impõem diferente decisão relativamente a tal matéria impugnada.

      Com efeito, o recorrente estriba, apenas, a diferente decisão que, no seu entender, se impõe em relação a tal factualidade no facto de, não estando em causa um animal perigoso, o arguido não estar em condições de prever a reacção que o seu animal, em concreto, teve perante a lesada, e em que adoptou os cuidados que, em concreto, seriam exigíveis perante uma animal tido por dócil, sem qualquer episódio de agressão, preocupando-se com a saúde e o bem estar do mesmo, não tendo qualquer motivo para admitir como possível um cenário como aquele que se veio a verificar,  argumentação esta que sintetiza nas conclusões 20ª a 23ª.

      O tribunal recorrido sustentou a prova de tal factualidade nos meios de prova carreados para os autos, cujo conteúdo probatório e razão de ciência deixou expendidos na motivação da decisão da matéria de facto que consta da sentença recorrida, sobre os quais deixou, ainda, nela exarada a seguinte análise crítica:

            “ Das declarações do arguido AA extrai-se com verosimilhança, na falta de indiciação contrária [não há elementos de prova que indiciem que o mesmo seria negligente com aquele seu animal ou que o mesmo circulasse sem controlo na via pública, pelo menos de forma consentida], as circunstâncias em que o cão, de nome “CC”, se furtará de sua casa – o mesmo escapuliu-se pelo portão de sua casa, quando se preparava para sair sozinho por esse mesmo local – como se infere com certeza, no cruzamento com o depoimento prestado pela esposa do arguido, não obstante a habitação estar dotada de estruturas – vedações - necessárias à guarda e contensão do animal, que o mesmo se encontrava muito ansioso e emocionalmente instável, o que atribuiu a um episódio que havia ocorrido momentos antes – captura de um porco junto à vedação da casa, com algum alarido por parte das pessoas que levaram a cabo tal operação – mas que, ainda assim, não obstante, não entendeu por bem prender o cão num local de onde não pudesse vir a escapulir-se, mantendo-o outrossim livre de movimentos no interior da sua propriedade.

            Note-se que quanto à perceção da instabilidade do cão de nome “CC”, o Tribunal não ficou com quaisquer reservas que as mesmas tivessem sido percetíveis ao aqui arguido, como aquele reconheceu em audiência ou aos seus familiares [mulher e filho], como verbalizado pela sua esposa, atribuindo ao filho de ambos forte preocupação pela “agitação do animal” momentos antes do sucedido [aliás, trata-se de uma assunção contida na sua contestação]. Independentemente das razões que tivessem levado à alteração de comportamento daquele animal – pouco importando para o efeito a relatada estória do porco, se assim se pode dizer, ou de uma outra qualquer – o mais importante é a efetiva demonstração que existiam reais preocupações, em especial por parte do arguido (bem como da família deste), a respeito do comportamento daquele cão que, pela sua idade (menos de 2 anos à data) e as suas demais características (v.g. o seu medio-grande porte e um eventual instinto de defesa territorial), tornariam previsível que aquele se tentasse escapulir – como veio a acontecer – para a rua e naquele estado de agitação e ansiedade – como também se disse - e tratando-se de um animal não racional, ainda que tido como pacifico por quem com ele lida, pudesse vir a atacar pessoas, coisas ou animais como veio, de facto, a suceder.

            Aqui se inferindo a sua culpa in vigilando.”

            A negligência, tal como o dolo, enquanto factos subjectivos, enquanto factos da vida interior do agente, não podem ser apreendidos ou percepcionados directamente por terceiros pelo que a sua demonstração, tem que ser feita por inferência, através da conjugação da prova dos factos objectivos, em particular, dos que integram o tipo objectivo do crime, pelo que relativamente à prova dos factos subjectivos esta é alcançável por recurso a presunções naturais e às regras da experiência comum.

            A prova dos factos de natureza subjetiva, mais do que quaisquer outros, não havendo confissão do agente, é alcançada através das chamadas presunções judiciais, tendo em vista os actos materiais praticados e a avaliação da vontade que neles teve que ser aplicada pelo agente, em função das regras do elementar senso comum.

            Dada a natureza subjetiva, a menos que sejam confessados pelo agente, a única forma de prová-los será através das regras da experiência comum, a partir da objetividade da acção desencadeada ou omitida.

            Certo é que a admissibilidade da prova por presunções em processo penal é propensa a dúvidas pela sua articulação com o princípio da presunção de inocência do arguido, tutelada constitucionalmente. No entanto a presunção de inocência constitui um critério normativo de aplicação da lei, não constituindo uma presunção em sentido técnico – cfr. Alexandre Vilela, in Considerações Acerca da Presunção de inocência em Direito Processual Penal, Coimbra Editora, reimpressão, 2005, p. 89.

            A presunção de inocência situa-se em um patamar diferente da admissibilidade dos meios de prova - a presunção de inocência impede apenas a produção de efeitos da decisão antes do respectivo trânsito em julgado, não tomando posição sobre os meios de prova legalmente admissíveis, como sucede com as chamadas presunções judiciais, previstas especificamente no art. 351º do C. Civil. Resultando ainda da admissibilidade da apreciação da prova de acordo com as regras da experiência comum, como previsto no art. 127º do C.P.P.  

            A reserva em aceitar nas motivações probatórias em que se utilizam presunções dever-se-á, como refere Climent Durán (La Prueba Penal, ed. Tirant Blanc, p. 575), à circunstância de se “crer erroneamente que tal maneira de proceder não é propriamente jurídica e que supõe a introdução de alguma dose de arbitrariedade no conteúdo das suas decisões”.

            Mais esclarecendo o mesmo autor, com propriedade, que “A razão da divergência entre os conceitos vulgar e jurídico de presunção há que encontrá-la em que o conceito vulgar de presunção está referido à presunção em abstrato, ou seja, à norma ou à regra de presunção in genere, que, ao admitir a prova em contrário, se pode considerar ainda como algo inseguro ou incerto; em contrapartida, o conceito jurídico de presunção refere-se à presunção em concreto, uma vez que deixou de ser uma norma ou regra abstrata, por ter-se praticado, ou podido praticar-se, a prova do contrário, com o que então a presunção deixa de ser uma conjetura e se converte em certeza plena” – cfr. ob. cit., p. 577-578.

     Sendo certo que “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência” – cfr. Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ nº 112, pg. 190.

     Aliás a associação que a prova indiciária entre elementos de prova objectivos e regras objectivas da experiência leva alguns autores a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova direta testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja a credibilidade do testemunho – cfr. Mittermayer, Tratado de la Prueba em Processo Penal, p. 389.

     No entanto, para que a prova indireta, circunstancial ou indiciária possa ser tomada em consideração exige-se: - pluralidade de factos-base ou indícios; precisão de tais indícios estejam acreditados por prova de carácter directo; - que sejam periféricos do facto a provar ou interrelacionados com esse facto; racionalidade da inferência; - a expressão, na motivação do tribunal de instância, de como se chegou à inferência – cfr. FRANCISCO ALCOY, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presuncion de Inocencia, Editora Tirant Blanch, Valencia 2003, p. 39, fazendo a síntese da doutrina e jurisprudência sobre o tema. No mesmo sentido, desenvolvidamente, cfr. CARLOS CLIMENT DURÁN, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch p. 626 e segs., em especial p. 633.

     Como decidiu o Ac. do T. Constitucional de 24.03.2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. «A decisão da matéria de facto não constitui uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente — aqui relevando, de forma especialíssima, os princípios da oralidade e da imediação — e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo”»

     Por outro lado, em termos de valoração da prova, a certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica – crf. Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant Blanch, p. 615. Ou como ponderava Castanheira Neves (Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, pp. 48 e 49) “a verdade a que se chega no processo não é a verdade absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial e prática, uma «verdade histórico-prática», em que a sua modalidade «não é a de um juízo teorético, mas a daquela vivência de certeza em que na existência, na vida, se afirma a realidade das situações, como tudo o que nestas de material e de espiritual participa”.

     Por último, a dúvida razoável, que determina a impossibilidade de ter como provada a realidade de um facto, por um lado, não é a dúvida abstracta, meramente possível ou hipotética. Mas antes a dúvida concreta, que resulta da discussão exaustiva da prova, devidamente objetivada na fundamentação da decisão. Devendo ainda apresentar-se como séria e razoável em face da análise da prova efetuada. A dúvida deve ser argumentada, coerente e razoável – cfr. Jean-Denis Bredin, Le Doute et L’intime Conviction, Revue Française de Théorie, de Philosophie e de Culture Juridique, Vol. 23, (1966), p. 25.

     Assim, se o princípio da livre apreciação exige a formação, objectivada na motivação da decisão, de uma convicção para lá da dúvida razoável, o princípio in dubio pro reo impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável – devendo também ser objectivada na motivação da decisão. Assim o princípio da livre convicção e o princípio in dubio pro reo constituem a face e o verso da mesma realidade, constituindo o critério da decisão judicial sobre a prova do facto. Em ambos os casos, quando a apreciação não é vinculada, é a razoabilidade dessa apreciação, à luz dos critérios da experiência comum, objetivada na motivação da decisão, que constitui o critério da decisão.

            No caso sob apreciação, partindo dos factos objectivos relativos às circunstâncias em que se deu a saída do cão propriedade do arguido, do logradouro da residência deste para a via pública onde circulava a demandada, às características inerentes a tal animal e à instabilidade que o mesmo nesse momento apresentava, não merece qualquer censura o raciocínio lógico-dedutivo feito pelo tribunal recorrido, à luz das regras da experiência comum, que lhe permitiram afirmar a factualidade referente à não observância, por parte do arguido, do dever de cuidado e de vigilância que lhe eram exigíveis para evitar o resultado que veio verificar-se que, apesar de poder e dever ter previsto, não previu.

            Com efeito, colocando a tónica em que não estando em causa um animal perigoso, o recorrente entende que não poderá resultar demonstrado – como o tribunal recorrido considerou – que o arguido estivesse em condições de prever a reacção que esse seu animal teve, em concreto, perante a lesada.

            Esquece, porém, o arguido/recorrente que, na qualidade de detentor do animal em causa, ainda que este não possa ser considerado perigoso, nem mesmo potencialmente perigoso, lhe incumbia, de acordo com o disposto no art. 6º do Dec. Lei 276/2001, de 17.10, na redacção em vigor à data dos factos emergente do Dec. Lei 9/2021, de 29/01), o dever de o vigiar, de forma a evitar que o mesmo pusesse em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas ou animais.

            Dever de vigilância esse que o arguido descurou, pois, conforme resultou provado (pontos 2.1.2 e 2.1.3. que por si não vêm impugnados) o arguido abriu o portão do logradouro da sua residência sem se certificar e previamente garantir que aquele seu cão se encontrava preso ou de qualquer forma impedido de dali sair para o exterior, na sequência do que o cão veio a conseguir, efectivamente, fugir da residência e vir para a via pública, tanto mais que antes dessa saída acontecer o animal mostrava-se ansioso e enervado, conforme igualmente resultou provado ( ponto 2.1.16. que por si igualmente não vem impugnado).

            Dever de vigilância esse que o arguido podia e devia ter observado, e não observou, não tendo o tribunal recorrido perspectivado - como única solução para a observância do mesmo – a possibilidade de acorrentamento desse animal que se encontrava ansioso/enervado, como, debalde e arrazoadamente, no corpo da motivação do recurso, o recorrente pretende fazer crer, porquanto, como bem equacionou o tribunal recorrido, bem podia o arguido ter impedido, “ por qualquer outra forma “, a saída do seu cão para o exterior da sua residência, o que, efectivamente, estava ao seu alcance, uma vez que bastaria ao arguido ter-se  rodeado dos cuidados necessários para que o aquele seu cão – que, por opção sua, circulava livre de movimentos no interior da sua propriedade - não pudesse sair para o exterior desta e para a via pública quando abriu o portão que a estes dá acesso.

            Por outro lado, como e bem, enfatizou o tribunal recorrido na motivação da decisão da matéria de facto impugnada e agora sob apreciação, também o comportamento assumido por aquele animal antes dos  factos poderiam fazer prever ao arguido a reação deste que se veio a desencadear quando, na via pública, se deparou com a lesada, ao referir que“ o mais importante é a efetiva demonstração que existiam reais preocupações, em especial por parte do arguido (bem como da família deste), a respeito do comportamento daquele cão que, pela sua idade (menos de 2 anos à data) e as suas demais características (v.g. o seu medio-grande porte e um eventual instinto de defesa territorial), tornariam previsível que aquele se tentasse escapulir – como veio a acontecer – para a rua e naquele estado de agitação e ansiedade – como também se disse - e tratando-se de um animal não racional, ainda que tido como pacifico por quem com ele lida, pudesse vir a atacar pessoas, coisas ou animais como veio, de facto, a suceder. “

            Donde, é de concluir que igualmente nenhum reparo merece a decisão quanto à factualidade vertida nos pontos 2.1.8., 2.1.9. e 2.1.10. do acervo factual provada, a qual, por isso, é de manter.

            (…)


*

            - Do incorrecto enquadramento jurídico-penal dos factos, por inverificação dos elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física negligente imputado nos autos ao arguido

            Com base na argumentação recursiva que sintetiza nas conclusões 2ª a 16ª, pretende o arguido e ora recorrente a sua absolvição do crime de ofensa à integridade física por negligência que lhe vinha imputado na acusação e pelo qual acabou condenado na sentença recorrida.

            Preceitua o art. 148º, nº1 do CP, que “ Quem por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

            Por seu turno, o art. 15.° do Código Penal, preceitua que: 

            « Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias , está obrigado e de que é capaz:

             a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com a sua realização; ou

            b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.».

            Como se salienta no Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de  17.09.2014, disponível em www.dgsi.pt:

             “A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa.

            O tipo objectivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objectivo de cuidado; a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.

            A violação pelo agente do cuidado objectivamente devido é concretizada com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”.

            A não observância do cuidado objectivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo.”

            Conforme defende Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, pág. 656. “Na negligência consciente o tipo subjectivo residirá na deficiente ponderação do risco de produção do facto, na inconsciente ausência de pulsão para a representação do facto.”.

            Como se assinala no aresto citado, “Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado.

            Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.”

            Não tendo a pretensão recursiva atinente à decisão da matéria logrado obter provimento e tendo o tribunal recorrido dado como provada a factualidade vertida na sentença recorrida, que, por isso, se mantém inalterada, dúvidas não podem restar de que o Tribunal recorrido procedeu, com assertividade, ao enquadramento jurídico da conduta do arguido no tipo legal do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido no art. 148º, nº1 do C. Penal.

            Corroborando, na íntegra, as considerações a esse respeito adiantadas na sentença recorrida, que aqui se dão por reproduzidas, diremos, apenas o seguinte:

            Independentemente de o canídeo em causa nos autos, de que o arguido é detentor, ser ou não animal perigoso ou potencialmente perigoso – o que, efectivamente, não pode ter-se por provado – o certo é que sobre o arguido impedia o dever de vigiar o canídeo de que era detentor, por forma a evitar que este pusesse em risco a vida ou integridade física de outras pessoas ou animais.

            Na verdade, tal dever - que impende sobre todos os detentores de animais de companhia - decorre do que se dispõe o art. 6º do Dec. Lei 276/2001, de 17 de outubro, na sua actual redacção, epigrafado de Dever especial de cuidado do detentor”, segundo o qual:

            “Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o cuidar, de forma a não pôr em causa os parâmetros de bem-estar, bem como de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas e animais.” ( sublinhado nosso).

            E, por forma a prevenir o risco de, na via ou lugares públicos, os animais de companhia poderem pôr em causa a vida ou integridade física de outras pessoas ou animais, o legislador estipulou, no art. 7º, nº2 do Dec. Lei n.º 314/2003, de 17 de Dezembro na sua redacção actualmente em vigor que:

            É proibida a presença na via ou lugar públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor, e sem açaimo funcional, excepto quando conduzidos à trela, em provas e treinos ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os actos venatórios.” (sublinhado nosso).

            O arguido incumpriu tais deveres, não agindo com o cuidado que tais preceitos legais lhe impunham e de que era capaz, assim permitindo que o seu cão viesse sozinho para a via pública e sem açaimo e, nessas circunstâncias atacasse, como atacou, a ofendida BB, provocando-lhe as lesões que resultaram provadas.

            E, ao demitir-se de tais deveres, podendo prever que o seu cão atacasse qualquer transeunte ou animal que circulasse na via pública - não só pela característica da irracionalidade inerente ao mesmo, como também, pelo facto desse animal se mostrar ansioso e enervado em consequência do evento de que se dá conta no ponto 2.1.16.- o arguido  não evitou, como devia e lhe era possível – através do acorrentamento do cão, do açaime deste ou impedindo-o, por qualquer forma, de sair para a via pública – que aquele viesse  a provocar as lesões que provocou à ofendida.

            Donde, sem necessidade de maiores considerações, resta concluir que não merece censura a responsabilização criminal do arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido no art. 148º, nº1 do C. Penal por que vinha acusado e pelo qual foi condenado pelo tribunal recorrido, na pena de multa que lhe foi aplicada, cuja medida por ele não vem posta em causa.

            Improcedendo, assim, também neste segmento, o recurso.


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            - Da incorrecta ponderação dos montantes indemnizatórios fixados a título de danos patrimoniais e não patrimoniais

            Ao insurgir-se quanto ao decidido na sentença recorrida relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos, o arguido e ora recorrente esteia a sua pretensão da revogação total da mesma nessa parte por considerar que actuou sem culpa e, por assim ser, que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada pelos danos que possam ter resultado para a demandante.

            Visto que soçobrou, na totalidade, a pretensão do recorrente no concernente à impugnação da matéria de facto por si deduzida e que da factualidade decidida como provada pelo tribunal recorrido resultam todos os pressupostos da obrigação de indemnizar, previstos no art. 483º, nº1 do CC. – como, e bem, foi considerado na sentença que vem posta em crise - não pode, como base em tal argumentação, lograr o mesmo conseguir a absolvição relativamente ao decidido quanto ao pedido de indemnização civil contra si deduzido nos autos.

            Vejamos, agora, se, apesar de não poder proceder a pretensão de revogação total do decidido quanto ao pedido de indemnização civil, poderá, ainda assim, proceder a pretensão de revogação parcial da sentença nessa parte, nos termos também propugnados pelo recorrente.

            Com tal pretensão, deduzida, subsidiariamente, em sede recursiva, visa o recorrente a alteração dos montantes fixados na sentença recorrida a título de danos não patrimoniais e a título de danos patrimoniais futuros, nos montantes de € 15.000,00 e € 25.960,00, respectivamente.

            Assentando, também, esta pretensão do recorrente na pretendida, mas não conseguida, alteração da factualidade provada vertida nos pontos 2.1.48, 2.1.60., 2.1.61. e 2.1.62. do elenco factual provado, é manifesto que, com base em tal fundamento, também tal pretensão terá de naufragar.

            Na verdade, a argumentação recursiva a esse propósito resumida nas conclusões, apresenta-se apenas feita na conclusão 24ª, da seguinte forma “ Quanto à matéria do ponto 2.1.48. conclui-se que a fixação do quantum doloris de grau 4 em 7 é exagerado e desadequado, devendo ser fixado valor inferior a arbitrar segundo o prudente arbítrio do tribunal ad quem”, no seguimento, aliás, da densificação feita no corpo da motivação, onde se esgrimem os argumentos tendentes ao entendimento de que a referida factualidade deveria ter sido julgada não provada e onde conclui “Em consequência, e pelos fundamentos expostos, deverá ser arbitrada uma indemnização por danos não patrimoniais em valor substancialmente inferior ao fixado pelo tribunal a quo, segundo o prudente arbítrio do Tribunal ad quem. Na falta de elementos objectivos, deverá ser fixada quantia ilíquida a apurar em sede de liquidação de sentença”.

            Assim sendo, mantendo-se inalterada a factualidade apurada em que o tribunal recorrido se baseou para fixar em € 15.000,00 ( quinze mil euros) a indemnização a arbitrar à demandante BB a título de danos não patrimoniais, derivados também de um “ dano biológico “, e não vindo, minimamente, posto em causa pelo recorrente a ponderação feita pelo tribunal recorrido a respeito dos critérios legais que foram levados em conta na fixação do referido montante, que em nosso atender também se afigura assertivo, é o mesmo de manter.

            Vejamos, por último, o montante arbitrado na sentença recorrida à mencionada demandante, a título de danos patrimoniais futuros – no montante de € 25.960,00 ( vinte e cinco mil, novecentos e sessenta euros ), que igualmente vem posto em causa pelo recorrente por outra ordem de razões.

            A esse propósito, depois de na sentença recorrida se discorrer sobre a verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar, aduziu-se o seguinte quanto aos danos patrimoniais futuros:

            “Deu-se ainda como provado os valores que são necessários despender para que a demandante, deles carecedora, tenha o acompanhamento clinico e psicológico e possa ainda aceder a tratamentos estéticos de que a mesma carece e que configuram um verdadeiro dano patrimonial futuro.

                Conforme dispõe o art. 564.º, n.º 2, do Código Civil, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que estes sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior. Mas na hipótese de não poder ser provada a sua medida precisa, ou seja, quando os elementos demonstrados, ainda assim, não consintam a determinação certa do quantum do dano, a fixação da correspondente indemnização deve ter lugar segundo juízos de equidade (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil).

                Os danos futuros que resultam dados como provados a respeito do tratamento psiquiátrico/psicológico e estético de que a demandante carece e que resultam da lesão são previsíveis e estão orçados e como tal são, pois, atendíveis e a sua valoração será efetuada com base em juízos de prognose, mediante um cálculo de verosimilhança ou probabilístico.

                Encontrando-se entre estes aqueles de natureza patrimonial que o lesado possa ainda não ter sofrido, ao tempo da atribuição da indemnização, mas que seguramente ou muito provavelmente virá a sofrer no futuro, por causa do facto ilícito do lesante.

                Habitualmente as despesas implicadas por tratamentos médico-cirúrgicos que uma vítima tenha de realizar, mas ainda não haja suportado quando o julgador dê como assente que tais despesas ocorrerão (segundo o tal critério de atendibilidade razoável e fundada), constituem exemplos de danos futuros indemnizáveis.

                Ora, em função da matéria provada existem despesas médico-cirúrgicas futuras em que a lesada necessita e incorrerá com elevada probabilidade para debelar as cicatrizes mais visíveis e ultrapassar o seu stress pós-traumático, tendo tais despesas sido quantificadas (são certos) e sendo altamente prováveis, são igualmente justificadas segundo um parecer clinico e de acordo com um critério de atendibilidade fundada e razoável.

                Tratando-se do ressarcimento de despesas médicas e medicamentosas de que a ora Autora comprovadamente carece para debelar lesões comprovadas, a despesa com tais tratamentos ainda não iniciados – por alegada falta de liquidez – é certa e previsível e de acordo com as regras da experiência e pareceres clínicos emanados, com o retardamento da intervenção os danos constatados poderão naturalmente agravar-se.

                (…)

                Quanto a danos futuros deu-se como provado em 2.1.60 dos factos provados que “A demandante carece de acompanhamento psiquiátrico/psicológico para conseguir debelar a sintomatologia de stress pós-traumático e de reação de ajustamento (psicoterapia) de que padecerá em virtude da agressão de que foi vitima.”

                E que (2.1.61) “necessita de tratamento estético para corrigir e debelar as cicatrizes que por, durante cerca de dois anos, submeter-se: a) sessões semanais de rádio frequência e ultrassons, com o custo mensal de 200,00 €; b) microagulhamento ou mesoterapia a cada 15 dias, com o custo mensal de 250,00 €; c) carboxiterapia mensal, com o custo mensal de 250,00 €; 2.1.62. E de cuidados diários com a pele e corpo nas áreas atingidas e que passa pelo uso de produtos cosméticos específicos (de lavagem, hidratação diurna e noturna, protetor solar coadjuvado com nutracêuticos), que se mostram orçados em cerca de 270,00 € por mês.”

                A demandante peticiona um conjunto de despesas futuras em assistência médica, medicamentosas e farmacológicas durante um prazo estimado de 2 (dois) anos, de acordo com a respetiva calendarização clinica efetuada por parte do seu médico psiquiatra e da sua médica com especialidade em medicina estética e restaurativa que se mostram clinicamente previsíveis e que têm o valor atual de 280,00 €, quanto às quatro consultas semestrais durante o período de dois anos, e de 25.680,00 € quanto aos custos globais previsíveis nesse mesmo período em consultas tratamentos estéticos e dermatológicos.

                Tendo por base o juízo clinico que se mostra efetuado nos pareceres médicos juntos aos autos e seus orçamentos e ainda na audição presencial feita à clinica que prescreve o tratamento dermatológico e de natureza restaurativo em apreço é possível efetuar um juízo de prognose positiva a respeito da sua necessidade, verosimilhança e valores.

                Como tal, atenta a fonte da responsabilidade na reparação destes concretos danos futuros, não tendo sido produzida prova que questionasse a bondade da informação médica – ainda que trazida pelo punho da demandante – o seu pedido, nesta parte, deve proceder na sua totalidade.


*

                Nestes termos, em síntese conclusiva, serão arbitrados à Demandante os seguintes montantes indemnizatórios:

                (…)

                c) a titulo de danos futuros a quantia de 25.960,00 (vinte e cinco mil novecentos e sessenta euros) €.”

            A discordância do arguido e ora recorrente em relação ao montante de € 25.960,00 (vinte e cinco mil novecentos e sessenta euros) arbitrado à demandante na sentença recorrida a título de danos patrimoniais futuros, emerge:

            -  por um lado, da sua discordância em relação à decisão da matéria de facto vertida nos pontos 2.1.60., 2.1.61. e 2.1.62. do elenco factual provado; e

            - por outro lado, do seu entendimento de que não é aceitável que o Tribunal a quo o tenha condenado a pagar a referida quantia sem que tenha condicionado o seu pagamento à efectiva e comprovada realização dos tratamento, bem como à efectiva e comprovada realização da despesa pelo que, não o tendo feito, admite ( implicitamente) que a lesada pode receber a indemnização ainda que não faça qualquer tratamento, faça um tratamento diferente, ou precise de despender menos dinheiro, o que entende não ser aceitável.

            Sintetiza tal argumentação nas conclusões 34ª e 35ª, que densifica no corpo da motivação do recurso do seguinte modo:

             “A Arguida poderia e deveria ter iniciado esse tratamento – o que é cientificamente possível, no período em que as feridas se encontravam em processo cicatricial.

            Não o tendo feito, não pode agora querer imputar ao Arguido um prejuízo que se deve única e exclusivamente à sua incúria, ainda por cima, quando não existe evidência científica que ateste a eficácia dos tratamentos em causa.

            Igualmente grave é a circunstância de se ter atribuído uma avultada indemnização sem que se tenha condicionado o seu pagamento à efetiva e comprovada realização dos tratamentos, bem como à efetiva e comprovada realização da despesa.

            No limite, o Tribunal a quo admite que a lesada possa receber a indemnização ainda que não faça qualquer tratamento ou faça um tratamento diferente, o que, obviamente, não é aceitável!”

            E, com base nela, pretende o recorrente que este Tribunal de recurso se decida por“ revogar a sentença recorrida, substituindo-se por outra que absolva o Arguido quanto aos danos patrimoniais futuros, em particular quanto ao montante destinado à realização de tratamentos à cicatrizes.”

            Tendo em conta o que já deixámos decidido a respeito da pretensão do recorrente tendente à alteração, para não provada, da factualidade contida nos pontos 2.1.60., 2.1.61. e 2.1.62. do elenco factual provado, no sentido da improcedência, é manifesto que também esta pretensão do recorrente agora em análise, com esse fundamento, não poderá obter provimento.

            Vejamos, então, se o poderá ser em face da demais fundamentação para tanto por ele esgrimida.

            Essa argumentação esteia-se em que a demandante ( e não a arguida, como, por lapso, vem adiantado pelo recorrente ) poderia e deveria ter iniciado esse tratamento – por ser cientificamente possível, no período em que as feridas se encontravam em processo cicatricial  - e que, por o não ter feito, não pode agora querer imputar ao arguido um prejuízo que se deve única e exclusivamente à sua incúria, ainda por cima, quando não existe evidência científica que ateste a eficácia dos tratamentos em causa.

            E, sobre a mesma, diremos que esta não poderá fundamentar a pretensão do recorrente no sentido de ver revogada a sentença recorrida na parte em que nela se decidiu o montante a arbitrar à demandante a título de danos patrimoniais futuros, porquanto, tal argumentação, apenas agora, em sede de recurso, vem trazida à colação pelo recorrente, quando, é certo, poderia ter sido - e não foi -  pelo mesmo esgrimida na contestação que apresentou nos autos, na qual teve oportunidade de manifestar a sua posição em relação a tudo quanto vinha alegado no  pedido de indemnização civil, como é o caso da factualidade que nele vem vertida  – nos pontos 89. a 97. – em que a demandante ancora os peticionados danos futuros.

            Por ser assim, não tendo sido alegada, com vista ao conhecimento pelo tribunal recorrido, a factualidade que sustenta o referido fundamento agora esgrimido pelo recorrente em sede recursiva, com vista a eximir-se ao pagamento do montante arbitrado a título de danos patrimoniais futuros na sentença recorrida, não pode agora este Tribunal de recurso levar em conta tal fundamento na apreciação da referida pretensão do recorrente, sendo certo que, também, afastada está a possibilidade de ser equacionada por este Tribunal de recurso a apreciação jurídica que tal “ questão “  poderia suscitar – ter o lesado contribuído para agravamento dos danos, pois, como é consabido, não podem ser suscitadas em recurso questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objecto específico da decisão do tribunal a quo, nem o tribunal ad quem pode assumir competência para se pronunciar ex novo sobre matéria que não tenha sido objecto da decisão recorrida – vide, neste sentido, o acórdão do STJ, de 18.5.2017 – Proc. 85/15.5PDAMD.L1.S1, in www.stj.pt.

            Resta, assim, apreciar se, como pretende o recorrente, não existe a obrigação de indemnizar por parte do arguido em relação ao montante de € 25.960,00 (vinte e cinco mil novecentos e sessenta euros), arbitrado à demandante na sentença recorrida a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, por respeitar a indemnização que foi atribuída sem que se tenha condicionado o respectivo pagamento à efectiva e comprovada realização dos tratamentos, bem como à efectiva e comprovada realização da despesa.

            Pois bem.

            Na apreciação de tal questão importa ter presente as considerações adiantadas na sentença recorrida a respeito dos danos a ressarcir em sede de responsabilidade por facto ilícito, das quais comungamos, e, às quais acrescentaremos, apenas, os seguintes e breves apontamentos.

            São várias as classificações de dano.

            Assim, distingue-se:

            - danos directos – os efeitos imediatos do facto ilícito ou a perda directa causada nos bens ou valores juridicamente tutelados - dos danos indirectos – as consequências mediatas ou remotas do dano directo (Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, I, 6ª Edição, 1989, 567);

            - danos em coisas e danos em pessoas (nos autos estão essencialmente em causa danos pessoais, pelo que os analisaremos, de forma detida, adiante);

            - dano real e dano patrimonial (cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, I, 6ª Edição, 1989, 568 e Luís Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, I, 12ª edição, pág. 297-298) - o dano real corresponde à avaliação em abstracto das utilidades que eram objecto de tutela jurídica o que implica a sua indemnização através da reparação do objecto lesado (restauração natural) ou da entrega de outro equivalente (indemnização especifica) e o dano patrimonial como o que corresponde à avaliação concreta da lesão no âmbito do património do lesado, em virtude da lesão é o reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado, corresponde á avaliação dos efeitos da lesão no âmbito do património do lesado;

            - dano patrimonial e dano não patrimonial, que se distinguem pela possibilidade de no primeiro caso, ser e no segundo caso, não ser susceptível de avaliação pecuniária (como refere Carneiro da Frada in Direito Civil – Responsabilidade Civil – o Método do caso, pág. 91, a distinção entre danos patrimoniais e não patrimoniais não tem a ver com a natureza do bem ou do interesse primariamente atingido, mas sim com a possibilidade de avaliação pecuniária);

            - no dano patrimonial cabe (art.º 564º n.º 1 do CC) não só o dano emergente – corresponde à frustração de uma utilidade que já se tinha adquirido - as despesas com médicos, internamentos, os custos de reconstituição ou recuperação – operações, próteses, tratamentos - como o lucro cessante – frustração de uma utilidade que o lesado iria adquirir se não fosse a lesão;

            - danos presentes – já estão verificados - e danos futuros – têm uma vertente temporal – projectam-se no futuro, são efeitos do facto que só com o passar do tempo se revelarão – e uma vertente qualitativa – tanto são danos patrimoniais emergentes (por exemplo, uma futura operação cirúrgica) como lucros cessantes ( os ganhos que pudessem resultar da hipotética manutenção de uma situação produtora de ganhos durante um tempo mais ou menos longo ).

            Para apreciação da questão que, em concreto, se coloca, haverá, ainda, que considerar que os danos futuros podem dividir-se em previsíveis e imprevisíveis.

            O dano é futuro e previsível quando se pode prognosticar, conjeturar com antecipação ao tempo em que acontecerá, a sua ocorrência.

            No caso contrário, isto é, quando o homem medianamente prudente e avisado o não prognostica, o dano é imprevisível (desconsidera-se o juízo do timorato).

            De harmonia com o disposto naquele preceito, o dano imprevisível não é indemnizável antecipadamente; o sujeito do direito ofendido só poderá pedir a correspondente indemnização depois de o dano acontecer, depois de lesado.

            Quanto aos danos previsíveis, podemos subdividi-los entre os certos e os eventuais.

            Por sua vez, o dano certo pode subdividir-se em determinável e indeterminável.

            Determinável é aquele que pode ser fixado com precisão no seu montante.

            Indeterminável é aquele cujo valor não é possível de ser fixado antecipadamente à sua verificação.

            Determinável ou indeterminável, o dano futuro certo é sempre indemnizável.

            A diferença está em que, no momento de julgar, se deve fixar a indemnização do dano determinável; ao passo que em relação ao dano certo mas indeterminável na sua extensão, a fixação da indemnização correspondente é remetida para decisão ulterior, a execução de sentença, nos termos do disposto no art.º 564º, nº 2 CC, e no art.º 609.º, n.º 2 CPC.

            Para a apreciação da questão que, assim se coloca no presente recurso - a de saber se a factualidade considerada provada na sentença recorrida (que se mantém inalterada, apesar da impugnação à decisão da mesma que o arguido deduziu no presente recurso), sustenta ou não o arbitramento à demandante do montante indemnizatório, a título de danos patrimoniais futuros, no montante de € 25.960,00 (vinte e cinco mil novecentos e sessenta euros), conforme nela foi decidido - importa revisitar a factualidade que, para o efeito, está em causa, e que é a seguinte (já corrigida nos termos supra decididos):

             “2.1.60. A demandante carece de acompanhamento psiquiátrico-psicológico para poder debelar a sintomatologia de stress pós traumático e reação de ajustamento ( com indicação para psicoterapia ) de que padece em virtude da agressão de que foi vítima, durante dois anos o de forma semestral, o que importará o custo total de € 280,00 4 consultas x € 70,00) frequência de, pelo menos, 4 consultas.

            2.1.61. E necessita de tratamento estético para corrigir e debelar as cicatrizes para o que, durante cerca de dois anos, necessita de submeter-se a:

            a) sessões semanais de rádio frequência e ultrassons, com o custo mensal de 200,00 €;

            b) microagulhamento ou mesoterapia a cada 15 dias, com o custo mensal de 250,00 €;

            c) carboxiterapia mensal, com o custo mensal de 250,00 €;”

            2.1.62. E de cuidados diários com a pele e corpo nas áreas atingidas e que passa pelo uso de produtos cosméticos específicos (de lavagem, hidratação diurna e noturna, protetor solar coadjuvado com nutracêuticos), que se mostram orçados em cerca de 270,00 € por mês.”

            Como deixámos já adiantado, no dano patrimonial cabe (art.º 564º n.º 1 do CC) não só o dano emergente – corresponde à frustração de uma utilidade que já se tinha adquirido - as despesas com médicos, internamentos, os custos de reconstituição ou recuperação – operações, próteses, tratamentos - como o lucro cessante – frustração de uma utilidade que o lesado iria adquirir se não fosse a lesão.

            Estando em causa despesas que ainda não foram suportadas pela demandante, mas antes despesas que estão ainda por realizar, referentes ao acompanhamento psiquiátrico/psicológico para que a demandante possa poder debelar a sintomatologia de stress pós-traumático e reação de ajustamento (com indicação para psicoterapia) de que padece em virtude da agressão de que foi vitima e, também, de tratamentos estéticos e dermatológicos com para corrigir e debelar as cicatrizes que apresenta em consequência das lesões que sofreu, dúvidas não podem restar de que tais despesas se integram na categoria de danos patrimoniais emergentes futuros, visto que a respectiva realização se projecta no futuro, não estando ainda verificadas.

            O tribunal recorrido considerou configurarem tais despesas um verdadeiro dano patrimonial futuro, que, por serem previsíveis e determináveis, contabilizou com base nos elementos probatórios que, para o efeito valorou, e, em face disso, procedeu à fixação do respectivo montante indemnizatório.

            Como é consabido, na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior – art.º 564º n.º 2, 2ª parte do CC e 661º n.º 2 do CPC.

            No entanto, se se tratar de um dano futuro cujo valor seja insusceptível de ser determinado mediante decisão ulterior de liquidação, deve o mesmo ser fixado equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566º n.º 3 do CC.

            Adiantando na sentença recorrida que “ Os danos futuros que resultam dados como provados a respeito do tratamento psiquiátrico/psicológico e estético de que a demandante carece e que resultam da lesão são previsíveis e estão orçados e como tal são, pois, atendíveis e a sua valoração será efetuada com base em juízos de prognose, mediante um cálculo de verosimilhança ou probabilístico.”, o Tribunal recorrido procedeu ao cálculo global dos mesmos em € 25.960,00 ( vinte e cinco mil, novecentos e sessenta euros ).

            Tal entendimento não nos merece censura, porque alicerçado nos comandos legais que, para o efeito, devem ser levados em conta, sendo, por isso de sufragar.

            Donde, também quanto a tal pretensão, soçobra o recurso.

            Improcedendo, por isso, na totalidade, o recurso interposto pelo arguido. 


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            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

            (…)

            2. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

            3. Tributação do recurso:

            3.1 Condenar o recorrente nas custas quanto à parte criminal, fixando-se a taxa de justiça em 4UCs ( Art. 513º nº1 CPP, 8º nº9 do RCP e Tabela III a este anexa).

3.2. Condenar o recorrente nas custas quanto à parte cível.


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                        Coimbra, 7 de fevereiro de 2024


            ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – art. 94º, nº2 do CPP )

(Maria José Guerra  – relatora)

(Maria Teresa Coimbra – 1ª adjunta)

(João Abrunhosa – 2º adjunto)